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Direito probatrio, substantivo e processual penal 2019

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Direito Probatório, Substancial e Processual Penal foi o nome da acção de formação

que teve lugar a 22 de Fevereiro de 2019, organizada pela Jurisdição Penal do Centro de

Estudos Judiciários.

A matéria é das mais relevantes em termos da prática judiciária e as reflexões que

foram feitas pelo Juiz Conselheiro Santos Cabral (sobre prova directa e indirecta), pelo

Juiz de Direito Tiago Caiado Milheiro (sobre prova por ADN) e pelo Procurador da

República Rui Cardoso (apreensão de mensagens de correio electrónico) resultam

agora espelhadas em texto, o que permite a apreciação e aproveitamento por todos/as

interessados/as.

No e-book inclui-se ainda um texto da autoria da Professora (e Escritora) Cláudia Cruz

Santos que corresponde à Acção de Formação “Retórica e Literatura” (19/11/2018), em

que foi abordada a questão da verdade processual, matéria com toda a pertinência

para a compreensão do tema geral desta publicação.

Esta “Coleção Formação Contínua” permite ao CEJ dar corpo ao objectivo de divulgar

em “canal aberto” o resultado das formações que organiza em primeira linha para

os/as magistrados/as portugueses/as, mas também para a restante comunidade

jurídica.

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Ficha Técnica Nome:

Direito probatório, substantivo e processual penal – 2019

Jurisdição Penal e Processual Penal:

Rui Cardoso – Procurador da República, Coordenador da Jurisdição e Docente do CEJ Helena Susano – Juíza de Direito e Docente do CEJ∗

José Quaresma – Juiz Desembargador e Docente do CEJ Alexandre Au-Yong Oliveira – Juiz de Direito e Docente do CEJ Susana Figueiredo – Procuradora da República e Docente do CEJ Patrícia Naré Agostinho – Procuradora da República e Docente do CEJ Valter Santos Batista – Procurador da República e Docente do CEJ

Coleção:

Formação Contínua

Plano de Formação 2018/2019:

Temas de Direito Penal e Processual Penal – 8 e 15 de fevereiro e 8 e 15 de março de 2019 (programa)

Direito probatório, substantivo e processual penal – 22 de fevereiro de 2019 (programa) Retórica e Literatura – 19 de novembro de 2018 (programa)

Conceção e organização:

Jurisdição Penal e Processual Penal

Intervenientes:

Cláudia Cruz Santos – Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Escritora

Santos Cabral – Juiz Conselheiro, Supremo Tribunal de Justiça Tiago Caiado Milheiro – Juízo de Execução da Maia

Rui Cardoso

Francisco Corte-Real – Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

Revisão final:

Edgar Taborda Lopes – Juiz Desembargador, Coordenador do Departamento da Formação do CEJ

Ana Caçapo – Departamento da Formação do CEJ

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Notas:

Para a visualização correta dos e-books recomenda-se o seu descarregamento e a utilização do programa Adobe Acrobat Reader.

Foi respeitada a opção dos autores na utilização ou não do novo Acordo Ortográfico.

Os conteúdos e textos constantes desta obra, bem como as opiniões pessoais aqui expressas, são da exclusiva responsabilidade dos/as seus/suas Autores/as não vinculando nem necessariamente correspondendo à posição do Centro de Estudos Judiciários relativamente às temáticas abordadas.

A reprodução total ou parcial dos seus conteúdos e textos está autorizada sempre que seja devidamente citada a respetiva origem.

Forma de citação de um livro eletrónico (NP405‐4):

Exemplo:

Direito Bancário [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2015. [Consult. 12 mar. 2015].

Disponível na

internet: <URL: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Direito_Bancario.pdf. ISBN 978-972-9122-98-9.

Registo das revisões efetuadas ao e-book

Identificação da versão Data de atualização

1.ª edição –28/10/2019 05/112019

30/06/2020

AUTOR(ES) – Título [Em linha]. a ed. Edição. Local de edição: Editor, ano de edição.

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Direito probatório, substantivo e processual penal

– 2019 –

Índice

1. A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no

Singular?

9

Cláudia Cruz Santos

2. Prova directa e indirecta

23

Santos Cabral

3. Prova por ADN – recolha, preservação, comparação e valoração

35

Tiago Caiado Milheiro

4. Apreensão de mensagens de correio electrónico e de natureza semelhante

61

Rui Cardoso

5. Medicina legal e identificação biológica: Princípios de Genética Forense

123

Francisco Corte-Real

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DIREITO PROBATÓRIO, SUBSTANTIVO E PROCESSUAL PENAL – 2019 1. A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no Singular?

1. A VERDADE DO MAGISTRADO E A VERDADE DO ESCRITOR: ALGUMA SE ESCREVE NO SINGULAR?

Cláudia Cruz Santos1. Considerações introdutórias

2. A descoberta da verdade como uma das finalidades do direito processual penal 3. Algumas notas soltas sobre o sentido da verdade que o magistrado procura

1. Considerações introdutórias

O gentil convite, endereçado pelo Centro de Estudos Judiciários, para participar, a 19 de Novembro de 2018, na Acção de Formação Contínua “Retórica e Literatura”, com uma comunicação intitulada “A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor – Alguma se Escreve no Singular?”, adquiriu para mim um significado especial na medida em que foi precisamente no Largo do Limoeiro que, no final de Junho de 2016, escrevi as primeiras páginas do meu romance Nenhuma Verdade se Escreve no Singular1, sem imaginar, na altura, que tais ideias dispersas viriam, depois, a ser publicadas sob a forma de livro.

Esta feliz circunstância levou-me a resolver esboçar algumas ideias sobre a verdade e a distinta importância que, pelo menos a um primeiro olhar, ela adquire para o magistrado ou para o escritor. A verdade parece importar necessariamente muito mais ao magistrado do que ao escritor. Este está livre da verdade, pelo menos no domínio da ficção, e não só não precisa de lhe prestar tributo como pode até estar, pelo menos em alguns casos, dispensado da coerência. O seu único limite é o da sua própria imaginação.

O magistrado, pelo contrário, parece estar mais amarrado à verdade, ainda que se possa questionar que verdade é essa e que peso adquire ela no contexto da sua actividade decisória. O enfrentamento desta problemática não prescinde, porém, de uma precisão: tomarei como exemplo apenas a actuação do magistrado no processo penal, quer se trate do magistrado do Ministério Público, quer se trate do juiz.

No já longínquo século XV, D. Duarte I, no seu Leal Conselheiro, tratando as virtudes do juiz perfeito, dava destaque à capacidade de descobrir a verdade (além da rectidão de carácter, do conhecimento, da temperança ou aptidão para julgar sem parcialidade e da fortaleza ou capacidade de julgar sem medo)2.

Mais recentemente, António Henriques GASPAR, a propósito de uma distinção entre o sentido da actuação do juiz da common law e do juiz continental, explica que cabe a este uma “tarefa de enunciação da verdade judiciária”, esclarecendo que “a dimensão factual – verdade judiciária ou processual – constitui, no rigor das coisas, o punctum saliens do julgamento e

* Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Coimbra.

1 Nenhuma Verdade se Escreve no Singular foi publicado pela Bertrand no final de 2017.

2 Cfr. António Pedro BARBAS HOMEM, Judex Perfectus – Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal 1640-1820, Almedina: 2003, p. 600.

