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Portugaliae monumenta misericordiarum - vol. 2: Antes da fundação das misericórdias

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Academic year: 2021

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Antes da Fundação das Misericórdias

Volume 2

PORTUGALIAE

MONUMENTA

MISERICORDIARUM

Centro de Estudos de História Religiosa Universidade Católica Portuguesa

COORDENAÇÃOCIENTÍFICA

José Pedro Paiva

DIRECÇÃOCIENTÍFICA DOVOLUME2

José Pedro Paiva Maria de Lurdes Rosa

Saul António Gomes

COMISSÃOCIENTÍFICA

José Pedro Paiva

(Presidente)

Ana Maria C. M. Jorge Ângela Barreto Xavier Isabel dos Guimarães Sá

Laurinda Abreu Maria Antónia Lopes Maria de Lurdes Rosa

Pedro Penteado Saul António Gomes

Vítor Melícias

(União das Misericórdias Portuguesas)

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Projecto Centro de Estudos de História Religiosa Universidade Católica Portuguesa

Comissão Científica José Pedro Paiva(Presidente)

Ana Maria C. M. Jorge Ângela Barreto Xavier Isabel dos Guimarães Sá Laurinda Abreu Maria Antónia Lopes Maria de Lurdes Rosa Pedro Penteado Saul António Gomes

Vítor Melícias(União das Misericórdias Portuguesas)

Direcção Científica José Pedro Paiva

do volume 2 Maria de Lurdes Rosa Saul António Gomes

Secretariado Executivo José António Rocha

com a colaboração de Isabel Costa

Transcrição António Castro Henriques

de documentos Maria Cristina Guardado Marta Castelo Branco Vasco Jorge Rosa da Silva

Pesquisas documentais Maria Cristina Guardado Marta Castelo Branco

Concepção, SerSilito -Empresa Gráfica, Lda./Maia

impressão e acabamento

Edição Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2003 Tiragem 1500 exemplares

Depósito Legal 186596/02

ISBN 972-98904-1-2

CATALOGAÇÃO NA FONTE

Portugaliae Monumenta Misericordiarum / ed. lit. Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa; coord. científico José Pedro Paiva. - Lisboa : União das Misericórdias Portuguesas, 2002- . ISBN 972-98904-1-2, vol. 2.

Vol. 2: Antes da Fundação das Misericórdias. 2003 - 542, [18] p.: il., 28 cm. I - Tit.

II - Misericórdias

1. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa 2. União das Misericórdias Portuguesas

3. Paiva, José Pedro, coord. científico CDU: 061.235

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Introdução

José Pedro Paiva

O objectivo deste volume é claro. Trata-se de, a partir de um conjunto de exemplos documentais criteriosamente seleccionados, fornecer uma visão global e o mais abrangente possível do fenómeno da assistência em Portugal, no período prévio à fundação das misericórdias. Este desiderato funda-se no postulado de que o movimento inovador de criação das misericórdias, mesmo considerando o contexto europeu, não emergiu num ambiente de desertificação anterior. Por conseguinte, procura-se com a inserção deste tomo segundo na colectânea dos Portugaliae Monumenta Misericordiarum fornecer instrumentos que consintam perceber os fundamentos e as raízes das misericórdias.

Diga-se, desde já, que os documentos apresentados não esgotam as formas de caridade praticadas. Muitas, pela sua natureza, escaparam ao registo escrito, mas seguramente efectuaram-se amiúde. Era o caso da distribuição de esmolas prodigalizada à saída das igrejas, pelas ruas, ou até os alimentos, as roupas e o abrigo que se forneciam aos pobres, doentes e peregrinos que passavam à porta de morada dos de mais posses1.

Este volume 2 abarca, em termos cronológicos, o intervalo plurissecular que medeia entre a fundação da nacionalidade (primeira metade do século XII) e a constituição da Misericórdia de Lisboa, em Agosto de 1498. Esta foi uma época na qual a individualização da prática da caridade e uma ideologia fortemente marcada pelo cristianismo, veiculada pelos clérigos, sobretudo pelos religiosos regulares (ordens monásticas, primeiro, e ordens mendicantes a partir dos alvores do século XIII), fizeram triunfar um modelo informal, disperso e plurifacetado de assistência. Não sendo possível quantificar estas realidades, os vestígios existentes, que muita da documentação que agora se publica confirma, parecem apontar, como já fora sugerido por Isabel Sá, para o facto de a maior parte dos estabelecimentos assistenciais medievais serem de fundação privada laica2.

Eram de fundação privada e caracterizavam-se, em regra, por elevados níveis de indiferenciação nos serviços prestados. Exceptuando as gafarias, devido ao carácter contagioso da doença, as restantes instituições, designadas por hospitais, albergues, mercearias, casas para pobres, juntavam sob o mesmo tecto pessoas com situações muito diversas. Por exemplo, o Hospital de Jerusalém de Évora mantinha

1 Iria Gonçalves alertara já para o facto de que estas eram as formas de assistência mais importantes durante a Idade Média, ver GONÇALVES,

Iria – Formas medievais de assistência num meio rural estremenho. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, tomo I, p. 454.

2 Ver SÁ, Isabel dos Guimarães – Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão

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3 Cf. neste volume o documento com o nº 94. 4 Cf. neste volume o documento com o nº 93. 5 Cf. neste volume o documento com o nº 252. 6 Cf. neste volume o documento com o nº 185.

7 Sobre o assunto veja-se MOLLAT, Michel – Les pauvres au Moyen Âge. Étude sociale. Paris: Hachette, 1978, p. 118-121.

8 Cf. MATTOSO, José – O ideal de pobreza e as ordens monásticas em Portugal durante os séculos XI-XIII. In A pobreza e a assistência aos

pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, tomo II, p. 669. Leituras semelhantes foram também propostas por CAEIRO, F. Gama – A assistência em Portugal no século XIII e os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, tomo I, p. 219-229.

9 Maria José Ferro Tavares defende que as primeiras instituições de assistência de que há notícia no território português estavam ligadas a mosteiros,

como a albergaria do cenóbio de Mumadona, em Guimarães, e hospitais de Santa Cruz de Coimbra, Vacariça (próximo de Coimbra) e S. Vicente de Fora, em Lisboa, ver TAVARES, Maria José Ferro – Pobreza e morte em Portugal na Idade Média. Lisboa: Presença, 1989, p. 101-145.

romeiros pobres, órfãos e engeitados, fazendo ainda “outras muitas obras de piedade”, não especificadas num documento da Chancelaria de D. Fernando, de 13823.

Acresce que a ajuda prestada era, recorrentemente, muito escassa e temporária. Para além dos cuidados de saúde que algumas instituições disponibilizavam, e que muitas vezes não passava do acompanhamento do doente e da recitação de orações, aquilo que se oferecia aos necessitados condizia com a rudimentar condição da existência material do tempo. Assim, um tecto, roupa, lume, água e sal, por períodos não superiores a três dias, era o que por norma se podia dar, como é expresso numa carta de mercê de D. Fernando, passada ao Hospital de Reigoso, em 1372: “ha huum esprital no qual ham de receber hos pobres e os doentes que nelle quiserem estar e dar-lhes roupa sal e agoa e os que nelle forem doentes dar-lhes clerigos que lhes dem (...) e comunham”4. Raríssima foi a situação dos trinta pobres que beneficiaram de uma dotação

para a erecção de uma mercearia, como a expressa no codicilo ao testamento da rainha Isabel de Aragão, esposa de D. Dinis, que ordenou dessem a “cada huum delles en sa vida pera seu comer e pera seu bever trynta e duas onças de pam cozido e huma tagara de vinho comunal e dous arataes de carneyro ou porco ou de vaca como por bem tever a dita abadessa, guardando necesidade de doença aos ditos pobres. E ao dia que ouverem de comer pescado daren-lho como virem que seera convenhavil, e darem a cada huum dos ditos pobres pera vestyr pelotes e sayas em cada huum ano, e de dous em dous anos pelicos e cerames destanferee ou d' outro pano que seja de preço de quinze soldos de dinheiros velhos portuguezes o covedo”5.

A concepção da caridade cristã marcou decisivamente as práticas assistenciais medievais, funcionando como seu fundamento e estímulo. Por caridade entendia-se o “amor de Deus e de seu proximo sem a qual nenhuum nom se pode salvar”, como se declara no compromisso de uma confraria erigida por abades de vários mosteiros, no ano de 1387, que aqui se publica6. Esta interpretação implicava

a prática de obras de misericórdia que eram a materialização desse amor pelo próximo, com que se louvava e amava a Deus.

