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Função do Conceito de Idéia Inata na Prova da Existência da Substância Infinita Apresentada na V Meditação de Descartes

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Função do Conceito de Idéia Inata na Prova da Existência

da Substância Infinita Apresentada na V Meditação de

Descartes

ETHEL MENEZES ROCHA Departamento de Filosofia

Universidade Federal do Rio de Janeiro/CNPq RIO DE JANEIRO, RJ

ethel.rocha@pq.cnpq.br

Resumo: No presente artigo pretendo examinar a função do conceito de idéia inata no contexto da argu-mentação cartesiana da V Meditação das Meditações Metafísicas. Minha hipótese é a de que se trata de um conceito fundamental para garantir a distinção entre idéias de essências forjadas pelo pensamento de idéias de essências verdadeiras e imutáveis. Com essa análise pretendo mostrar que a V Meditação, bem como todas as outras tem um caráter fundamentalmente epistemológico: Descartes ali pretende apresentar os critérios para o reconhecimento das idéias que representam essências verdadeiras o que permite dissipar a possível objeção de que a idéia de Deus como Perfeição, utilizada na III Meditação para provar sua exis-tência, poderia ser uma idéia fictícia.

Palavras-chave: Idéia inata. Idéia fictícia. Naturezas verdadeiras e imutáveis. Essências fictícias. Argumento ontológico.

Na V Meditação das Meditações Metafísicas1, conjugada à Teoria das

Naturezas Verdadeiras e Imutáveis, Descartes oferece uma argumentação que muitas vezes é interpretada como uma prova adicional à prova

apre-1 Sempre que possível, as citações de textos de Descartes seguem a

tradu-ção de Bento Prado Junior, Descartes Obra Escolhida. São Paulo: Difusão Euro-péia do Livro, 1973. As citações serão acompanhadas de suas referências nesta edição e na edição Padrão feita por Charles Adam e Paul Tannery (Oeuvres de

Descartes. Paris: Léopold Cerf, 1897 a 1913, 11 volumes), abreviada como AT,

seguida do número do volume em romanos e do número da página). Quando houver alteração na tradução será informado.

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sentada na Terceira Meditação em favor da existência de Deus2. Essa

nova prova consistiria na versão cartesiana do argumento ontológico

ori-ginalmente apresentado por Anselmo em seu Proslogion3. Essa leitura da

argumentação cartesiana apresentada na V Meditação envolve, entretan-to, alguns problemas. Por exemplo, o de se explicar por que Descartes introduziria mais uma prova em favor da existência de Deus na V Medi-tação ou, ainda, o de se explicar por que Descartes teria temporariamente abandonado seu projeto epistemológico e se limitado a considerações de ordem puramente ontológica nessa Meditação. No presente artigo pre-tendo examinar a função do conceito de idéia inata no contexto da argu-mentação cartesiana da V Meditação tendo como fim mostrar que se tra-ta de um conceito fundamentra-tal para garantir a distinção entre idéias de essências forjadas pelo pensamento de idéias de essências verdadeiras e imutáveis. Essa análise da função desempenhada pelo conceito de idéia inata nessa argumentação além de permitir compreender essa função, parece ter ainda a vantagem de evitar os embaraços acima mencionados, na medida em que insere a V Meditação no todo das Meditações endendo-a como tendo não apenas, como tradicionalmente se compre-ende, uma dimensão ontológica, mas como tendo uma dimensão essen-cialmente epistêmica, como todas as outras meditações e, além disso, na medida em que considera que a argumentação cartesiana apresentada na V Meditação não visa apresentar mais uma prova da existência de Deus.

2 Aqui assumo que não há uma diferença fundamental entre os dois

argu-mentos apresentados na III Meditação em favor da existência de Deus, pelo menos não uma diferença tão fundamental a ponto de caracterizá-los como duas provas distintas. Com diz Descartes em carta a Mesland de 2 de maio de 1644, “Não faz muita diferença se a minha segunda prova, a que tem como base nossa própria existência, for considerada como diferente da primeira ou como meramente uma explicação desta”.

