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De Herland de Gilman a The Cleft de Lessing : a revisão da ideia de humano

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Índice

I. A Utopia Feminista... 7

I.I A Utopia Feminista de Charlotte Perkins Gilman e de Doris

Lessing ... 14

I.II As obras utópicas e distópicas de Gilman e Lessing... 22

II Herland e The Cleft : a ideia de humano………..26

III. Herland e The Cleft : O Lugar do homem ... 32

IV. Herland e The Cleft : a revisão de ideia de humano ... 38

Conclusão... 50

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Introdução

Is the race weak? She can make it strong. Is it stupid? She can make it intelligent. Is it foul with disease? She can make it clean. Whatever qualities she finds desirable she can develop in the race, though her initial function as a mother. We should have conventions of young women gathered to study what is the most needed in their race and how they may soonest develop it. For instance, far-seeing Japanese women might determine to raise the standard of height, or patriotic French women determine to raise the standard of fertility, or wise American women unite with the slogan, “No more morons!” (Charlotte Perkins Gilman , His Religion and Hers)

A Utopia é um género literário a que as mulheres têm vindo a recorrer de forma mais sistemática desde o século XIX. Baseada numa leitura atenta de Herland, de Gilman e de The Cleft , de Lessing, procura-se entender como a última tentou apoiar-se na utopia de Gilman, desenvolvendo-a e actualizando-a para os nossos tempos. Esta dissertação parte assim dos tempos conturbados em que Gilman viveu e da sua luta incessante pela valorização, independência e direitos das mulheres até aos dias de hoje, onde a mulher ainda se depara com muitos entraves sexistas, quer a nível profissional quer pessoal. O objectivo desta dissertação será perceber em que aspectos é que Gilman influenciou Lessing, e de que forma Lessing reciclou o que a sua antecessora lhe deixara para construir uma utopia explicativa do início dos tempos, prévia à existência do próprio ser humano. Esta viagem não foi fácil de entender e decerto comporta algumas limitações, pois The Cleft é ainda um livro recente e com pouca ou nenhuma crítica académica publicada.

Partimos da definição de Utopia como um género literário, e mostrando-nos atentos à noção de espaço1 imaginário e ideal. A Utopia leva-nos de facto para um espaço, para um lugar que de algum modo é melhor do que aquele em que vivemos. A noção de espaço é de facto uma ferramenta conceptual relevante, pois permite-nos, entre outros aspectos, realizar uma reforma social imaginária, e contudo esperançosamente realista. As utopias começam, normalmente, com uma viagem maravilhosa e cheia de aventuras, uma viagem fictícia e excitante. Segundo Louis Marin:

      

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From the time of More’s book, Utopias have tended to begin with a travel, a departure and a journey, most of the time by sea, most of the time interrupted by

a storm, a catastrophe which is the sublime way to open a neutral space, one which is absolutely different […]2

(Marin, 1973: 7-10)

Na realidade Herland começa com uma viagem de três homens aventureiros que ouvem falar de um lugar recôndito e misterioso que é povoado apenas por mulheres.

The Cleft não começa com uma viagem física mas com uma viagem ao passado, com

uma memória de outros tempos.

Se a Utopia é “the way of the limes”, como Marin sugere em algumas das suas críticas, então existe uma relação entre utopia e realidade. Obviamente que em Herland de Gilman pretende acordar os homens para a actual posição das mulheres na sociedade e transmitir com clareza o que realmente as mulheres são capazes de fazer sozinhas. Em

The Cleft o leitor é levado para um mundo pré-histórico, para uma versão alternativa do

início da humanidade. E no final da leitura pode facilmente existir uma identificação com essa versão do início dos tempos. à utopia é essencial para compreendermos que, embora tenha como base a ficção, a utopia é uma estratégia viável para realizar uma mudança social, adaptando ou transformando o que já existe, ou ainda como um esboço para a criação de uma nova comunidade que é diferente e que rejeita completamente o que já é. O utopista imagina a forma como certos aspectos na sociedade poderiam ser mudados, ele vai para além do real, sem contudo soltar completamente as amarras deste; já a utopia, é na verdade, um mundo imaginário que existe num balão de ar quente que ainda tem as suas amarras presas à terra firme. Como explica Louis Marin a utopia não é pura fantasia:

Que le dialogue utopique ait une fonction critique, celá est certain. La représentation de la Cité parfaite, le tableau de ses moeurs, de ses institutions et de ses lois, parce qu’il est tableau et représentation, trouve un référent négatif dans la société réelle et fait émerger une conscience critique de cette société.

(Marin, 1973: 110)

A Utopia proporciona-nos, sem dúvida uma forma de reflexão sobre a sociedade actual, revela o que existe de errado nessa sociedade e sugereo que se pode fazer para a

      

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melhorar. E foi exactamente isso que Gilman tentou fazer na sua utopia Herland e que Lessing faz em The Cleft. Gilman pretende lutar silenciosamente, através de Herland, contra uma sociedade que oprime as mulheres; e Lessing demonstra que aind nos nossos dias, debaixo do véu do mundo ocidental, o sexo feminino ainda é sujeito a uma opressão semelhante.

De facto, muitas mulheres recorreram e recorrem à Utopia para projectarem ficticiamente ansiedades e fantasias que não atingem no mundo real. Assim se compreende que muitas das Utopias modernas tenham uma assinatura feminina e reflictam sobre questões relevantes para as mulheres. Carey3 nota que a questão da igualdade de género tem sido desde sempre uma característica dos textos utópicos, começando muito antes de Gilman com autores masculinos como Platão. A História dá de facto conta do interesse que desde sempre os autores de Utopias evidenciaram pela posição das mulheres nas sociedades reais e ideais. Como Jane L. Donawerth e Carol A. Kolmarten4 sugerem na introdução ao livro que editaram sobre utopias de mulheres, a investigação feminista neste campo tem vindo a centrar-se em três áreas chave: primeiro a utopia oferece um panorama discursivo de como o papel dos géneros pode ser reimaginado. Em segundo lugar, a possibilidade de que as mulheres escrevem utopias de forma diferente tem sido levantada e tem sido também objecto de debate acerca da existência de uma escrita distinta e identificadora da escrita de mulheres. Em terceiro lugar a pesquisa feminina propôs-se a si mesma a tarefa de descobrir se há uma tradição de utopias de mulheres que tenha sido, porém, negligenciada. (Donawerth e Kolmarten, 1994: pp. 76-78)

Encontramos em The Cleft e em Herland uma forma de reimaginar a sociedade. São apresentadas duas sociedades cujo sexo forte é sem dúvida o sexo feminino, descurando e até não reconhecendo o sexo masculino como parte daqueles lugares. É como se diante do leitor tanto Lessing como Gilman quisessem transparecer uma subversão do papel do homem e da mulher na sociedade. É quase irónica esta visão tão diferente do mundo destas duas autoras separadas pelo tempo mas não pelas intenções. Esta escrita das utopistas femininas chega a ter traços próprios, pois transporta para o papel a ideia de como seria a sociedade se as mulheres estivessem no poder. E será que existiram mais obras de mulheres utopistas que foram deixadas no esquecimento? Será que muito

      

3

 Carey, The Faber Book of Utopias, pp. xxiii–xxiv. 

4 Jane L Donawerth and Carol A Kolmerten (eds.), Utopian and Science Fiction by Women. Worlds of Difference

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antes de Gilman e Lessing já a mulher lutava por um lugar numa sociedade predominantemente machista? Eram os mesmos receios? A contestação era menor? Maior?

Donawerth e Kolmerten discutem este tema concluindo que ao longo dos últimos quatro séculos, as escritoras têm inventado ou vindo a apropriar-se de técnicas da literatura de estranhamento com a intenção de escreverem sobre um lugar melhor, um lugar onde o género não seria limitador, como o é, na sua própria experiência de vida. As suas conclusões são deliberadamente provocadoras e alvo de uma constante e crescente crítica.

A igualdade não podia ser aceite pelas sociedades vigentes há um ou dois séculos atrás, e tais discursos destabilizadores podiam até ser aceites na escrita mas nunca na prática. A emancipação da mulher foi construída como “la subversion radicale de l’ordre social”, e sendo contrária à razão, não era aceitável: “La communauté des femmes s’oppose alors aux intérêts de tous et permet de reserrer les liens d’une communauté d’hommes des classes privilégiées, en quête de consensus social” (Riot-Sarcey, 2003: 207). Riot-Sarcey aponta que os oponentes à emancipação da mulher do século XIX usaram o discurso utópico como um registo de crítica negativa para reforçarem as falhas da sociedade patriarcal.