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DIREITO PROBATÓRIO, SUBSTANTIVO E PROCESSUAL PENAL – 2019 1. A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no Singular?

onde se manifesta a interioridade espiritual do acto de julgar. Especialmente no domínio das causas penais, a reconstituição histórico-processual dos factos e a determinação da culpabilidade ou da não culpabilidade constitui o momento decisivo da complexidade do acto de julgar, assumindo a enunciação dos factos a construção da verdade processual. Nos sistemas continentais, esta é tarefa do juiz (...). O juiz é, antes do mais, um “ministro da verdade”, e na enunciação da verdade como base de toda a decisão manifesta-se a dimensão essencial do acto de julgar”3.

2. A descoberta da verdade como uma das finalidades do direito processual penal

É sabido que há vários institutos onde conflituam as finalidades do processo penal4 – de descoberta da verdade, por um lado, e de não desprotecção excessiva dos direitos fundamentais do arguido, por outro lado –, e é também seguro que a teleologia do processo penal, num Estado de Direito, supõe a constante procura da solução que mais cabalmente contribua para a concordância prática5.

Desta específica teleologia do direito processual penal – recortada, de resto, pelo próprio texto constitucional – resultam algumas ideias que estruturam o direito processual penal em qualquer Estado que se pretenda de Direito: a descoberta da verdade não é finalidade que se possa perseguir a qualquer preço; as autoridades judiciárias estão vinculadas na sua actuação também pelo respeito pelos direitos fundamentais; a comunidade sobrevive mesmo que alguma criminalidade real não seja objecto de punição (como o confirmam a existência de “cifras negras”); o papel do Ministério Público é tanto acusar caso existam indícios suficientes da prática do crime e de quem é o seu agente, como é arquivar quando tais indícios não sejam obtidos no prazo para tal legalmente admitido; a função do Tribunal é tanto condenar quando existe suporte probatório para uma convicção processualmente fundada sobre a responsabilidade do agente, como absolver sempre que assim não for.

A importância da descoberta da verdade não pode, portanto, ser usada como discurso legitimador monopolista para a desprotecção em medida insuportável dos direitos fundamentais do arguido, sob pena de assim se contribuir não para o aperfeiçoamento da nossa justiça penal (a justiça penal própria de um Estado de Direito) mas porventura para o seu deslizamento em um sentido contrário àquele que deve ser o da própria justiça, o da democracia e o da liberdade.

Por outro lado, e cumpre sublinhá-lo, há casos em que o formalismo imposto para a produção 3 Vd. António Henriques GASPAR, Justiça, Reflexões Fora do Lugar Comum, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010,

p. 22 ss. O Autor não deixa de sublinhar, porém, que essa tarefa de reconstrução da verdade se trata de “uma reconstrução processual”, “não isenta dos riscos de distância em relação à verdade ontológica. Na reconstituição objectiva e na apreciação das provas, a objectividade resulta sempre de alguma subjectividade (...)”.

4 Sobre as finalidades do processo penal, cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, “O novo Código de Processo Penal”, Textos Jurídicos I, Ministério da Justiça, 1987, p. 14.

5 Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS, ult. ob. cit., p. 13, sendo as finalidades do processo com frequência

antinómicas, cumpre “operar a concordância prática das finalidades em conflito; de modo a que de cada uma se salve, em cada situação o máximo conteúdo possível, optimizando os ganhos e minimizando as perdas axiológicas e funcionais”, mas sempre com o limite intransponível da dignidade humana.

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DIREITO PROBATÓRIO, SUBSTANTIVO E PROCESSUAL PENAL – 2019 1. A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no Singular?

da prova obedece cumulativamente aos propósitos de protecção dos direitos fundamentais do arguido e de favorecimento da descoberta da verdade. É o que sucede, por exemplo, com as exigências associadas à prova por reconhecimento previstas no artigo 147.º do CPP. Ou seja: o afastamento de requisitos necessários à valoração da prova não só atinge as garantias do arguido como contamina a possibilidade de descoberta da verdade, tornando-a menos certa, menos segura, menos verdadeira, poder-se-á dizer. Incumpridos os requisitos da prova por reconhecimento, atingem-se os direitos fundamentais do cidadão. Mas prejudica-se também a descoberta da verdade porque nos desviamos do caminho mais seguro para dar à prova por reconhecimento a segurança devida. E, quando assim é, não só não se favorece a concordância

prática como, pelo contrário, se prejudica o núcleo essencial de ambas as finalidades do processo.

Nos nossos dias, parece urgente a reafirmação de que esta verdade cuja descoberta constitui finalidade do direito processual penal não é, sem mais, a verdade ontológica ou a verdade histórica, porque existem limites específicos à investigação impostos pelo contexto axiológico que o processo penal também é. Como escreveu Maria Fernanda PALMA, “a investigação criminal, vivendo de uma lógica da singularidade, próxima da criatividade artística, da invenção e de alguma base probabilística, não tem, obviamente, em termos lógicos uma capacidade de atingir a certeza e a verdade, mas sobretudo de suscitar credibilidade e plausibilidade”, pois que “uma estrita lógica de verdade é confrontada com o significado jurídico-constitucional da investigação criminal num processo penal de estrutura acusatória e orientado por princípios de Estado de Direito como o da mínima restrição possível dos direitos fundamentais pelo Direito Penal e pelo Processo Penal”6.

Da afirmação de que existem restrições, no processo penal, à descoberta de uma verdade histórica – ou uma “verdade verdadeira”7 – não resulta a exclusão da descoberta da verdade 6 Cfr. Maria Fernanda PALMA, “Introdução ao direito da investigação criminal e da prova”, Direito da Investigação Criminal e da Prova, Coord. Maria Fernanda Palma/Augusto Silva Dias/Paulo de Sousa Mendes/ Carlota Almeida,

Almedina: 2014, p. 10 e p. 13.

7 João RAPOSO usa como sinónimos os conceitos de “verdade histórica”, “verdade material” ou “verdade

verdadeira” (“O princípio da verdade material – um contributo para a sua fundamentação constitucional”, Liber

Amicorum de José de Sousa e Brito, Org. Augusto Silva Dias/João António Raposo/ João Lopes Alves/Luís Duarte

d’Almeida/Paulo de Sousa Mendes, Almedina: 2009, p. 836 ss) e entende que “porque o princípio da culpa tem uma base ontológica, e não meramente formal, a culpa, que surge na Constituição como pressuposto irrenunciável da pena criminal, tem que ser igualmente uma culpa efectivamente demonstrada no processo penal, assente na demonstração efectiva de todos os elementos da responsabilidade criminal e não numa demonstração presumida, por exemplo, por o réu, como acontece em processo civil, não ter impugnado especificadamente um dos factos constantes da acusação”. Afirma, ainda, a existência de uma “fundamentação constitucional mais ampla para o princípio da verdade material”, decorrente dos “fins e das funções constitucionais do Direito Penal”. Depois de invocar várias previsões constitucionais para concluir que o princípio da verdade material tem consagração constitucional, o Autor questiona-se sobre a possibilidade de se lhe atribuir um conteúdo mínimo e admite que uma solução não será inconstitucional apenas por não permitir a descoberta da verdade, na medida em que se reconhecem outras finalidades ao processo penal, acabando por concluir que “inconstitucional por violação do conteúdo mínimo do princípio da verdade material será então apenas a norma que, em absoluto, não se legitime à luz de uma das outras finalidades constitucionalmente impostas ao processo penal, ou que, legitimando-se embora à luz de uma dessas finalidades, falhe ao operar a necessária concordância prática, não conseguindo salvar, na regulamentação da situação que prevê, o máximo conteúdo possível de ambas as finalidades contraditórias”. Também Fernando CONDE MONTEIRO, depois de afirmar que “o direito processual penal busca obter a verdade material”, se questiona sobre as dificuldades inerentes a investigar factos que aconteceram no passado, concluindo que “o conceito de verdade em debate está condicionado por um conjunto de pressupostos de natureza jurídico-penal e jurídico-processual-jurídico-penal” (“O problema da verdade em direito processual jurídico-penal (considerações epistemológicas)”, Que Futuro para o Direito Processual Penal – Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo

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DIREITO PROBATÓRIO, SUBSTANTIVO E PROCESSUAL PENAL – 2019 1. A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no Singular?

como finalidade do direito processual penal ou a afirmação que por vezes lhe anda associada de que bastaria uma qualquer verdade formal. O que se pretende significar é outra coisa: se a verdade que se quer descobrir através do processo penal é aquela verdade que a doutrina vem apodando de “material” por contraposição a uma verdade formal que se tende a associar (ainda que por vezes de modo simplista) ao processo civil ou ao sistema penal anglo-saxónico, sempre se terá de admitir que existem limites intransponíveis à descoberta dessa verdade, que resultam de outras finalidades igualmente importantes do processo penal, como a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas. O que equivale a afirmar que podemos ter de nos conformar com a impossibilidade de descobrir a verdade material, retirando daí todas as devidas conclusões inerentes à consagração constitucional da presunção de inocência como verdadeiro pilar do nosso direito processual penal. Mas isto não significa, segundo se crê, que a verdade cuja descoberta constitui finalidade do processo penal seja a verdade formal ou, porventura com mais exactidão, uma verdade diferente da “verdade verdadeira”. Significa, singelamente, que existem limites à descoberta desta “verdade verdadeira” que se procura8 e que, por isso, a verdade nunca pode ser alcançada à custa da compressão insuportável de direitos fundamentais, nomeadamente porque assim já não se contribui para a realização da justiça – o que permite concluir que a descoberta da verdade e a realização da justiça não caminham necessariamente de braço dado. Quando se descobre a verdade através da tortura, já não se contribui para a realização da justiça. Quando se absolve invocando, justificadamente, o in dubio pro reo, não se descobre a verdade, mas estar-se-á ainda a contribuir para a realização da justiça

Repita-se: a importância da descoberta da verdade histórica ou material não pode, portanto, ser usada como discurso legitimador monopolista para a desprotecção em medida insuportável dos direitos fundamentais do arguido9. Ou seja: a realização da justiça10 não pode

Dias por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coord. Mário Ferreira Monte/Maria Clara

Calheiros/Fernando Conde Monteiro/Flávia Noversa Loureiro, Coimbra Editora: 2009, p. 327 ss).

8 Compreende-se, porém, a preocupação manifestada por Paulo de SOUSA MENDES com a invocação da verdade

material. Nas suas palavras, “não é preciso demonizar a verdade material, nem evocar o trágico passado das confissões extraídas através de tortura, nem sequer recordar o renascimento da verdade material no período do nacional-socialismo (…) para se criticar o princípio da verdade material num Estado de direito liberal e democrático pelo risco que comporta de transformar o arguido num mero objeto de prova”. E acrescenta que “a verdade no processo não é encontrada, mas é construída através de um autêntico procedimento retórico de produção dos factos” (Causalidade Complexa e Prova Penal, Coimbra, Almedina: 2018, ps. 86-88). Ainda assim, não se crê que no processo penal se deva perseguir outra verdade, mas tão-somente que se tem de admitir que tal verdade nem sempre pode ser alcançada e que os aplicadores deverão conformar-se com isso, compreendendo que estão, ainda assim, a contribuir para a realização da justiça.

9 Sobre os perigos de «uma política criminal com uma dimensão populista que utiliza o direito penal como

instrumento, não tanto para responder à tutela de bens jurídicos, mas antes para fazer prevalecer uma certa forma de “simbologia penal de governação”», cfr. José Mouraz LOPES, «A contaminação do sistema penal português pelo “populismo penal”», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, vol. I, UC/IJ, 2017, p. 801. Igualmente preocupado com a defesa de uma “política criminal do ser humano”, Manuel GUEDES VALENTE (“Os direitos humanos e o direito penal: uma (re)humanização emergente”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor

Manuel da Costa Andrade, vol. II, UC/IJ, 2017, p. 285) dá conta de que “os princípios do populismo e da retórica

penal (política) têm dominado o discurso punitivo em vários espaços do globo terrestre e assentam na ideia de que o Direito penal garantista ou assente em primados do garantismo é incapaz de prevenir e reprimir os fenómenos criminógenos, badalados em toda a imprensa mundial: terrorismo, tráfico de armas, tráfico de droga, tráfico de seres e de órgãos humanos, corrupção, crimes previdenciários ou tributários, crimes ambientais, crimes cibernéticos, crime económico-financeiro, sendo de destacar o branqueamento de bens (mais conhecido por branqueamento de capitais)”. Maurice CUSSON evidencia a necessidade do pensamento criminológico nestes tempos de alarmismo: “o problema criminal contemporâneo está demasiado imbricado na trama da nossa vida quotidiana para poder ser combatido através de meios simples, brutais e expeditos. Para o combater sem atentar

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DIREITO PROBATÓRIO, SUBSTANTIVO E PROCESSUAL PENAL – 2019 1. A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no Singular?

ser invocada para se defender a necessidade imperiosa de descoberta da verdade, mesmo que à custa da desconsideração das normas jurídicas que os aplicadores vejam como empecilhos à descoberta daquela verdade, sobretudo nos casos dos processos ditos mais complexos e da criminalidade dita geradora de maior abalo social11.

Na justiça penal dos nossos dias, porventura com alguma frequência e com a justificação explícita ou implícita de por essa via se estar a contribuir para a descoberta da verdade (vista, erroneamente, como sinónimo de realização da justiça), têm vindo a admitir-se, por vezes através de uma “burla de etiquetas”, derrogações de soluções cunhadas em nome da não desprotecção excessiva de direitos fundamentais do arguido12. Alguns desses exemplos serão aqui enunciados, remetendo-se o seu tratamento mais detido para outros estudos que, autonomamente, lhes foram dedicados.

Esta tendência concentra-se, sobretudo, no processo penal atinente à criminalidade mais grave, mais organizada13 e/ou de investigação mais complexa, no âmbito da qual se vem

contra os nossos valores é preciso estudá-lo e conhecê-lo, evitando desvalorizá-lo ou dramatizá-lo. É para responder a esta necessidade de análise e de conhecimento que a criminologia existe” (CUSSON, Maurice, Criminologia. Só

pelo conhecimento se pode evitar a criminalidade, 3.ª ed., Casa das Letras: 2006, p. 13). Analisando também o modo

como “os novos riscos” se relacionam com o paradigma da mínima intervenção penal, desafiando-o, cfr. Fernando TORRÃO, “Direito penal, globalização e pós-modernidade (desconstrução do paradigma liberal?), Multiculturalismo

e Direito Penal, Org. Teresa Beleza/Pedro Caeiro/Frederico Costa Pinto, Grupo de Professores de Direito e Processo

Penal Jorge de Figueiredo Dias, Almedina: 2014, p. 59 ss.

10 Fernanda PALMA, numa reflexão sobre a justiça e o direito, relembra a afirmação de Lothar Philips de que a

justiça é “um conceito nervoso, frenético e altamente instável”. Questionando a possibilidade de uma invocação directa da Constituição quando o direito pareça não conduzir a uma solução justa, conclui que “nem sempre, porém, a interpretação da Constituição deve conduzir a um desenvolvimento criativo. Quando estão em causa restrições de direitos fundamentais, é altamente duvidoso que o apelo a uma ordem valorativa possa ser justificável” (“Constitucionalidade e Justiça: Novos Desafios para a Justiça Constitucional”, Themis, Revista da

Faculdade de Direito da UNL, ano 1, n.º 1, 2000, ps. 22 e 29).