Ora, desde o século XII, pelo menos, que sustentando-se na tradição bíblica e na patrística, a Igreja promoveu de forma mais insistente a valorização das obras de misericórdia7. Neste contexto, como

salientou José Mattoso, as ordens monásticas desempenharam um papel importante na formulação de um ideal que através da caridade e da misericórdia tinha os pobres em consideração, particularmente, a partir do século XII, altura em que os próprios fenómenos de expansão demográfica e de algum surto urbano, agravaram os sinais de pobreza e desintegração na vida citadina. Nas palavras daquele historiador, depois da tendência dominante para uma “caridade ritualizada e à renúncia aos bens para alcançar neste mundo a beatitude angélica, sucede um esforço de assistência aos indigentes, que se pretende realmente eficaz”8.

Daí não espantar que muitas abadias e mosteiros, como por exemplo Alcobaça, Santa Cruz de Coimbra ou S. Vicente de Fora, em Lisboa, se tivessem tornado importantes pólos de recepção de dádivas dos crentes que deviam ser aplicadas em obras de assistência9. O próprio exemplo de alguns monges ligados a estas

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10 Cf. Vita Theotonii in NASCIMENTO, Aires A. (edição crítica de) – Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra. Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio,

Vida de Martinho de Soure. Lisboa: Colibri, 1988, p. 151.

11 Cf. MATTOSO, José – O ideal de pobreza..., p. 663-664.

12 No texto latino original “Dicente enim Evangelium: Beati misericordes quam ipsi misericordiam consequentur”(Mateus,5,7), cf. MATTOSO, José

– O ideal de pobreza..., p. 647-648.

13 Maria Helena Coelho, fundando-se em documentos dos Portugaliae Monumenta Historica e do Livro Preto da Sé de Coimbra, fornece vários

exemplos desta situação, ver COELHO, Maria Helena – A acção dos particulares para com a pobreza nos séculos XI e XII. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, tomo I, p. 238-40.

instituições, tal como as Vitae manuscritas que deles circulavam, tinham um efeito moralizante e pedagógico, constituindo preciosos instrumentos de difusão destas doutrinas. A vita de S. Teotónio (ca. 1090-1162), primeiro prior de Santa Cruz de Coimbra, mosteiro que já no século XII recebia doações de particulares com o fito de serem transformadas em esmolas para pobres, meios para a cura de leprosos, remissão de cativos e apoio a peregrinos, refere que ele “socorria os pobres, visitava os doentes, exortava à hospitalidade, afagava com carinhos, de modo a alegrar-se com os que sentiam alegria e chorar com os que sentiam sofrimento. A maior parte do fruto do seu trabalho e de tudo o que possuía dava-a aos que precisavam; quanto à parte restante, retinha-a comedidamente para o vestuário de seu uso. As próprias roupas distribuía-as depois em actos de caridade sobretudo para com as viúvas10”.

Este papel das ordens monásticas foi intensificado, ainda segundo a opinião de Mattoso, a partir do século XIII, quando se assistiu a uma transformação radical do ideal de pobreza, por inspiração da mensagem e da praxis de S. Francisco de Assis, arquátipo que os Mártires de Marrocos e alguns franciscanos foram difundindo em Portugal. Como sugere, “a vida pobre, despojada e errante dos franciscanos marca uma ruptura bem significativa entre as novas concepções da pobreza e a antiga maneira de a viver nos meios monásticos e eclesiásticos do século XII”, o que muito teria contribuído para que os leigos passassem a confiar mais nos franciscanos e até nos dominicanos como destinatários dos seus legados, reduzindo esse investimento nas ordens monásticas11.

Os ecos das consequências práticas da interiorização desta doutrina na acção topam-se desde muito cedo. José Mattoso já notara que quando D. Afonso Henriques, em 1141, concedeu protecção aos eremitas de Riba Arda, declarou que o fazia recordando-se do preceito evangélico “bem aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”12. Ainda antes da fundação da nacionalidade, entre algumas

elites cristãs, eram comuns as doações a pobres, peregrinos, órfãos, cativos, feitas, por norma, a mosteiros, a quem se impunham obrigações pro anima, que estes deviam reverter a favor dos seus destinatários13.

Em épocas posteriores, nos prólogos invocativos de compromissos de confrarias, revivifica-se e reproduz-se sob várias formas esta doutrina que apelava à misericórdia. Tal como no texto do Compromisso da Confraria de Santa Maria da Anunciada, de Setúbal, de 1330, que é em termos doutrinais o mais completo e profundo de todo o espólio deste género até hoje conhecido, podendo mesmo sustentar-se que, pela sua integral fundamentação doutrinal e espiritual, não tem paralelo. Lá se diz, no segundo quartel do século XIV, numa altura em que fomes e epidemias de peste que afectavam com intensidade o reino, iam tornando mais premente a prática da assistência, que a confraria se fundava sob a honra de Santa Maria Mãe de Deus, com o objectivo de os confrades “conpriren as sete obras de misericordia que som theudos conprir”, esclarecendo-se que “dos beens e heranças que hi derem os confrades vivos e passados e os outros homeens boons e boas donas por sas almas que façam huun paaço en que recebam em pessoa de Jhesu Christo os pobres barões e outro em que receban as pobres molheres aa honrra da Virgen Santa Maria a cuja onrra esta confraria he fundada como dito he. E nos quaaes logos lhes sejan aministradas todalas cousas necessarias segundo a posse da confraria ao dia do gram juizo sejan conpridas nos pobres que son nenbros de Jhesu Christo dando aos famiintos de comer e aos sedorentos de bever e aos ospedes alberge

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14 Cf. neste volume o documento com o nº 179. 15 Cf. neste volume o documento com o nº 182. 16 Cf. neste volume o documento com o nº 154. 17 Cf. neste volume o documento com o nº 174.

e aos nuus vestimento aos enfermos visitamento aos presos acorrimento aos mortos soteramento e as nossas almas salvamento amen”14.

Posições semelhantes, ainda que não tão bem escoradas do ponto de vista doutrinal, encontram--se no compromisso de uma confraria dos moradores de Alcanena, redigido no ano de 1353, no qual se declara que a irmandade é instituída para que “comprissemos o serviço de Deus e da sua Madre Sancta Maria e de todollos os santos e sanctas da gloria do Paraiso allg˜uas obras de misericordia a sallvamento de nossas allmas e a homrra e melhoramento de nossos estados e dos outros bemfeitores e sosteedores desto pera sempre simplezmente”15.

O recurso aos Evangelhos, aos exemplos de fraternidade em que viviam os apóstolos de Cristo e ao próprio modelo do Filho de Deus, comparecem abundantemente em muitos textos medievais ligados às práticas assistenciais, testemunhando, por esta via, a importância da doutrina cristã nesta matéria. No compromisso da Confraria de S. Nicolau de Coimbra, datado de 1144, o mais vetusto que se conhece, afirma-se que nos tempos primevos da Igreja “os Apostollos e aquelles que com elles criiam persseveravam da vomtade em desejo de hermindade e de fee e de amor asy o testemunha o bem avemturado Sam Lucas evangellista em os autos dos Apostollos que diz que huum coraçam e huua vomtade era em todos aquelles que eram. Porem nos outros os nomes dos quaaes sam justos escpritos em fundo sejamos emssinados per estas semelhaves doutrinas que possamos seguir huua vomtade e huum amor o quall o boom pastor emsignou aa homrra de Deus Padre e do bem avemturado Sam Nicollao comfessor de Christo comviimos em Christo em huua hirmindade e amor e pois que asy he em esta tençam huum ame ho outro d’amor de hirmãao e o outro ho outro na necessidade com deligemcia lhe acorra”16.

O trecho evangélico mais glosado era, com toda a probabilidade, S. Mateus 25, 35-40, que surge sob esta forma na renovação do compromisso da Confraria do Espírito Santo de Ribeira de Vide, próximo de Arraiolos: “E que den en cada huum ano en dia de Sancto Spirito pam e carnes a probres a comer pera esquivar aquilo que Deus diz: conujõ seja a vos que sodes fartos e avondados e nom curades de mim que ei fame e pera se cavidarem daquelo que jaz escrito en no Avangelho do rico avarento que p[er] Lazaro gafo que vyo que avia necessedade e nom lhe quis acorrer. Porem foe soterrado no Inferno. E que en' o Dia do Juizo a voz boa de Deus meresquam d'ouviir: viinde vos bentos da bençom do meu Padre recebede o Reino dos Ceos que vos see aprestes do começo do Mundo. Ouve fame e me de comer, ouve sede e destes-me de bever, porque o fezestes a cada huum dos destes-meus pobres e pequenos a mim o festes”17.