O Utopismo tem tido uma história oscilante no que diz respeito ao seu potencial como discurso feminista. A construção de uma igualdade sexual como utópica, significa que não é realizável, pois no século XIX não se podia deixar tal perigo ser difundido. No século XIX a luta pela igualdade dos géneros ainda era muita, logo muitas mulheres se agarravam a utopias para projectarem a sociedade em que gostariam de viver. Perspectivando desta forma, o não-lugar da utopia torna-se o ”historical nowhere-and-never-will-be “ para o qual as ideias se tornam difíceis de ser alcançadas, e por isso, despolitizadas: “enfermés dans l’imaginaire, ils peuvent plus aisément être rejetés du côté de l’ailleurs” (Riot-Sarcey, 2003: 209).

Correlativamente, a emancipação das mulheres era vista como distópica, problemática e perigosa por parte do status quo. Os sonhos das mulheres pareciam ser um pesadelo para os seus opressores. A inquietação das mulheres e todas as suas ansiedades passavam para a utopia. Na utopia eram membros da sociedade e esses desejos perturbavam o sistema social da altura onde os homens imperavam. Isto sugere

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que essas mulheres ou qualquer outro grupo excluído poderiam ter uma relação especial com a utopia, pois permitia-lhes conseguir por esse meio uma inclusão na sociedade e serem tratadas como iguais. Da educação à política, da psicologia à justiça… a comunidade das fendas e das herlandianas superavam todas as expectativas dos homens. E, poderiam, eventualmente, explicar e descrever um mundo, onde as mulheres que tivessem uma palavra a dizer também seria aceite, apresentando-se o utópico como algo desejável e, quisessem-no as mulheres e os homens, mesmo realizável.

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I. A Utopia Feminista

When equality and difference are paired dichotomously, they structure an impossible choice. If one opts for equality, one is forced to accept the notion that difference is antithetical to it. If one opts for difference, one admits that equality is unattainable.

(Joan Scott, 1992: 260)

Aprisionadas no papel de donas de casa dedicadas e de mães extremosas, desde sempre que as mulheres sentiram necessidade de emancipação e de emergir para a vida. As mulheres sempre se dedicaram aos homens quase única e exclusivamente, deixando para trás os seus desejos, os seus sonhos e os seus anseios. O mundo evoluía e as mulheres pareciam estar estagnadas. Alguns gritos de loucura foram ouvidos, mas de imediato foram abafados e pereceram no seio de um mundo totalmente masculino. Ao longo da História as mulheres foram deixadas para trás, esquecidas, vistas como adornos necessários na vida dos homens. Mas a história faria com que toda essa situação mudasse. Num ápice, as mulheres estudaram, educaram-se e lutaram por si. Não se pode falar seriamente de um nascimento do Feminismo, mas sim de um despertar para o Feminismo lento que foi contudo evolutivo e que perdura até hoje e, possivelmente, se estenderá para o futuro.

Os Movimentos Feministas propriamente ditos emergiram e afirmaram-se apenas no século XIX. Contudo, já nos finais do século XVIII, no rescaldo da Revolução Francesa houve vozes de mulheres que se fizeram ouvir, lutando pela sua afirmação no meio de uma sociedade patriarcal. Na verdade, as mulheres foram motivadas pelo espírito revolucionário que punha em causa o sistema político e social vigente. Podemos dizer que, desta forma, esse espírito foi estendido à análise da situação das mulheres e traduziu-se na denúncia da sujeição perversa a que eram mantidas perante os homens a

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todos os níveis da existência: jurídico, político, económico e educacional. Enquanto os revolucionários redigiam uma declaração dos direitos do Homem, Olympe de Gouges5 redigia secretamente uma declaração dos direitos da Mulher inspirando-se nos argumentos de Condorcet.

Simultaneamente, no Reino Unido e nos Estados Unidos, muitos movimentos feministas foram-se afirmando. Nos Estados Unidos, em 1837, fundava-se a Universidade Feminina de Holyoke. Também nesse mesmo ano se realizou uma convenção de mulheres que se opunham à escravidão. A abolição da escravatura foi sem sombra de dúvida um dos principais temas defendidos pelos movimentos feministas norte-americanos.

O Reino Unido também foi palco de inúmeras efervescências feministas na viragem para o século XIX. Mary Wollstonecraft publicou A Vindication of the Rights of Woman em 1792, onde constava uma reinvindicação dos direitos das mulheres. Esta obra defendia que as mulheres deveriam ter os mesmos direitos que os homens na educação, no trabalho e na política. Mas só em finais do século XIX é que, com a ajuda de Barbara Leigh Smith e do filósofo e economista John Stuart Mill, se criou um comité para o sufrágio feminino. Em 1866 este mesmo comité apresentou ao Parlamento um projecto igualitário que acabaria contudo por ser recusado.

O século XX testemunhou o nascimento de múltiplos movimentos feministas, especialmente durante a I Guerra Mundial, período durante o qual os movimentos sufragistas se propuseram a ajudar os seus soldados. Foi sem dúvida em reconhecimento desse esforço que o direito ao voto foi concedido às mulheres 1918. Na verdade, em 1928 as mulheres passaram a gozar de uma igualdade política sem qualquer discriminação.

Ao longo da História as mulheres viveram consigo mesmas e com o seu mundo em redor. A fuga deste aprisionamento sexista e opressor em que pereciam seria apenas possível através da imaginação, do escape da realidade para um mundo ideal, um mundo feminino. Como explica Frye, esta imaginação consistia na construção de hipóteses, tendo como referente algo que não existia na realidade. Na minha

      

5 i. Olympe de Gouges era o pseudónimo para Marie Gouze, que nasceu em 1748. Foi feminista, revolucionária,

democrata jornalista e escritora. O seu revolucionismo valeu-lhe a guilhotina na Praça da Revolução.

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perspectiva, em vez de imaginação Frye6 poderia ter usado a palavra Utopia, já que também esta tem um referente invisível e vive na ficção.

Foi pois na Utopia que o mundo feminino se manteve afastado do mundo real, presente e obsessivamente masculino. As mulheres transportavam-se para um não lugar aprazível, justo, verdadeiramente igualitário e um espaço livre.

Apesar de parecer fechado na imaginação pelo facto de ter como referente um

não-lugar, a verdade é que a Utopia, e nomeadamente, a utopia feminista, tem como

referente implícito o real, constituindo-se assim, ainda que indirectamente, como um discurso crítico sobre a realidade. Entre um referente visível e um referente implícito, a utopia feminista afirmou-se sobretudo enquanto manifestação de um espírito crítico e criativo. Esta crítica denuncia e condena o presente através da ficção, explora o mundo dos possíveis e provoca experiências de estranhamento.

As utopistas feministas responderam desta forma às lacunas sociais, políticas e económicas dos séculos XIX e do início do século XX. O despertar das políticas parlamentares, bem como a expansão do comércio e das trocas internacionais mudaram para sempre o universo feminino, quer a nível da psicologia e da educação, quer mesmo a nível do conceito de família. As mulheres encontravam-se sujeitas a uma imensa pressão económica e as ideias feministas levaram as escritoras a explorar estratégias de mudança através da criação de mundos utópicos. As utopias feministas não se afirmaram contudo pela oposição às utopias tradicionais escritas por homens. As suas utopias eram antes diferentes, não só porque eram escritas por mulheres com ideais e diversas, mas também porque, frequentemente, se debruçavam sobre problemas especificamente femininos, sendo sobretudo analíticas da prisão social e mental a que as mulheres se encontravam sujeitas. Verifiquemos algumas dessas diferenças: as histórias das autoras feministas ocorriam normalmente no lugar em que elas viviam, perto de si. Talvez com isto tentassem mostrar que a mudança para melhor estaria mesmo ali e que

      

6 Afirma Frye a este propósito “Utopian thought is imaginative, with its roots in literature, and the literary

imagination is less concerned with achieving ends than with visualising possibilities… The Word ‘imaginative’ refers to hypothetical constructions, like those of literature or mathematics. The word ‘imaginary’ refers to something that does not exist” (Frye,1973:32).