11 Manifestando, já há alguns anos, a sua preocupação com a utilização de “processos paralelos (…) por razões de

eficácia no combate ao crime grave” e com a existência de “graves suspeitas sobre a legalidade de procedimentos investigatórios e nomeadamente daqueles de cariz excepcional e que por força da lei devem ser controlados pelos juízes mas que se suspeita que nem sempre o sejam”, cfr. Germano MARQUES DA SILVA, “Meios processuais expeditos no combate ao crime organizado (a democracia em perigo?)”, Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 3, 2005, ps. 71 e 72.

12 Profeticamente, já no início do século, sobre essa tendência, cfr. Anabela RODRIGUES, «A defesa do arguido: uma

garantia constitucional em perigo no “admirável mundo novo”?», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 4, 2002, p. 549 ss. Também Flávia Noversa LOUREIRO reflecte sobre como a protecção dos direitos fundamentais pode tender a uma limitação num processo penal que é “sensibilíssima bandeira ao vento das mudanças sociais” [“A (I)mutabilidade do paradigma processual penal, respeitante aos direitos fundamentais em pleno século XXI”, Que Futuro para o Direito Processual Penal – Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo

Dias por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coord. Mário Ferreira Monte/Maria Clara

Calheiros/Fernando Conde Monteiro/Flávia Noversa Loureiro, Coimbra Editora: 2009, p. 269 ss].

13 Na doutrina portuguesa. a associação entre a criminalidade organizada e a perda pelo agente da qualidade de

cidadão foi tratada, entre outros, por Augusto SILVA DIAS, que analisou a proposta de Jakobs de distinção entre um Direito Penal do inimigo, para o agente do crime organizado, e de um Direito Penal do cidadão, para os restantes. Além do crime organizado, Jakobs dá como exemplos o terrorismo, a criminalidade económica e os crimes sexuais – nestes domínios, tornar-se-iam aceitáveis as “medidas excepcionais de combate ao inimigo, que podem ser de carácter substantivo ou processual (entre estas, contam-se o “alargamento dos prazos de prisão preventiva, previsão de crimes incaucionáveis, inversão do ónus da prova, generalização de métodos de investigação e de prova excepcionais como as escutas telefónicas e os agentes provocadores e infiltrados, alargamento das buscas e revistas domiciliárias nocturnas” (Os criminosos são pessoas? Eficácia e garantias no combate ao crime organizado”, Que

Futuro para o Direito Processual Penal?, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando

Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 688 ss). Especificamente no âmbito dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, Maria João ANTUNES questiona a tendência, desde logo em instrumentos de direito europeu e internacional, “de haver uma tutela para além do bem jurídico individual da

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DIREITO PROBATÓRIO, SUBSTANTIVO E PROCESSUAL PENAL – 2019 1. A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no Singular?

expandindo a admissibilidade de soluções não aceitáveis no universo da criminalidade dita “comum”. A interrogação central foi já enunciada, nomeadamente, por Maria Fernanda PALMA: “o Estado de Direito com as suas garantias deverá ceder perante a urgência e a necessidade de conter o flagelo da criminalidade altamente organizada, quer a violenta quer a económica e financeira?”14. A questão, hoje nuclear, também já tinha sido suscitada por Maria João ANTUNES: “emergem agora interrogações sobre as respostas que a lei, a doutrina e a jurisprudência vão dar aos problemas colocados pelo terrorismo e pela criminalidade violenta ou altamente organizada. Saber como é que num sistema de coordenadas definido por um eixo horizontal, que distingue a criminalidade grave da pequena criminalidade, se vai inscrever um universo processual que, actualmente, também reclama um tratamento diferenciado ao nível da criminalidade grave”15.

A tendência para se desconsiderarem normas orientadas para a protecção de direitos fundamentais, sobretudo do arguido, é notória em certas interpretações ou correntes jurisprudenciais, sendo que algumas já mereceram a nossa atenção em estudos como “O direito processual penal, as suas finalidades conflituantes e alguns problemas de burla de etiquetas”16 ou “Prazos de duração máxima do inquérito (as consequências para a sua violação)”17. Concentremo-nos, pois, de forma muito sucinta, nestes dois exemplos de tal tendência, que este estudo pretende, apenas, enunciar nos seus tópicos essenciais.

De forma simplificada a propósito daquele primeiro exemplo (que consiste em admitir a valoração, como prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, de uma repetição de contributos dados em sede de reconhecimento ilegal em momento anterior do processo), antecipe-se a conclusão a que se chegou a propósito de uma “análise de caso”: o reconhecimento sem cumprimento de requisitos legais (de comparação com terceiros, nomeadamente) feito "a quente" logo depois da morte da vítima e com intervenção policial prejudica a possibilidade de um verdadeiro reconhecimento posterior. Admitir como prova testemunhal produzida na audiência de julgamento o contributo probatório de quem fez antes o reconhecimento ilegal invocando o princípio da livre apreciação da prova testemunhal é uma forma de fazer entrar pela janela aquilo que o legislador não deixou entrar pela porta. E é, ademais, um modo de prejudicar não apenas a finalidade do processo de não desproteção excessiva dos direitos fundamentais do arguido, mas também um obstáculo à obtenção da

liberdade e da autodeterminação sexual, no que diz respeito à exploração sexual de crianças e à pornografia infantil” [“Crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores”, Revista do CEJ, n.º 8 (especial), 2008, p. 208].

14 Cfr. Maria Fernanda PALMA, “Apresentação Científica do Congresso”, 2.º Congresso de Investigação Criminal,

Coord. Cient. Maria Fernanda Palma/Augusto Silva Dias/Paulo de Sousa Mendes, Almedina: 2010, p. 13.

15 Cfr. Maria João ANTUNES, «Direito processual penal – “direito constitucional aplicado”», Que Futuro para o Direito Processual Penal, coord. de MONTE, Mário (dir.)/CALHEIROS, Maria/ MONTEIRO, Fernando

Conde/LOUREIRO, Flávia, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, ps. 753 e 754. Tratando especificamente um exemplo do nosso tempo “fértil em situações conflituais, que nos colocam perante dilemas de muito difícil e polémica resolução”, cfr. Maria da Conceição Ferreira da CUNHA, “Uso da tortura e impedimento de actos terroristas”,

Multiculturalismo e Direito Penal, Org. Teresa Beleza/Pedro Caeiro/Frederico Costa Pinto, Grupo de Professores de

Direito e Processo Penal Jorge de Figueiredo Dias, Almedina: 2014, p. 33 ss. O problema, se não se suscita num concreto processo penal já instaurado, convoca questões que lhe são, até certo ponto, próximas.

16 Cfr. Cláudia Cruz SANTOS, “O direito processual penal, as suas finalidades conflituantes e alguns problemas de

burla de etiquetas”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, vol. II, 2017, p. 815 ss.

17 Cfr. Cláudia CRUZ SANTOS, “Prazos de duração máxima do inquérito (as consequências para a sua violação), RPCC,

ano 26, n. 1 a 4, janeiro-dezembro 2016, p. 549 ss.

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DIREITO PROBATÓRIO, SUBSTANTIVO E PROCESSUAL PENAL – 2019 1. A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no Singular?

outra finalidade do processo que é a descoberta da verdade.