Esta doutrina das obras de misericórdia, já interiorizada por leigos, está presente na literatura dos Príncipes de Avis, por exemplo pela pena de D. Duarte, no Leal Conselheiro: “E por o amor do prouximo consiiremos que as obras som demostraçom da benquerença, porem reguardemos como comprymos em todas as sete obras spirituaaes que perteecem a alma, scilicet dar saão consselho, enssynar bem e virtuosamente o que nom sabe e encaminhar o que vay ou anda desencaminhado, conssollar o desconssollado per vista, pallavra e obra, doer-se do mal e perda do seu prouxymo, proveendo-lhe em todo o tempo o que bem poder, rogar a Deos pollos camynhantes e andantes sobre o mar, fazer oraçom pollos fynados em geeral e especialmente por aquelles a que somos obrygados. E as VII corporaaes que perteecem ao corpo, scilicet vestyr aos que o ham mester, dar de comer aos famiintos e de bever aos sedorentos, visitar os enfermos, visitar os encarcerados, dar pousada aos camynheyros, enterrar os finados. E se todo esto for conssiirado, e com elle nossas obras, fallas e penssamentos bem examynados, com a mercee de

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18 Cf. neste volume o documento com o nº 223. 19 Cf. neste volume o documento com o nº 232. 20 Cf. neste volume o documento com o nº 160. 21 Cf. neste volume o documento com o nº 267.

22 Cf. ROSA, Maria de Lurdes – A religião no século: vivências e devoções dos leigos. In AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) – História Religiosa de

Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, vol. 1, p. 460-461.

23 Cf. COELHO, Maria Helena – As confrarias medievais portuguesas: espaços de solidariedade na vida e na morte. Actas da XIX Semana de

Estudios Medievales, Estella´92. Pamplona: [Gobierno de Navarra Departamento de Educacion y Cultura], 1992, p. 183.

Nosso Senhor Deos poderemos sentyr como avemos esta perfeita virtude que sobre todas per el he mais louvada, onde diz que della pendem lex e profetas, e o apostollo que outras passarom e aquesta pera sempre ficara”18.

A boca dos pregadores foi outro canal da sua difusão. Mostram-no trechos dos sermões pregados pelo franciscano João Álvares que, na segunda metade do século XV, o terá pronunciado de forma semelhante a esta: “Studemos portanto, irmãaos, de fazer misericordia emquanto vivermos: fartemos os famintos, vistamos os nuus, alegremos os pelegriis, consolemos os horfãaos, visitemos os enfermos, soterremos os finados. Estas verdadeiramente som as obras da misericordia por que nos ham de preguntar no Dia do Juizo”19.

O auxílio aos necessitados constituía ainda uma esmola no presente terreno que pretendia ser chave da porta do Céu futuro e eterno. Este aspecto deve ser fortemente sublinhado para perceber o impacto que toda esta torrente doutrinal teve no homem medieval, efeito perpetuado por longos anos no espírito de muitos modernos. Como era recordado no Compromisso da Confraria dos Homens Bons de Évora que foram a Jerusalém, em meados do século XIII, retomando uma célebre parábola bíblica, reveladora de como esta doutrina evangélica tinha tido difusão e prática entre os fiéis, os confrades estavam obrigados a, num domingo de Janeiro, fazerem um bodo com distribuição de comida aos pobres “aguardando aquella paravoa que diz Nosso Senhor: e o foym seja em aquelles que vos fartades e non dades aos pobres ca famyntos seredes. E guardando-se do que aveo ao riquo que por Lazaro o gafo a que viio coyta padecer e lhe nom quis socorrer he soterrado no Imfferno. Mas quando veer ao dia do estreito juizo que mereçamos a ouvir a voz do remiidor que dira: viinde beentos do meu Padre receber o regno ouve fame e destes a my a comer ca o que voos fezestes a hum dos meos pobres a my o fezestes. Diz em outro lugar que assy como a agoa mata o foguo outrosy a esmolla mata o pecado”20. A “esmola mata o pecado” e torna-se, por isso,

instrumento para a salvação eterna. Interpretação semelhante circulava nos escalões mais elevados da sociedade. No testamento do rei D. João II, lavrado em 1495, lá se diz: “porque tenho muita devação nas obras de charidade que são muito aceitas a Nosso Senhor e proveitosas pera as almas dos que as fazem e hedificão e consolão os proximos”21.

Por estas razões, Maria de Lurdes Rosa refere, com grande perspicácia, que a caridade praticada pelos leigos constituía “uma dádiva desinteressada de recompensas materiais, mas de modo nenhum gratuita quanto às espirituais e simbólicas”. O empenhamento dos cristãos laicos, como nota, “envolvia, de facto, um conjunto de actos de eficácia sacral, cujo objectivo radicava numa crença precisa: alcançar a vida eterna, com a salvação da alma e a ressurreição do corpo”22. Para o possidente a esmola era ainda um

instrumento de afirmação e consagração social, um sinal que afiançava poder, podendo até servir como estratégia legitimadora de percursos de ascensão social. Na feliz formulação de Maria Helena Coelho a liberalidade do rico “era, em simultâneo, um penhor de maior prestígio e dignidade. Ainda um capital reprodutivo. Louvado entre os vivos, lembrado entre os mortos”23.

A leitura do conjunto de testamentos de reis, rainhas, bispos, cónegos, clérigos e leigos que aqui se publicam espelha a importância que era dada à esmola aos necessitados enquanto instrumento de

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24 Cf. SOUSA, Ivo Carneiro – Da descoberta da Misericórdia à fundação das Misericórdias (1498-1525). Porto: Granito, Editores e Livreiros, Lda,

1999, p. 15.

25 Cf. neste volume o documento com o nº 266. É interessante notar como estas representações pictóricas da Virgem da Misericórdia aparecem

em espaços tutelados por franciscanos, como é também o caso de outro exemplar já conhecido, existente numa Igreja de Bragança, ver CAETANO, Joaquim Oliveira – Sob o manto protector: para uma iconografia da Virgem da Misericórdia. In SILVA, Nuno Vassalo e (coord.) – Mater Misericordiae: Simbolismo e representação da Virgem da Misericórdia. Lisboa: Museu de S. Roque e Livros Horizonte, 1995, p. 33-34.

26 Existem actualmente muitos estudos sobre confrarias medievais. Para além dos expressamente citados nas páginas seguintes, são bastante úteis

os seguintes: BEIRANTE, Maria Ângela – Confrarias medievais portuguesas. Lisboa: [s. n.], 1990; GONÇALVES, Iria – Formas medievais de assistência num meio rural estremenho. In IMAGENS do mundo medieval. Lisboa: Livros Horizonte, 1988, p. 53-68; MARQUES, José – A assistência no Norte de Portugal nos finais da Idade Média. Revista da Faculdade de Letras do Porto – História. II série. VI (1989) 11-93; SÁ, Isabel dos Guimarães – A reorganização da caridade em Portugal em contexto europeu (1490-1600). Cadernos do Noroeste. 11 2 (1998) 31- 63; TAVARES, Maria José Ferro – Para o estudo das confrarias medievais portuguesas: os compromissos de três confrarias de homens-bons alentejanos. Estudos medievais. 7-8 (1987) 55-72.

salvação da alma. Daí que os testamentos, todos os testamentos, incluíssem por vezes impressionantes volumes de legados, como os de D. Dinis, cujo primeiro testamento foi celebrado cerca de 25 anos antes da sua morte, e o do seu filho D. Afonso IV, para ajuda directa ou criação de institutos que apoiassem pobres, gafos, peregrinos, cativos, doentes, órfãos, engeitados, idosos, donzelas que queriam casar, merceeiras, emparedados, etc. A rainha Isabel de Aragão, esposa de D. Dinis, ordenou no seu primeiro testamento, entre outras coisas, que se dessem 500 libras a cada uma das albergarias e hospitais do reino. Os exemplos que se acabam de expor ilustram bem a tese apresentada por Ivo Carneiro de Sousa, segundo a qual nos “meios religiosos e aúlicos da sociedade portuguesa da primeira metade de Quatrocentos existia já, no mínimo, uma compreensão panorâmica das diferentes vias através das quais se deveriam exercitar as obras de misericórdia espirituais e corporais, identificando-se ainda a relação dialéctica entre esta caridade para com o próximo e a edificação pessoal de uma vida marcada pela virtude”24. Eu

atrever-me-ia, porém, a sugerir, baseando-me nos inúmeros exemplos aqui coligidos, que esta noção, mesmo que não fosse pronunciada de forma tão elegante como a vertida para os enunciados saídos das lucubrações das elites, já circulava anteriormente e não apenas nos círculos aúlicos e religiosos. O universo laico, tanto do mundo urbano, como rural, também conhecia este vocabulário devocional. Os testamentos e os prólogos de muitos compromissos de confrarias são disso uma evidência. Tal é o caso do testamento de um João Afonso, escudeiro, criado do Marquês de Valença e feitor do Duque de Bragança, redigido em 1477, no qual existe uma cláusula que, inclusivamente, mostra que a própria iconografia da Virgem da Misericórdia conhecia já alguma difusão no período tardo medieval: “Item mandou que dem pera o retabollo do altar prinçipall do dicto moeesteiro de Sam Françisco seis mill reais com tal condiçam que os frades façam pintar em elle Santa Maria da Missericordea e ponham na craraboya as armas do dicto marques que Deus aja e esto pera pregadura e pintura”25.