3 Anselm, St. Proslogion. In: M. Charlesworth (ed.) St. Anselm’s Proslogion.

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Hipótese geral

Segundo essa leitura alternativa, na V Meditação Descartes já su-pondo a legitimidade da regra da verdade segundo a qual toda percepção efetivamente clara e distinta é verdadeira e, portanto, já supondo como provada a existência de Deus, pretende lidar com dois problemas: 1) mostrar que o fato de ser uma idéia clara e distinta e, portanto, verdadeira num certo sentido, a saber, na medida em que exibe uma essência, não antecipa que a essência exibida não seja fictícia. Para isso Descartes irá fornecer critérios para distinguir dentre as idéias claras e distintas aquelas que exibem essências fictícias daquelas que exibem essências ver-dadeiras e imutáveis, o que será feito através da introdução de uma Teo-ria das Naturezas (ou essências) Verdadeiras e Imutáveis; e 2) mostrar que o fato de certas idéias exibirem no entendimento naturezas verdadei-ras e imutáveis não antecipa a existência das coisas de que são essência, o que será feito através da introdução da tese de que existência é uma per-feição. Nesse sentido, o objetivo central de Descartes na V Meditação seria 1) fornecer critérios que permitem a distinção entre idéias claras e distintas fictícias de idéias claras e distintas inatas mostrando que as fictí-cias, mas não as inatas exibem essências que dependem do pensamento e, 2) fornecer uma explicação de por que uma idéia clara e distinta que exi-be uma essência verdadeira e imutável, isto é, uma idéia inata, não exiexi-be uma coisa que necessariamente existe fora do pensamento.

Essa leitura alternativa parece, por sua vez, envolver duas dificul-dades que, entretanto, são apenas aparentes dificuldificul-dades: 1) assumimos que a V Meditação tem um caráter essencialmente epistêmico que se tra-duz no fornecimento de critérios para a distinção entre idéias claras e distintas fictícias de idéias claras e distintas inatas, o que supõe a legitimi-dade da regra da verlegitimi-dade dada pela já provada existência de um Deus veraz. A partir dessa suposição, afirmamos não fazer sentido Descartes apresentar uma argumentação com o fim de mais uma vez provar a exis-tência de Deus. Apesar disso, o título da V Meditação, a saber, “Da

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Es-sência das Coisas Materiais; e, Novamente, de Deus, que Ele Existe” su-gere que a existência de Deus, de alguma maneira, será ali tratada. Como veremos, parece plausível afirmar então que a existência de Deus será ali tratada na medida em que a questão epistêmica tratada (a saber, da possi-bilidade de se distinguir idéias claras e distintas fictícias de idéias claras e distintas inatas) vem resolver uma possível objeção à primeira (e única) prova da existência de Deus, a saber, a de que a idéia de Deus, ponto de partida da prova, poderia ser uma idéia fictícia e, nesse sentido, represen-tar uma essência fictícia. Como se observa na III Meditação, após provar a existência de Deus, Descartes parece se dar conta dessa possível obje-ção anunciando a futura tarefa de mostrar que a idéia de Deus é inata. Nas palavras de Descartes “Resta-me apenas examinar de que maneira adquiri essa idéia [a idéia de Deus]”, o que será feito na V Meditação. Na V Meditação, ao garantir a possibilidade de se distinguir as idéias fictícias (claras e distintas) das idéias inatas (também claras e distintas), Descartes mostra que a prova da existência de Deus introduzida na Terceira Medi-tação não pode ser rejeitada pela suposição de que seu ponto de partida (a idéia de Deus como ser perfeito) é uma idéia fictícia. A relação da V Meditação com a existência de Deus, portanto, seria não a de apresentar mais uma prova dessa existência, mas sim, aliás, como precisamente diz o título, mais uma vez considerar a existência de Deus, mostrando a in-viabilidade de certa objeção até então ainda possível, e 2) Se o objetivo essencial da V Meditação não é fornecer mais uma prova da existência de Deus, então a função da tese de que existência é uma propriedade não é propriamente a de colaborar para uma nova prova da existência de Deus. Veremos que os critérios para o reconhecimento das idéias não fictícias se baseiam numa Teoria das Essências Verdadeiras e Imutáveis, o que permite que Descartes assimile, em certo sentido, a idéia de Deus às idéi-as da matemática: em ambos os cidéi-asos a essência exibida por idéiidéi-as claridéi-as e distintas são essências que não dependem da mente, do pensamento e não podem, por isso mesmo, ser modificadas pelo pensamento. Tanto a

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idéia de Deus quanto as idéias matemáticas, ao contrário das fictícias, exibem essências imutáveis. A primeira parte da argumentação da V Me-ditação, com a introdução da Teoria das Naturezas Verdadeiras e Imutá-veis, estabelece essa semelhança. Restaria ainda a Descartes mostrar por que no caso das essências verdadeiras e imutáveis exibidas pelas idéias matemáticas, mas não no caso da essência de Deus, as coisas de que são essências não necessariamente existem, isto é, podem não existir. E nisso consiste, a segunda parte da argumentação cartesiana onde aparecerá a tese de que existência é uma perfeição.