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não era necessário viajar para mundos exóticos e perdidos para a alcançar. Para as autoras de utopias feministas a distância para a Utopia não é grande e as mudanças na sociedade estão mesmo diante de cada indivíduo, cada um tem o poder para mudar. A criação da utopia implica um esforço cooperativo de indivíduos e depende da participação de um número de pessoas num projecto num determinado período de tempo. Sarah Scott, por exemplo, demonstra como os habitantes do Millenium Hall7

apresentam um a um as suas histórias de vida e explicam como é que completaram um projecto depois do outro, trazendo gradualmente a sociedade até ao agora.

Nas utopias feministas o comportamento humano é guiado não por forças externas mas por forças interiores. As escritoras de utopias feministas invocam novas teorias psicológicas e educacionais e usam a ficção e a conversação para esse fim. Tal abordagem sugere não só novas ideias sobre subjectividade e sobre a responsabilidade do indivíduo mas também alguma atenção ao que a ocasião pede num determinado momento em vez da adesão a um sistema previamente estabelecido. Esta atitude é evidente quando se observa como uma sociedade exclusivamente feminina organiza a sua comunidade utópica. Em Millenium Hall o objectivo é o crescimento da sociedade, determina a forma como esta é construída. Nesta sociedade não é um plano governamental que resolve os problemas, são estas, as mulheres, que os vão resolvendo à medida que com eles se vão deparando. É dada, deste modo, ênfase à capacidade feminina de criação. Nas Utopias tradicionais encontramos casas rigorosamente desenhadas e construídas, caracterizadas por serem geométricas e repetidas. As cidades da Utopia de Thomas More são todas iguais “…in imitation of the Sun and its Rays…” (More, 1518: 80).

As Utopias de Mulheres sugerem novos conceitos de poder e de identidade, assim como preocupações acerca da relação dos indivíduos uns com os outros, com a família e com o Estado.

Estas utopias feministas não anteciparam nem descreveram arranjos no governo nem na política, nem mesmo até na família. Em vez disso, elas reflectem uma nova ficção como forma de antecipação de reformas profundas na microeconomia das relações

      

7

A Description of Millenium Hall and the Country Adjacent foi uma obra de Sarah Scott de 1762. Foi editado em 1778 e mereceu a atenção da comunidade feminista da altura. O livro descreve como cada residente de Millenium Hall relata a sua chegada ao local.

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pessoais e na interacção numa comunidade. Neste sentido, elas redesenham o horizonte da esfera pública. (Sargisson, 1996: 79-83)

As autoras de utopias feministas começam, normalmente, por mostrar a forma como as mulheres estão profundamente alienadas e limitadas pela sociedade patriarcal.

Tentam apresentar ao leitor uma sociedade alternativa, na qual se sintam em casa e possam manifestar-se (Pearson, 1977: 4). A Prophecy de Mary Bradley Lane, Woman

on the edge of time, de Marge Piercy, The Female Man, de Joana Russ, The Kin of Ata

Are Waiting for You, de Dorothy Bryant , From the Legend of Biel,de Mary Staton e

The Dispossessed ,de Ursula Le Guin são exemplos de obras que definem essa

consciência feminista. Nestas utopias não existem funções típicas de homem ou de mulher. Os narradores de Kin of Atae de Woman on the Edge of Time têm dificuldade em dizer de que sexo é que as pessoas são. O sexo não é muito importante na diferenciação das pessoas. Os exploradores de Herland sentem-se chocados com o facto de as mulheres não se aperceberem do que eles são homens e de os tratarem como qualquer habitante, como se o facto de ser homem fosse algo menos. É a total ausência do privilégio de ser homem ou mulher que acompanha todas estas utopias, não existe uma distinção racial ou social entre ambos.É interessante notar que a mulher é capaz de desenhar sociedades sem a intenção de domínio, porque lhe falta a experiência de dominar. É mais fácil para as mulheres idealizarem uma sociedade, na qual elas trabalharam sem serem pagas e onde uma atmosfera de competição não exista. As mulheres como domésticas nunca ganharam dinheiro nem tiveram salário, mas continuaram a trabalhar por amor às suas famílias, por um sentido de orgulho e de dever. Mesmo quando trabalhavam fora de casa, não desenvolviam um grande sentimento de competitividade, pois não tinham muitas hipóteses de subir na carreira. As mulheres trabalhavam como secretárias, professoras e criadas, sem nunca esperarem um aumento salarial. Como Shevek explica em The Dispossessed:

Here you think that the incentive to work is finances, need for money or desire for profit, but where there's no money the real motives are clearer, maybe. People like to do things. They like to do them well. People doing them, they can--egoize, we call it--show off?-- to the weaker ones. Hey, look, little boys, see how strong I am! You know? A person likes to do what he is good at doing. . . . But really, it is the question of ends and means. After all, work is done for the work's sake. It is the lasting pleasure of life. The private conscience knows that. And also the social conscience, the opinion of one's

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neighbors. There is no other reward, on Anarres, no other law. One's own pleasure, and the respect of one's fellows. That is all. When that is so, then you see the opinion of the neighbors becomes a very mighty force (The Dispossessed, 1999: 121).

As visões utópicas surgiram destas experiências positivas e negativas das mulheres. As utopias feministas desprezaram a divisão entre o mundo desumano do mercado de trabalho, o coração humano e ainda padrões de toda a sociedade sobre os princípios que idealmente governavam a casa. As feministas visionavam famílias de pessoas com os mesmos direitos, sem qualquer patriarca para as dominar. Em Bryant's The Kin of Ata, há sempre palavras para homens e mulheres mas quase nunca são usadas, usa-se simplesmente kin. Não se trata de existirem famílias claustrofobicamente nucleares, mas famílias extensas que escolheram viver em grupo. No caso de The Cleft, as mulheres não estabelecem vínculos tão estreitos com os filhos, apenas existem em prol do grupo e daquela sociedade.

Normalmente, a utopia feminista é composta por sociedades pequenas, onde todos os habitantes se conhecem. Em The Female Man de Russ, estes grupos consistem em aproximadamente trinta elementos (Pearson, 1977: 49). Como muitas destas utopias ilustram, tais relações podem governar uma sociedade inteira porque todas as pessoas estão ao mesmo nível, desempenhando cada elemento, uma função previamente determinada. O narrador de Herland explica que esta terra não tinha inimigos pois todos eram mães, irmãs e amigas. Piercy integra os homens numa utopia feminista, pois coloca-os no papel de mãe.

Apesar da relação de mãe-filha ser vista como o padrão de todas as relações humanas, o elo biológico entre elas não é exaltado. Em Woman on the Edge of Time, From the

Legend of Biel, as mulheres já não dão à luz bebés e o período da infância é curto. A

dissolução da família nuclear e o não exaltar do elo biológico entre mãe e filho conduzem a uma redefinição dessa relação, muito menos vinculada e distante.

Na realidade, o conceito de utopia feminista surgiu quando os projectos utópicos masculinos que encarnavam tensões e necessidades de mudança, não representavam um lugar alternativo para as mulheres. Nestas utopias masculinas não há a possibilidade das mulheres escaparem da realidade.

Revivendo a história da utopia de uma perspectiva feminina, existe uma duplicidade da imagem da mulher da Cultura Ocidental: por um lado, a mulher como terra virgem

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não cultivada, como útero; por outro lado, a mulher como força obscura, ameaçadora, com um apetite sexual insaciável.

A posição subordinada da mulher face à utopia pode ser explicada pelo facto de a maioria das utopias do passado terem sido escritas por homens. Nas utopias escritas por mulheres a visão patriarcal é substituída por uma visão matriarcal, na qual os homens são eliminados (são utopias onde, por exemplo, o mito das Amazonas é retomado). No final do século XIX e início do século XX, houve uma espécie de casamento entre o feminismo e a utopia. Tanto o género utópico como a ficção científica passaram a ser vistos pelos críticos como uma estratégia para desconstruir o sistema patriarcal responsável pela exclusão e opressão das mulheres criando um terreno fértil para uma experimentação e procurando uma linguagem utópica feminina. Um dos aspectos que associam a utopia ao feminismo é, não só o desejo de criticar e desconstruir o status

quo, e para além do desejo de apresentar um mundo que é radicalmente diferente do

actual, um mundo que já não é rigidamente estruturado pela divisão de papéis, um mundo capaz de dar voz ao território feminino da diferença.