Este quadro doutrinal, no qual a caridade expressa em obras de misericórdia era contributo para a obtenção da salvação no dia do Juízo Final, juntamente com a inexistência de um poder central com interesse e capacidade para adoptar políticas de assistência coerentes e unificadas contribuíram, entre outros factores, para a criação de um panorama sui generis da assistência, que se caracterizou, como já foi enunciado na abertura desta Introdução, por ser individual, privada, informal e pluriforme.

Neste âmbito, as confrarias, desempenharam um papel de enorme relevo, de que o leitor se poderá aperceber através do conjunto de estatutos e compromissos publicados26.

Lendo os compromissos de muitas confrarias medievais percebe-se como a beneficência caritativa que estas associações locais promoviam, inspirada doutrinalmente em modelos da vida de Cristo, dos Apóstolos e de Maria, era muito anciã e estava profundamente enraizada nas populações. Maria Helena Coelho, com base nos estudos efectuados até 1992, identificara já 291 confrarias distintas, urbanas e

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27 Cf. COELHO, Maria Helena – As confrarias medievais portuguesas, p. 151.

28 Cf. MATTOSO, José – Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal 1096-1325. Lisboa: Estampa, 1985, vol. I, p. 408. 29 Esta cronologia evolutiva segue propostas de COELHO, Maria Helena – As confrarias medievais portuguesas, p. 155-156.

30 Cf. GOMES, Saul António – Notas e documentos sobre as confrarias portuguesas entre o fim da Idade Média e o século XVII: o protagonismo

dominicano de S.ta Maria da Vitória. Lusitania Sacra. Lisboa. 2ª série. 7 (1995) 95.

31 Ver COELHO, Maria Helena – As confrarias medievais portuguesas, p. 172. 32 Cf. neste volume o documento com o nº 56.

33 Cf. neste volume o documento com o nº 156.

rurais, no período compreendido entre os séculos XII e XV. Só para Lisboa e Coimbra inventariou 30 em cada localidade27.

Desde o século XII, numa altura em que uma “concepção do mérito baseada nas obras de caridade” se foi afirmando, um pouco por via da pregação dos reformadores monásticos dos séculos XI e XII28, que há notícias da sua existência. O século XIII teria sido um período de expansão, mas o maior

crescimento teria ocorrido durante a centúria seguinte29. As crises de fome e a peste, ou seja, a pressão

dos tempos, estimulavam o surto de mecanismos de apoio mútuo e justificam, pelo menos em parte, este crescimento. No século XV, ter-se-ia principiado a assistir a alguma agonia destes modelos confraternais medievais, nos quais se vivia uma piedade que começava a ser pouco apelativa para os fiéis, como sugere Saul Gomes, esclarecendo que os crentes se “afastam dos antigos modelos de confrarias, denunciando possuírem novas exigências no campo da piedade. Exigências que reclamavam maiores benefícios espirituais para os irmãos, escudando-se no atractivo que era a panóplia de indulgências e graças pontificias ou episcopais que as confrarias garantiam aos seus benfeitores ou promoviam em festas especiais”. Assim, ainda segundo o mesmo autor “muitas das venerandas instituições se vêem enfraquecidas, desvalorizadas por ineficazes, desactualizadas para os novos tempos, sendo alvo de administrações pouco cuidadosas e de uma sempre crescente interferência do poder real sobre elas”30.

Estas irmandades eram de três tipos. Havia confrarias territoriais, que agrupavam, sem aparente dis-tinção, os habitantes de uma dada zona, outras de cariz ocupacional, que resultavam da vontade de pessoas com actividades profissionais idênticas e, mais raras, as que tinham na origem uma especial devoção por algum santo. Por trás de uma certa heterogeneidade e pese embora a sua diferente fundação, regionalismos e características específicas, as confrarias medievais tinham normas próximas, o que deixa entender a exis-tência de um fundo doutrinal comum, como o comprava a proximidade formal e textual de certos compro-missos, e contextos carenciais e sociais semelhantes, que encaminhavam a acção individual e de certos gru-pos locais em sentidos muito convergentes. A sua principal função relacionava-se com o acompanhamento dos confrades na hora da morte, enterramento e oração pela sua alma31. A maior parte dos compromissos

obrigava ao amparo nos derradeiros instantes dos confrades moribundos, a proceder ao seu velório e a acom-panhá-lo no funeral, como se poderá constatar com facilidade nos que se publicam neste volume. Mas a con-fraria era igualmente uma instância de auxílio aos vivos que padeciam situações passageiras de necessidade, socorrendo os confrades que viam os seus haveres queimados pelo fogo, os que enfermavam ou envelheciam e não podiam granjear sustento pelo habitual trabalho, resgatando os que ficavam cativos, tarefa ingente em tempo onde o “infiel” religioso vivia perto. Algumas possuiam hospitais e albergarias para tratamento dos enfermos ou guarida de peregrinos. Mais raramente, manifestavam preocupações com os meninos órfãos, como a confraria dos Clérigos de Montemor-o-Velho (1495)32, que já se aproxima de modelos orgânicos e

funcionais modernos, conhecendo-se ainda as que também prestavam apoio aos confrades que queriam ir em peregrinação a Jerusalém, como a de S. João da Sertã, como reza o seu compromisso de 1195: “O con-frade que quizer ir a Jerusalem so e com confrada lhe de entre marido e mulher seis dinheiros”33.

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34 Cf. neste volume o documento com o nº 174. 35 Cf. neste volume o documento com o nº 171. 36 Cf. neste volume o documento com o nº 171. 37 Cf. neste volume o documento com o nº 162. 38 Cf. MATTOSO, José – Identificação de um país, p. 410.

39 Ver GOMES, Saul António – Notas e documentos sobre as confrarias, p. 91. 40 Ver SÁ, Isabel dos Guimarães – Quando o rico se faz pobre, p. 38.

41 Vitor Ribeiro sugeriu que as raízes das misericórdias eram as confrarias medievais do Espírito Santo, ver RIBEIRO, Vitor – História da Benificência

Pública. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1907. Tese que António Brásio retomou em As confrarias medievais do Espírito Santo, paradigmas das misericordias. In Actas do Colóquio Presença de Portugal no Mundo. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1982. Apesar de

O socorro prestado destinava-se sobretudo a apoiar os confrades, mas muitas tinham instituído a caridade a favor dos não membros. Por exemplo a de Ribeira de Vide (século XIV), perto de Arraiolos, procedia ao enterro de pobres que não eram confrades34, prática a que as misericórdias, desde o início, se

vieram a dedicar. A do Espírito Santo do Vimieiro (1282), fazia uma distribuição anual de esmolas aos pobres, tinha uma albergaria para receber os passantes e ajudava a criar os engeitados35. A dos Ovelheiros

de Viana do Alentejo, (1329) procedia ao enterro dos pobres que estavam na sua albergaria. A maioria tinha ainda instituído um bodo anual que congregava os membros da confraria e pobres das comunidades em que estava sediada, costume que algumas misericórdias perpetuaram, o que na do Vimieiro era assim enunciado: “E que dem hua vez no anno en dia de Santo Spiritu pão e carnes aos pobres por Deos cavidamdo-se do que dise Nostro Senhor ca foram a vos que sodes fortes qua averedes fome esperanndo a houvir ha voz bem aventurada de Jesu Christo Nosso Sennhor Redentor no dia do Juizo: vimde bentos do Meu Padre receber ho Reino que avees he aparelhado qua houve fome e destes-me a comer e ouvi sede e destes-my a bever”36.

A harmonia entre os confrades, com repercussões no equilíbrio social das comunidades onde estavam instalados, também se tentava estabelecer, através de normativos que penalizavam os que se injuriassem, ou fossem violentos, ou que, para resolverem discórdias, recorressem a juízes externos à irmandade, como se estipulava no Compromisso da Confraria de Jesus de Torres Novas (1212): “E se allguum dos nossos comfrades disser a allguum comfrade palavras que nam sejam pera dizer convem a saber ceguu ou sodomitico ou treedor ou gafo ou disser aa molher hervoeira ou cegonha ou ladra ou gafa peite cimquo solldos aos nossos comfrades”, mais adiante “E o comfrade que seu comfrade per hira ferir ou com armas comtra ell vier peite a nos dez solldos” e ainda “E o comfrade que ouver queixume doutro comfrade digaa-o aos nossos juizes e os nossos juizes castiguem aquell que a imjuria fezer e façam-lhe direito e aquelle que nam quiser star ao juizo dos nossos juizes peite a nos cimquo solldos e de mais respomda aaquell a que deve satixfazer”37.