Dito isso, meu objetivo é expor a argumentação do que muitas ve-zes se considera a versão cartesiana do argumento ontológico em favor da existência de Deus tendo como fio condutor a tese de que Descartes ali responde a uma questão epistêmica, a saber, como distinguir, dentre as idéias claras e distintas as que exibem essências inventadas pelo pensa-mento (idéias fictícias) das que exibem essências que independem do pensamento (idéias inatas). Mais ainda, a necessidade do exame dessa possibilidade de distinção visa fornecer uma base para a rejeição de uma possível crítica da prova apresentada na III Meditação que parte da idéia de Deus como a idéia do infinito: se posso distinguir uma idéia que exibe uma natureza imutável de uma idéia fictícia, então posso mostrar que a idéia de Deus e as idéias matemáticas não são fictícias. E a partir dessa assimilação restaria como problema mostrar que embora tanto a idéia de Deus quanto as idéias matemáticas exibam essências imutáveis, só a es-sência imutável de Deus envolve a existência necessária.

A argumentação de Descartes na V Meditação parece, portanto, ter dois momentos problemáticos: a passagem da idéia clara e distinta de Deus para o conhecimento da essência imutável de Deus e a tese de que a existência é uma perfeição. Esses dois momentos do argumento são alvo de críticas de contemporâneos de Descartes, representados por Ca-terus que retoma a crítica de Santo Tomas ao argumento de Santo An-selmo e Gassendi cuja crítica será retomada e elaborada por Kant. Para

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ambas as críticas, afinal, a conclusão do argumento é a mesma: no argu-mento ontológico a conclusão só pode dizer respeito ao pensaargu-mento ou à idéia de Deus e não ao que seria a coisa Deus. Isto é, se o argumento tem como premissa a idéia de Deus, então só se pode concluir nesse ar-gumento algo sobre a idéia de Deus. Como veremos, na V Meditação Descartes, através da teoria das Naturezas Verdadeiras e Imutáveis, esca-pa às dificuldades do argumento de St. Anselmo que deram margem a essa crítica de Santo Tomas. A crítica de Gassendi parece não abalar Descartes que em sua resposta se limita a reiterá-la, sugerindo que o ônus da prova é de Gassendi. Em suas palavras: “Não vejo aqui a que gênero de coisas quereis que a existência pertença. Nem por que ela não pode ser denominada de uma propriedade, como a onipotência, tomando o nome de propriedade para toda a espécie de atributo ou para tudo que pode ser atribuído a uma coisa, como efetivamente deve ser aqui entendido.”

Argumento de Santo Anselmo4

O argumento ontológico em sua versão original de Santo An-selmo, criticada por Tomás de Aquino seria:

4 Será aqui apresentada uma versão sucinta do que seria o argumento de

Anselmo criticado por Tomás de Aquino, abstração feita da vastíssima literatu-ra acerca do assunto. Dentre as diversas possibilidades de interpretação que o argumento admite, uma parece particularmente frutífera que seria, em linhas gerais, a seguinte: o ponto de partida do argumento em Santo Anselmo é a compreensão do sentido de uma expressão (a saber, a expressão “aquilo do qual nada de maior pode ser pensado”) que só no final do argumento será de-monstrado se referir àquilo que chamamos de “Deus” (cuja definição nominal é “o criador”). Através do esclarecimento de uma expressão inteligível mesmo pelo ateu se conclui que, sendo essa expressão inteligível, sob pena de contra-dição, uma existência é necessária e só num outro momento do argumento será demonstrada ser a existência de Deus, baseado na definição de Deus co-mo criador.

