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Annuario da Escola Medico-Cirurgica do Porto : Anno lectivo de 1906-1907

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.A-IM 3ST T T ^ - I K X o

DA

CSC0L3 MEDICO-CIRURGICfl

DO

P O R T O

(3)

ANNlfÀRIO

DA

ESCOLA MEDICO-CIRDRGICA

DO

PORTO

A N N O LECTIVO DE 1 9 0 6 - 1 9 0 7

PORTO

Typographia a vapor de Arthur José de Souza & Irmão

*i, i.iirRO do S. Doininitos. <(7

1907

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lie

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Prof. Clemente Pinto

I M 5 d e fevereiro de 1907 falleceu cm Lisboa, pe­

■— Ias 3 horas da tarde, o professor Clemente Joa­

quim dos Santos Pinto, tão prematuramente roubado ás luetas da vida, pois contava apenas 35 annos.

Dcsapparcceu do corpo docente um dos seus membros mais illustres, que para o renome da escola muito contribuirá pelo esforço valorisado d'uma lúcida intelligencia e d'um provado saber, pertencendo­nos a obrigação de memorar nas paginas d'esté Annuario a vida de collega por muitos títulos distincto. Foi curta a sua travessia pelo mundo, foi pequena a sua demora no ensino, mas ainda assim sufficients para impor o dever d'um registo, que não pode limitar­se á mera cs­

cripta d'um nome e á simples menção d'uma data.

Clemente Pinto era filho de Clemente Joaquim dos Santos Pinto, e nascera em Carrazeda de Monte negro, concelho de Valpassos, a 6 de outubro de 1871.

Foi um dos estudantes mais laureados do seu tempo, e se na Escola Medica lhe foram conferidas

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Anno lectivo de 1906-1907

as mais altas classificações, como devido preito aos seus merecimentos de alumno intelligente e trabalha- dor, já na Academia Polytechnica, que elle frequentou de 1887 a 1889, havia affirmado e por maneira bri- lhante estas notáveis qualidades. E' assim que ao en- trar na Escola, tendo completado»o respectivo curso preparatório na Polytechnica. apresentou as seguintes classificações: 6." cadeira, physica, 2." accessit ; 7." ca- deira, chimica inorgânica, j.° acccssil ; N.fl cadeira, chi- mica orgânica, accessit com iy,5 valares; 10.R cadeira, botânica, 3.° accessit; ir." cadeira, zoologia, premio pecuniário com 18 valares.

Frequentou a Escola Medica, que elle tanto havia de honrar como estudante e como professor, de 1889 a

1894. Salientou-se durante o curso'medico pela luci- dez do seu entendimento, que mestres e condiscípu- los lhe reconheciam sem discrepância, nem hesitação^, e pela assiduidade ininterrupta na elaboração das lit ções. Terminou a sua carreira académica.em 4 de ju- lho de- iSg5 com.a defesa da dissertação inaugural — A sôrotherapia em geral e em especial a da d:phte- ria—, trabalho de muito valor e que se defronta com

as melhores monographias que sobre o assumpto teem sido publicadas. Foram-lhe conferidas as seguintes clas- sificações:— Premio na t.* cadeira; 1.o premio na 8.";

/." accessi/ nas 4 / , 5.\ 6.", 7-a e ij.a; accessit nas 3.", io.B, i i . ' e 12.*; Distincção na 2.'. Teve, além d'es- tas classificações, o Premio Barão do Castello de Paiva e o Premio Nobre, aquelle conferido ao melhor alu- mno de hygiene e medicina legal, e este concedido pela melhor dissertação inaugural. No acto grande e nos actos das 1.*, 5.", G." e 8.:1 cadeiras foi approvado com louvor.

Antes de nos referirmos á sua vida de professor, e esta pôde considerar-se a partir das provas do con- curso, registemos, porque essa é a verdade, a funda

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Escola Medico-Cirurgica do Porto VII

sympathia que o estudante Clemente Pinto se creou na academia d'aquella época, pela concepção que elle tinha do que deve ser a camaradagem, concepção pra- ticada e servida por qualidades de caracter e coração que o faziam estimado de todos os seus condiscípulos e contemporâneos. Agitou-se então a mocidade das es- colas no largo movimento nascido do conflicto com a Inglaterra, e em comícios públicos, em assembleias geraes da academia, intensamente vibrou o enthusiasmo e o patriotismo dos estudantes, attingindo por vezes exaggeros que os annos desculpavam c a effervescen- cía do momento bem justificava. Clemente Pinto acom- panhou este movimento, não acorrentado á falsa inter- pretação d'uma camaradagem que annulla o critério individual para discutir e ponderar, mas orientado pela sua esclarecida razão, que sabia fazer-se attender nas discussões mais ardidas das assembleias académicas.

A sua palavra, sem os arroubamentos dos grandes tribunos, era correcta, fácil, e apropriada ao pensa- mento, bem significando a estreita harmonia entre a elaboração reilectida da ideia e a expressão prompta e adequada da linguagem.

Com Reis Santos, Augusto de Castro, Vaz Pe- reira, Castro Soares, e muitos outros filhos queridos da Escola do Porto, que então a honraram como alumnos, e desde então a teem honrado como pro- fissionaes dos mais distinctos, Clemente Pinto dei- xou assignalada a sua intervenção no movimento es- colar d'aquelles tempos revoltos, que a todos trazia inquietos e apaixonados, a alguns levou a contendas revolucionarias, mas a nenhum affastou do respeito que se deviam, como estudantes e como cidadãos.

Sempre correcto e aprumado, vivendo na mais affectuosa e estreita sociabilidade com os seus condis- cípulos, em todos tinha um amigo e um admirador.

Assim decorreu este período da sua vida académica,

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VIU Anno lectivo de 1906-1907

preparando-se, logo após a defesa da dissertação inau- gural, para concorrer ao magistério.

Fez concurso para a secção cirúrgica, apresen- tando como these um desenvolvido e excellente estudo, com larga cópia de observações pessoaes, sobre Çys- tiíes e infecção urinaria. Quer na defesa da these, quer nas lições, houve-se brilhantemente, não desme- recendo e antes potenciando o conceito que d'elle for- mavam os antigos professores, obtendo a primeira clas- sificação, sendo duas as vagas e cinco os candidatos que as disputavam.

Por decreto de 27 de agosto de 1896 foi nomeado professor substituto, tomando posse em g de setembro.

Foi promovido a cathedratico por decreto de 11 de agosto de 1900.

Regeu como substituto o curso de Propedêutica cirúrgica, e a i.a cadeira, Anatomia descriptiva, e como cathedratico a 5.a cadeira, Medicina Operatória. Foi mestre exemplarissimo, impondo-se ao respeito dos discípulos pelo seu estudo, pela sua competência, pela justiça com que sabia apreciar os que mais valiam peio trabalho e pela intelligencia. Amando entranhadamente o exercício docente, pondo ao serviço do difficil officio de ensinar uma grande dedicação, o prof. Clemente Pinto luctou quanto lh'o permittiram as suas podero- sas faculdades pelo aperfeiçoamento do ensino nas ca- deiras que lhe foram confiadas, tendo revelado notá- veis aptidões pedagógicas e operatórias, que lhe mar- cariam, sem duvida, logar distincto entre os nossos mais abalisados professores e cirurgiões, se a politica partidária o não subtrahe para um outro campo de actividade.

Fm 3o do outubro de 1900 foi nomeado secreta- rio da Escola, e se, como professor meticuloso e mo- delar, a sua travessia pelo magistério, embora curta,

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Escola Medico-Cirurgica do Porto [X

constitue norma a seguir pelos que vêem acolher-se ao labor honrado da Escola do Porto, a sua passagem pe- los serviços burocráticos como secretario, escrupulo- samente cumpridor das suas obrigações, com inicia- tiva para produzir e superior critério para nortear, ficou registada de modo a representar lição proveitosa para quem tem de lhe succéder no exercício do cargo official.

No jornalismo medico demonstrou excepcionaes dotes de escriptor, deixando na Gaveta Medica do 'Porto artigos primorosamente elaborados sobre as- sumptos importantes e actuaes de medicina e cirurgia.

Em phrase castigada e elegante o assumpto a escre- ver era tratado com a maior clareza, ficando sempre bem nítidos os pontos essenciaes, que como ideias ba- silares prendiam e determinavam as suas considera- ções.

Antes de defender a sua dissertação inaugural, foi Clemente Pinto nomeado Assistente da Repartição Municipal de Hygiene, então dirigida pela rara com- petência e excepcional capacidade do prof. Ricardo Jorge.