No entendimento vertido no Acórdão do tribunal de recurso relativo ao caso sucintamente tratado na publicação antes mencionada, tem-se no horizonte uma hipótese em que António18 encontrou na beira da estrada uma vítima que tinha sido baleada e que estava moribunda, viu um vulto que se afastava, de costas, e gritou por auxílio, mas o outro continuou o seu caminho. Carlos era um vizinho da vítima, com idade avançada, que se dizia ter com ela um relacionamento conflituoso e, algum tempo depois da consumação do crime, foi levado para a GNR, interrogado durante horas e levado a movimentar-se perante António, que o “reconheceu”, sem que Carlos tivesse sido constituído arguido e avisado dos seus direitos, nomeadamente o de se fazer acompanhar por defensor. Considerou-se, no Acórdão do primeiro tribunal ad quem chamado a pronunciar-se (em decisão depois confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça), que Carlos foi levado para a GNR mas não foi detido (foi porque quis ir, livremente); foi privado da liberdade e interrogado porque se achava que podia ser agente de um crime de homicídio mas não era suspeito nem prestou declarações perante órgão de polícia criminal; foi exibido perante António que apesar das dúvidas o reconheceu como o vulto vislumbrado ao longe aquando da descoberta da vítima mas nunca existiu prova por reconhecimento; voltou a ser reconhecido por este António em audiência de julgamento (sempre com muitas dúvidas), mas também aqui não houve nenhuma prova por reconhecimento, antes prova testemunhal, que pode ser livremente apreciada.

Em tal perspectiva vai implícita (ou porventura explícita) a ideia de que através da mudança dos nomes dados às coisas se podem derrogar garantias consagradas no texto constitucional e/ou no Código de Processo Penal. Cabe-nos evidenciar que assim não é, assim não pode ser. Carlos foi detido fora de flagrante delito e levado para as instalações da GNR; foi detido porque era suspeito da prática de um crime de homicídio; sendo detido porque era suspeito e tendo prestado declarações perante órgão de polícia criminal, verificavam-se logo duas circunstâncias de constituição obrigatória de arguido; tendo sido constituído arguido, como deveria ter sido mas não foi, tinha vários direitos que não lhe foram reconhecidos, nomeadamente o de ser informado de todos os direitos inerentes à qualidade de arguido, o direito a ser assistido por defensor e o direito de não prestar contributos probatórios não desejados e que lhe seriam desfavoráveis; foi objecto de reconhecimento no posto da GNR contribuindo de modo enganoso para a sua autoincriminação e sem que se tivessem cumprido os requisitos previstos no artigo 147.º do CPP; admitiu-se em audiência de julgamento aquela prova de reconhecimento ilícita e insusceptível de valoração chamando-se-lhe prova testemunhal e invocando-se o princípio da sua livre apreciação.

Mas o apagamento de normas orientadas para a protecção de direitos fundamentais sob o pretexto da importância da descoberta da verdade é visível em vários outros exemplos. Um deles prende-se com a desconsideração dos prazos de duração máxima do inquérito previstos no artigo 276.º do Código de Processo Penal, entendendo-se que são meramente indicativos. Na perspectiva oposta, que sustento, a consideração do processo penal como direito

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constitucional aplicado que tem como pedra de toque a presunção de inocência19 impede que se aceitem violações significativas dos prazos de duração máxima do inquérito. No fundo, o que inapagavelmente subjaz à ideia de que se pode investigar sem prazo é a convicção de que

o arguido é culpado: ainda não se encontraram indícios bastantes da sua culpa, mas com mais tempo eles encontrar-se-ão. Pelo contrário, a presunção de inocência levada a sério em todas

as suas implicações teria como consequência a conclusão oposta: não se encontraram elementos suficientes para sustentar a responsabilidade criminal do investigado dentro do prazo dado pelo legislador, por isso ele é, até que surja prova em contrário (essa prova que pode levar à reabertura do inquérito), inocente. Ou seja: violações dos prazos de duração máxima do inquérito levam necessariamente implícita uma derrogação da presunção de inocência.

Como se deixou muito claro logo na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal português, que não pode deixar de assumir peso significativo na interpretação das normas concretas, “a celeridade é também reclamada pela consideração dos interesses do próprio

arguido, não devendo levar-se a crédito do acaso o facto de a Constituição, sob influência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, lhe ter conferido o estatuto de um autêntico direito fundamental. Há, pois, que reduzir ao mínimo a duração de um processo que implica sempre a compressão da esfera jurídica de uma pessoa que pode ser – e tem mesmo de presumir-se – inocente. Como haverá ainda que prevenir os perigos de uma estigmatização e adulteração irreversível da identidade do arguido (...)”.

Aceitar-se uma investigação muito para além do tempo admitido pelo legislador radica, pois, na pressuposição de que o arguido é culpado e que, com mais tempo, se descobrirá a prova dessa culpa. Mas significa também que não se compreende o sentido que deve ter a finalidade de descoberta da verdade no processo penal de um Estado de direito porque não se compreende que foram estabelecidos limites a esse objectivo – que não é uma missão –, os limites inerentes ao devido processo legal. Aceitar a violação dos prazos de duração máxima do inquérito significa desconsiderar que, como escreveu Michele TARUFFO, “o processo constitui um contexto jurídico”, acrescentando-se que “no processo os factos em relação aos quais se há-de investigar a verdade são identificados sobre a base de critérios jurídicos, representados essencialmente por normas que se consideram aplicáveis para decidir a controvérsia específica”20.

Nas adequadas palavras de Perfecto Andrés IBAÑEZ, “administrar justiça só se pode efectivar

com critérios racionais, sobre problemas do mundo real e dificilmente poderia sustentar-se (e menos aceitar-se) hoje uma forma de exercê-la que flua por um sistema que ignore um dado empírico. Deste modo, não cabe dúvida de que a qualidade de verdade que pode produzir, em

19 Para um aprofundamento deste tópico, cfr., muito recentemente, Giulio ILUMINATI/Bruna CAPPARELLI, “O

processo penal como direito constitucional aplicado”, Direito Penal e Política Criminal, PUCRGS: Porto Alegre, 2015, ps. 35 ss. Os Autores, depois de recordarem que “o processo penal como direito constitucional aplicado é uma definição pertencente à doutrina alemã e provavelmente recondutível a Eberard Schmidt, nos anos 50”, afirmam que “a presunção de inocência resume todas as garantias do processo penal” para, depois, concluírem que “porque todos somos presumidos inocentes, não se podem aplicar tratamentos rigorosos contra uma pessoa sem necessidade”.

20 Cfr. Michele Taruffo, La prueba de los hechos, Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 90 ss.

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geral, o processo, tem, em todo o caso, uma dimensão inevitavelmente formal, na medida em que a sua busca está sujeita a limitações procedimentais de diversos tipos e se deve dar por concluída em algum momento legalmente prefixado”21.

Não é um arqueólogo nem um historiador, o aplicador do direito – e o Ministério Público sabe-o bem, clarsabe-o, em tsabe-odsabe-os sabe-os muitsabe-os inquéritsabe-os que sãsabe-o arquivadsabe-os psabe-orque num dadsabe-o tempsabe-o nãsabe-o lhe foi possível obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes, mas não em outros inquéritos, porventura surpreendentemente. Seria útil avaliar o número de inquéritos em Portugal em que há despacho de arquivamento com o fundamento previsto no n.º 2 do artigo 277.º do CPP. Quantos arquivamentos por insuficiência de provas houve em processos por furto, roubo, violência doméstica ou violação? Ou em processos por corrupção, tráfico de influência ou branqueamento de capitais? Pelo menos alguns, supõe-se. Porque o aplicador do direito sabe, na maioria dos casos, que não pode investigar sem tempo, afinal não é um arqueólogo nem um historiador e a investigação própria do processo penal atinge o osso da existência de pessoas ainda vivas. E não é um arqueólogo ou um historiador22, o aplicador do direito, precisamente porque o mundo do direito lhe impõe, num Estado de direito, limites que têm uma natureza axiológica específica.