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1) Pelo nome “Deus”, se entende “aquilo que é tal que nada de maior pode ser pensado”

2) Quando entendo algo aquilo que entendo existe no meu pen-samento

3) Axioma da prova: é maior existir na realidade e no intelecto do que existir somente no intelecto

4) Logo, ao entender o que significa o nome “Deus”, entende-se que Deus existe no intelecto e na realidade

5) Logo Deus existe na realidade e no intelecto

Exposto dessa maneira, obviamente há um vício: a conclusão de-veria ser: ao entender o que significa o nome “Deus”, entende-se o que é significado pela expressão Deus – aquilo que existe no intelecto e na rea-lidade – mas não que esse significado corresponda a algo atualmente exis-tente.

A crítica de Tomás de Aquino que é retomada por Caterus5 é

ex-pressa da seguinte maneira: “Suposto, contudo, que cada um entenda que é significado pelo termo “Deus” o que foi dito, a saber, aquilo que é tal que nada de maior pode ser pensado, por causa disso não se segue que entenda que aquilo que é significado por esse termo exista na realidade, mas somente na apreensão do intelecto. Nem pode ser argüido que o que é tal que nada de maior pode ser pensado exista na realidade, a não ser que seja concedido que exista na realidade algo que nada de maior pode ser pensado...”6

Essa crítica de Tomás baseia-se em três de suas teses básicas: 1) que há nos entes finitos uma distinção entre ato de ser (a existência) e a essência; 2) que há uma distinção entre a operação cognitiva de apreender a essência, o que é a coisa, e a operação cognitiva de julgar, isto é, afirmar 5 Johannes Caterus, teólogo católico, é o autor do primeiro dois seis

con-juntos de objeções publicados no mesmo volume da primeira edição das

Medi-tações Metafísicas.

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como real o apreendido; e 3) que é impossível conhecer diretamente a essência do infinito. Assumindo essas teses, Tomás de Aquino pode a-firmar que pelo ato da apreensão, por um processo de abstração, apreen-de-se a essência que será expressa e assim tornada inteligível, por um conceito. Se a essência se distingue da existência, e se o conceito é a pressão de uma essência abstraída por abstração, a existência, não é ex-pressa por um conceito. O ato de ser, a existência, só pode ser conhecido por um juízo. Mas, na medida em que não há conceito de existência, o juízo de existência não é uma união de conceitos como é o juízo atributi-vo onde um conceito é unido ao outro e algo é afirmado. Assim, com relação aos seres finitos, quando conhecemos ou bem apreendemos uma essência que é expressa num conceito e unimos esse conceito a um outro num juízo atributivo ou bem afirmamos a existência de uma realidade num juízo existencial. Por outro lado, com relação ao ser infinito, cuja essência é idêntica ao ato de ser (Deus), à existência, portanto, em princí-pio, ao se conhecer a essência seria possível inferir sua existência. Entre-tanto ainda segundo Tomás, em essência Deus é infinito e o infinito en-quanto infinito não é cognoscível. Sendo assim, por um lado, no caso dos seres finitos não é possível derivar a existência do conceito de essência porque são distintos e, não se conhece a existência por conceitos, e, por outro lado, no caso do ser infinito, cuja essência é idêntica ao ato de exis-tir, dada a sua infinitude, tampouco é possível conhecer a existência a partir da essência porque o intelecto finito não conhece diretamente a essência do infinito.

Caterus, entretanto, ao retomar a crítica de Tomás, concede a Descartes a tese de que é possível conhecer a essência de Deus através de uma idéia clara e distinta. Apesar dessa concessão, insiste que mesmo na versão cartesiana a crítica tomista é legítima: tudo que se pode concluir no argumento é que o conceito de existência é inseparável do conceito do ser supremo e não a existência atual do ser supremo.

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Mas, como veremos, ao introduzir sua Teoria das Naturezas Ver-dadeiras e Imutáveis Descartes termina por evitar a dificuldade apontada por Tomás, isto é, termina por evitar justamente o embaraço de se passar indevidamente do nível da idéia para o da coisa mostrando que se conhe-ço uma essência verdadeira e imutável conheconhe-ço a coisa de que é essência. E, sendo o conhecimento de Deus e não o conceito de Deus a premissa de seu argumento, seria então legítimo a inferência da existência de Deus, pois essa inferência expressaria uma relação necessária (que é admitida por Tomás de Aquino) entre a essência de Deus e sua existência, e não entre o conceito de Deus e sua existência.

