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Educação e cidadania: Reflexões à luz de Hannah Arendt

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

JENERTON ARLAN SCHÜTZ

EDUCAÇÃO E CIDADANIA:

REFLEXÕES À LUZ DE HANNAH ARENDT

Ijuí, RS 2016

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JENERTON ARLAN SCHÜTZ

EDUCAÇÃO E CIDADANIA:

REFLEXÕES À LUZ DE HANNAH ARENDT

Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação

stricto sensu em Educação nas Ciências – Mestrado, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientador: Doutor Paulo Evaldo Fensterseifer

Ijuí, RS 2016

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Catalogação na Publicação

Gislaine Nunes dos Santos CRB10/1845

S396e Schütz, Jenerton Arlan.

Educação e cidadania: reflexões à luz de Hannah Arendt / Jenerton Arlan Schütz. – Ijuí, 2016. 94 f.; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí e Santa Rosa). Educação nas Ciências.

“Orientador: Paulo Evaldo Fensterseifer”.

1. Educação. 2. Cidadania. 3. Condição humana. I. Fensterseifer, Paulo Evaldo. II. Título. III. Título: Reflexões à luz de Hannah Arendt.

CDU: 37 :1 37.014

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AGRADECIMENTOS

Finalizada uma etapa particularmente importante da minha vida, não poderia deixar de expressar o mais profundo agradecimento a todos aqueles que me apoiaram nesta longa caminhada e contribuíram na elaboração deste estudo.

Agradeço ao meu pai, à minha mãe e à minha irmã, pelo amor incondicional, pelo apoio e força que sempre me transmitiram. Eles são as pessoas mais importantes para mim.

Agradeço à minha noiva, Cláudia Fuchs, pela compreensão, dedicação e apoio inexcedível ao longo de todo o processo de construção deste estudo, pela generosidade e por tudo o que representa para mim.

Ao meu orientador, professor doutor Paulo Evaldo Fensterseifer, o meu maior agradecimento pela orientação segura e por ser sempre um exemplo de amor mundi, manifesto em sua inabalável fidelidade à tarefa de ser professor. Aos colegas e amigos do grupo de estudos, que me ensinaram a “pensar junto” (mesmo que Arendt discordasse dessa possibilidade).

Aos professores doutores Sidinei Pithan da Silva, José Pedro Boufleuer e Paulo Rudi Schneider, que gentilmente cederam os instrumentos necessários para a concretização deste estudo.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela concessão da Bolsa durante todo o período de realização deste curso de mestrado.

Aos meus amigos, colegas de curso e a todos os professores que comigo partilharam do seu saber.

Por fim, agradeço, de coração, a todos aqueles que algum dia me disseram que era possível.

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À minha mãe, Clarinda Dresch Schütz, ao meu pai, Roque José Schütz, e à minha irmã,

Mariane Schütz, por todo amor e cuidado que a mim

dedicaram, ensinando-me a amar o mundo.

À Cláudia Fuchs, minha companheira e melhor amiga, pelo apoio incondicional nesta caminhada, principalmente nos momentos de incerteza, muito comuns para quem busca trilhar novos caminhos.

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“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos as nossas crianças, o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.” (ARENDT, 2013, p. 247).

“A nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos a nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura.” (ARENDT, 2013, p. 243).

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Esta pesquisa analisa a relação existente entre a educação e o conceito de cidadania. O objetivo é compreender o conceito de cidadania elaborado por Hannah Arendt em suas obras, em seguida analisar os documentos (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, e os Planos Nacionais de Educação de 2001-2011 e 2014-2024) que regulamentam a educação brasileira e, por fim, analisar e compreender a relação existente entre educação e cidadania, presente em algumas das obras selecionadas de Paulo Freire e Dermeval Saviani. Para que este propósito seja alcançado definiu-se três objetivos específicos: I) Discutir e apresentar o conceito de “cidadania” presente nas obras de Hannah Arendt; II) Compreender a relação que se estabelece entre a educação e o conceito de cidadania nos documentos que regulam a educação brasileira; III) Analisar a relação entre educação e cidadania nas obras selecionadas de Paulo Freire e Dermeval Saviani. Nessa direção, procura-se refletir sobre as possibilidades e, também, as limitações da relação educação-cidadania, exatamente para não torná-la apenas um dogma, afinal, a relação sempre guarda um grau indeterminado, o que exatamente distingue o processo educacional de uma simples domesticação. Ademais, o conceito de cidadania para Hannah Arendt está exclusivamente relacionado à participação política na esfera decisória de poder (esfera pública), na qual o cidadão é denominado “ser político”. Nas conclusões de Arendt, a cidadania é uma dimensão do agir político e, transportar isso para a esfera educacional é “arrancar”, de certo modo, a oportunidade do novo e imprevisível em cada aluno, como se fosse possível e desejável antecipar as possibilidades de deliberação dos futuros cidadãos. Logo, não há cidadania sem participação política.