Serviu durante os annos de i8g5 e 1896, e foi n'esta Repartição que Clemente Pinto colheu os ele- mentos laboratoriacs e clínicos para a sua dissertação.

Desde 17 de agosto de 1900 até 28 de novembro de 1902 exerceu por eleição o logar de Presidente da Direcção Administrativa do Hospital Geral de Santo Antonio, com o zelo, a dedicação, a proficiência que o nosso mallogrado collega punha sempre ao serviço dos cargos que desempenhava. São documentos re- veladores os seus relatórios inhérentes ao exercicio comprehendido n'aquelle periodo de tempo, e que

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X Anno lectivo de 1906-1907

se acham incluídos nos relatórios geraes da Santa Casa.

Quando em 1901 se iniciou em Portugal a lucta contra a tuberculose, constituindo-se a Assistência Nacional e a Liga Nacional, as duas poderosas e beneméritas associações, que tão efficazmente teem trabalhado em combates de propaganda e em obras de protecção aos doentes, Clemente Pinto para logo se enfileirou junto dos mais enthusiastas soldados d'esta campanha, que tem proseguido ardorosa e sem descanço.

Na Assistência Nacional aos tuberculosos fez par- te da commissão de propaganda da Succursal do Pota- to, e na Liga Nacional desempenhou um papel dos mais importantes, que não será nunca esquecido.

Collaborou na sua organisação e na redacção dos seus estatutos, discutiu quasi todas as questões estu- dadas no Congresso de Lisboa (abril de 1901), sendo o relator da questão — Instrucção pratica e obrigações dos enfermeiros dos hospiiaes em relação á tuberculo- se—, e foi o conferente no Congresso de Coimbra (abril de 1904), produzindo um estudo valioso, justa- mente considerado como dos melhores que brilham na historia da utilíssima instituição, que é a Liga Na- cional contra a tuberculose.

Foi eleito deputado pelo Porto em 1901, sendo desde então e até ao fallccimcnto um dos seus repre- sentantes em cortes. Fez parte das commissões do orçamento, instrucção publica, superior e especial, instrucção primaria e secundaria, e saúde publica.

Nos intcrvallos das sessões parlamentares fez parte das commissões de arbitragem e paz, e de colonisa- cão do paiz.

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Escola Modiéo-Cirurgicá do. Porto X !

Apresentou de sua iniciativa varios^projectos dei 1er, e foi o relator dos seguintes:

a) Projecto de lei auctorisando o governo a réor- ganisai- os serviços da Direcção Gerai de Saúde e Beneficência ('março de igoi).

b) Projecto de lei organisando o ensino superior de pharmacia (fevereiro de igo2).

. c) Projecto modificando a carta de lei de /7 de agosto de iSgg, que criou o fundo destinado á Assis- tência Nacional aos tuberculosos (março de igo3).

d) Projecto de lei criando nas Escolas Medicas as cadeiras de histologia e de anatomia topographica, os cursos auxiliares de propedêuticas medica e cirúr- gica, os lagares de chefes de clinica, prosector de ana- tomia e preparador de. physiologia e histologia (maio de /()o3).

Tomou parte na discussão de différentes assum- ptos,' os mais variados em politica e administração, e sem se deixar prender pelo ardor da paixão partidária, o deputado Clemente Pinto manteve-se sempre na es- phera d'uma inalterável serenidade, passando as ques- tões que versava pela iieira do estudo e da reflexão..

A rectidão da sua consciência e a inteireza das suas crenças eonjugavam-se perfeitamente na apreciação dos factos sujeitos á discussão, e exclusivamente preoceu- pado com os interesses superiores do paiz, soube en- tre os seus pares adquirir logar proeminente, mere- cendo qs seus trabalhos, como parlamentar, unanime e lisongeira referencia.

Ena 27 de novembro de 1901 foi nomeado Reitor do Lyceu Central de Lisboa, logar que conservou até á. sua morte, e a despeito da grande responsabilidade inhérente á direcção, d'esté instituto, com uma nume- rosa frequência de alumnos, com um distincto pessoal docente, e n'um difiicil período de execução de. novo

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XII Anno lectivo de 1906-1907

plano de estudos, o professor Clemente Pinto soube conciliar opiniões, resolver difficuldades, orientar o en- sino, e attender a todas as minúcias da complexa edu- cação lyceal, de modo a altear o seu nome em presti- gio e consideração. Estimavam-n'o professores e estu- dantes, e as instancias superiores tiveram sempre em elevada conta os serviços por elle prestados á instruc- ção secundaria, do que é bem claro testemunho o fa- cto de se conservar na Reitoria em différentes situações politicas.

Falleceu aos 35 annos, quando muito havia a es- perar da sua intelligencia e da sua actividade, falleceu novo, mas tendo aínrmado na tenacidade do esforço e na correcção do proceder a elevada comprehensão do que deve ser e do que tem de ser a vida do ho- mem que não quer desviar-se da linha recta d'um exemplar civismo. Nenhuma das situações occupa- das pelo professor Clemente Pinto constituíram mera ostentação de exterioridades, mas em todas demons- trou a nobilíssima orientação de trabalhador austero, que sempre lhe norteou os passos.

Parlamentar, as suas energias, das mais dignas e valedoras, eram polarisadas pela intenção de bem ser- vir o paiz, eollaborando em importantes projectos de leij e este é o traço que politicamente distingue o de- putado Clemente Pinto.

Professor, as suas grandes e legitimas ambições, briosamente traduzidas desde a primeira lição, concre- tisavam-se no desenvolvimento do ensino medico e no progresso da Escola do Porto, que elle queria ver de ília para dia mais engrandecida na intensidade do estudo, no alargamento dos programmas, no aperfei- çoamento dos processos de ensino.

Estudante, professor, clinico, educador, politico, Clemente Pinto atravessou a pequena trajectória da

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Escola Medico-Cirurgica do Porto X11I

sua existência labutando com afincada dedicação, conquistando o respeito e a estima de todos pela per- sistência do seu esforço de luetador, pela elevada illus- tração do seu espirito, pela altivez e pundonor do seu aprimorado caracter.

Thiago d'Almeida.

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Escola Medico-Cirurgica do Porto XV

Publicações fto Proí. C\tmmk Pinlo

Dissertação inaugural:

A Sorotherapia em geral e em especial a da diphteria (i8y5).

Dissertação de concurso :

Cystites e infecção urinaria (1896).

Gazeta Medica do Porto — (artigos publicados) :

— Curioso caso de lombricose — Sahida d'uma ascaris lom- bricoides pela incisão d'uma laparotomia (1897).

— Congresso Nacional de Medicina (1897).

— Necrose exanthematica do maxillar inferior (1898).

— Fistula urethro-vaginal (1900).

— Adenites ilíacas tuberculosas (1900).

— Inversão vaginal n'uma hysterectomisada (1900).

— A drenagem em cirurgia (1901).

— A extirpação dos aneurysmas (1901), Medicina Contemporânea — (artigos publicados) ;

— Os progressos da cirurgia em 1899 (1900). Artigos análo-

gos em 1901, 1902, IQO3.

— O professor José Carlos Lopes (IQO3).

Encyclopedia Portugueza lllustrada — (artigos publicados) :

— Anesthesia cirúrgica, Antisepsia, Aorta, Appendice, Arté- ria, Aspirador, Atrophia, Autoclave.

— Baço, Bexiga, Braço.

— Cabeça, Cancro, Cataracta, Cirurgia, Columna vertebral, Coração, Costella.

— Desarticulação, Diphteria.

— Embryão, Esclerotica, Escorbuto.

— Face, Feto, Fistula.

— Ganglio, Gastrite, Gravidez.

— Hernia.

— Lábio leporino, Lyceu.

— Papeira, Parto, Penso.

Actas do 1.° Congresso da Liga Nacional contra a tuberculose:

— Instrucção pratica e obrigações dos enfermeiros dos hos- pitaes em relação á tuberculose. Relatório e conclusões.

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NOTICIA HISTÓRICA

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Doticia histórica

DA

Escola (Dedico-Cirúrgica do Porto

Não pôde a Escola Medico-Cirurgica do Porto orgulhar-se de remota origem ou velhos pergaminhos.

A sua nobresa venvlhe apenas do trabalho de pouco menos de um século. Ascendência tem-se de buscar- lhe na escola do Hospital da Misericórdia onde se preparavam modestos práticos, cujos conhecimentos a pouco mais chegavam do que a fazer uma sangria, e que eram julgados illustres quando se abalançavam.a uma amputação.