Bem, na medida em que o acesso que se tem a qualquer essência é através de idéias, o ponto de partida do argumento é a idéia de Deus e as idéias da matemática, mas a premissa para sua conclusão é o conheci-mento das essências imutáveis de Deus e dos objetos matemáticos. O que Descartes vai mostrar é que certas idéias são idéias de essências não inventadas, isto é, verdadeiras e imutáveis, e que por isso, as propriedades pensadas nessas essências não são arbitrariamente postas pelo pensamen-to, mas pertencem às coisas de que são essências.

Como vimos, a argumentação cartesiana muitas vezes tomada como sua versão do argumento ontológico em favor da existência de Deus supõe a validade da regra da verdade segundo a qual toda idéia clara e distinta é verdadeira, o que implica que a idéia clara e distinta de algo representa este algo verdadeiramente, isto é, representa sua essência. Essa tese, entretanto, não antecipa nem que a essência representada não seja forjada pelo pensamento e nem que a coisa cuja essência é representada por uma idéia clara e distinta exista. Na V Meditação, à validade da regra geral, três outros passos serão acrescentados: 1) mostrar que dentre as idéias claras e distintas (que, já sabemos, representam essências), algumas representam essências verdadeiras e imutáveis (em oposição a outras idéi-as claridéi-as e distintidéi-as que apresentam essênciidéi-as forjadidéi-as, fictíciidéi-as, inventa-das pela mente) – distinção entre idéia fictícia e idéia inata estabelecida

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pela Teoria das Naturezas Verdadeiras e Imutáveis; 2) mostrar que, como conseqüência, quando as idéias claras e distintas são idéias de essências verdadeiras e imutáveis e, por isso mesmo, de essências não inventadas pelo pensamento, toda propriedade clara e distintamente percebida

como pertencente a essa essência é uma propriedade da coisa da qual é essência – passo fundamental para a passagem do argumento do

nível da essência para o nível da coisa; e 3) que uma determinada essência verdadeira e imutável, envolve a existência necessária da coisa de que é essência – passagem que envolve a tese de que existência é propriedade.

Sendo assim, o problema do primeiro momento da argumentação cartesiana é mostrar que certas idéias representam essências verdadeiras e imutáveis, isto é, são idéias de essências que não são produzidas e nem podem ser modificadas pelo arbítrio do pensamento. Já estando garanti-do (em Meditações anteriores) que certas idéias (as claras e distintas) re-presentam essências, resta mostrar que tenho critérios para reconhecer dentre essas idéias que representam essências, quais as que representam essências imutáveis. A partir dessa tese de que certas idéias representam essências imutáveis, é possível afirmar que a percepção clara e distinta de propriedades nessas essências é a percepção de propriedades da coisa pensada. E o segundo momento do argumento é dedicado a mostrar que a existência porque é propriedade, está necessariamente envolvida em uma determinada natureza verdadeira e imutável, mas não em todas.

Assim, a reconstrução da argumentação cartesiana que eu vou apresentar tem como fio condutor a hipótese interpretativa de que Des-cartes pretende na V Meditação formular critérios de distinção entre idéi-as fictíciidéi-as e idéiidéi-as inatidéi-as, e que é nesse contexto que aparece a tese da existência como perfeição (para explicar por que as essências matemáticas não exibem coisas que necessariamente existem).

A premissa da argumentação será, portanto, o conhecimento da essência imutável (e não o conceito) de Deus e dos objetos matemáticos. Mais ainda, segundo a nossa interpretação, o ponto central da prova

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car-tesiana é a tese de que as idéias claras e distintas inatas representam es-sências de coisas cujas propriedades independem do pensamento e, por isso mesmo, são propriedades das coisas representadas por essas idéias.

Esquema da argumentação cartesiana na V Meditação

1. Tenho uma idéia de Deus como o ser perfeito e idéias de objetos matemáticos como extensão

Ter a idéia de Deus significa ter a idéia de um ente sumamente (ou infinitamente) perfeito. Descartes não distingue o objeto da propriedade que o caracteriza (a perfeição), na medida em que, segundo sua ontologia, o atributo ou propriedade essencial de algo é a sua própria natureza. As-sim, a idéia de Deus e as idéias matemáticas representam não apenas ob-jetos, ou um objeto qualquer, mas objetos caracterizados por uma pro-priedade essencial.