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ZUSAMMENFASSUNG

Diese Forschung analysiert die Beziehung zwischen Erziehung und dem Konzept der Staatsbürgerschaft. Das Ziel ist, der Staatsbürgerschaft von Hannah Arendt in seinen Werken, zu verstehen, für dann, im Anschluß, die Dokumente (Brasilianische Bundesverfassung von 1988, LDBEN/1996 und PNE 2001 – 2011 und PNE von 2014 – 2024), die Brasilianischen Erziehung regulieren, analysierem. Und zum Schluß die Beziehung zwischen Erziehung und Staatsbürgerschaft, die in einigen der ausgewählten Werke von Paulo Freire und Dermeval Saviani anwesend sind, zu verstehen. Damit dieser Absicht sich erreichen könnte, stellen wir drei spezifische Ziele vor: I) Das Konzept der Staatsbürgerschaft diskutieren, in Werken von Hannah Arendt anwesend ist; II) Die Beziehung, die sich zwischen Erziehung und dem Konzept der Staatsbürgerschaft eingeführt hat, die Brasilianischen Erziehung regeln, verstehen; III) Die Beziehung zwischen Erziehung und Staatsbürgerschaft in ansgewählte Werke von Paulo Freire und Dermeval Saviani analysieren, in diesen Richtung, wie über die Möglichkeiten, sondern auch über die Beschränkung der Bezienung Erziehnug – Staatsbürgerschaft denken, damit sie nicht nur ein Dogma wird, da die Beziehung immer eine unbestimmte Stufe verwahrt, was eben den Bildungsprozess von einer einfachen Domestikation unterscheidet. Ansonsten, ist das Konzept der Staatsbürgerschaft für Hannah Arendt, ausschließlich im Beziehung mit der politische Teilnahme an dem Entscheidungsmacht bereicht (Öffentlichkeit), in dem der Staatsbürgerschaft “politisch sein” genannt wird. Bei den Ergebnisse von Arendt, wäre die Staatsbürgerschaft eine Dimension des politischen Handels, Dieses zum Bildungsbereich übertragen, ist, die Möglichkeiten des Neues und unvorsehbares von jedem Schüler “herausreißen”, als ob wir könnten und es wünschungswert wäre, die Möglichkeiten der zukünftigen Staatsbürgerschaft zu verfrühen. Also, es gibt keine Staatsbürgerschaft ohne politische Beteiligung.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

1 O CONCEITO DE CIDADANIA EM HANNAH ARENDT ... 13

1.1 A VITA ACTIVA E A CONDIÇÃO HUMANA ... 14

1.2 AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA ... 19

1.2.1 A esfera pública ... 21

1.2.2 A esfera privada ... 24

1.3 A ESFERA SOCIAL E O SURGIMENTO DAS SOCIEDADES DE MASSA ... 26

1.4 A TRANSFORMAÇÃO DO CIDADÃO EM CONSUMIDOR ... 28

1.5 O CONCEITO DE NATALIDADE E AÇÃO ... 32

1.6 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO ... 40

2 EDUCAÇÃO E CIDADANIA ... 43

2.1 A CRISE NA EDUCAÇÃO ... 45

2.2 A DISTINÇÃO ENTRE A EDUCAÇÃO E A POLÍTICA ... 50

2.3 O CONCEITO DE CIDADANIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL DE 1988 ... 57

2.4 O CONCEITO DE CIDADANIA NA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (LDBEN), LEI N 9.394/96 ... 62

2.5 O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2011) ... 66

2.6 O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2014-2024) ... 68

2.7 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO ... 70

3 REFLEXÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO E CIDADANIA ... 72

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 88

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INTRODUÇÃO

Nunca antes na História brasileira se falou tanto em cidadania como nas últimas décadas. O termo “cidadania” remete à sua gênese, à cidadania grega, na qual o homem pode encontrar a sua emancipação nas cidades-Estado1, cujo objetivo era a participação política dos cidadãos. Apesar de não existir uma essência única imanente ao conceito de cidadania, observa-se que a participação e a ação para criar o seu próprio destino são ideias inerentes ao conceito. Assim, como se pode pensar a cidadania no âmbito educacional?