Por estes aspectos, é redutora a leitura das confrarias medievais como meras instituições de assistência. Elas tinham igualmente um papel de relevo enquanto mecanismos de sociabilização local, e ainda eram, como sugere José Mattoso, “o lugar onde se propagam e praticam as virtudes cristãs da caridade entre os iguais e para com os pobres, e onde se encontra o encorajamento institucional para seguir os ensinamentos morais da Igreja em matéria de honestidade no uso dos bens, de castidade e das virtudes familiares”38, desenvolvendo uma piedade laica muito marcada pela gestualidade, pelo pragmatismo da

necessidade de entreajuda e por rituais iniciáticos de integração, como refere Saul Gomes39.

O vigor que este género de confrarias tiveram em Portugal, como já foi notado por Isabel Sá, constitui um factor essencial para compreender a adesão que, mais tarde, as misericórdias receberão por parte das populações locais40. De facto, alguns dos princípios e práticas que as misericórdias instituíram já estavam

disseminados por muitas destas instituições, e não apenas, como em tempos se aventou, pelas confrarias do Espírito Santo41. Aliás, é hoje sabido como, em alguns casos, essa vinculação foi muito estreita e directa,

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excessivamente preocupado em demonstrar a absoluta originalidade das misericórias, que liga quase em exclusivo ao papel central da espiritualidade e acção de D. Leonor, irmã do rei D. Manuel I e, portanto, não salientando o contributo que o movimento confraternal medieval e das múltiplas formas de beneficiência caritativa então praticadas podem ter tido para a sua adesão, Ivo Carneiro de Sousa foi igualmente crítico destas interpretações, veja-se SOUSA, Ivo Carneiro – V centenário das Misericórdias portuguesas. Lisboa: Edição do Clube do Coleccionador dos Correios, p. 51-56.

42 Ver SERRA, Manuel Cunha – As duas confrarias da Misericórdia e as duas confrarias dos mareantes de Viana da Foz do Lima do século XVI.

Estudos Regionais. 16 (1995) 73-94.

43 Este processo é relatado por GOMES, Saul António – O Livro do Compromisso da Confraria e Hospital de Santa Maria da Vitória da Batalha

(1427-1544). Leiria: Magno Edições, 2002, p. 22-24.

44 Cf. neste volume o documento com o nº 53. 45 Cf. neste volume os documentos com os nos78 e 80.

pois confrarias locais preexistentes competiram entre si com a finalidade de se converterem em Misericórdia, como sucedeu em Viana do Castelo42. Como são igualmente conhecidas situações onde houve alguma

resistência em transformar confrarias de assistência em Misericórdia. Tal foi o caso da Confraria e Hospital de Santa Maria da Vitória, na Batalha, que só em 1714 viria a integrar-se na Misericórdia43.

Não é correcto pensar-se que a configuração das práticas assistenciais que se tem vindo a descrever era isenta da intervenção dos monarcas e até de outros membros da família real. Vários reis, logo na primeira dinastia, actuaram neste âmbito. Todavia, essa acção não deve ainda ser identificada com qualquer forma precoce de Estado. Antes deve ser entendida, à falta de vocábulo mais esclarecedor, como privada (pese embora o tom anacrónico que a designação possa assumir quando aplicada a este período epocal) e, tal como para os demais indivíduos que compunham a sociedade do tempo, mais ditada por imperativos ético-religiosos do que por uma necessidade de resolver problemas sociais ou de afirmação da auctoritas do monarca.

Parece evidente que essa interferência foi aumentando à medida que transcorria o tempo, estimulada por condicionalismos de afirmação de um poder cada vez maior, estimulada por movimentos devocionais (como, por exemplo, as peregrinações que se intensificam após o movimento das Cruzadas) e respondendo a conjunturas mais dramáticas que afligiam o reino e as populações como, por exemplo, sucedeu com a presença da lepra, com as fomes e epidemias de Trezentos, com a necessidade de resgatar cativos. Esta última intensifica-se com as campanhas militares no Norte de África, a partir do século XV, e nela também foi vigorosa a intervenção dos Trinitários. Para acorrer a esta última situação, foi elaborado um Regimento da Redenção dos Cativos Cristãos (1454), no qual a afirmação da prática da misericórdia, justifica a acção de resgate: “Por quanto a Ley Avangelica e Devinal manda e encomenda muito aos fiees christãaos por salvaçam de suas almas conprir as sete obras de misericordia as quaees em o dia do grande e temeroso juizo por Nosso Senhor Jhesu Christo nos ham de seer demandadas se as conprimos e fezemos misericordia com nossos proximos [...] e como todas as sete obras de misericordia se conprem em remiir e tirar de cativos os [f]iees chistãaos que som cativos em poder de mouros inmigos da Santa Fe Catoolica e por quanto os mais dos ditos cativos jazem perlongadamente em o dito cativeiro alguns por sua pobreza em elle morrem e outros blasfamam e arenegam a dita Santa Fe de Jhesu Christo em perdiçom e condenaçom de suas almas e por negrigencia daquelles que som theudos de os remir e tirar de cativeiro a qual cousa foy e he em grande desprazer ao dito senhor Rey”44.

Tentando sistematizar a acção dos monarcas, dir-se-ia que, num plano superior, o rei exercitava um domínio “legislativo”, de que muitas disposições exaradas em documentos de chancelaria dão conta, como sucede, por exemplo, com registos da Chancelaria Dionisina, de 1279 e de 1291, que reflectem a protecção concedida aos gafos de Santarém e de Évora, contra todos os que, em função da sua debilidade, os vexavam ou deles e de seus bens se aproveitavam45. A intervenção da Coroa no concernente aos gafos

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46 Cf. neste volume o documento com o nº 90. 47 Cf. neste volume o documento com o nº 30. 48 Cf. neste volume o documento com o nº 136. 49 Cf. neste volume o documento com o nº 84.

regimentos para institutos de fundação régia, como sucedeu com o Regimento de Afonso IV para o Hospital de S. Lázaro de Coimbra, até à criação de gafarias régias um pouco por todo o reino. É que a presença de leprosos causava grande aversão, por vezes entre os próprios gafos de uma localidade, como se colige de uma carta de mercê de D. Pedro, datada de 1365, na qual se refere que quando os leprosos chegavam “a cidade de Lixboa ou a Santarem ou a outros lugares do meu senhorio que os outros gafos que ham as raçoões e som vezinhos nos outros lugares os nom querem colher antre ssy e que outrossy os nom leixam pedir as esmollas por Deus em que se mantenham e que por a dicta razam elles e aquelles que som seus procuradores lhes dam pancadas e feridas e os lançam fora das dictas villas e lugares”46.

De igual modo, a partir do século XIV, nas primeiras compilações legislativas da autoria de D. Duarte e D. Afonso V, há normas destinadas a enquadrar e proteger os órfãos, as viúvas, os presos, os pobres, a fazer cumprir disposições testamentárias, mas igualmente a punir os ociosos e vadios, isto é os que “não ham mester alguum, nem vivem com senhores, e he de presumir que vivem de mal fazer”, como se explicita num título das referidas Ordenações Afonsinas47. Em algumas assembleias de cortes, soavam

também ecos das perturbações causadas por esta gente errante. A selecção desses códigos que aqui se publica espelha-o bem.

Os monarcas intervinham também através dos juízes, que deviam verificar o funcionamento e o cumprimento das disposições legais, ou pela nomeação de funcionários para alguns institutos de assistência. Apoiavam ainda a intervenção no campo assistencial de indivíduos ou corporações, por exemplo confirmando compromissos e regimentos, concedendo privilégios de vária ordem (isenção de serviços e taxas concelhias, dispensa de dar pousada a poderosos) aos que criavam ou tinham funções em hospitais e albergarias. Assim fez, por exemplo, D. Afonso V, em 1472, privilegiando os confrades da Confraria de Santa Ana da Carnota (Alenquer): “Dom Affonsso e cetera. A quantos esta carta virem fazemos saber que os comfrades da Comfraria de Samta Anna da Carnota nos emviarom dizer que ella era hu˜ua das amtiiguas e homrradas comfrarias que ha em todos estes termos pollo quall ordenarom h˜ua casa da comfraria na quall tem huum espitalleyro com certas camas pera os pobres mantheudo aa custa delles e que sem embargo de assy seer ocupado no dito espitall os juyzes e officiaaes nom leixam de o comstramger pera muytos emcarregos e servydoões do dito comcelho o que era cousa pera nom poderem teer quem lhes tenha cargo da dita casa e espitall. Pydimdo-nos por mercee que assy por o que toavam a serviço de Deus como por o seu delles lhes provessemos a ello d' alguum remedio e lhe dessemos alguum privillegio pera o que assy estever na dita casa e espitall”48.