O pensamento feminino é rico sobretudo pela sua capacidade de criar ficções políticas alternativas e rever mitos antigos para sugerir novos. A utopia feminina dos últimos anos deu voz aos modelos utópicos recentes que são desejáveis pois exaltam os valores reais da cultura feminina: pacifismo, ecologia e descentralização de poder. A ideia principal da utopia feminista é criar um conceito de uma nova mulher, diferente do conceito patriarcal de mulher (Vita Fortunati, Spaces of Utopia, 2006: 4-7).

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I.I A Utopia Feminista de Charlotte Perkins Gilman e

de Doris Lessing

Charlotte Perkins Gilman nasceu a 3 de Julho de 1860 e morreu em 1935. Foi uma reconhecida sociologista e escritora de short stories e de poemas. Num tempo conturbado para as mulheres, toda a obra e vida de Gilman serviram de modelo para gerações feministas.

Gilman sempre registou de uma forma irónica e quase humorística as suas preocupações com a sociedade Americana. Ela demonstra ao leitor que o ideal nacional é difícil de reproduzir e que todo o cidadão americano deve ser livre. Gilman achava que algo estava errado com a sociedade americana e as propostas para resolver essa lacuna foram o trabalho da sua vida. A palavra genealogia emerge muitas vezes como um conceito-chave das suas obras, pois Gilman acreditava que a mulher tinha um papel fundamental no processo de redesenho do verdadeiro branco nacional8. A maior parte das suas formulações filosóficas e políticas estão intimamente relacionadas com o pensamento genealógico e com o pensamento reprodutivo.

      

8

 Segundo Gilman o verdadeiro branco nacional era o verdadeiro americano fruto dos primeiros colonizadores sem mistura de sangue índio ou de outra minoria étnica. 

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Herland, de Gilman, descreve uma sociedade de mulheres supostamente americanas. A história começa com uma exploração realizada por americanos que descobrem um mundo isolado da restante da civilização nos confins da terra. Fascinados pela organização, limpeza e beleza do lugar, os exploradores decidem procurar algum sinal dos homens que tinham construído tal paraíso visto que, do seu ponto de vista, tal obra só poderia ser produto de mãos e mentes masculinas. Percebe-se, desde esse primeiro momento, a utilização por parte de Gilman da figura do estrangeiro como um olhar crítico em relação a esta sociedade. Em Herland, todavia, Gilman faz uso não de um, mas de três protagonistas masculinos, Jeff, Van, e Terry, para discutir várias esferas de comportamento que compõem o pensamento masculino na sociedade e o consequente preconceito em relação às mulheres. Para Jeff, as mulheres são condenadas a serem idolatradas, nunca tocadas. Terry, por outro lado, representa o estereótipo do machista que vê as mulheres como meros objectos de desejo; é a submissão que atrai Terry. Van, o terceiro explorador, é apresentado como um ponto de equilíbrio entre Jeff e Terry: à medida que aprende mais e mais sobre esse mundo utópico, melhor o compreende. Apesar do seu contacto inicial com as mulheres apresentar muitos dos preconceitos de Terry, aos poucos Van muda suas concepções e ganha um verdadeiro respeito por elas que não chega aos excessos de Jeff. Terry é o único que não se deixa herlandizar, ele mostra frustração e descontentamento com a assexualidade das suas habitantes e tenta forçar relações sexuais com Alima. Este tipo de acção imprópria de Terry provém do seu carácter racial implícito (impropriedade branca e civilizada ameaçada por actos de selvajaria não civilizada). Aqui Gilman parece demonstrar que o selvagem (Terry) nunca poderá ter uma ariana (herlandiana). Ele é uma ameaça àquela nação. Segundo Gilman, “White women have often been degraded by white men, whose sexuality has been tainted by their prior sexual transgressions with brown women whom they view as sisters under their skins” (Weinbaum, 2004: 96). A não compreensão destes valores conduz à expulsão de Terry. A questão do género é o tema central desta utopia, que especificamente nos mostra a forma como este conceito é. Contudo, Gilman não discute a sexualidade das mulheres no seu mundo fictício. As mulheres de Herland são compreendidas pelos homens como seres assexuados. Temos a impressão de que, para serem perfeitas, as mulheres devem abdicar da sua sexualidade. A problemática racial também não foi abordada de forma directa por Gilman, assim como a noção de genealogia, pois ao ler-se que as mulheres parecem ser descendentes da nobre linhagem

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dos arianos, presume-se que estas sejam brancas, um facto similar às teorias científicas das primeiras décadas do século XX que relacionavam o conceito de civilização com a raça caucasiana. A ausência de discussão destes dois pontos não diminuiu em nada a importância de Herland como uma obra que antecipou vários tópicos de relevância para o feminismo, mas também para o desenvolvimento da literatura utópica. É, contudo, incontestável que Herland exemplifica a utilização das convenções literárias das utopias para tecer uma subversão à ideologia patriarcal (Weinbaum, 2004: 35).

Na ficção de Gilman os cenários utópicos reprodutivos e as visões alternativas da maternidade servem de pano de fundo à mudança social. Por exemplo o trabalho da mulher, por exemplo, não é só feito em casa, ela deve contribuir para a construção de uma sociedade melhor que reproduza a nação pura. Toda esta situação reporta-nos para o filósofo Friedrich Nietzshe e para a sua obra On the Genealogy of Morals, onde Nietzshe considera a geneologia uma ferramenta para o pensamento crítico. Essa genealogia é comummente definida como uma demanda pelas origens e pela descendência, ou seja, pelos nossos antepassados e pela elaboração do nosso pedigree (origem, raça).

Outro problema que apoquentava Gilman era a questão da raça. Mas esta questão também era comum a outras feministas da altura, tais como Gail Bederman e Louise Newman. Esta primeira onda de feministas estava disposta a desenvolver um discurso evolucionário sobre uma white civilized Womanhood. E esta teoria é realmente baseada em conceitos similares a estas autoras como pedigree, descent, purity, e kinship. Estes conceitos são todos conceitos genealógicos que fundamentam o feminismo de Gilman. De facto, para entendermos Gilman teremos inicialmente de entender a sua genealogia. No auge da sua vida, Gilman escreveu ficção, poesia, críticas de análise social, e críticas de análise política publicadas no seu próprio jornal The Forerunner (1909-1916). Escreveu também cerca de 171 short stories, 9 livros e foi autora de inúmeros ensaios. No entanto, outros trabalhos não foram editados e outros até foram perdidos. Morreu antes de ver The Living of Charlotte Perkins Gilman editada, uma obra biográfica escrita por um autor que a própria escolheu. Nesta obra ela confessa, na última página:

When all usefulness is over, when one is assured of unavoidable and imminent death, it is the simplest of human rights to choose a quick and easy

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death in place of a slow and horrible one… I have preferred chloroform to cancer. (Gilman, 1935: 45)

Para Gilman, de onde se vem e quais são as nossas origens é tão importante como as experiências de vida. Como reformadora fortemente dedicada a uma mudança na sociedade, Gilman foi influenciada por uma série de ideias durante um período de evolução social. Ela própria provinha de uma linhagem real ligada ao Império, situando-se assim como herdeira de um legado de conquistas imperiais, assituando-segurando aos cépticos que vem de uma família antiga e tradicional. (Weinbaum, 2001: 280)

Por outro lado, Gilman é defensora de conceitos como race-suicide. Como se sabe, entre 1890 e 1930 Gilman distinguiu-se como feminista activa e defensora dos direitos das mulheres. Mas também, nesta altura, vários imigrantes acorreram aos Estados Unidos para conseguirem melhores condições de vida. E muitos desses imigrantes casavam ou juntavam-se a membros da comunidade já existente, e desta forma nasciam crianças frutos de diversas raças e credos. Por outras palavras, frutos de imigrantes ou de imigrantes e autóctones nasciam cada vez mais e cada vez menos frutos da raça pura davam à luz. Estava-se pois numa situação de race- suicide. Tal como Ross explica, a América, inclusive os Estados Unidos, estavam a ser invadidos por outros povos oriundos de outros países, o que fazia com que os Americanos estivessem numa fase de perda de identidade.