3. Algumas notas soltas sobre o sentido da verdade que o magistrado procura

Não constitui propósito deste estudo uma ponderação detida dos vários sentidos que o conceito de verdade pode assumir23. Para os efeitos aqui tidos por relevantes, crê-se bastante a afirmação de que existem limites, no processo penal, à descoberta da verdade dita material.

21 Cfr. Perfecto Andrés IBAÑEZ, Valoração da Prova e Sentença Penal, Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2006, p.

34. Sobre a inevitabilidade do arquivamento quando se ultrapassa o prazo previsto para a investigação, Aury LOPES JR/Gustavo BADARÓ (Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável, Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, p. 126 ss) consideram que a continuação do processo, além do prazo razoável, já não é legítima e viola “o Princípio da Legalidade, fundante do Estado de Direito, que exige limites precisos, absolutos e categóricos – incluindo o limite temporal – ao exercício do poder penal estatal”. Ainda de forma mais enfática, aduzem que “tão ilegítimo como é a admissão de uma prova ilícita, para fundamentar uma sentença condenatória, é reconhecer que um processo viola o direito de ser julgado num prazo razoável e, ainda assim, permitir que ele prossiga e produza efeitos. É como querer extrair efeitos legítimos de um instrumento ilegítimo, voltando à absurda máxima de que os fins justificam os meios”.

22 Apesar de se acreditar que existem diferenças entre a actividade do juiz e a do historiador, não se enjeitam

algumas semelhanças. Sobre elas, Paulo de SOUSA MENDES (“A prova penal e as regras da experiência”, Estudos em

Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 1002) sublinha

que “por definição, o juiz historiador tem de reconstituir um facto individual que ele mesmo não percepcionou”.

23 Sobre o assunto, cfr. José de FARIA COSTA, “Consenso, verdade e direito”, Linhas de Direito Penal e de Filosofia – alguns cruzamentos reflexivos, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 93 ss. O Autor toma como objecto de reflexão o

consenso visto enquanto “étimo fundante do assentimento geral” (“que não se confunde com a ideia de consentimento ou sequer de acordo”, na medida em que “o consentimento, de maneira diferente do consenso, é um acto de realização individual que só pode ter lugar a bens ou valores disponíveis”). Escolhe, assim, como objecto um “consenso” delimitado com grande precisão, que se não confunde necessariamente com o consenso inerente às práticas restaurativas. Não obstante, várias das considerações que tece sobre a “problemática da verdade” devem ser acompanhadas neste ponto da investigação. Tem-se em conta, sobretudo, a sua ideia de que “a verdade que se alcança no momento da aplicação da norma (…) é tão-só uma verdade intra-sistemática processualmente válida. Não é a verdade ontológica. Não é a verdade do juízo existencial. Não é a verdade sequer do juízo histórico. É a verdade que as regras processuais permitem (...)”.

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A verdade a que se pode chegar no processo penal é uma verdade construída através da

comunicação. E julga-se que é assim – ainda que porventura seja menos assim – mesmo em

sistemas processuais penais, como o português, em que não se deixa a sujeitos processuais configurados como partes todo o esforço de produção da prova necessária ao estabelecimento da verdade, antes se imputando também ao tribunal o dever de carrear para o processo, ainda que supletivamente, o material probatório necessário à formação da sua convicção. Ou seja: em um eixo tradicional de compreensão da verdade que se procura através do processo penal que tende a associar o sistema inquisitório à verdade material e o sistema acusatório à verdade formal, um sistema como o adoptado pelo legislador português não ocupa nenhum dos lugares extremos.

Todavia, por mais que este princípio da investigação que visa completar a base essencialmente acusatória do nosso direito processual penal afaste, mais do que em sistemas puramente acusatórios, essa verdade processual penal da verdade formal, ainda assim parece poder afirmar-se que a verdade que se logra atingir através do processo penal pode não ser equivalente à verdade histórica24. Através do processo penal, só pode ser a “verdade verdadeira” aquela que se procura desvendar, porque seria necessariamente ilegítima a ideia de que se pode condenar alguém numa pena criminal com um pressuposto que seja diferente dessa verdade. Todavia, o reconhecimento de que existem outras finalidades no direito processual penal, nomeadamente a protecção dos direitos fundamentais das pessoas perante o Estado, impõe o reconhecimento de que existem limites a essa pretensão de descoberta da

24 Jorge de FIGUEIREDO DIAS, a propósito de uma reflexão sobre a admissibilidade dos acordos sobre a sentença,

reconhece que a verdade que se procura através do processo penal, se não é uma verdade meramente formal porque se não limita aos contributos das “partes”, também não coincide necessariamente com a “facticidade histórica do real acontecido”. Nas suas palavras, «naturalmente que essa verdade não é a narrativa construída pela acusação e a defesa, dita “verdade formal”. Mas também não é integralmente a factualidade (a “facticidade”) histórica do real acontecido, mesmo que na sua relevância para as exigências normativas do caso: é sim esta facticidade combinada com as – e por consequência condicionada e limitada por as – exigências impreteríveis de garantia dos direitos das pessoas face ao Estado. O resultado desta combinação pode, assim, ser algo de substancialmente diferente, ou mesmo oposto, do real acontecido» (in Acordos Sobre a Sentença em Processo

Penal cit., p. 49). João Conde CORREIA afirma, de modo enfático, que “é inquestionável que uma decisão penal,

brilhante do ponto de vista substantivo, será injusta se tiver sido lograda com base na tortura (…). Para que a decisão seja, efectivamente, justa, também o processo que a ela conduz tem de ser justo” (O “Mito do Caso

Julgado” e a Revisão Propter Nova, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, ps. 149-150). Muito crítico quanto à aceitação,

cada vez mais ampla, da verdade negociada no âmbito da justiça penal, Sergio MOCCIA (últ. ob. cit., p. 112) refere-se ao «abandono da “cultura da prova”», associada pelo Autor a «uma diminuição perigosa do sistema das garantias, acentuando-se uma desvalorização progressiva da dimensão “cognitiva” do processo, entendida como técnica de verificação dos factos fundada no contraditório». Também Winfried HASSEMER deixa claro o seu entendimento de que «um processo penal próprio de um Estado de Direito conhece (…) limites à averiguação da verdade, que geralmente são de importância decisiva (…). A busca da verdade no processo penal é, por isso, relativa às vias legítimas através das quais se pode atingir. Faz sentido, por isso, falar não de “verdade objectiva”, mas antes de “verdade forense” ou obtida de acordo com as “formalidades judiciais”». E, tal como MOCCIA, também HASSEMER tem uma visão muito crítica das soluções informais no processo penal, nomeadamente as relacionadas com o consenso, que associa a um certo “comércio com a justiça” (Crítica al Derecho Penal de Hoy. Norma,

interpretación, procedimiento. Limites de la prision preventiva, trad. de Patricia Ziffer, 2.ª ed., 1ª reimp, Buenos

Aires: Ad Hoc, 2003, p. 86, p. 96 ss). A rejeição da descoberta da verdade material como finalidade do processo é clara no pensamento de Tomás Vives ANTÓN, para quem “o problema da verdade no processo penal tem de abordar-se a partir de uma definição das posições dos distintos participantes, que se aproxime, na medida do possível, dessa situação ideal de comunicação para que a decisão seja a que teria de se adoptar em um discurso sem outra coacção que não seja a do melhor argumento, em um discurso livre de dominação” (“El proceso penal de la presunción de inocência”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coord. Científica Maria Fernanda Palma, Coimbra: Almedina, 2004, p. 29).