Está ainda á espera de chronista idóneo essa in- stituição benemérita que se chama Santa Casa da Mi- sericórdia do Porto, e quanto â sua escola cirúrgica poucos esclarecimentos se possuem.

U mais antigo documento que a tal respeito sé conhece é um assento da mesa da Misericórdia do meado do século xvn em que se manda reprehender o cirurgião Antonio Sucarello por mandar fazer o cu- rativo das feridas pelos praticantes. É certo, porém, que de epocha muito anterior se deve datar o inicio do

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X X Armo lectivo de 1906-1907

ensino cirúrgico no Hospital de D. Lopo. O cirurgião da casa amestrava os praticantes a troco de uma re- muneração fixada de antemão e que não ultrapassava duas a três moedas por anno. A mesa não era extra- uha ;io ensino que tanto lhe dizia respeito: auciorisava a matricula dos apreniizes c superintendia na boa administração da instrucção pratica. Prova-o, entre ou- tros factos, a resolução que tomou de demitiir em 1707 o cirurgião Manuel Fernandes Maciel que «não estava capaz de instruir os praticantes como convém para sahirem peritos na sua arte e serem úteis á republica».

Admirável exemplo dos burguezes da confraria, em- penhados cm erguer o nível da sua Escola Cirúrgica, a contrastar com o dos succcssorcs distanciados dois séculos no tempo c muito mais nas ideias.

Pelo principio do século xix o curso de cirurgia durava quatro annos, no primeiro dos quaes se apren- dia anatomia, no segundo physioiogia e no terceiro e

quarto clinica cirúrgica c operações. Os exames tinham logjr no fim do curso todo, e faziam-se em três dias, versando as interrogações, no i." sobre assumptos theoricos, c no i.° e 3-° sobre pratica nas enfermarias e na casa de anatomia. Precisavam os alumnos de apresentar antes do i.° d'estes exames a certidão de approvacão com cana de sangradores, para obter a qual deviam provar pratica de dois annos, responder acertadamente no exame c executar a sangria.

Era sobretudo d'entre os barbeiros que se recru- tava a magra concorrência da escola de cirurgia : a um tempo aprendiam a rapar os queixos e a manejar a lanceta.

Apesar de se affirmar que o cirurgião Antonio Ri- beiro de Carvalho, vulgo o Lamego, a cargo de quem estava a instrucção cirúrgica, era um professor distinc- to, a verdade é que o ensino deixava muito a desejar.' Uma testemunha contemporânea descreve com cores

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Escota Medico-Cirurgica do Porto XXI

vivas o pittorcsco das aulas, em que não havia que extremar entre a installação e a doutrina.

O material de ensino compunha-se d'uma espécie de múmia a que chamavam esqueleto natural, no qual os ossos estavam presos pelos poucos ligamentos que o escalpello tinha respeitado.

Os ligamentos internos dos ante-braços e pernas, os sacro-sciaticos e os obturadores haviam desappare- cido. Uma ordinária tinta amarella tinha sido abun- dantemente estendida por toda a peça, que era mos- trada como a melhor que existia na aula. Craneos ve- lhos e quebrados; cobertos de lixo e teias de aranhas, completavam o material de ensino.

Na aprendizagem da anatomia havia singularida- des notáveis: em osteologia apenas se estudavam al- guns ossos da cabeça; os mais delicados (vomer, cthmoidc, lacrimal, etc.) não se descreviam; quando o sacro estava reunido ao coccyx por motivo da ossi- ficação da cartilagem inter-articular dizia-se que era de judeu.

Músculos dissecavam-se apenas dois: o costureiro e o trapesio, a que se dava o nome singular de capu-

chinho.

Nada se estudava de vasos e nervos. Para o es- tudo dos centros nervosos e origem dos nervos, man- dava-sc vir dê Coimbra um cérebro dentro de um bar- ril de aguardente. (1)

Se a instrucção era esta vergonha, nos exames a inépcia e o suborno davam-se as mãos. Para fazer

(') Em 3i de janeiro de 182Û informava o secretario da Real Escola de Cirurgia do Porto que nada recebera da Miseri- córdia ern materia de utensílios, porque uma banca anatómica, um esqueleto, algumas peças ósseas, cadeira de púlpito em que se davam as aulas, amphiiheatros da casa de operações, e t c , tudo estava incapaz de servir n'um estabelecimento publico.

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XXII Anno leclivo de 1906-1907

exame de cirurgia, o primeiro passo que o alumno ti- nha a dar era ir ter com o secretario do juiso, a quem dava 4#8oo reis de propina para lho escolher um ponto que fosse fácil e á vontade do operante, o qual logo recebia para d'ahi a dois ou três meses ir fazer exame, não se faltando na véspera á cerimonia de tirar da urna o dito ponto na presença do jury delegado e se- cretario, que lavrava o competente auto.

Depois o candidato dava moeda e meia, a um dos examinadores para lhe explicar o ponto.

Por ultimo, o alumno, se era de animo generoso, ofierecia um jantar opiparo aos seus arguentes «no qual o novo Esculápio era louvado pelo grande talento que tinha mostrado e era brindado e abraçado como um novo collega que muita honra vinha dar á pro- fissão».

Mas não ficavam por aqui os abusos introduzidos no modo de habilitação cirúrgica. Por preço conven- cionado, havia cirurgiões que iam a Braga, a Guima- rães, c a Chaves fazer exames por aquellcs que se não atreviam a sujeitar-se d prova exigida.

Ainda eram mais curiosos os exames de sangria.

Como poderia tirar-se alguma coisa de frisante ao que affirma a testemunha contemporânea, traduzindo as suas palavras, o melhor é transcrevel-as na integra.

s O primeiro encargo que se impunha ao candi- dato era comprar vara e meia de fita larga de setim lavrado, da mais rica que pudesse encontrar, para a apresentar na occasião em que os examinadores, de- pois de terem feito algumas perguntas sobre as gene- ralidades da sangria, mandassem ao meirinho do juiso despir a casaca, a fim de o examinando mostrar no robusto braço as salientes veias em que se costumava sangrar.

O candidato desenrolava logo o magico talisman:

os examinadores admiravam as matizadas cores, e o

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Escola Medico-Cirurgica do Porto XXIII

presidente, limpando os óculos, mudava o ar severo em meiga docilidade; ponderava aos examinadores que o senhor examinando, pelo que mostrava, era muito entendido na materia, e por isso o dispensava da prova pratica, que era pena amarrotar uma tão linda fita, costumada propina da sua creada Rosa:

tocava immediatamente a campainha, a dama apparc- cia, e o cavalheiro, com uma airosa cortezia, lhe en- tregava a votada offerenda, que ella recebia fazendo uma reverente mesura. O meirinho vestia a casaca e o acto (da farça) se concluia, ficando o alumno apro- vado nemine discrepante».

Isto que se dava no Porto era o mesmo que se passava por todo paiz, d excepção de Lisboa. Existia alli no Hospital de Todos os Santos, e desde o século xvi, um curso regular de cirurgia, que com o tempo se desenvolvera, mercê da protecção regia e do valor do seu professorado. Por diligencias de Manoel Con- stâncio, alguns dos seus discípulos foram estudar ao estrangeiro, e no principio do século xix estavam no hospital de S. José os mais distinctos cirurgiões do paiz.

A instrucção cirúrgica reclamava um reformador, e esse appareceu na pessoa de Theodoro Ferreira de Aguiar, que estudara a medicina e a cirurgia em Ley- de, e que oceupava em 1825 o elevado cargo de cirur- gião-mór do reino. Empenhado em melhorar o ensino cirúrgico, aproveitou habilmente o primeiro ensejo que se lhe offereceu. O facto é muito curioso para que se deixe no esquecimento.

Prendeu o intendente da policia, por motivos gra- ves, um dos contractadores dos tabacos. Recolhido ao Limoeiro, de nada valiam as solicitações junto do rei para que lhe acudisse. Lembraram-se então os amigos de appellar para o cirurgião-mór do reino, e este não só alcançou do rei o mandado de soltura, como con-

(22)

XXIV Anno lectivo de 1906-1907

seguiu que o contracto dos tabacos fosse mantido nas mesmas pessoas em que andava.