2. A idéia de Deus e as idéias matemáticas são claras e distintas

No início da 5ª Meditação Descartes afirma que as idéias da exten-são, dos números, das figuras etc., isto é, as idéias matemáticas, são claras e distintas, isto é, não contraditórias, e assimila a idéia de Deus a essas idéias. Como já foi mostrado nas meditações anteriores as idéias claras e distintas são verdadeiras, isto é, o conteúdo delas é algo de real. Isto sig-nifica apenas que esses conteúdos têm uma realidade objetiva e, por isso, as coisas representadas por esses conteúdos possuem uma existência pos-sível. Não está antecipado que as coisas representadas pelas idéias claras e distintas existem fora do pensamento. Assim, as realidades objetivas das idéias claras e distintas representam entes (possíveis) que podem ter uma existência atual.

O próximo passo de Descartes será o de provar que os conteúdos de certas idéias claras e distintas, que são entes possíveis, mesmo que não

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existam “fora” do pensamento, têm propriedades “verdadeiras e imutá-veis”, isto é, propriedades que não dependem do pensamento.

3. A idéia de Deus como um ente perfeito e as idéias da matemáti-ca que são idéias claras e distintas são inatas e, nesse sentido, re-presentam essências verdadeiras e imutáveis.

O que caracteriza uma idéia é que ela apresenta para o sujeito pen-sante um conteúdo. O que caracteriza uma idéia clara e distinta é que o conteúdo que ela apresenta é um ente real, isto é, uma essência (algo não contraditório, que pode existir). Agora Descartes vai mostrar que o que caracteriza uma idéia inata é que o seu conteúdo exibe uma natureza (es-sência) verdadeira e imutável.

No contexto da prova ontológica, então, Descartes vai fazer uma distinção entre o que seriam “essências verdadeiras e imutáveis”, e o que seri-am as essências fictícias, isto é, forjadas pelo pensseri-amento. Descartes ad-mite que certas essências são “inventadas por nós” ou são “naturezas fictícias compostas pelo intelecto” e, portanto dependem do pensamento e não têm qualquer correlato fora do pensamento. Essas “essências fictí-cias” não são falsas essências ou propriedades que não pertencem a um objeto, mas sim propriedades que, por invenção ou ficção do pensamen-to, são consideradas como pertencentes a um objeto. As “essências fictí-cias” seriam, portanto, essências de objetos fictícios. Os objetos fictícios (que seriam objetos forjados pela mente) seriam objetos que são repre-sentados por idéias complexas, produzidas pelo pensamento por compo-sição arbitrária de idéias dadas. Esses objetos só têm realidade, por serem pensados. Assim, os objetos fictícios só existem na mente e são arbitrari-amente forjados pela mente.

Por oposição a essas essências fictícias, Descartes admite as essên-cias verdadeiras e imutáveis que por serem imutáveis, não dependem do arbítrio do pensamento. Essas essências são essências de coisas que mesmo que só existam no pensamento (como os objetos matemáticos),

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não dependem do pensamento. Descartes através da Teoria das Nature-zas Verdadeiras e Imutáveis pretende dar conta dessa dificuldade apre-sentando dois critérios para o reconhecimento de uma idéia clara e distin-ta cuja essência exibida não é uma essência fictícia ou forjada pelo pen-samento. Trata-se, portanto, de critérios que permitem distinguir as idéias claras e distintas fictícias que representam essências fictícias de objetos fictícios, (produzidos pelo pensamento e que só existem no pensamento) de idéias claras e distintas inatas que representam essências verdadeiras e imutáveis de objetos não fictícios e, nesse sentido, não dependentes do pensamento (embora possam existir apenas no pensamento, como os objetos matemáticos, por exemplo).

Esses critérios são:

1) as essências verdadeiras e imutáveis são tais que suas proprieda-des não são previstas por mim quando penso nelas, o que indica que o pensamento não acrescenta, por seu próprio arbítrio as propriedades des-sa essência; as propriedades envolvidas nas essências verdadeiras e imutá-veis não são dadas por definição. Ao contrário das essências fictícias cu-jas propriedades são fornecidas no momento da formulação da idéia. Por exemplo, sereia (mulher, peixe, encanta com o canto, nada, etc.) e triân-gulo (tem propriedades que não necessariamente conheço).

2) as propriedades de uma essência verdadeira e imutável não po-dem ser separadas por uma operação clara e distinta, o que indica que há um elo necessário entre as propriedades dessas essências. Isto é, ao sepa-rar (por abstração) uma propriedade de uma essência verdadeira e imutá-vel, obtem-se uma contradição (ex. triângulo que não tem a propriedade de ter a soma de seus ângulos igual a 180º).