The superiority of a race cannot be preserved without pride of blood and an uncompromising attitude toward the lower races. In Spanish America the easy going and unfastidious Spaniard peopled the continent with half-breeds, and met the natives half way in respect to religious and political institutions…In North America, on the other hand, the white men have rarely mingled their blood with that of Indian or toned down their civilization to meet his capacities… the net result is that North America from the Behring Sea to the Rio Grande is dedicated to the highest type of civilization; while for centuries the rest of our hemisphere will drag the ball and chain of hybridism.

(E. A. Ross, 1901: 16)

Estas ideias, partilhadas também por Gilman, eram propostas em grandes debates entre nativistas e restricionistas, em que ela também intervinha regularmente. Entre muitos autores que escreveram e falaram sobre esta questão, destacam-se nomes como Madison Grant, Lothrop Stoddard e E. A. Ross. E assim Gilman afirma num desses discursos:

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Our swarming immigrants do not wish for a wilderness, nor for enemies. They like an established nation, with free education, free hospitals, free nursing, and more remunerative employment than they can find at home…The amazing thing is the cheerful willingness with which the American people are giving up their country to other people, so rapidly that they are already reduced to scant half of the population. No one is to blame but ourselves. The noble spirit of our founders, and their complete ignorance of sociology began the trouble. Consequently they announced, with more than royal magnificence, that this country was “an asylum for the poor and oppressed of all nations”.

***

Nascida em 1919, Doris Lessing ganhou o prémio Nobel da Literatura em 2007. Toda a obra de Lessing é perpassada pela avaliação e questionamento do conceito de liberdade. Este tema está presente, de forma notória, numa das suas obras mais proeminentes, The Golden Notebook. A mulher retratada por Lessing é sempre alguém inteligente e sensível, que discute constantemente a relação entre o ser como indivíduo e o colectivo da consciência, sublinhando a ambivalência e a importância do compromisso como sendo algo fora do eu. Fundamentalmente, o mundo ficcional de Lessing acaba por ser ao mesmo tempo ficcional e próximo do mundo em que vivemos, o que despoleta alguns problemas aos críticos literários. Por um lado, esse mundo tem a hipótese de emergir no mundo real e de existir cronologicamente e, realmente, por outro lado ele poderia retirar-se a si próprio do mundo estabelecido pelo autor e tornar-se mais profundo, fugindo ao nosso entendimento da ficção. A obra de Lessing é extremamente complexa, tanto nos apresenta mundos que poderiam ser reais a nível cronológico e físico, como, por outro lado, nos oferece a descrição de mundos completamente ficcionais e difíceis de concretizar. Situações há, ainda, onde se observa a junção destas duas perspectivas.

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A visão que Lessing apresenta do mundo contemporâneo é feita de uma forma sábia, baseada no Sufismo9 fundamentado no misticismo Islâmico que ela sempre admirou. Com excepção das primeiras obras de Lessing que foram simplesmente influenciadas pelos ideais sufistas, três das suas outras obras Briefing for a descent into Hell (1971),

The Summer Before the Dark (1973) e The Memoirs of a Survivor (1974) são

literalmente fábulas sufistas, isto é, histórias simbólicas que iluminam a verdade. A verdade Sufi que está por trás destas histórias é que a vida é só uma e que nós facilmente nos esquecemos dessa verdade fundamental. Agora temos apenas duas escolhas possíveis: oneness e catastrophe10. Lessing advoga que nós, conscientemente e activamente devemos escolher o personal wholeness e reconhecer a nossa singularidade em relação aos outros e em relação à natureza, ou seja a androgenidade11sob a pena de destruirmos quase tudo no planeta. Lessing, inteligentemente, usa as palavras wholeness e oneness em vez de andrógino. Como todos os outros sufistas, Lessing sente que tem uma especial sensibilidade que lhe possibilita a percepção da importância do ser andrógino (social, pessoal e unidade cósmica), mas também demonstra a impossibilidade de outras pessoas partilharem essa visão. Segundo Lessing, esta impossibilidade está relacionada com o facto de as sociedades patriarcais ocidentais terem desencorajado o desenvolvimento de vários poderes designados por “femininos”, que Lessing acredita que deverão ser estudados. Nestes poderes incluem-se a percepção extra-sensorial, a intuição, os sonhos e as viagens ao espaço interior. De acordo com Lessing, estes seriam os meios de percepção do nosso potencial “inteiro”, imprencindível para a criação de sociedades por “inteiro”. Por outras palavras, eles permitir-nos-iam ter uma visão andrógina.

Na obra Briefing for a Descent into Hell, por exemplo, o protagonista Charles Watkins desencadeia uma viagem no seu espaço interior num esforço de se recordar de algo que lhe parece muito distante. No decorrer desta viagem, o leitor fica a saber que os deuses o escolheram para ser um dos “Descents”, ou seja, alguém que detém o conhecimento de tudo, das plantas e dos animais, um conhecimento já esquecido.

      

9 Conhecido por muitos como o misticismo do Islão, o sufismo é uma filosofia de autoconhecimento e contacto com

o divino através de práticas meditativas, retiros espirituais, danças, poesia e música. Os sufis acreditam que Deus é amoroso e o contacto com ele pode ser alcançado pelos homens através de uma união mística, independente da religião praticada. 

10 Houve preferência pela não tradução destes conceitos, pois não se encontrou em Português palavras equivalentes e

adequadas. 

11 O andrógino é aquele(a) que tem características físicas e, para além disso as características comportamentais de

ambos os sexos. Assim sendo, torna-se difícil definir a que género pertence uma pessoa andrógina tendo em conta apenas a sua aparência. 

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Assim, Watkins apercebe-se de que, na vida, estamos dependentes uns dos outros, e que o que é diferente não pode ser alien nem other. Os seres humanos são dependentes da natureza que os mantém vivos, são parte de uma unidade orgânica, de uma harmonia cósmica, e sendo parte dessa unidade todas as barreiras de classe, de sexo, ou raça têm de ser eliminadas. Watkins percebeu que nunca deveria mencionar o Eu mas sim o Nós; senão a humanidade entrava em catástrofe:

Some surd of a divorce there has been somewhere along the path of this race of men between the “I” and the “We”, some sort of a terrible falling-away, and I (who I am not I, but part of a whole composed of other human beings as they are of me) hovering here as if between the wings of a Great white bird, feel as if I am spinning back… into a vortex of terror, like a birth in reverse, and it is towards a catastrophe.

(Lessing, Briefing for a Descent into Hell, p.109)

Em todas as suas obras Lessing interessa-se pela demanda do eu realizado. Mas nas obras publicadas entre 1971 e 1974, bem como na obra The Four-Gated City (1969), esta ideia desvanece-se significativamente da sobrevivência do Eu pelo seu próprio bem e pelo bem da sobrevivência das espécies.

Na obra The Summer Before the Dark a sobrevivência do Eu de Kate (protagonista) e a sobrevivência das espécies são dependentes da eliminação dos papéis da mulher e do homem.

Lessing demonstra horror a pessoas que não desenvolvem sentimento de culpa ou de compromisso, atitude visível na obra The Memoirs of a Survivor. Aqui, crianças entre os 4 e os 10 anos andam em bandos, fazendo asneiras e não tendo qualquer sentimento de culpa ou gratidão, magoando indiscriminadamente quem se atravessa no seu caminho. Lessing pretende assim que nos sintamos responsáveis pelos actos dessas crianças de violência. Apesar de tudo, Lessing acredita no potencial do ser humano, mas revela, através dos seus personagens, atitudes de puro desespero e de desilusão.

A escrita mais poderosa de Lessing surge, de acordo com a maioria dos críticos, baseada na sua vida e na sua autobiografia, desde a sua infância na Rodésia e as suas críticas ao regime de Mugabe à sua vida pessoal em Londres e às suas consequentes experiências políticas no partido comunista (Seidman, 1993: 9). Em contraste, nos últimos anos, Lessing tem vindo a preocupar-se com o futuro; e usa livros como

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Canopus são um veículo para filosofar sobre o futuro quase de uma forma

alucinogénica. Talvez assim se justifique o gosto de Lessing pela ficção científica. Recentemente, Lessing tem canalizado todas estas experiências de uma forma feminista, na medida em que critica o mundo demasiadamente direccionado para um desastre ecológico. Talvez seja por isso que escreve The Cleft, numa tentativa de explicar o que o mundo já foi, quando era dominado pelas mulheres (Seidman, 1993: 10), deixando assim a mensagem utópica de que o que já aconteceu poderá um dia voltar a acontecer.