Mas a actuação dos reis tinha também uma componente mais directa, fundando por si próprios, ou apoiando-se nos mosteiros, locais de auxílio para gafos e outros doentes, ordenando a edificação de albergarias para romeiros, resgatando cativos ou legando esmolas a pobres. Chegou até a criar-se um sistema de angariação de recursos destinado a este género de obras, a Arca da Piedade, bastante activo desde o tempo de Afonso V, a julgar pelo quantitativo de referências que se lhe faz em documentos de Chancelaria. A Arca recebia uma percentagem das penas pecuniárias cominadas pelos juizes da Coroa, aspecto bem revelador de uma concepção de "justiça misericordiosa" do rei que, ao tempo, imperava. De facto, muitas das instituições medievais de assistência eram de fundação régia, como a albergaria instituída por D. Afonso III, no Cabo de S. Vicente, para “spitalidade” daqueles “que hy fossen en romaria”49, ou tinham por trás a

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50 Cf. neste volume o documento com o nº 206. 51 Cf. neste volume o documento com o nº 61. 52 Cf. neste volume o documento com o nº 63. 53 Cf. neste volume o documento com o nº 65.

54 Veja-se a este respeito TRINDADE, Maria José Lagos – Notas sobre a intervenção régia na administração das instituições de assitência nos fins

da Idade Média. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, tomo II, p. 883-885.

55 Cf. neste volume o documento com o nº 203. 56 Cf. neste volume o documento com o nº 6.

intervenção de membros da família real, como o Hospital dos Inocentes de Santarém, patrocinado pela rainha D. Isabel de Aragão, destinado a engeitados e pobres, que no seu regimento permite colher uma impressionante definição de engeitado: “entendemos por mininos e mininas engeitados aquelles que alg˜uas molheres conceberam e tamto que os parem com medo e com vergomça ou outros seus gramdes pecados queremdo ante perder as almas que lhi lo saberem e mandam-nos deitar pellas augoas e pellas carreiras e pellas carcovas e pollos rios e em outros lugares hu os nam possam achar senam de vemtura”50.

A intervenção da coroa não foi, todavia, suficiente para esbater a tendência dominante para que a organização da assistência se fizesse a nível local, sendo as comunidades as suas principais administradoras, através das instituições de fundação privada, como as confrarias e outros institutos habitualmente criados por legados pios, quer ainda por acção dos concelhos. Era a este patamar que, de modo mais agudo, chegavam os problemas concretos e quotidianos das carências existentes, e os poderes locais não estavam imunes a isso. Os capítulos de cortes mostram bem como nessas assembleias se apresentavam ao monarca propostas sobre estas questões. Em 1361, solicitavam os povos que os cavaleiros “pousados que som velhos per hidade e fracos e doentes de taaes doores que nom podem servir” não fossem constrangidos a servir o rei51; em 1372, pedia-se que os presos não permanecessem tempo

demasiado nos cárceres aguardando justiça52; em 1418, procurava combater-se a vadiagem, proteger os

pobres mais carentes e beneficiar alguns poderosos locais, clamando-se contra os que “se lançam pella terra a pidir por Deus que som em idade e desposiçom dos corpos tall que muy bem poderyam servir e viver com alguuns senhores e fingen-sse seer doentes e alejados por lhes darem esmollas”53.

Por escassez de fontes sabe-se relativamente pouco sobre o papel desempenhado pelos concelhos, mas há algumas pistas que revelam a importância que tiveram e que a colecção aqui exposta não podia silenciar. Isto apesar de um certo esforço efectuado pela Coroa, desde o século XV, para limitar a interferência dos municípios nas instituições de assistência54. Assim, havia hospitais que ficavam sob a

administração de gente nomeada pelas vereações dos concelhos, como sucedia, por exemplo, no Porto, em finais do século XIV, governança que igualmente se ocupava da remissão dos cativos moradores da urbe, pelo menos desde 1431.

A Igreja tinha lugar de relevo no campo assistencial. Isso já ficou expresso quando se referiram os fundamentos doutrinais da caridade medieval e se sugeriu o papel desempenhado por mosteiros e conventos, que às suas portas tinham albergarias e hospitais abertos aos passantes, a que se devem juntar as esmolas propiciadas por bispos e cabidos, principalmente nos centros urbanos, ou ainda a fundação de colégios, como o instituído pelo bispo de Lisboa, D. Domingos Jardo, em 1291, destinado a estudantes pobres55.

Mas a intervenção eclesiástica passava ainda pelas prescrições normativas que impunha, pela autoridade inspectiva que praticava – por exemplo das contas relativas aos legados pios ou dos locais e alfaias de culto a eles ligados, ou até pelo simples pedido de apoio ao monarca para proteger os órfãos e as viúvas, como se percebe de uma bula de Inocêncio IV, dirigida ao infante D. Pedro, filho de D. Sancho I56.

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57 Cf. neste volume o documento com o nº 2. 58 Cf. neste volume o documento com o nº 24.

59 Muitos exemplos podem colher-se em TRINDADE, Maria José Lagos – Notas sobre a intervenção, p. 875-882. 60 Cf. neste volume o documento com o nº 54.

61 Cf. SÁ, Isabel dos Guimarães – Quando o rico se faz pobre, p. 40.

excomunhão, aos que não respeitavam os seus direitos, como fez o arcebispo de Braga D. João Peculiar, no terceiro quartel do século XII57.

A actuação da Igreja explica-se por questões doutrinais, é certo, mas também pelo facto de que, como se viu, a maioria esmagadora dos institutos destinados à assistência, que com mais propriedade deviam designar-se por beneficências caritativas, eram fundações privadas com obrigações pias, pelo que os recursos a elas destinados não se podiam afastar do fim para que tinham sido criados. Assim, pelo direito canónico, esses bens requeriam a intervenção papal se se tratava de os aplicar de modo diferente do que inicialmente fora disposto. Por este motivo, muitas súplicas chegavam a Roma, originárias de portugueses que pediam graças nesta matéria, desde autorizações para fundar albergarias com oratórios, como pedidos de indulgências para certos locais que tinham associadas instituições de assistência, autorizações para escolher capelães, etc. Acresce que a Igreja tinha muitos bens que para serem afectados a fins caritativos, como a fundação de hospitais, ou albergarias, necessitavam da aprovação papal. Alguns dos documentos publicados procuram dar conta de tudo isto. De entre todos destaca-se, pela importância que teve na reorganização futura da moderna rede hospitalar em Portugal, que acabará, a partir de meados do século XVI, por ter ligações fortes às misericórdias, a bula Iniunctum nobis, de Inocêncio VIII, que concedeu a D. João II poder para, nas principais localidades do reino, unir os vários hospitais existentes numa única instituição58.

O panorama que se tem vindo a traçar, foi-se saturando, corrompendo e revelando sinais de incapacidade. Disso se tem percepção através de múltiplos sinais59. Basta ler o acrescento que foi feito ao

Compromisso da Confraria do Espírito Santo do Vimieiro, com a relação dos bens que a confraria tinha, para se perceber a desordem na gestão dos bens e legados destas instituições, que iam recebendo dotações privadas, acumuladas ao longo de várias gerações, criando um património muito difícil de identificar, sendo que muitas deixavam de cumprir as obrigações que os instituidores tinham consignado. Um dos mais eloquentes exemplos disso encontra-se no Regimento do Hospital do Espírito Santo, de Santarém, datado de 1454: “o dicto ospital nam amdava em boa hordenamça como compria a serviço de Deus e proveito das almas dos que lhe as possissoes leixaram porque achou per certa emformaçam que homde era hordenado pera Deus seer em elle servido se faziam obras diabollicas de putarias e refiarias de molheres casadas e virgees com frades e clerigos e homeens casados e se faziam no dicto ospital estallagem e alfamdega de mercadorias e feira de regataria em tamto que muitas honestas pessoas que em elle aviam devaçam receavam de hir fazer oraçam ao dicto Sancto Spirito por cayrem em maa fama”60.

Em função desta situação de desgoverno e incapacidades várias, a partir dos finais do século XIV, começam a encontrar-se sinais de mudança no campo assistencial, que se reforçarão, de forma vigorosa, na segunda metade de Quatrocentos. Isabel Sá já o sugerira, quando escreveu: “o processo que haveria de alterar o quadro exclusivamente local e fragmentário da assistência foi posto em marcha a partir da segunda metade do século (XV)”61.

Estas transformações foram provocadas por tomadas de consciência internas em algumas instituições, de que há ecos, depois do primeiro quartel do século XV, através da reformulação de velhos compromissos. Parece começar a assistir-se, por essa altura, a um movimento de ordenação de institutos

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62 Sobre este assunto ver BRAGA, Paulo Drumond – A crise dos estabelecicmentos de assistência aos pobres nos finais da Idade Média. Revista

Portuguesa de História. XXVI (1991) 175-190.

63 Cf. neste volume o documento com o nº 10.

64 Eduardo Nunes sugeriu que estas “iniciativas reformadoras (de D. Duarte) prenunciam a política assistencial que D. João II virá a executar meio

século mais tarde”, cf. NUNES, Eduardo – Política hospitalar de D. Duarte: achegas vaticanas. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, tomo II, p. 685. Sousa Costa, por seu lado, releva que também o infante D. Henrique, pela mesma altura, actuou em sentido semelhante em institutos pertencentes aos seus domínios de Tomar, ver COSTA, António Domingues de Sousa – Hospitais e albergarias na documentação pontifícia da segunda metade do século XV. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, tomo I, p. 288-289.