Os contractadores procuraram o homem a quem tanto deviam, e offereceram-lhe uma somma avultada, nada menos dez contos de reis, como remuneração e agradecimento. Rejeitou a offerta o honrado cirurgião, mas forçou-os a levarem aos pés de D. João vi esse dinheiro como subsidio para a creação de duas Esco- las de Cirurgia em Lisboa e Porto, esperando que elles cominassem a dar annualmente esta quota com o mes- mo fim.

O alvitre foi acceito, e as propostas dos contra- ctadores breve se transformaram no Alvará de 2 5 de junho de 1825, referendado pelo ministro Correia de Lacerda, creando as duas Escolas de Cirurgia de Lis- boa a Porto, sob a direcção do seu patrono Theodoro Ferreira de Aguiar.

A Escola de Lisboa, installada no Hospital de S.

José, começou immediatamente a funccionar. Tinha 7 professores, quatro substitutos e 1 ajudante. A do Porto, menos bem dotada, constava apenas de 5 pro- fessores, dois substitutos c um ajudante d'anatomia, e só pôde abrir as aulas a 2 de dezembro. A ih de no- vembro realisava-se uma sessão solemne de abertura com musica e bolos, em que o Director recitou uma oração inaugural e a que assistiram todas as pessoas distinctas do Porto,

A mesa da Santa Casa cedia da melhor vontade para a sessão solemne a sala grande do Hospiuil.

Os primeiros professores da nossa Escola, que tinha a presidil-a o Delegado do Cirurgião-mór do Reino, foram os seguintes:

Bernardo Pereira da Fonseca Campeão, director e lente do 5.° anno, durante o qual ensinava a Patho- logia interna e a Clinica Medica;

Vicente José de Carvalho, lente demonstrador de

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Escola Medico-Cirurgica do Porto XXV

anatomia do Hospital de S. José, lente do i.° anno, durante o qual ensinava Anatomia e Physiologia ;

Francisco Pedro de Viterbo, lente do i.° em que ensinava Materia medica, Pharmacia e Hygiene;

Antonio José de Sousa, que era cirurgião e mes- tre de Anatomia e fora cirurgião militar no hospital militar de S. Bento durante dois annos, e que em 1821 tinha sido encarregado do ensino de Anatomia e Ci- rurgia no hospital de Santo Antonio, lente do 3.°, no qual dava lições de Pathologia externa, Therapeutica

è Clinica Cirúrgica;

Joaquim Ignacio Valente, antigo cirurgião do exer- cito, lente do 4.° em que lhe competia o ensino da Me- dicina Operatória e Arte Obstetrícia com a parte fo- rense que lhe respeita.

Substitutos eram para o primeiro e quarto annos Bernardo Joaquim Pinto; para o terceiro Francisco de Assis Sousa Vaz, e para o segundo e quinto Alexan- dre Sousa Pinto. Para porteiro e ajudante do lente de anatomia Antonio Ferreira Braga.

Os documentos que se requeriam para a matri- cula eram certidão de edade para provar que o alumno tinha mais de i5 annos, e certidão do professor régio de que possuía conhecimentos de latim e lógica. Lc- vavam-se em conta os estudos feitos no Hospital an- tes da creação da Escola, mesmo não tendo os pre- paratórios da lei, e aos cirurgiões já approvados per- mitttiu-se que se matriculassem em qualquer anno.

Que a creação da Real Escola de cirurgia vinha satisfazer uma necessidade real, provou-o bem o nu- mero de alumnos que logo a buscaram: nada menos de 77, e, coisa digna de nota, três cirurgiões já appro- vados e com carta matricularam-se no primeiro anno.

Grande era o zelo dos primeiros professores da nossa Escola. Para acudirem á necessidade de formar uma bibliotheca, offereceram ao Estado um imposto es-

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XXVI Anno lectivo de 19<H5-!907

pecial de dez por cento dos seus vencimentos que elle acceitou. Adiantavam o dinheiro indispensável para as, despezas a fazer com a abertura das aulas. Forceja- vam por dar ao ensino, e sobretudo ao da anatomia, todo o impulso compatível com as condições em que elle era creado.

Mas a epocha não consentia que prosperassem in- stituições scientificas, quando tamanha desunião lavrava na família portugueza. Em agosto de 1826, o secretario da Escola, Antonio José de Sousa, e Joaquim Ignacio Valente queixavam-se oficialmente de que o director não tivesse ainda mandado reunir o Conselho para se prestar juramento á carta constitucional; o cirurgião- mór do reino instava com o dr. Campeão para que o fizesse, mas este só a 20 de setembro se resolveu a attender a tacs reclamações, pedindo em seguida a sua exoneração, que lhe foi concedida. Substituiu-o o dr. Agostinho Albano da Silveira Pinto. Desde então as convulsões politicas fízeram-se sentir duramente na Escola do Porto. Um professor é preso, outros emi- gram, as aulas interrompem-se, depois feeham-se. Os alumnos envolvem-se nas contendas politicas: ha-os riscados; ha-os suspeitos de culpas; ha-os a quem se não consente usar das cartas que já tinham obtido.

Pode dizer-se que desde 1827 a Escola do Porto se acha em completa anarchia. Em 8 de julho de 18:½ o.

dr. Arnaud, então delegado do cirurgião-mór e direc- tor da Escola, officiou ao secretario mandando fechar a Escola «por ter apparecido a esquadra dos rebeldes na altura de Villa do Conde e que todos os lentes e membros da Escola se reiirem para logares onde só predomine o governo do snr. D, Miguel I».

Não mais tarde do que em 21 de janeiro de j83a, ofiiciava Almeida Garrett aos professores Vicente José de Carvalho e Joaquim Ignacio Valente, dizendo que constava na secretaria do reino que o director e ai-

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Escola Medico-Cirurgica do Porto XXVII

guns lentes se tinham ausentado por desalleição e ódio á legitima soberana, e assim em virtude de ordem do ministro pedia-lhes que lhe remcttessem os estatutos da Escola e uma breve ideia do seu actual estado tanto quanto a professores como a tudo o mais «a fim Je que immediatamente se prova emquanto for necessário para que na epocha regular se continue o curso de tão úteis estudos que nem pelo estrépito das armas o go- verno de S, M. quer que sejam interrompidos.»

A resposta dada pela Escola consiste no otíicio de 23 de setembro de i83i. O director, dr. Agostinho Albano, suspenso por compromettimento politico, ti- nha regressado ao Porto; o director interino, Arnaud, havia-se retirado, ao entrar na cidade o exercito liber- tador; Viterbo emigrara em 1828 e não voltara ainda;

Campeão ausentara-se por occasião da entrada do exercito liberal; com elle viera Bernardo Joaquim Pinto, agora capitão de voluntários da Rainha, ten- do-se ausentado João Thiago Brandão que fora pro- vido em concurso na sua vaga.

Estavam no Porto Vicente José de Carvalho, An- tonio José de Sousa, Joaquim Ignacio Valente, o sub- stituto dos 2.0 e 5.° annos Alexandre de Sousa Pinto e o porteiro das aulas Antonio Rodrigues dos Santos.

Ainda residia em Eranca Assis, que emigrara em 1828.

Apesar das disposições que o governo tomava para continuarem as aulas, foi impossível abril-as. Os professores que estavam no Porto tratavam de curat- os feridos e os doentes. As aulas da Escola eram transformadas em enfermarias.

Em 2 de junho de 1834, reunia-se o Conselho es- colar depois da guerra civil. Os professores que a elle assistiam eram o dr. Agostinho Albano da Silveira Pinto, Francisco Pedro de Viterbo, Antonio José de

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xxviii A n n o ie c t i v o d e 1906­1907

Sousa, Vicente José de Carvalho e Bernardo Joaquim Pinto. Dos antigos lentes da Escola tinham falleçido Valente e Alexandre de Sousa Pinto.

Aproveito a occasião que se offerece para dizer duas palavras'a respeito d'esté ultimo de quem pouco se conhecia até hoje.

Alexandre de Sousa Pinto nasceu em 20 de no­

vembro de 1781 em Funduaes, logar da comarca de Sinfães, situada na margem direita do pequeno rio Bastança, pouco acima da sua contiuencia com o Dou­

ro, entre Porto Antigo e Souto do Rio e pouco abaixo de Ferreira de Tendaes. Foram seus pacs o advogado dr. José de Sousa Ribeiro Pinto e D. Bernarda Maria Correia Pinto,

Na casa de seuspaes foi por elles cuidadosamente creado e dirigido para a carreira dos estudos, junta­

mente com seus irmãos: o dr. José de Sousa Ribeiro Pinto, formado com distincção cm Leis e Cânones, que seguiu primeiro a magistratura e depois, tendo­a abandonado por motivos políticos, foi secretario e bi_

bliothecario da Academia Polytcclinica do Porto; o dr. Basílio Alberto de Sousa Pinto, visconde de S. Je­

ronymo, lente de direito e reitor da Universidade de Coimbra; Joaquim de Santa Clara Sousa Pinto, que professou na ordem dos Pregadores e foi lente de chi­

mica na Academia Polytechnica do Porto, e o dr. Ro­

drigo Ribeiro de Sousa Pinto, que foi lente de mathe•■

matica na Universidade e director do observatório as­

tronómico annexo.