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“verdade verdadeira”, pelo que em certos casos teremos de nos conformar, em nome das outras finalidades, com a impossibilidade de a alcançarmos.

No meu romance Nenhuma Verdade se Escreve no Singular, há uma personagem que funciona como pivot de várias histórias e que é juíza. Chama-se Amália e é confrontada, na sala de audiências do seu tribunal, com a necessidade de descobrir a verdade. Mas Amália começa a compreender que há muitas verdades e um dos primeiros momentos em que se confronta com essa angústia acontece por ocasião do julgamento de uma mulher e de três homens, todos acusados por crime de roubo.

“Andreia contou muitas coisas, durante muito tempo. Disse que tinha sido apenas, como

sempre, um instrumento nas mãos dos homens. Desta vez nas mãos de Rui, de Bruno e de Alcides. Que a ideia de roubar António tinha sido apenas deles. Que só fora usada como isco, sem nunca imaginar tudo o que iria acontecer depois, o nariz partido, o sangue, os gritos. Contou que nascera pobre, fora pouco à escola e continuava pobre. A mãe, que preferira manter o marido a defender a filha, escolheu a versão em que quis acreditar e essa não foi a versão de Andreia, por isso deu consigo na rua aos quinze anos. Um vizinho mais velho acolheu-a, mas percebeu depressa que não por mera generosidade. Começou cedo a consumir drogas, trabalhou em muitos sítios como aquele, compreendeu agora que está a envelhecer. Quer tratar-se. Quer mudar de vida.

Amália ouve-a atentamente, na sua máquina do tempo. Porque numa sala de audiências de um tribunal, num julgamento penal, viaja-se muito no tempo. Há o antes, o agora e o depois. O antes em que o crime aconteceu, o agora em que é preciso decidir, o futuro que é imprevisível, mas que o juiz precisa de encaminhar no sentido da paz e da segurança. Há que rumar ao passado, quase com cuidado de historiador, para descobrir o que sucedeu. Quem fez o quê? Quem tem culpa? Quanta culpa, afinal? Reconstrói-se, no presente, o passado. E há que decidir neste presente que temos o que fazer no futuro próximo (“pena de prisão ou não?”), crendo que tal decisão pode condicionar no sentido desejado um futuro mais longínquo. Esse futuro longínquo que é afinal o resto da vida de Andreia e dos outros. Demasiados segmentos temporais, pensa Amália. Demasiadas piruetas no tempo. Algumas coisas desvendadas, mas demasiadas coisas indemonstradas.

Sente-se uma viajante no tempo, Amália. Está cansada. Sobretudo cansada de viver tanto no tempo dos outros, enquanto o tempo da sua própria vida teima em fugir-lhe (...) E a única verdade – a única – que naquele momento, naquela sala de audiências, consegue antever é esta: não faz nenhuma ideia daquilo que realmente quer. São sempre mais fáceis, as verdades dos outros. Apesar de serem com frequência várias e tão diversas”.

Se hoje voltasse a ter o destino desta Amália angustiada pendente das minhas opções enquanto criadora do enredo, talvez introduzisse na história alguém que a ouvisse e que a aconselhasse. E esse alguém dir-lhe-ia, porventura, que precisa de se conformar com a evidência de não ter uma bola de cristal que lhe permita ver sempre a verdade passada e deslindar a verdade futura, e que por isso podem existir por vezes dúvidas que são inultrapassáveis; dir-lhe-ia que é também para suavizar as arestas da sua função que existe o

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princípio in dubio pro reo; recordar-lhe-ia a centralidade da presunção de inocência e remataria com uma ideia batida que não podemos deixar que se transforme numa ideia gasta – para um juiz que nunca é omnisciente, há um imperativo que é também uma salvação: é sempre preferível absolver um culpado do que condenar um inocente.

Vídeo da apresentação

https://educast.fccn.pt/vod/clips/16mebzngcn/streaming.html?locale=pt

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2. PROVA DIRECTA E INDIRECTA

Santos Cabral∗ Vídeo da apresentação

Prova indiciária I

Uma abordagem do tema da prova indiciária, e da sua evolução, necessariamente que tem de resultar duma visão holística que apele ao contexto em que a mesma evoluiu ao longo dos tempos.

Na verdade, uma perspectiva histórica da teoria da prova imprime a ideia de que os indícios têm sido um elemento essencial nalguns dos grandes processos criminais e hoje, mais do que em qualquer outro momento histórico, impõe-se a noção da sua importância.

Diversos factores se conjugam nesta relevância, realçando-se entre estes a impressionante evolução que se verificou na área da investigação criminal, que vai desde o ADN até às mais elaboradas tecnologias. Igualmente convocam o apelo à prova indiciária as imposições relativas ao combate a novos tipos de criminalidade em que os sinais, ou indícios, são factores essenciais para descodificar situações complexas nas quais surgem formas de actuação criminosa até agora quase desconhecidas.

A prova indiciária assume um papel essencial nestes novos domínios relativo a crimes complexos, e de difícil prova, como os que estão conexionados com a grande criminalidade económica. Falamos dum âmbito criminal em que é difícil a produção de prova, envolvendo a especificidade inerente a um universo multifacetado em que o crime económico, bem como o crime organizado, se entrecruzam em organizações herméticas que recorrem a operações labirínticas em que as práticas criminais surgem no seguimento de pactos de cumplicidade e auxilio mútuo.

A resistência à admissibilidade da prova indirecta, ou a sujeição da prova indiciária a critérios de exigência inultrapassáveis, pode conduzir a uma justiça formal, sem correspondência com a realidade.

Não surpreende, assim, que a secundarização da prova indiciária, ou a sua neutralização, assumam hoje um papel fundamental na tentativa de desresponsabilização dos agentes duma criminalidade económica, e financeira, de nível superior.

A relevância da prova indiciária como elemento fundamental na prova penal não é um mero acto de vontade desprovido de quaisquer regras, e derivado dum poder discricionário, mas,

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pelo contrário, depende de princípios, e regras, de natureza objectiva que se impõem ao julgador.

Por vezes, embora se reconheça a importância da prova indiciária em abstracto, não se consegue, em concreto, ultrapassar uma necessidade psicológica de comprovar exaustivamente que o indício apontado como premissa deve conduzir de forma inexorável a uma conclusão.

Directamente relacionada com tal incapacidade de superar tal dúvida metódica a questão que muitas vezes se coloca é do grau de conhecimento (stock of knowledge no dizer dos autores anglo-saxónicos) que o julgador deve estar apetrechado para afirmar, ou não, a existência duma relação de causa e efeito entre o indício e o facto indiciado, ou seja, o conhecimento que deve estar presente para afirmação duma inferência que leva ao conhecimento acima de qualquer dúvida12.

Como referimos em anterior artigo dedicado a este tema3 maior parte das vezes a premissa maior integrante da prova indiciária é uma regra de probabilidade. Como refere Stein as regras da experiência quotidiana só podem levar a apreciações aproximativas.