65 Cf. neste volume o documento com o nº 16.

66 Sobre o assunto ver SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e – A propriedade das albergarias de Évora nos finais da Idade Média. Lisboa: Instituto

Nacional de Investigação Científica – Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1990, p.33-34.

67 Cf. neste volume o documento com o nº 22.

68 Cf. neste volume o documento com o nº 197. Sobre esta questão consulte-se MATA, Luís António Santos Nunes – Ser, ter e poder: o Hospital

do Espírito Santo de Santarém nos finais da Idade Média. Santarém: Magno Edições/Câmara Municipal, 2000, p. 175-178.

69 Cf. neste volume o documento com o nº 56.

seculares cuja gestão estava repleta de vícios62. São disso amostra os compromissos renovados da confraria

de Santa Maria dos Anjos de Torres Novas (1429), ou da Confraria de Vera Cruz de Coimbra (1434). Mas a reforma, se assim se quiser entender, resulta também de uma maior intervenção da Coroa neste campo. Esse esforço de centralização visava evitar a pulverização e incapacidade de funcionamento das instituições com fins assistenciais, e é, como vários documentos o comprovam, muito anterior à criação das primeiras misericórdias. Os vestígios mais remotos desta política de unificação de pequenos institutos, que foi uma linha prosseguida pelo poder régio desde o século XV, encontram-se pela primeira vez em medidas propostas, no ano 1382, pelo bispo de Évora, D. Martinho, quando ordenou a integração na Albergaria do Corpo de Deus do património de outras instituições assistenciais eborenses, justificando-o deste modo: “nos he dito e de certo asy he que alguas albergarias que ha na dita cidade som daneficadas mal postadas e esso meesmo os beens dellas de tal guisa que se nom fazem em ellas hospitalidades nem se comprem as sete obras de misericordia pera que foram estetuidas e hordenadas e estabelecidas per os fieis christãos”63. Esta medida sugere, dada a proximidade do episcopado ao poder real, que nos meios da

corte régia este tipo de soluções começavam a ser pensadas.

D. Duarte, primeiro como co-regente e posteriormente como rei, possuía já uma aguda percepção da decadência e desgoverno dos hospitais de Lisboa e do reino em geral, e desde 1432, que intentou junto da Santa Sé resolver a situação. Documentos anteriormente conhecidos, publicados por Eduardo Nunes e Sousa Costa demonstram-no bem64. É o caso da súplica que dirigiu, em 1434, ao papa Eugénio IV,

solicitando a união de hospitais com escassos rendimentos, em todo o reino, depois de já ter formulado idêntica petição em relação aos da cidade de Lisboa65. D. Afonso V, anos anos setenta do século XV

procurou racionalizar a administração dos hospitais e albergarias da cidade de Évora, por via de um inovador Regimento que deixou lastro em políticas futuras66.

O corolário destas tendências viria a ocorrer durante o reinado de D. João II, com a construção do Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, processo desencadeado em 1492, e que foi precedido da bula Ex debito sollicitudinis, do papa Sisto IV (1479), que autorizava o ainda príncipe D. João a construir um amplo hospital na cidade, nele incorporarando outros hospitais e casas de assistência da urbe67. Em 5 de

Novembro de 1498, pouco antes da sua morte, já todos os pequenos hospitais e albergarias de Santarém tinham também sido unidos no Hospital de Jesus Cristo, como se comprova através da confirmação manuelina do compromisso da Confraria de S. Silvestre de Santarém68.

Políticas de teor semelhante foram prosseguidas pelo primo Manuel. No Regimento e Compromisso que D. Manuel outorga à Confraria dos Clérigos de Montemor-o-Velho, em Dezembro de 149569, é já visível uma grande preocupação com a correcta inventariação e administração do património

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da confraria, nomeadamente com o tombamento de todos os seus bens. Ordens para que idênticos tombos se efectuassem em várias instituições de assistência sairam posteriormente da sua Chancelaria.

Foi com o intuito de dar outra dinâmica ao sistema assistencial herdado da Idade Média, no contexto do fenómeno de centralização de poder e de construção dos alicerces do Estado, por mais que se diga dos seus limites, que D. João II e D. Manuel I quiseram reformar a política hospitalar e que, posteriormente, já no reinado de D. Manuel I, se criaram as primeiras misericórdias, num quadro onde o papel da espiritualidade e acção de D. Leonor também se fizeram notar.

O sucesso que as misericórdias vieram a alcançar foi enorme. Para tal não devem ter sido alheios os privilégios que gradualmente foram recebendo da Coroa, que constituiram preciosos auxiliares para a sua consolidação e expansão, pois a ideia inicial de D. Manuel I e de D. Leonor não estaria contida, nem sequer em embrião, na adesão e projecção que o fenómeno viria a atingir, a partir de meados do século XVI. Como quase sempre sucede, a criatura não foi exactamente aquilo que o seu criador congeminou e concebeu.

Mas isso será história para contar em próximos volumes. Quanto a este, espera-se que disponibilize a todos os medievalistas e àqueles que se dedicam à história da assistência, um conjunto documental e informativo que consolide algumas ideias tradicionalmente aceites e, em simultâneo, permita repensar o que hoje se sabe sobre este campo.

A elaboração deste volume resultou de um trabalho comum no qual se empenharam muitas pessoas e instituições, que tive o grato prazer e a honra de coordenar e a quem desejo manifestar o meu sentido agradecimento pelo afinco e elevada qualidade com que, nas áreas respectivas, desempenharam as suas funções.

Dessa longa lista permito-me salientar, no plano institucional a União das Misericórdias Portuguesas, o Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e todas as instituições que disponibilizaram o acesso a documentos e/ou autorizaram a sua publicação ou reprodução de imagens. No plano pessoal, destaco todos os ilustres membros da Comissão Científica e, em especial, pela maior ligação que tiveram na preparação, selecção da documentação e revisão das transcrições deste volume, os dois medievalistas que integram a referida Comissão, a Dr.a Maria de Lurdes Rosa e o Doutor Saul António Gomes. Não esqueço o secretário executivo deste projecto, Dr. José António Rocha e todos os tarefeiros responsáveis pelas pesquisas e transcrições documentais: Mestre António Castro Henriques, Mestre Maria Cristina Guardado, Dr.a Marta Castelo Branco e Dr. Vasco Silva. Espero poder continuar a beneficiar da colaboração de todos.

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1 Veja-se PORTUGALIAE Monumenta Misericordiarum. Coordenação científica de José Pedro Paiva. Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas,

2002, vol. 1, p. 14-15.

Este volume 2 dos Portugaliae Monumenta Misericordiarum obedece ao figurino organizativo comum a toda a série desta colecção, tal como foi já expresso na Introdução do tomo inaugural1.

Esse modelo, em função das especificidades do período medieval, teve que sofrer pequenas adaptações, em bom rigor mais evidentes nos títulos de alguns capítulos, do que na sua estrutura organizativa e conteúdos.

O volume comporta quatro capítulos: 1 – Enquadramento normativo-legal

2 – Instituições de assistência anteriores à criação das Misericórdias 3 – Fundamentos doutrinais e espirituais

4 – As pessoas

No primeiro encontram-se as disposições normativas produzidas pelas várias instâncias/poderes com jurisdição em matérias concernentes à assistência. Daí a sua subdivisão em três partes, para dar conta, sucessivamente, das Disposições da Igreja, Disposições régias (este organizado em função de tipos documentais – Ordenações, Regimentos, Cortes, Chancelaria) e Disposições locais.

No segundo procura revelar-se a actividade concreta das instituições assistenciais existentes. Inicia-se com um sub-capítulo intitulado Compromissos e Estatutos, no qual se congregam algumas dezenas de preceitos normativos dessas instituições. Termina-se com outro sub-capítulo sobre a sua Criação e funcionamento, onde se encontrará um variado leque de documentos que espelham as actividades que a criação e a administração destas variadas formas de assistência implicavam.

O terceiro capítulo reúne textos de géneros variados, desde a literatura, à parenética, a obras de espiritualidade e devoção, por onde perpassam propostas de reflexão que ajudam a entender o quadro ideológico/cultural que enquadrava a acção assistencial.

Por último, no capítulo 4, para ilustrar o papel concreto de alguns dos indivíduos que foram protagonistas da beneficência caritativa, dispõe-se um diversificado conjunto de testamentos.

Os documentos são numerados sequencialmente, não se reiniciando a numeração, a partir de 1, no começo de cada capítulo e encontram-se dispostos por ordem cronológica no interior de cada tópico. Os de datação crítica (por exemplo. Séc. XIV) são colocados no início de cada período secular.