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I.II As obras utópicas e distópicas de Gilman e Lessing

A obra de Doris Lessing e de Charlotte Perkins Gilman evidencia a influência do pensamento utópico. Gilman é motivada para a utopia pela sociedade sexista e predominantemente masculina da altura e Lessing é motivada pela sua ânsia de conseguir um futuro melhor onde o ser humano se reencontre com o seu espaço

interior, vivendo em harmonia com a natureza que o rodeia. Por outro lado, revemos em

Lessing a distopia, impulsionada por um mundo às avessas em tempos futuros, resultado da falta de consciência do ser humano do mal que fez no passado.

Herland, de Gilman, The Cleft e Memoirs of a Survivor, de Lessing são exemplos de utopias e distopia feministas.

O trama de Herland começa quando três aventureiros decidem explorar um mundo que lhes parece estranho e até irreal. Após muitos dias de viagem chegam a um cenário bem diferente do mundo patriarcal que conhecem. Tudo é dominado pelas mulheres: educação, política, justiça, vida familiar… Tudo lhes causa estranhamento mas dois dos viajantes acabam por se vergar a este mundo casando com duas dos seus habitantes. Contudo o terceiro, demasiado influenciado pela sociedade da altura nos Estados Unidos, não se desliga do seu machismo exacerbado e acaba por ser expulso depois de ter tentado violar a sua mulher.

A sociedade de Herland é composta só por mulheres, é uma sociedade que não conhece a guerra nem o medo, nem o conflito, nem a competição, nem a ideia de posse, nem a doença, nem a pobreza. Surge assim como uma sociedade ideal, dominada por mulheres. Por essa razão, algumas palavras não são sequer conhecidas, nomeadamente

wife, pois não existe um husband. Aliás, a certa altura Alima pergunta: “What is a wife

exactly?” (Herland, p.126)

A história de Herland começa no território dos homens e com a linguagem dos homens. Terry, Jeff e Van são os três aventureiros que protagonizam a história logo no

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início, e estão preparados para conquistar o novo território (mulheres), quer física quer psicológicamente. A certa altura, afirmam: “This is our find.”(Herland, p.23) E dão-lhe o nome de “Feminisia”. Terry parte do princípio de que vai dominar aquela terra mesmo antes de ter lá chegado.

O contacto com as mulheres dessa sociedade desenrola-se de uma forma peculiar em termos de linguagem. Terry, Jeff e Van auto-denominam-se como “boys”, mantendo viva a diferença que os separa das mulheres. Mas a sua chegada a Herland não despoletou nenhuma luta nem nenhum conflito, uma vez que não havia nada por que lutar, Terry não consegue compreender: “Life is a struggle, has to be… if there is no struggle, there is no life…”(Herland, p.106). Terry, demonstra assim, o seu lado machista exacerbado. No romance de Gilman testemunha-se o casamento de Terry, Jeff e van e três habitantes de Herland. Jeff e Van começam a ver as suas mulheres como

pessoas, mas Terry nunca o faz. E a história continua numa obra posterior, onde

reencontramos os personagens Van e Ellador em With Her in Ourland.

Memoirs of a Survivor foi escrita em 1974 e relata uma história futura que critica a tradição e a formulação da relação entre o indivíduo e a história e entre o indivíduo e a comunidade. As formas de relatar uma ficção projectada num futuro utópico tendem a esboçar um mundo onde o indivíduo ou desaparece na abstracção ou lhe é garantido o

status social de último sobrevivente. Esta obra marca a transição da preocupação de

Lessing com o espaço interior para o seu espaço de ficção (espaço para onde nos leva a viajar dentro da obra). A obra leva-nos para um futuro próximo, num tempo de selvajaria e de anarquismo, embora não se saiba e nem é muito claro qual foi a crise que levou o mundo a esse estado. Neste sentido, esta obra é menos explícita do que o final distópico da obra de The Four-gated City (1969), que descreve o planeta Terra contaminado por destroços de Guerra e radiações. Na obra Memoirs of a Survivor, a degradação da atmosfera, o colapso da lei e da ordem, e a perda de infra-estruturas materiais, entre outros efeitos destrutivos, conduzem à quebra biológica nas famílias. Assim, observa-se a persistência de Lessing no interesse por estruturas familiares e por grupos familiares como alternativa à família nuclear. Grupos de pessoas, sobreviventes de famílias variadas, juntam-se para protecção mútua.

Memoirs of a Survivor é narrada na primeira pessoa. O narrador é uma mulher, uma sobrevivente da Guerra que não se identifica no início da história. Emily Cartright é

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uma adolescente de quem a narradora cuida. Com a adolescente vem também um animal de estimação chamado Hugo, com uma identidade dúbia. Hugo está sempre em constante perigo de ser capturado e comido. Parece ser um gato-cão e detém a capacidade extra-sensorial. A chegada de Hugo parece levar a história de um ponto de vista distópico para outro ponto de vista maioritariamente fantástico. Nas páginas finais da obra, quando a sociedade entra em colapso, a família do narrador e uma “família” de crianças selvagens entram num mundo transcendental para iniciarem uma nova civilização.

O género presente nesta obra de Lessing é bastante amalgamado, fundindo elementos de realismo, de distopia e de ficção científica, de contos de fada, de apocalipse e de misticismo. A indeterminação da obra convida-nos a um grande número de interpretações. Foi a única de vinte e cinco obras de Lessing a partir da qual foi feito um filme que enfatiza os seus elementos distópicos e as suas justaposições de horrores numa sociedade que luta pela sobrevivência.

Doris Lessing afirma sobre The Cleft: “I don’t think it fits anywhere at all with my other novels.” Esta obra foi inspirada por um artigo científico: “…claiming that woman were the basic human stock, and that men came along much later.” (Lisa Allardice para o “Guardian” a 20 de Janeiro de 2007): título da obra proviria de uma frase de Elizabeth I, “If I had been born crested not cloven, your Lordships would not treat me so”. Para uma escritora que é essencialmente conhecida pelo seu realismo social, Lessing chega quase a ser perversa nesta sua atracção pelo fantástico. A limitação do estudo desta obra recente de Lessing é exactamente esta: não se relaciona com nenhuma das outras obras anteriores.

Nesta obra verifica-se uma influência dos anos 70 sobre o Feminismo evolucionário. Observamos, na verdade, que as old clefts eram verdadeiramente preguiçosas, criaturas estúpidas, e que as young clefts eram, por seu lado, mais curiosas (pelo menos sexualmente). Os squirts eram, pelo contrário, abençoados com um espírito aventureiro e curioso. Não admira que as feministas ficassem confusas. Lessing explica:

What I was suggesting with the advent of the males was that a whole new spirit of curiosity and enquiry was born, which seems to me quite possible.

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Men are restless, adventurous. Women are conservative – despite what current ideology says. Of course men and women are different. You cannot escape the fact that women mould your first five years, whether you like it or not. And I can´t say I like it very much.

(Lessing, The Guardian, Entrevista com Lisa Allardice a 20 de Janeiro de 2007)

Para entendermos de forma global The Cleft será necessário pormos de parte todas as especulações sobre as divisões entre os sexos. Pressuposições prévias irão somente frustrar-nos e fazer-nos passar ao lado de uma tese sobre a evolução da sociedade humana que vai desde criaturas de um único sexo (de forma humana) e que não têm nenhuma concepção do “nós”colectivo e do individual “eu” para uma interdependência de dois sexos que se apercebem de que quanto menos fossem mais facilmente morrem ou se extinguem. O caminho que se percorre desde os primórdios da vida até à realização do direito moral, à importância da continuação das espécies e á descoberta do amor não é fácil. A história principal de The Cleft centra-se à volta de um senador Romano que tem de escrever sobre a história da primeira civilização à face da Terra. Lendas e mitos vão passando pelas vidas das pessoas consoante cada religião, assim como a História vai traçando os seus marcos mais importantes; contos e ditos, passados de geração em geração oralmente, vão perdendo o sentido e mistura-se razão e sonho. De alguma forma, a primeira sociedade de que há relato é a sociedade das Clefts (sociedade de mulheres), que virá depois a ser contaminada pela (sociedade de homens). Certo dia nasce um rapaz entre as clefts e elas decidem dá-lo a comer às grandes águias na Killing Rock. Mas, sem cessar, mais e mais rapazes nascem e mais rapazes são dados á Killing Rock. Contudo as águias pegam nos meninos e levam-nos para o vale, dando início ao nascimento dos squirts or monsters. Estes, depositam toda a sua fé nas águias para lhes trazerem mais bebés. São, posteriormente amamentados por corsas e proliferam fortemente no vale. O trama acontece quando a curiosidade das fendas jovens vai na direcção do vale. A construção de uma sociedade de dois sexos, tolerante, onde o lugar do sexo masculino e do sexo feminino são temas que se desenvolvem nesta obra.