Certamente que não é um grau de absoluta certeza que deve estar presente em cada inferência que se faz do facto indiciante ao facto indiciado. Como afirma Marieta4, corroborado pela totalidade dos Autores que se debruçaram sobe esta matéria, a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza5. Todavia, a transposição da soma de probabilidades que dá a convergência dos factos indiciados para a certeza sobre o facto, ou factos probandos, que consubstanciam a responsabilidade criminal do agente é uma operação em que a lógica se interliga com o domínio da livre convicção do juiz.

Convicção sustentada, e motivada, mas que, nem por isso deixa de significar a passagem do domínio da possibilidade para a formatação de uma íntima convicção sobre a certeza do facto.6

1 Como refere Patrícia Silva Pereira (“Prova indiciária no âmbito do Processo Penal”, pág. 117 e seguintes), podemos reconduzir as várias referências a quatro diferentes níveis de convicção: indícios para além da presunção de inocência, correspondente ao crivo do direito internacional criminal guilt beyond reasonable doubt; indícios fortes ou sinais claros correspondente ao crivo do clear evidence ou dringend tatverdacht; indícios suficientes ou prova bastante correspondente ao crivo da reasonable suspicion ou probable cause ou hinreichende tatverdacht; e, por fim, indícios fundados em suspeitas fundadas, fundado receio, e imputação do crime correspondente ao crivo boa fide suspicion ou anfangsverdachr.

2 Para Renata Andrade (A Importância da prova indiciária em processo penal), Quanto mais próximo de 100% for o standard estabelecido pelo julgador, mais culpados ficarão soltos e maiores serão os efeitos a impunidade danosos à sociedade, ainda mais em uma longa série de casos criminais. De outra parte, quanto mais baixo for o grau em que esse standard for estabelecido, maior será o número de inocentes condenados numa longa série de casos, ferindo-se gratuitamente o precioso direito fundamental, consistente na liberdade de inocente, que o Estado deve tutelar.

Disponível em https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/7076/1/renataalmadadeandrade.pdf.

3 Prova indiciária e as novas formas de criminalidade José António Henriques dos Santos Cabral JULGAR n.º 17 ). 4 La Prueba em Processo Penal, pág. 59.

5 Acórdão do STJ de 27-05-2010. 6 Acórdão do STJ de 23-02-2011.

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Na verdade, a máxima da experiência, em que assenta a prova indiciária, é uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos, mais precisamente, é uma regra extraída de casos semelhantes.

A experiência permite formular um juízo de relação entre factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos. Parte-se do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” e este relacionamento permite afirmar um facto histórico, não com plena certeza, mas, como afirma Tonini7 como uma possibilidade mais ou menos ampla.8

A máxima da experiência é uma regra e, assim, não pertence ao mundo dos factos, consequentemente origina um juízo de probabilidade e não de certeza.

As inferências lógicas aptas a propiciar a prova indiciária podem, também, consistir em conhecimentos técnicos que fazem parte da cultura media ou leis científicas aceites como válidas sem restrição.

Em matérias que impliquem especiais competências técnicas científicas ou artísticas, e que se fundamentam naquelas leis, é evidente que a margem de probabilidade será proporcional á certeza da afirmação científica.

Como refere Delleplane9 só quando a premissa maior é uma lei, que não admite excepções, a inferência que consubstancia a prova indiciária revestirá a natureza de uma dedução rigorosa. A inferência só é certa, por excepção, quando se apoia numa lei geral e constante, ou seja, quando deixa de ser uma inferência analógica para passar a ser uma dedução rigorosa. Noutras circunstâncias estaremos sempre perante uma probabilidade, ou seja, na esteira de Moreno10 a teoria dos indícios reduz-se á teoria das probabilidades e a prova indiciária resulta do concurso de vários factos que demonstram a existência de um terceiro que é precisamente aquele que se pretende averiguar.

Note-se que a concorrência de vários indícios numa mesma direcção, partindo de pontos diferentes, aumenta as probabilidades de cada um deles com uma nova probabilidade que resulta da união de todas as outras.

No mesmo sentido se pronuncia Clement Duran quando refere que o princípio da normalidade se torna o fundamento de toda a presunção abstracta. Tal normalidade deriva da circunstância de a dinâmica das forças da natureza e, entre elas, das actividades humanas existir uma tendência constante para a repetição dos mesmos fenómenos.

7 La Prova Penale, pág. 16 e seguintes. 8 Acórdão STJ de 12-03-2009.

9 Nueva Teoria de la Prueba, pág. 56 e seguintes. 10 La prueba de indícios, pág. 145.

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O referido princípio está intimamente ligado com a causalidade: as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos e tem justificação na existência de leis mais ou menos imutáveis que regulam de maneira uniforme o desenvolvimento do universo.

O princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal.

Dito por outra forma, aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa. O princípio da normalidade fundamenta a eleição da concreta causa produtora do efeito para a hipótese de se apresentarem como abstractamente possíveis várias causas. A análise das características próprias do facto permitirá excluir, normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito. Provado no caso concreto tal efeito deverá considerar-se provada a existência da causa.

Do exposto resulta que o princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno, mas sim provável.

Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.

Só este convencimento, alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária – quando é este tipo de prova que está em causa –, pode alicerçar a convicção do julgador.

Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer.

Para que seja possível a condenação é imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória.

A força da prova indiciária prende-se com a certeza do indício, a força do raciocínio inferencial, o grau de probabilidade da inferência efectuada e a gravidade da presunção resultante. De todos esses factores há-de resultar a certeza possível num processo judicial, certeza que deverá ultrapassar a dúvida razoável111213.

11 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-04-2011.

12 Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional de 17-10-2018 Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está directamente

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DIREITO PROBATÓRIO, SUBSTANTIVO E PROCESSUAL PENAL – 2019 2. Prova directa e indirecta

A forma como se explana aquela prova, fundando a convicção do julgador, tem de estar bem patente o que se torna ainda mais evidente no caso da prova indiciária pois que aqui, e para alem do funcionamento de factores ligados a um segmento de subjectividade que estão inerente aos principio da imediação e oralidade, está, também, presente um factor objectivo, de rigor lógico que se consubstancia na existência daquela relação de normalidade, de causa para efeito, entre o indício e a presunção que dele se extrai.14

Como tal, a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base, ou indícios, que se considere provados e que vão servir de fundamento á dedução, ou inferência, e, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual, e partindo de tais indícios, se concluiu pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Esta explicitação, ainda que sintética, é essencial para avaliar da racionalidade da inferência.

II

Como já oportunamente tivemos ocasião de afirmar,15 16 são dois os elementos da prova indiciária.

Em primeiro lugar o indício, que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar conhecer outro facto que com ele está relacionado.

Em segundo lugar é necessária a existência da presunção que é a inferência que, aliada ao indício, permite demonstrar um facto distinto.

A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior:

A lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum que, apoiada no indício-premissa menor, permite a conclusão sobre o facto a demonstrar.

Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. Por qualquer forma é incontornável a afirmação de que os mesmos devem ser graves e concordantes17, convergindo na direcção da mesma conclusão facto indiciante.

provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma directa atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.

13 Acórdão da Relação do Porto de 14-012015.

14 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-10-2011. 15 Revista Julgar - N.º 17 – 2017, Coimbra Editora. 16 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2012. 17 Acórdão da Relação de Coimbra de 21-11-2011.

Imagem

Figura 1 - Localização do ADN numa célula.
Figura 5 - Transmissão de alelos - mutação.
Figura 6 - Transmissão do ADN mitocondrial.
Figura 9 - Localização de marcadores genéticos.
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Referências

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