Tendo­se Alexandre de Sousa Pinto formado na Faculdade de medicina da Universidade de Coimbra, com três prémios e informações distinctas, foi despa­

chado medico dos hospitaes regimentaes do Porto, em virtude d'uma portaria do ministério da guerra de 9 de fevereiro de 1822.

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Escola Medico-Cirurgica do Porto XXIX

Por provisão de desembargo do Paço de 19 de julho do mesmo anno de 1822 foi provido no partido medico de Villa Nova de Gaia, creado de novo.

Por portaria do ministério do reino de 1823 foi nomeado medico das tropas aquarteladas no Porto, Por portaria do ministério da guerra de 11 de setem- bro do mesmo armo de 1.823 foi nomeado medico dos liospitaes regimentaes do 4 de artilharia c õ de infan- tari:i.

Por decreto de 8 e carta Regia de 22 d'outubro de ]S2Õ foi despachado lente substituto das cadeiras de materia medica, hygiene, pathologia interna, clinica medica e pharmacia da Real Escola de Cirurgia do Porto.

lím janeiro de 1834. como medico militar que,era, foi mandado para o hospital de sangue, estabelecido

no Convento do Paço de Sousa, onde falleceu d'um typho, victima do seu zelo para com os doentes que lhe estavam confiados, cm 22 de fevereiro de 1834.

Por nomeação do Regente c decreto de b de se- tembro foi Assis nomeado para a cadeira de Campeão, bem como Bernardo Joaquim Pinto para a de Viterbo, que mudara para a de Valente, abrindo-se concurso para os togares de très substitutos, que se realispu em;

outubro de 1834, tendo apenas obtido votação favorá- vel o dr. José Pereira Reis, que foi despachado por- caria regia de 11 de dezembro de 1834. ,

O processo de concurso era bastante différente do actualmente seguido, para que se nos permitta ex tractar do livro de registo respectivo o que a tal res-' peito foi resolvido pelo conselho. .

Para a substituição dos i.° e 4." annos a primçiri prova consistia em uma licção sobre objecto designado pela sorte com intervallo de duas horas de meditação,,, e a segunda de uma demonstração pratica anatómica

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Anno lectivo de 1906-1907

e operatória por tempo de uma hora sobre o mesmo ponto em um cadaver.

Estas duas provas realisavam se no mesmo dia.

A terceira e a ultima prova consistia no exame c interrogatório pratico na presença do corpo cathedra- tico a dois doentes designados nas enfermarias, sobre os quaes o candidato discorreria na sala dos actos por tempo de uma hora, fazendo uma licção pratica.

Para a substituição dos 2.0 e 5.° annos, a pri- meira prova consistia em uma licção improvisada so- bre ponto tirado á sorte com meditação antecipada de 2 horas.

A segunda versava sobre a descripção das sub- stancias medicamentosas que se lhe apresentavam so- bre a mesa, por espaço de 1 hora.

Ambas estas provas se davam no mesmo dia.

No 2.0 dia, o candidato realisava a sua 3." prova, que era análoga á que se exigia para o concurso an- terior.

Para a substituição do 3.° anno, a primeira prova era uma licção feita do mesmo modo que para as sub- stituições anteriores.

Seguia-se a demonstração pratica no cadaver, re- lativa ao ponto, por espaço de 1 hora.

No 2.» dia realisava-se egual exame e interroga- tório como nas demais substituições.

Breve reconheceu o conselho escolar quanto era acanhado o quadro das disciplinas e quanto era nociva á administração do novo estabelecimento a dependên- cia em que estava.do delegado do cirurgião-mór. Foi isto motivo de uma representação, que em fins de 1834 dirigiu ás cortes, pedindo :

i.° que a Escola do Porto fosse equiparada á de Lisboa ;

2.0 que fosse declarada independente da auetori-

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Escola Medico-Cirurgica do Porto XXXI

clade do cirurgião-mór c que se governasse pelo alvará c regulamento de 25 de junho de i825, emqunnto elle vigorasse, c subordinada á auctoridade legal e supe- rior;

3." que na mesma Escola não houvesse ingerên- cia de auctoridade ou individuo algum, que só servia para embaraçar e empecer a direcção d'esté estabele- cimento •,

4.0 que a sua despesa fosse paga, como até ahi, pela parte da dotação do contracto do tabaco, sendo as folhas assignadas pelo director e pagas no Porto e não em Lisboa, como até então se havia feito.

Estas reclamações por parte do conselho só lo- graram ser attendidas em i83õ, epocha memorável na historia da nossa instrucção. «Quem sabe o que seria da Escola, afogada nas faixas constrictoras d'um regu- lamento pobre, se não fora a mão benelica d'um re- formador ousado, o venerando estadista Passos Ma- nuel que cunhou em todos os ramos da administração publica o seu bello talento governativo inspirado n'uma noção clara do progresso e acendrado n'um patriotis- mo antigo. Não foi menos esquecido, antes lhe mere- ceu especial cuidado, o importantíssimo ramo da saúde publica e da instrucção nacional.»

O decreto de 29 de dezembro de i836 irmanou as Reaes Escolas de Cirurgia, transformando-as em Escolas Medico-Cirurgicas. A preparação dos alumnos tomou-se mais exigente e completa; já não era o sim- ples Genuense e a arte latina; estatuiu-se uma boa educação preparatória de portuguez, latim, francez, inglez, philosophia e historia, e as sciencias accesso- rias, até então votadas ao esquecimento, surgiam agora com a chimica, a zoologia e a botânica.

As cadeiras da Escola eram 9 e foram assim dis- tribuídas ;

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XXXII Anno lectivo de 1906-1907

i.° anno — Anatomia — Bernardo Joaquim Pinto.

2." — Physiologia e Hygiene —- Dr. José Pereira Reis.

3."—Materia medica c pharmacia — Francisco Pedro de Viterbo — Pathologia c therapeutica externas

— Antonio Ferreira Braga, c Clinica cirúrgica — An- tonio José de Sousa.

4.0 — Apparclhos c operações cirúrgicas e cirur- gia forense— Vicente José de Carvalho; Partos, mo- léstias das mulheres de parto c ,dos recemnascidos, pelo mesmo interinamente, assim como Clinica Ci- rúrgica.

5.° — Historia Medica, Paihologia geral, Patholo- gia e therapeutica internas —àr. Francisco de Assis Sousa Vaz; Clinica medica, Hygiene publica c Medi- cina legal — pelo mesmo -- e Clinica Cirúrgica.

Apparece-nos aqui de novo o professor Ferreira Braga, que fora provido em concurso em 18 d'outubro de i83G.

Ficaram vagos todos os logares de substitutos e não havia professores para todas as cadeiras. Foram suecessivamente providas. Veiu primeiro Antonio Ber- nardino de Almeida, nomeado em 17 de novembro de

»830 substituto dos i.° e 4.0 annos.

Seguiu-se o dr. Francisco Velloso da Cruz, que, nomeado sem concurso lente da 2.'1 cadeira por occa- sião da reforma de i83G, tomou posse em outubro de 1837. Logo depois, encontramos Luiz Pereira da Fon- seca, que tomou posse do logar de demonstrador, que havia requerido e precedendo informação favorável do concurso, em 1 de dezembro de 1837; Caetano Pinto de Azevedo, que no mesmo dia tomou posse do logar de substituto das cadeiras cirúrgicas; e Januário Peres Furtado Galvão, que também no mesmo dia tomou posse do logar de substituto de medicina.

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Escola Medico-Cirurgica do Porto XXXlil

Kmbora imperfeita a nova instituição, não íoram de pequena importância os serviços que prestou. O professorado empenhava-se em nobilitar a sua escola c o ensino anatómico e cirúrgico levantou-se a uma altura notável. Na lista dos beneméritos do ensino, devem inscrever-se os nomes de Vicente José de Car- valho e de Bernardo Joaquim Pinto, os creadores da tradição anatómica, ainda não perdida na nossa casa, e o de Antonio Bernardino de Almeida, o cirurgião illus- tre que, tendo conquistado um nome illustre, honrou o estabelecimento que o teve por discipulo e mestre.