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II –Herland e The Cleft: A ideia de Humano

What then in the last resort are the truths of mankind? They are the irrefutable errors of mankind. Friedrich Nietzsche

O ser humano é uma mistura saudável de homens e mulheres, um não se pode sobrepor ao outro, pois temos os mesmos direitos e as mesmas obrigações. É assim que deveria acontecer numa sociedade livre.

De acordo com Alys Eve Weinbaum, as mulheres da sociedade descrita por Gilman em Herland são as responsáveis por manter a pureza da raça. Por um lado, não necessitam dos homens para procriar, são autónomas. Por outro lado, sabem quem está apto para dar à luz e quantas hão-de dar à luz em dado momento: “The whole little nation of women surrounded them with loving service, and waited, between a boundless hope and an equally boundless despair to see if they, too, would be mothers.” ( Herland, p.61) As filhas também não mantêm laços directos e afectivos com as suas mães. Quem cuida delas é toda a sociedade. Tudo é para, e pela sociedade: “To them the longed for motherhood was not only a personal joy, but a nation’s hope.” (Herland, p.61) As mães desta sociedade produzem cidadãs perfeitas baseadas nelas próprias. Todos os nascimentos são feitos a uma determinada hora. Segundo Weinbaum, toda a reprodução se dá por uma partenogénese12. Neste mundo de mulheres, o feminismo torna-se consonante com o nacionalismo racial, pois orquestra uma eugenia livre, perfeita e assexual em vez da incerta heterosexualidade (Weinbaum, Race Suicide and Feminist

Maternalism, p.277). Também segundo Weinbaum, a principal conquista das

      

12 Partenogénese grego παρθενος, "virgem", + γενεσις, "nascimento"; é uma alusão à deusa grega Atena, cujo templo

era denominado Partenon). Refere-se ao crescimento e desenvolvimento de um embrião ou semente sem fertilização, isto é, por reprodução sexuada, E sem a contribuição génica paterna. São fêmeas que procriam sem precisar de machos que as fecundem. ( Dicionário Houaiss)

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herlandianas, foi a perfeição da reprodução em todas as suas formas: “…the mak[ing] of the best kind of people.”

A crítica que é oferecida das mães herlandianas provém sobretudo, do ponto de vista dos seus visitantes, o sociólogo Van Dyke Jennings. Para além de se aperceber de que os homens são vistos como intrusos no seio daquela sociedade, ele descreve-a como uma nação que foi capaz de ultrapassar uma sucessão de infortúnios históricos, ou seja, inicialmente foi uma sociedade quase dizimada pela guerra, na qual todos os homens morreram. Quase como uma manobra de sobrevivência, as mulheres juntaram-se e resistiram a todas as intempéries. Desde logo reconstruíram o seu mundo feminino, salvo da extinção e espontaneamente produtivo. O que as une também, é o facto de provirem de uma mesma mãe. A própria Gilman revela várias vezes em Herland : “These willful virgins”, “New Women”, “ One family, all descended from one mother, who alone founded a new race… of ultra women, inheriting only from women.” (Herland, p. 75)

Herland também relata o poder revolucionário das mulheres, como confirma Kathleen Lant:

In Gilman’s work it is not the scientist, the warrior, the priest, or the craftsman, but the mother, who is the connecting point from present to future. In her Utopia, Charlotte Perkins Gilman transforms the private world of mother-child, isolated in the individual home, into a community of mothers and children in a socialized world. It is a world in which humane social values have been achieved by women in the interest of us all.

(Lant, The Rape of the Text: Charlotte Perkins Gilman’s Violation of Herland, p.291)

Van também afirma que na actual Herland não há luta pela sobrevivência porque ninguém quer passar à frente de ninguém. Pelo contrário, todos têm o seu papel nesta sociedade. Ser mãe, por exemplo, não é um instinto pessoal, o amor de mãe é antes uma religião que inclui um sentimento de irmandade e de dever cumprido para e pela sociedade: “National, Racial and Human at once,” nas palavras de Weinbaum. (Weinbaum, 2001: 280) As herlandianas são uma grande família cujos membros, descendendo de uma só mãe, têm apenas um primeiro nome, não têm apelido. Elas são

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mães, co-mães ou irmãs, o que contrasta bem com o mundo de onde vêm os três forasteiros.

They loved their country because it was their nursery, playground, and workshop – theirs and their children’s… from those first breathlessly guarded, half-adored race mothers, all up the ascending line, they had this dominant thought of building up a Great race through the children. All the surrending devotion our women put into their country and race… the mother instinct, with us so painfully intense, so thwarted by conditions, so concentrated in personal devotion to a few… all this feeling with them flowed out in a strong wide current, unbroken through the generations, depending and widening through the years, including every child in all the land.

(Herland, p.101)

Em Herland, a Natureza e a Religião andam sempre de mãos dadas. Todas as deusas em que estas mulheres acreditavam estavam de alguma forma ligadas à natureza. Temos o exemplo da deusa Maaia, a deusa da Motherhood, e a deusa da Terra, a deusa-mãe que lhes fornecia tudo de que precisam para comer ou beber.

O ser humano é um ser que se adapta facilmente à mudança, não deixando nunca de ter as características ditas humanas. No entanto, no decorrer desta mudança, a sociedade de Herland mudou bastante em prol da preservação da espécie. Para sobreviver, estas mulheres tiveram de evoluir e procriar sem o homem. Mas nunca serão menos humanas por isso. Assim confirma Van:

They began with a really high degree of social development, something like that of Ancient Egypt or Greece. Then they suffered the loss of everything masculine, and supposed at first that all human power and safety had gone too. Then they developed this virgin birth capacity. Then, since the prosperity of their children depended on it, the fullest and subtlest coordination began to be practiced. (Herland, p.71)

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The Cleft tenta explicar a origem da raça humana, que se fundou numa fenda de onde

saiam mulheres bebés. Ao pensarmos na origem da raça humana, pensamos no catolicismo e em Adão e Eva. Obviamente, não é dúvida para ninguém que Adão era visto como superior, pois Eva nasceu de uma das suas costelas. Mas há um nome que inevitavelmente surge, o de Lilith, bastante desconhecido e até negado pela Igreja Católica, mas relevante certamente, Lilith foi a primeira mulher de Adão, feita do mesmo material e ao mesmo tempo que ele, e, posteriormente foi acusada de ser a serpente que levou Eva a comer a temível maçã. Lilith foi de facto expulsa do paraíso, sendo até conhecida em algumas culturas como um demónio, ou até a primeira opositora ao poder patriarcal. Nancy Hardin sugere que pensemos nesta base ao analisarmos a obra de Lessing. (Hardin, 1997: 321)

The Cleft é fruto da busca incessante de Lessing pelo conhecimento por um lado e por outro lado pela vontade de desvendar o verdadeiro papel da mulher desde os primórdios dos tempos, para que este não seja esquecido nos nossos dias.

A sociedade das fendas é uma sociedade evolutiva, tanto no seu auto-conhecimento como na sua relação como os homens que veio por fim determinar a sua queda e o apoteótico poder masculino. (Ryf, Beyond ideology: Doris Lessing’s Mature Vision, p.201) A queda é aparentemente explicada na relação das mulheres com os homens. As mulheres não atingem a auto-realização nos papéis tradicionais de mãe e de esposa, nem têm sucesso a nível profissional. Este declínio deve-se a dois factores: por um lado perderam a vontade de assumir responsabilidade por elas próprias e por outro lado estão erroneamente comprometidas com o amor romântico. (Markow, 1974: 89)

Concordando com a origem cientifica dos tempos, de que vimos da água, inicialmente como seres unicelulares e depois evoluindo para seres mais complexos e intrincados com complexidades ainda hoje não conhecidas. (Darwin, On the Origin of

Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life, p.88) Por outro lado, todos nós nascemos da barriga na nossa mãe,

envoltos em água (liquido amniótico). Portanto nesta sociedade a simbologia da água não pode representar outra coisa que não vida: “We are sea people. The sea made us… burn sea bruch...” (The Cleft, p.8). Toda esta sociedade é bem estruturada e cada um tem

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o seu papel: “Each cave has the same kind of people in it, a family, the Cleft Watchers, the Fish Catchers, the Net Makers, the Fish Skin Curers, the Seaweed Collectors, and that is what we were called” (The Cleft, p.11).