Essas essências verdadeiras e imutáveis, na medida em que se o-põem às essências fictícias e não são dadas pelos sentidos (que não são fonte de idéias de essências, mas sim de idéias de coisas singulares), são os conteúdos das idéias inatas. Assim, se a idéia clara e distinta de Deus é uma idéia inata, então por essa idéia seria representada a essência de

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Deus. Se as idéias claras e distintas da matemática são idéias inatas, então por essas idéias seriam representadas as essências matemáticas. Portanto, é necessário demonstrar que a idéia de Deus e as da matemática são ina-tas, ou seja, é necessário demonstrar que representam essências imutá-veis.

Aplicando os critérios acima mencionados é possível compreender que a idéia de Deus e as idéias matemáticas representam essências imutá-veis e não forjadas, na medida em que o elo que liga as propriedades aos objetos é um elo necessário. Não é possível, por exemplo, separar clara e distintamente de uma essência perfeita nenhuma de suas perfeições, sob pena de contradição, e na medida em que necessariamente não conheço todas as propriedades de Deus, o que indica que suas propriedades não são acrescentadas pelo arbítrio da mente. Diferentemente, por exemplo, da idéia (fictícia) do leão existente, que representa um conteúdo (uma essência), fictício, a idéia de Deus representa uma essência imutável. Da idéia de leão existente decorre que é contraditório pensar o leão existente como não existente, o que implica que da idéia do leão existente decorre que é necessário pensar o leão existente como existente (ou decorre a idéia de que o leão existe), mas, ninguém pretende que dela decorra o fato de que o leão exista. Isto porque a idéia do leão existente representa uma essência forjada pelo pensamento. E sabe-se que é assim porque é possível, segundo Descartes, por uma operação clara e distinta separar existência de leão. É possível pensar (não é contraditório) existência sem pensar em leão e é possível pensar leão sem existência. Isto é, não há um elo necessário entre o conteúdo composto da idéia. Por outro lado, a idéia de um ser perfeito não pode ser separada por uma operação clara e distinta de nenhuma de suas perfeições sob pena de contradição. Assim como não se pode separar clara e distintamente uma propriedade do tri-ângulo do tritri-ângulo, sob pena de contradição, não se pode separar de um ser perfeito nenhuma de suas perfeições.

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Afirmar que uma idéia é inata significa dizer que, se ela representa uma essência, a essência que ela representa é “verdadeira e imutável” e, co-mo tal, não depende do pensamento da mesma maneira que a idéia fictí-cia. Assim, pela noção de idéia inata, Descartes pretende mostrar que, embora por ser idéias, em certo sentido as idéias inatas são dependentes do pensamento (ter uma idéia é um modo de pensar), as propriedades exibidas dos objetos representadas pelas idéias inatas não dependem do pensamento, pois pertencem a essências ou naturezas imutáveis.

Admitindo-se então que a idéia de Deus e as idéias matemáticas satisfazem esses critérios, pode-se afirmar que a idéia de Deus e as idéias matemáticas são inatas e, portanto, representam essências imutáveis. A idéia inata, clara e distinta de Deus e as idéias inatas, claras e distintas da matemática permitem, portanto, que se passe da representação da essên-cia de Deus para o conhecimento da essênessên-cia verdadeira de Deus, da re-presentação das essências matemáticas para o conhecimento das essên-cias matemáticas.

4. Se uma idéia inata, clara e distinta representa que uma proprie-dade pertence à essência imutável de uma coisa, essa proprieproprie-dade pertence a essa coisa.

É esse passo que permite a passagem da idéia de propriedade de

uma essência para a coisa que possui essa propriedade. Se a idéia

inata, clara e distinta me apresenta algo de real cuja natureza não é inven-tada por mim, essa natureza é a natureza da própria coisa. E se é assim as propriedades das essências imutáveis de uma coisa são propriedades das coisas de que são essências. Se pertence à natureza verdadeira e imutável do triângulo uma propriedade, o triângulo tem essa propriedade. Se à natureza verdadeira e imutável de Deus pertence uma propriedade, Deus possui essa propriedade.

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5. Pela idéia de Deus conheço a essência imutável de Deus como o ser perfeito, (diferentemente das idéias matemáticas).