Organização e Metodologia

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2 Ver COSTA, Avelino de Jesus da – Normas gerais de transcrição e publicação de documentos e textos medievais e modernos. Coimbra: Faculdade

de Letras da Universidade de Coimbra e Instituto de Paleografia e Diplomática, 1993, 3ª edição.

Em geral seguem-se os critérios de transcrição paleográfica e de edição propostos por Avelino Jesus da Costa2.

Para cada documento, além da datação e local de emissão, fornece-se um sumário, a(s) fonte(s) e localização do registo que se transcreve, nos casos em que tal se justifique a existência de publicações integrais, ou sumários já efectuados e ainda, sempre que possível, indicações bibliográficas que refiram o documento ou auxiliem a sua compreensão.

O volume não contempla apenas documentação inédita. A historiografia sobre o período medieval em Portugal tem publicado muita documentação de que este volume é profundamente devedor e sem a qual a obra que agora se apresenta seria mais difícil e morosa. A republicação de documentos aconteceu sempre que, entre os membros da Comissão Científica responsável por este projecto, houve a convicção de se tratar de um texto útil para a percepção dos contornos da assistência neste período. Assim, de entre as perto de três centenas de documentos agora publicados, muitos foram já transcritos e editados anteriormente. Nesses casos, procedeu-se à uniformização das normas paleográficas aqui seguidas, depois de cotejo com os originais (nos casos em que isso foi possível) e propondo, por vezes, leituras distintas das versões anteriormente publicadas.

Na selecção efectuada, procurou-se uma distribuição equilibrada da documentação pelo longo arco cronológico que o volume abarca mas, como é natural, em função da conservação dos vestígios do passado, há um predomínio de documentação trecentista e, sobretudo, quatrocentista.

As escolhas dos documentos são da inteira responsabilidade da Comissão Científica e dos coordenadores deste volume, tendo sido efectuadas com o intuito de dar resposta aos pressupostos do projecto apresentando no volume primeiro e tentando que as soluções encontradas fossem abrangentes (cronológica e espacialmente) e elucidativas de tipologias documentais, procurando que estas fossem capazes de reflectir os vários aspectos e dimensões da prática assistencial no período.

Índices onomático, toponímico e ideográfico serão incluidos no volume 10 e último desta colecção.

Em relação a cada capítulo, faz-se, de seguida, uma enunciação mais pormenorizada dos métodos utilizados para a sua elaboração.

1.1 – Disposições da Igreja: a documentação apresentada resultou de selecção feita a partir da consulta sistemática das seguintes obras: Bulário Português: Inocêncio III (1198-1216), por Avelino de Jesus da Costa e Maria Alegria F. Marques; Corpus Iuris Canonici, edição de E. Friedberg; Fontes do Direito Ecclesiastico Portuguez, vol. I. Summa do Bullario Portuguez, da autoria de Joaquim dos Santos Abranches; Hospitais e albergarias na documentação pontifícia da segunda metade do século, In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas, da autoria de António Domingues de Sousa Costa; Igreja e poder no séc. XV. Dinastia de Avis e liberdades eclesiáticas (1383-1450), da autoria de Margarida Garcez Ventura; Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae, edição crítica de Avelino de Jesus da Costa; Monumenta Portugaliae Vaticana, publicados por António Domingues de Sousa Costa; Synodicon Hispanum, vol. II, dirigido por Antonio Garcia y Garcia.

1.2.1 Ordenações: Publicam-se alguns capítulos de Ordenações que após análise dos textos se verificou terem relação com o fenómeno da assistência. Essa tarefa foi efectuada a partir de uma pesquisa sistemática das Ordenações del-rei Dom Duarte, edição preparada por Martim de Albuquerque e Eduardo

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Borges Nunes e das Ordenações Afonsinas, com nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa e nota textológica de Eduardo Borges Nunes.

1.2.2 Regimentos: Publicam-se alguns regimentos oriundos de decisões da Coroa que se conhecem.

1.2.3 Cortes: Elaboraram-se sumários de todos os capítulos de cortes com referências a assuntos relacionados com o fenómeno da assistência. Os sumários foram redigidos a partir da consulta sistemática das obras seguintes: Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357), Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367), Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando (1367-1383), todas edições preparadas por A. H. de Oliveira Marques e As cortes medievais portuguesas (1385-1490), da autoria de Armindo de Sousa. Posteriormente, foi feita uma selecção, com a transcrição integral do documento, que pretende ilustrar o género de pedidos e decisões que perpassam por este género de fonte.

1.2.4 Chancelarias: Os sumários que aqui se apresentam das Chancelarias régias, desde D. Afonso Henriques até ao reinado de D. João II, foram compilados após a consulta de todos os índices destas fon-tes existenfon-tes no IAN/TT, da base de dados da Chancelaria de D. Afonso V, do Centro Damião de Góis, bem como da obra Documentos Medievais Portugueses. Documentos Régios. Documentos dos Condes Portucalenses e de D. Afonso Henriques (A.D. 1095-1185), da autoria de Rui de Azevedo. Foram seleccio-nados todos os documentos onde constasse uma, ou várias das seguintes palavras: albergaria, confraria, gafaria, hospital, irmandade, juiz, lázaros, mercearia, pobres e provedores. Não se consideraram as referên-cias a “órfãos”, que são algumas centenas, acentuando-se na Chancelaria de Afonso V, e não se faz o elenco exaustivo de todos os registos que referem a Arca da Piedade, instituto de extrema importância no contexto das múltiplas formas de assistência suportadas pela Coroa. Os documentos editados integralmente resultam de uma selecção que pretende ilustrar o tipo de questões que, em cada reinado, são referidas nesta fonte.

1.3 – Disposições locais: Publicam-se documentos que referem aspectos relacionados com o tema deste volume, oriundos da actividade dos concelhos, após pesquisa das seguintes obras: Documentos Históricos da Cidade de Évora, organizados por Gabriel Pereira e Actas das vereações de Loulé, edição preparada por Humberto Baquero Moreno; Vereaçoens (anos de 1390-1395): o mais antigo dos livros de Vereações do Municipio do Porto existentes no seu Arquivo, com comentário e notas de A. de Magalhães Basto; Vereaçoens: anos de 1401-1449: o segundo Livro de Vereações do Município do Porto existente no seu Arquivo, com nota prévia de J. A. Pinto Ferreira; Vereaçoens (anos de 1431-32), com comentário e notas de João Alberto Machado e Luís Miguel Duarte.

2.1 – Compromissos e estatutos: Dada a riqueza desta fonte para o estudo do fenómeno assistencial na época medieval, optou-se por publicar a quase totalidade dos compromissos ou estatutos de confrarias que já se conhecem, acrescentando alguns novos que resultaram de recolhas efectuadas no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo e em arquivos de Misericórdias, que provavelmente integraram algumas destas instituições medievais de assistência, ficando, em consequência, com peças do seu espólio arquivístico. Esta pesquisa nos arquivos das Misericórdias não abrangeu a totalidade desses arquivos, seleccionando-se apenas alguns casos. É plausível que, de acordo com o Guia de Arquivos publicado no volume 1, haja outros compromissos nos arquivos das misericórdias de Abrantes, Almada, Caminha, Cascais, Monção e Santarém.

2.2 – Criação e funcionamento: a documentação apresentada resultou de selecção feita a partir da consulta das seguintes obras: A propriedade das Albergarias de Évora nos finais da Idade Média, de Bernardo Vasconcelos e Sousa; Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae, edição crítica de Avelino de Jesus da Costa; Monumenta Portugaliae Vaticana, publicados por António Domingues de Sousa Costa; O Tombo do Hospital e Gafaria de Santo Espírito de Sintra, da autoria de Maria Isabel Miguéns; Os pergaminhos da

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Confraria de São João do Souto da Cidade de Braga (1186-1545), Bracara Augusta, nº 36 (1982), da autoria de José Marques e Ser, ter e poder (…), da autoria de Luís António Mata.

Efectuaram-se ainda sondagens que revelaram alguma documentação no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Arquivo das Universidade de Coimbra e Arquivo da Misericórdia de Redondo. Para além dos documentos publicados há notícia de alguns Tombos e muita documentação relativa à vida económica das instituições de assistência que, em função dos objectivos do volume e da extensão da documentação se optou por não integrar.

3 – Fundamentos doutrinais e espirituais: Os documentos publicados neste capítulo resultam de uma selecção efectuada pela Comissão Científica no vasto espólio de obras literárias medievais portuguesas ou da autoria de portugueses, nos seus vários géneros e para diferentes períodos, que procuram ser indicadoras de um quadro de doutrinas e valores que sustentaram e exalçaram algumas das formas concretas, individuais e colectivas, de caridade.

4 – As pessoas: Este capítulo é integralmente composto por uma selecção de testamentos de reis, rainhas, bispos, cónegos, clérigos e leigos. Na maioria dos casos publica-se apenas o preâmbulo, identificação do testador, invocação e as claúsulas relativas a legados com intuitos assistenciais.

Referências

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