Por mais que se tenha em apreço a reforma de i83G, as deficiências do curso escolar iam-se paten- teando, sobretudo com os progressos dos tempos. Re- formas suecessivas foram remediando as lacunas prin- cipaes. A carta de lei de 26 de maio de i863 creava as cadeiras de anatomia pathologica, cujo primeiro pro- fessor foi José Alves Moreira de Barros, e a de hy- giene e medicina legal, que teve por primeiro titular o professor José Fructuoso Ayres de Gouveia Osório.

O Conselho da Escola não julgava, com razão, completo o quadro das disciplinas ensinadas e, sobre- tudo, entendia indispensável que uma nova cadeira fosse creada para o ensino da pathologia geral. Por deliberação sua, e muito honrosa, esta disciplina foi ensinada em curso separado, regido por um substituto, que nenhuma remuneração recebia por este serviço, desde 1869. Assim permaneceram as coisas durante sete annos, até que a carta de lei de 10 de abril de 187G a elevou a cadeira especial.

Não pôde dizer-se que tenha havido em Portugal grande empenho em desenvolver o ensino superior c nomeadamente o ensino medico. Não cessou o Conse- lho da Escola Medico-Cirurgica do Porto de pugnar por que se lhe desse a sufficiencia necessária e por

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XXXIV Anno lectivo de 1906­1907 . , ,

que acompanhasse os progressos que no estrangeiro ia fazendc. Gs planos e representações que a cada passo eram organisados. eram trabalho baldado. Quan­

do, em iSçp, se reuniu o Conselho superior d'ins­

trucção publica, reorganisado por Barjona de Freitas, o delegado d a Kscoîa do Porto, o ■illustre, professor Ricardo Jorge, apresentou uma serie de propostas ten­

dentes a dar ao ensino uma feição pratica que então lhe faltava, á instituição de subsídios, para viagens de estudo de professores c alumnos, e ao, alargamento do quadro das disciplinas. Pelo que diz respeito ao au­

gmcnto de cadeiras, propunha­se a creação d'uni curso de anatomia topographica, d'uma cadeira de anatomia geral e histologia c outra de­medicina legal, e a ins­

tituição de cursos auxiliares de pathologia e clinica de moléstias d'olhos, de pelle e syphiliticas. nervosas e mentaes e de creanças. Não pôde dizer­se que fos­

sem demais as reclamações­; na altura em que eram feitas.

Nada se conseguiu por então, So passados i í ari­

nos é que o decreto de 24 de abril de 1900 desdobrou a cadeira de hygiene e medicina legal, sendo o pri­

meiro professor d'esta ultima cadeira o signatário d'esté artigo.

Mais tarde, pelo decreto de 23 de julho de igo5,, as disciplinas que constituíam a cadeira de physiologia passaram a ser professadas em duas cadeiras distin­

ctas, uma de histologia e outra de physiologia e creou­se a cadeira de anatomia topographica que, para todos effeitos, substituiria a repetição, da 1.'' cadeira. Os pri­

meiros professores d'estas duas cadeiras foram: de histologia, o snr; dr. José Alfredo Mendes de Maga­

lhães e de anatomia topographica, o snr. dr. Carlos

Alberto de Lima. , ....­ . . .

O mesmo diploma legislativo.creava dois cursos

(33)

Escola Médico-Cirurgica do Porto

auxiliares: um de propedêutica medica c outro.de pro- pedêutica cirúrgica, regidos pelos substitutos das respe- ctivas secções.

' Além d'isto, o pessoal" assistente de exercícios prá- ticos de demonstração e ensino? constaria) além do preparador de anatomia pathologica, de um prosector de anatomia, de tfcs chefes de clinica, medica, cirúr- gica e obstétrica e de um preparador- de histologia e physiologiã.

Já dissemos que a legitimar a necessidade da crea- ção da Escola Medico-Cirúrgica do Porto acudira ás suas aulas Lima grande concorrência de alumnos. Essa concorrência não sé manteve, com certeza por causa da agitação de' que o paiz era. theatro e talvez porque o diploma nao valia o que custava a adquirir. Desde i!-o4 até íSpi ha um constante ascenso. Gae depois a frequência, mas immediatamente após a promulgação do decreto de i866' o numero de alumnos cresce ra- pidamente para não mais descer á cifra dos annos an- teriores. Em i8q<) a HJOO attinge a curva o seu má- ximo para depois começar n'uma declinação que se deve attribuir á dirhculdade na obtenção dos prepara- tórios e ao preço das propinas na Academia Polyte- chnica. Nos próximos annos é de esperar um novo in- cremento por estarem afastados alguns d'estes óbices.

N'uni paiz em que a instrucção não tem merecido, nem ao poder central nem aos particulares grande de- voção, é muito para notar-sc que a Escola do Porto se extreme dos outros estabelecimentos d'instrucçâo pelos legados que tem recebido, quer destinados a pré- mios quer a fomentar o desenvolvimento do ensino.

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XXXVI Anno lectivo de 1906-1907

Iniciou a serie d'estes beneméritos o illustre natu- ralista Barão de Gastello de Paiva, instituindo um pre- mio para o alumno que mais destreza mostrasse nas operações cirúrgicas ou nas dissecções anatómicas do corpo'humano. O premio é o juro annual de uma inscripção de i :oooííooo reis.

Pelo fallecimento dum dos professores mais con- siderados e bemquistos, o Visconde de Macedo Pinto, um novo premio era instituído para o alumno que me- lhores habilitações houvesse adquirido em todos os an- nos do curso e mais perito se mostrasse principalmente na parte cirúrgica dos estudos. O premio é o juro an- nual de 2 inscripções de i:ooo$ooo reis.

«Ao findar do anno de i883, diz o illustre profes- sor Ricardo Jorge, a Escola Medico-Cirurgica do Porto rejubilava com uma auspiciossima nova que devia ter feito pulsar o coração de todos os que amam a medi- cina portugueza e a instrucção pátria.» Era a de que lhe era legada uma avultada herança por D. Rita Assis de Souza Vaz, em cumprimento dos votos mais caros de seu irmão Dr. Francisco Assis de Souza Vaz, falle- cido em 1870, e de cuja avultada fortuna fôra herdeira aquella benemérita senhora.

A instituição Assis subsidia cinco alumnos, um em cada anno do curso, com aiG-lfooo reis annuacs, afora mfcooo reis para propinas de matricula. Desde que o

!e«ado, pelos seus rendimentos capitalisados, attingisse uma certa quantia, deveria ser mandado, de 2 em 2 ànnos, a aperfeiçoar-se no extrangeiro um estudante que tivesse terminado o seu curso na Escola Medico- Cirurgica e doutorar-se alternadamente em Paris e Montpellier. A impossibilidade de cumprir o legado nos termos precisos cm que está redigido, —mas de modo algum o de o attender no seu espirito,—tem retardado a sua effectuação completa. Finalmente, não,

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Escola Medico-Cirurgica do Porto XXXVH

se esqueceu a benemérita D. Rita Assis do professor.;

De 8 em 8 annos, designará o Conselho um dos seus professores, que irá em viagem de instrucção pelas principaes nações da Kuropa e da America. Terminada a viagem, esse professor deverá apresentar um rela- tório dos estudos que tiver feito em harmonia com as instrucções recebidas do Conselho.

Ainda não estava dissipada a impressão que tão levantado exemplo de altruísmo tinha produzido, era a Escola contemplada com um outro legado que pela sua importância bem merecia ao seu instituidor o nome de benemérito da instrucçao. Trata-se de Bruno Alves Nobre.

O legado Nobre acha-se hoje representado por 8o:ooo$ooo em números redondos. O seu rendimento é applicado á instituição de 12 pensões a alumnos po- bres, sendo a quarta parte do sexo feminino. Estes alumnos devem ser tirados de casas de caridade, onde estejam recolhidas creanças, do Porto ou da província do Minho. Além d'isto cada um dos pensionistas re- cebe annualmente um abono de cincoenta mil reis para matriculas e livros. Os cursos seguidos são aquellcs que os alumnos preferem. As sobras annuaes do ren- dimento do legado são empregadas em beneficio do ensino da Escola Medico-Cirurgica do Porto, e pelo modo que esta entender mais conveniente.