Nesta sociedade, as crianças nascem espontaneamente, sem planeamento ou aviso, simplesmente saindo da fenda. Contudo, certo dia, este ritmo muda com a chegada de um monster, ou seja, o nascimento de um homem, um ser deformado e não aceite pela comunidade, que desde logo é atirado para a Killing Rock para ser comido pelas águias. “When we put out our deformed babies the eagles came for them. We did not kill the babes, the eagles did it” (The Cleft, p.12).

Mas cada vez mais nasciam mais monstros, as Old Shes tomaram então uma decisão mais drástica, e mandaram cortar o que os separava das Shes, o que estava á frente, mas eles acabavam sempre por morrer. Então continuaram a colocá-los na Killing Rock. O que as fendas não sabiam era que as águias levavam os meninos para o bosque e que estes eram alimentados pelos veados e iam prosperando cada vez mais. E um dia, as Fendas avistaram alguns homens, foram atacadas e violadas. Foi assim que nasceu o primeiro filho com um pai e uma mãe. E percebia-se que era diferente. “This first babe born to the Clefts with a monster for a father, was, these two girls knew, different in its deepest nature” (The Cleft, p. 67). Maire13 e Astre14 foram as primeiras fendas a dar à luz estas criaturas e a alimentá-la com o seu leite.

Maire e Astre visitavam os homens com alguma frequência e trocavam o conhecimento que atinham adquirido até ali, conhecimento esse que viria a ser fulcral para a evolução da sua relação (Greene and Lessing, 1987: p.85), trocavam conhecimentos de Língua, de Cultura, de História, Higiene etc: “Maire and Astre had to be there, to teach them language, teach them how to keep their shelters clean – and to mate with them when their tubes grew alert and pointed at the girls” (The Cleft, p. 75). Maire e Astre tentaram explicar muitas vezes às Old Shes quem eram os monstrous, mas sempre sem sucesso: “They were people, just like us, said Maire and Astre, speaking slowly because these ideas were difficult and hard to take in. They were people except that in front of their bodies they had the tubes and lumps that made new

      

13 Maire em gaélico irlandês traduz-se por Maria 

14 Astre foi a última dos imortais a viver com os humanos, por fim subiu ao céu e ficou para sempre como uma

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babes” (The Cleft, p. 84). Muitas outras coisas distinguiam as fendas dos monstros. Os monstros estavam sempre a lutar e a inventar jogos novos cada vez mais perigosos e com risco de se magoarem. Por outro lado, as fendas eram muito mais bem organizadas em tudo o que faziam.

Um dia, a fenda deixou de dar mais crianças à luz, e as fendas estavam a diminuir em número; em contraste, os monstros desenvolviam-se quer em número quer em conhecimento, com a ajuda de Maire e Astre. Muitas batalhas se travaram para as outras fendas se aperceberem de que precisavam dos monstros para procriar. Era só assim que nasciam crianças, os primeiros seres humanos, nós. Verifica-se que só através da cooperação e da colaboração entre as fendas e os monstros é que se pode construir uma geração futura e salvaguardar a continuidade desta nova espécie. Como relata Sydney Kaplan: “The evolution towards a universal consciousness in Doris Lessing’s novels appears to begin with an approach to reality centered in the physical body and its relationship with nature” (Kaplan, 1973: 546)

Tanto em The Cleft como em Herland verifica-se que a ideia de humano evolui no decorrer das duas sociedades. Ambas eram sociedades apenas de mulheres que viam o homem como um estranho, como algo diferente, e até como um monstro ou uma aberração. Mas ao longo das duas histórias conseguimos prever que ninguém faz sentido sozinho e que os dois (homem e mulher) são simultaneamente importantes para assegurar a sobrevivência da espécie. Numa história temos a explicação da origem da raça humana e na outra temos uma sociedade devastada pela guerra e que teve de começar de novo e lutar com as armas que possuía na altura. Não importa quem é mais importante mas sim o que se consegue fazer em conjunto.

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III. Herland e The Cleft : O Lugar do homem

Herland aparece como um exemplo da escrita utopista feminina. Inicialmente é mostrada apenas a vida de um só sexo. As mulheres não conhecem a guerra, o homicídio, o mal, o conflito, a competição, o domínio, a doença, a pobreza, a infelicidade e o medo; referindo-se a si próprias como as habitantes de um belo país. (Bogart, 1992: p.86) Como se pode verificar na descrição de Alima:

This was Alima a tall long-limbed lass, well knit and evidently both strong and agile. Here eyes were splendid, wide, fearless as free from suspicion… (Herland, p.18)

E na descrição de Herland:

Everything was beauty, order, perfect cleanness, and the pleasantest sense of home over it all. (Herland, p.21)

They had no weapons, and we had, but we had no wish to shoot. (Herland p.22)

Na descrição das mulheres:

The solidity of these women was something amazing. (Herland, p.25) They were sisters, and as they grew, they grew together – not by competition, but by united action. (Herland, p.64)

Gilman elimina algumas palavras da vida de Herland, uma vez que não são precisas, palavras como wife ou marriage: “What’s a wife exactly? She demanded, a dangerous gleam in her eye.” (Herland, p.126) É de facto evidente que a história de Herland se inicia no território dos homens e com a sua própria linguagem; nesta altura os intervenientes homens estão na posse da história e também já se imaginam na posse daquela terra que virá a ser descoberta. O contacto com as mulheres de Herland inicia-se pois com uma série de deslocações e oposições na linguagem destes dois mundos. Os homens deparam-se com um mundo oposto ao seu, e as mulheres descobrem um mundo novo pelos relatos dos homens. Muitas expectativas se desconstroem por parte dos homens, que vão aprendendo, gradualmente, não só a linguagem das mulheres, bem

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como o seu modo de vida. Note-se que a certa altura os homens denominam-se de boys e chamam às mulheres girls, começando assim a esboçar-se uma certa dicotomia. Aliás, a passagem para a denominação de boys demonstra já uma falta de controlo dos homens quer socialmente quer linguisticamente. O conhecimento evolutivo e a sua educação que se iniciará em Herland, com a aprendizagem da Língua e da História das herlandianas, faz com que os homens se apercebam da inversão dos papeis (homem, mulher) naquela sociedade, e do facto do termo boys não ser conhecido por aquelas mulheres: “It isn’t just that we don’t see any men – but we don’t see any signs of them…They don’t seem to notice our being men.” (Herland, p.31) A verdade é que a noção de manhood estava intimamente ligada com a noção que a herlandianas tinham de si próprias. Os três homens experienciaram um aprisionamento linguístico no qual o ser masculino não existia, ou seja, o significado de homem não condizia com a experiência. (Bogart, 1992: p.87)

Segundo Kim Bogart, Gilman sujeita os rapazes a uma intensificação da sua estratégia de exploração da noção de equilíbrio pela lógica e pelo dualismo simples, mas também os confunde, porque para cada termo existe um par com igual valor. Verifique-se a resposta quaVerifique-se humorística ao inquérito de Zava sobre o termo “virgin”, que é desconhecido em Herland, e ao que Jeff responde:

Among mating animals, the term virgin is applied to the female who has not mated. He answered.

Oh I see. And does it apply to the male also? Or is there a different term for him?... Is not each then – virgin before mating? And tell me, have you any forms of life in which there is a birth from a father only?

(Herland, p. 49)

A repetição intensiva desta estratégia finalmente faz com que Van entenda a situação: When we say men, man, manly, manhood… we have in the background of our minds a huge vague crowded Picture of the world and all its activities… of men everywhere, doing everything – the world. And when we say women… the word woman called up all that big background… and the word man meant to them only male – the sex. (Herland, p.144)

Este projecto utópico de Gilman visa uma necessidade integradora e o repensar de certas polaridades em termos linguísticos. Ao reconstruir as bases de significado,

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