Dados os critérios para reconhecer uma idéia de uma essência verdadeira e imutável sei que tenho uma idéia clara, distinta e inata de Deus e, portanto, sei que tenho uma idéia de uma natureza verdadeira e imutável. Essa idéia, inata clara e distinta de Deus me representa Deus como um ente infinitamente perfeito. Donde pela idéia de Deus conheço a natureza imutável de Deus que é a de ser perfeito.

Mesmo admitindo-se que Descartes é bem sucedido em dar crité-rios para distinguir as naturezas verdadeiras e imutáveis das essências fic-tícias e, portanto, mesmo admitindo-se que o ponto de partida da prova não é o conceito de Deus, mas o conhecimento da essência imutável de Deus restaria ainda lidar com o segundo tipo de dificuldade, a saber, mostrar que há uma relação necessária entre a essência de Deus e sua existência.

O objetivo de Descartes, então, nesse segundo momento da prova ontológica seria mostrar que, por um lado, assim como os objetos mate-máticos, Deus tem uma natureza verdadeira e imutável, por outro lado, diferentemente dos objetos matemáticos que não existem fora do pen-samento, a essência de Deus envolve necessariamente a existência atual de Deus. Descartes justifica então a relação necessária entre a essência de Deus e sua existência recorrendo à tese de que existência é uma perfei-ção. Se a essência imutável de Deus é a perfeição, então Deus contem em si todas as perfeições. Ora, sendo existência uma perfeição, Deus existe. Agora seria introduzido, então, o segundo momento problemático da prova:

6. A existência é uma perfeição.

7. Tenho uma idéia clara e distinta de que a propriedade de existir pertence à essência verdadeira de Deus.

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Se a existência é uma perfeição, tenho uma idéia clara e distinta de que existência pertence necessariamente à essência de Deus (mas não às essências matemáticas)

8. Deus existe necessariamente, mas não as essências matemáticas Conclusão

A reconstrução apresentada da argumentação cartesiana da V Me-ditação se apóia na possibilidade da distinção entre essência imutável e essência fictícia. As essências imutáveis seriam representadas pelas idéias inatas, claras e distintas, e as essências fictícias pelas idéias fictícias tam-bém claras e distintas. Se as idéias fictícias podem ser claras e distintas, a clareza e a distinção não são condições suficientes para que se tenha uma representação de essências imutáveis, pois as idéias claras e distintas po-deriam representar ou bem essências imutáveis ou bem essências fictícias. Em conseqüência, dentre as idéias claras e distintas será necessário dis-tinguir aquelas que representam essências imutáveis daquelas que repre-sentam essências fictícias. Segundo a reconstrução apresentada, a função do conceito de idéia inata seria exatamente o de mostrar quais as condi-ções que deve satisfazer uma idéia clara e distinta para representar essên-cias imutáveis. Por outro lado, se as idéias imaginativas não podem ser claras e distintas, só as essências imutáveis poderiam ser representadas por idéias claras e distintas e, portanto, a clareza e a distinção seriam con-dições suficientes para a representação de essências imutáveis. Nesse ca-so, a noção de idéia inata não desempenharia qualquer função relevante na argumentação da V Meditação. Como em princípio nenhuma tese da teoria cartesiana das idéias impede que as idéias fictícias possam ser con-sideradas claras e distintas, parece plausível afirmar que a noção de idéia inata desempenha uma função importante na argumentação da V Medi-tação.

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Ora, se essa argumentação visa fornecer os critérios que permitem distinguir idéias que exibem essências fictícias de idéias que exibem es-sências verdadeiras e imutáveis, então a V Meditação nitidamente man-tém o caráter epistemológico das demais Meditações. Mais ainda, é a apli-cação desses critérios à idéia clara e distinta de Deus que permite que Descartes responda à possível objeção à prova da existência de Deus a-presentada na III Meditação: trata-se não só de uma idéia clara e distinta, mas, mais ainda, trata-se de uma idéia clara e distinta não fictícia, isto é, que exibe uma natureza verdadeira e imutável. Mas se é assim, ainda que nessa V Meditação Descartes trate “novamente”, como diz o título da existência de Deus, não se trata de um novo argumento (que seria sua versão da prova ontológica), mas uma complementação do primeiro ar-gumento enfrentando, assim, uma possível objeção.

Referências

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