Estas sobras tem sido empregadas em subsidiar cursos auxiliares, em acquisição de material e na ma- nutenção do Laboratório Nobre, a principio commum á Escola e ao Hospital, mas de ha pouco tempo a esta parte exclusivo da primeira.

Por ultimo, em 1895, fallecia um dos mais que- ridos professores d'esté estabelecimento, o meu cho- rado amigo Manuel Rodrigues da Silva Pinto. Alguns dos seus alleiçoados, querendo perpetuar a sua memo-

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xxxviii Anno lectivo de 1906-1907

ria, offercccrnm ;i Escola Medica do Porto Soofrooo reis em iriscripçÕes para ó seu rendimento constituir um'premio na cadeira de hygiene e medicina legal que fora a ultima a reger. Mais tardé como esta cadeira fosse desdobrada, o premio'foi concedido ao alumno que maior somma de valores obtivesse nas duas que hoje a substituem.

Maximiano Lemos.

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Frequência da Escola Medico-CÍ

d o P o r t

° desde a sua fundação

I ís 8 8 S?

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s - a e s a g s a á á i È s s s á g s g

(38)

Escola (Dedico-Cirurgica do Porto

Matriculas desde o anno lectivo 1825-1826 (fundação da Escola)

Annos Matri­ Annos Matai­ Annos Matri­

lectivos culas lectivos tul.i­i lectivos culas

It­25­ 1820 77 1(53­1851 45 ■1881­1882 109 1826­1827 82 1884­18J53 49 1882­1863 106 1827­1828 72 li ­)5­185() 48 1683­1684 125 1828­1829 34 1850­1857 42 1884­1885 118 1829­1830 34 18S7­18S8 55 1885­1*80 138 1830­1831 37 1858­1859 81 1886­1887 149 1831­1832 37 1859­1860 07 1887­18E8 173 1832.1833' 0 1860­1801 74 1888­1889 181 1833­1834 0 1801­1802 80 1889­181:0 104 1834­1835 56 1802­1803 82 185)0­1801 169 [835­1836 82 1863­1804 49 1891­1892 174 1830­1837 100 1864­186S 73 1892­1893 187 1837­1838 125 1865­1866 72 1893­1894 189 [838­1839 137 1866­1867 64 1894­18115 215 1839­1840 141 ■1867­1808 05 •1895­1890 231 1840­1841 100 18G8­1809 80 1896­1897 215 1841­1842 86 1869­1870 93 1897­1898 247 1842­1843 84 1870­1871 85 1898­1899 292 1843­1844 71» 1871­1872 89 1899­1900 297 1844­1845 76 1872­1873 104 1900­1901 280 1845­1846 S3 1873­1874 103 1S01­1902 278 1840­1847 38 1874­1875 103 1802­1503 256 1847­1848 40 1875­1876 109 1903­1904 228 1848^1849 31 1876 1877 116 1904­1805 209 1849­1850 33 1877­1878 119 1905­1800 187 1850­1851 30 1878­1879 H l 1C06­1G07 146

1851­1852 36 1879­1880 111

1852­1853 47 1880­1881 103

(39)

oRflçflo mflueuRfic

(40)

QRffÇãO

PROFERIDA PELO

Professor CflRCOS flCBERTO DE Clfïlfl

/V,-j sessão solemne da abertura das aulas, em 15 de outubro de 1906.

MEUS SENHOIIES;

Cabe-me a vez este anno de cumprir a disposição regulamentar dlesta Escola, que impõe suecessiva- menle a cada professor, o honroso encargo de profe- lir algumas palavras de saudação, a marcar solcmne- inen.te p inicio dos trabalhos escolares em cada anno lectivo.

Respeitando aquella imposição e contando anteci- padamente com a benevolência dits que me escutam, só assim pude deiertninar-ine a não declinar uma (ào elevada como immerecida distincção.

Nas breves considerações que passo a expor e em que pretendo accentuai- as principaes phases do progresso em medicina como demonstração da impor- tância dos estudos medicos, não me dirijo aos colle- gas no professorado ou na clinica, cuja illuslração dispensa ensinamentos, mas aos alumnos d'csta Es- cola.

Dedico-lhes esta allocução com um verdadeiro prazer, saudando a sua promettedora e radiosa moci- dade e lelicitando-os pela nobre e elevada resolução

(41)

ï Anno lectivo de 1906-1907

du escolha d'tim curso scienlifico, que os habilitará ao exercício d'uma profissão liberal que entre Iodas :is mais sobreleva, quer sob o ponto de visln especu- lativo c artístico, como especialmente pelo lado social e humanitário.

Meus senhores:

Affirmava Pascal, que as suecessivas gerações hu- manas atravez da sequencia dos séculos, podiam con- siderar-se como um só homem (pie continuamente appreude e s'iustruê.

Assim, não ha seguramente melhor forma de si- gnificar a importância e o progressivo evolulir da acti- vidade mental em qualquer das suas múltiplas mani-

festações, como seja o fazer a sua historia.

Ë o que succède com a medicina.

Não me proponho certamente abalançara tal em- presa, nem o ensejo é o mais favorável.

Apenas desejo frisar o valor d'alguns dos seus períodos mais brilhantes, que marcam data memorá- vel no progredir accentuado d'csla sciencia e (pie são personificados por nomes, seguramente conhecidos da maior parte dos que me ouvem e que, de per si só, bastam para caractérisai- uma epoch».

Será, penso, a melhor maneira de réalisai- o meu

desideratum.

Hippocrates, Galeno, Vesalio e Harvey, Bichai, Claude Bernard e Pasteur, representam respectiva- mente as phases mais brilhantes e mais impulsiona- doras do progresso em medicina.

Nascida do empirismo e sofirendo originalmente a influencia accentuada das religiões primitivas, ro- deada de praticas mysteriosas e symbolisada diversa- mente, a medicina evoluiu muito lenta até Hippocra- tes, eivada de preconceitos mythologicos e da meta- physica materialista e espiritualista dos primitivos philosophes gregos.

(42)

Escola Medico-Cimrgica do Porto .'i Com Hippocrates, tão jusLanicnii" denominado o

pae da medicina) pelo seu génio extraordinário e pelo alto valor da sua doutrina, nasce o methodo da obser- vação. Embora desajudado do critério experimental que mais tarde tão fortemente impulsionou as sciêri- cias physico-chimicas e a medicina, aquelle methodo continha em gérmen toda a série notável de desco- bertas scienlitieas ulteriores.

Como demonstração da sua importância extraor- dinária bastará lembrar (pie a doutrina hippocralica, em que dominavam como princípios 1'undamentaes o vitalismo, o humorismo e o naturismo, se manteve quasi inalterável durante o longo período de mais de dous mil annos, apenas rejuvenescida e interpretada actualmente com inteiro rigor scienlificò, graças ao methodo experimental auxiliado pelos maravilhosos progressos da lechnica hodierna.

Com elleilo, incluindo o próprio vitalismo que assentava na existência d'urn principio immaterial animando o corpo como um sopro, o pneuma, vamos encontrar nas doutrinas dfioje, Ião brilhantemente sanecionadas pela observação e devidas quer a Pas- teur, a Bouchard, ou mais recentemente a MelchnikofV, aquella «vis medicaids, naturae» tio humorismo e na-

turismo hippocralicos, que cumpre respeitar e guiar no decurso de todas as doenças e que representa, se- gundo Bouchard, a ideia mãe de todas as theorias pathogenicas modernas.

N'uma epocha tão affaslada como aquelia em que viveu Hippocrates (460 annos antes de Christo) e em que a dissecção d'um cadaver representaria uma ver- dadeira profanação, conVprehende-se como deveriam ser rudimentares os conhecimentos sobre a anatomia humana, apenas adquiridos pela observação do habito externo e mais detalhadamente pelo estudo d'uma ou outra peca do esqueleto. A interpretação das grandes

(43)

!" Anno lectivo de 1906-1907

funeções orgânicas assentava apenas um hypotheses na maior parle inverosímeis. 0 estudo dá physiologia mal despontava. E conitudo, é assombroso verificar çpnip o génio d'uni só homem, grande medico e phi- losophe noíavel, desprovido dos conhecimentos basi- lares em medicina fornecidos pela anatomia e phy- siologia, pôde construir um corpo de doutrina tão notável, que ainda hoje subsiste dominando a medi- cina inteira !

L que Hippocrates collocava em plano secundá- rio a hypothèse, o raciocínio à prion, creador de theo- rias suggeslivas e brilhantes, mas incapazes de sus-

tentar-se por falta de base, a observação.

Foi esla que, appoiada peío critério experimental tão vivamente impulsionado por Claude Bernard e continuado por Pasteur, conseguiu expurgar a medi- cina d'aquella antiga e subtil melapbysica, que por Ião largo tempo se oppòz ao progredir eflicaz das sciencias experimenlaes.

A observação de factos isolados, a sua analyse emfim, seguida da concalenação d'ideias que os mes- mos despertam em conjunclo, mas methodisada e passando pela fieira d'um são critério pbilosophico, representa seguramente a principal característica da doutrina hippocraticu.

Em epocha tão distante, a cirurgia era talvez dos ramos das sciencias medicas o que mais progressivo se mostrava. Teslennmha-o, os numerosos apparelhos para tratamento de luxações e fracturas, a trepanação, a abertura d'empyemas, etc.

Mas, meus senhores, como Ioda a doutrina notá- vel em sejencia, a d'IIippocrates foi fortemente com- balida por homens de grande vulto pertencendo á ce- lebre escola grega de Cuide, a famosa adversaria da escola de Cós. Tendo em vista especialmente a obser- vação dos factos isolados sem a sua subsequente e

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racional correlação, cada symptoms novo que obser- vavam era motivo para diagnostico d'uma nova doença.

Como diz Daremberg, visavam no seu estudo os órgãos e os doentes, emquanto que os bippocraticos consideravam o organismo c a doença. A cirurgia por elles professadas, com meios de diagnose mais perfeita, abalançavu-se á pratica de nepbrotomias elementares, trepanações costaes em casos de pleuresia, (cujo n a d o symptomatica de crepitação por elles foi descoberto) certas intervenções obstétricas, ele.

Da fusão d'aqiielles princípios dominados pelo espirito disciplinador d'Aristoleles, nasce a celebre

escola d'Alexandria, representando então 0 centro in- tellectual de lodo o mundo scienlilico.

Assentando racionalmente a base dos conheci- mentos medicos no estudo da anatomia e physiologia, foi ai li eiíeada a primeira Escola anatómica por Hero- philo e Krasislralo, o primeiro dos quaes dissecou vários cadáveres e deu O seu nome ao confluente dos seios venosos inlracraneanos. Apesar d'esla orienta- ção pratica e verdadeira, não poderam de lodo fur- tar-se ã influencia da doutrina espiritualista dos dis- cípulos de Platão, que tudo procuravam interpretar pelo melbodo de raciocínio à priori, contra o qual se

insurge Aristóteles, medico, grande philosophe e tão notável naturalista, que pôde di/er-se o creador da historia natural, da anatomia e physiologia compa- radas.

Adepto dos princípios bippocraticos, suslenla-os com o seu extraordinário talento, demonstrando que

toda a investigação scientilica deve assentar na obser- vação e experiência, d'onde à posteriori se hão de dedu- zir as conclusões geraes, que assim largamente fun- damentadas resistirão vicloriosamente ao impulso de doutrinas adversas.

Por essa epoeba, manilestava-se em Roma uma

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grande hostilidade contra a invasão dos medicos da escola d'Alexandria, visto que al!i dominava a superstição e o empirismo. Mais tarde, vencida aquella primeira repulsão, a medicina romana loi notavel- mente representada por Dioseorides, Plínio celebre naturalista e Celso, o famoso metapliisico, orador tão extraordinário que o alcunharam de Cicero dos me- dicos.

E então que avulta a figura eminente de Galeno»

que no dizer de Darcmberg, constitue o ponto cnlmi- nante da medicina grega, representando pelas suas ideias espiritualistas o dogmatismo mais exagerado e sendo o chefe da escola experimental mais avançada.

(iafeno, philosophe illustïe, grande anatómico, notável pathologist e hábil experimentador, funda um corpo de doutrina o galenismo, que inspirado em

Hippocrates c Aristóteles, domina a sciencia medica n'uni largo período que se exlende até á renascença.

Ao contrario dllerophilo, (ialeno nunca dissecou um cadaver humano mas praticou innumeras vivi- secçõés em animaes. E bem conhecida a celebre expe- riência do corte do nervo recorrente. Mas não foi só a anatomia que procurou desvendar com múltiplas observações e experiências. Partindo do principio que a clinica deve ser sempre esclarecida pela anatomia e pbysiologia, procurou experimentalmente interpretar e localisai" as funeções do syslema nervoso central e peripherico, a funeção renal ele. Km iherapeutica, baseado no humorismo hippocratico, tenta restabele- cer o equilíbrio entre os humores com a observação do notável principio «contraria contrariis curantur», ao inverso da doutrina mais tarde defendida por Hahnemann, o fundador da homeopathia, com o clás- sico lemma «similia similihus curantur». Cuida em escolher o medicamento segundo a supposta causa da doença, adequando-o em qualidade e quantidade c ap-

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plicando-o opportunainenle. Como patfaologista, pode dizer-se que se devem a Galeno as bases da anatomia palhologica, pois que de par com a observação do ór- gão normal procurou sempre lazer o estudo compa- rativo do mesmo órgão, (especialmente em animaes) quando lesado experimentalmente ou sob a influencia d'urna causa mórbida. X'cssas lesões observadas ten- tava especialmente descobrir qual o principio ou es- sência da doença. Comprehcnde-se assim a alta in- llucncia que sobre o progresso da medicina exerceu o espirito superior de Galeno, que, berdeiro e continua- dor da doutrina hippocralica, procurou e conseguiu accentuai- o seu caracter de observação confirmada pela experiência.

Até princípios do século xvi domina o galenismo, graças aos seus compiladores, á fundação da escola de Salerno, durante cuja existência se dá o fado me- morável da permissão real da primeira dissecção d u m cadaver humano em 1306 e sobretudo á alta influen- cia da medicina arabe, lista, originando-se no sé- culo xi, desenvolvendo-se e dominando até metade do século xv, teve como mais illustres representantes Avicenna, Averrhoes e Abulcassis. Em começo do sé- culo xv dominava a escolástica, doutrina pbilosophiea que sob o ponto de vista que nos occupa, só leve a earaclerisal-a o profundo obstáculo posto á marcha progressiva da medicina, com as suas infindáveis dis- cussões, baseadas em princípios convencionaes ou ar- bitrários que se respeitavam como dogmas cujo valor era intangível.

Contra o predomínio do arabismo e a auetoridade do «magister dixit)) foram a revollar-se os primeiros.

os alchimistas da edade media personificados pi>los grandes vultos de Paracelso e van Helmont, cuja in- llucncia sobre a vulgarisação do melhodo experiment tal nas sciencias physico-chimicas me abstenho de

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frisar, pois já loi largamente accenluada pelo meu il- lustre coliega Alberto d'Aguiar, na sua allocução so- bre a influencia da chiuiica em medicina, proferida n'esta Escola no anno transacto.

E preciso chegar á epocha da renascença, mar- cando o progresso Iriumplianle em todos os ramos da actividade humana, para se fazer sentir bem clara- mente a profunda influencia da anatomia e physiolo- gia no desenvolvimento dos estudos e acquisições em medicina.

Precisamente aquelles dous ramos das sciencias medicas que mais contribuíram para o seu progresso, constituem as disciplinas que em breve ides estudar e conhecer no noviciado do vosso curso académico n esta Escola. Vede com que seriedade e interesse de- veis dedicar-vos ao assimilar d'aquelles conhecimen- tos, imprescindíveis para a futura comprehensão de quacsqucr noções medicas no decorrer dos vossos es-

tudos.

A anatomia descriptiva rudimentar dTIippocrates e Galeno, transformou-se n'uni eonjuncto de conheci- mentos definitivamente comprovados por numerosas dissecções cadavéricas, imprimindo assim fundamente áquelle estudo o cunho da observação detalhada, in- dispensável para levar a bom termo a descripçâo ri- gorosa do corpo humano. Desde André Vesalio a Ce- salpino no século xvi, como depois nos séculos xvn e xvm, um núcleo de anatómicos illustres contribuem largamente até Bichai para o grande e seguro pro- gresso d'esté ramo das sciencias medicas. E se no sé- culo XV) a anatomia se caractérisa pela descripçâo ri- gorosa, macroscópica, dos différentes órgãos e appà- rellios, nos séculos XVII e xvm, graças ao auxilio do microscópio, aquelle estudo desce mais profunda- mente á observação dos elementos componentes dos tecidos, a detalhes delicados de textura, creando-se

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