Ademais, pensar a cidadania no âmbito educacional remete refletir sobre as relações sociais. A História brasileira é marcada por escravidão, elitismo, exclusão, corrupção, ditadura e, durante os anos 70 e 80, a cidadania também virou foco de diferentes instâncias sociais, como: partidos políticos, sindicatos, meios de comunicação e movimentos sociais.

Não obstante, o motivo pelo seu constante uso eclodiu, principalmente, com o processo de redemocratização da sociedade brasileira, que perpassou todo o período da ditadura – que, a meu ver, mutilou a cidadania. A educação, durante esse processo (décadas de 70 e 80), ficou centralizada em educar essencialmente aqueles que foram excluídos da sociedade, isto é, uma educação para a cidadania que precisa educar um cidadão formado e também um cidadão que foi e é excluído. “Fertilizou-se”, desse modo, a escola como um ambiente no qual é possível formar sujeitos “engajados” na luta pelos direitos dos cidadãos.

Nessa direção, retratar uma escola-cidadã ou ainda um aluno-cidadão é referir-se especificamente aos excluídos, oprimidos e desfavorecidos do âmbito político, social e cultural. Desse modo, os educadores populares dos anos 70 e 80 mostraram-se preocupados em educar os excluídos da sociedade, compreendidos como aqueles a serem educados como cidadãos em ato e, ao mesmo tempo, excluídos.

Não obstante, o que se percebe é a ênfase na necessidade de formar cidadãos e, ao mesmo tempo, é visível a descrença das novas gerações na participação e elaboração de projetos comuns/coletivos. Essa descrença nasce, segundo Arendt (2013), pelo abandono e descrédito de uma ação que esteja realmente comprometida com o nascer para a vida política, na qual o

1 O termo “não se refere ao que hoje entendemos por ‘cidade’, mas a um território agrícola composto por uma ou

mais planícies camponesas [...] de modo geral podemos dizer que as cidades-Estado formavam associações de proprietários privados de terra [...] os conflitos internos [eram intensos e crescentes] não podiam ser resolvidos no âmbito das relações de linhagem [...] tinham que ser resolvidos comunitariamente, por mecanismos políticos, abertos ao conjunto dos proprietários.” (GUARINELLO, 2003, p. 32). Reside aqui, a origem mais remota da política, como instrumento de decisões coletivas e de resolução de conflitos.

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educador assume a responsabilidade de preparar com antecedência as crianças para a renovação de um mundo comum.

Neste contexto, o presente estudo tem por objetivo analisar o conceito de cidadania presente nas obras de Hannah Arendt, nos principais documentos nacionais que regulamentam a educação no Brasil e nas obras (de modo parcial) de Dermeval Saviani e Paulo Freire. A proposta é compreender como esses documentos e obras configuram o conceito de cidadania, quais as suas características e objetivos para, em seguida, em uma análise teórico-crítica2, refletir sobre o conceito de cidadania elaborado por Hannah Arendt, a fim de encontrar complementariedades e divergências.

Para o alcance desse objetivo foram delineados três propósitos específicos: primeiramente, discutir e apresentar o conceito de “cidadania” presente nas obras de Hannah Arendt; em seguida, compreender a relação que se estabelece entre a educação e o conceito de cidadania nos documentos que regulamentam a educação brasileira; e, finalmente, analisar, de modo parcial, a relação entre educação e cidadania encontrada nas obras selecionadas de Paulo Freire e Dermeval Saviani.

No primeiro capítulo optou-se por discutir o conceito de cidadania a partir da obra A condição humana, de Hannah Arendt (2010). A obra é o eixo teórico para este estudo, pelo fato de ser um texto contemporâneo que trata da participação do indivíduo na vida pública. Além dessa obra foram utilizadas ainda outras obras da mesma autora, como Entre o passado e o futuro (2013) e O que é política? (2004a), as quais foram utilizadas em citações e também em comentários que se estendem por toda a pesquisa.

Além das referidas obras da autora, foram exploradas as publicações de alguns dos seus mais importantes intérpretes, a fim de explorar possibilidades interpretativas do texto e as relações que se procurou estabelecer neste estudo. Assim, foram relevantes as contribuições de Vanessa Sievers de Almeida (2011), Odílio Alves Aguiar (2006), Adriano Correia (2008), Sérgio Carvalho (2008; 2010), Celso Lafer (2006), Flávio Brayner (2008), entre outros.

Já no segundo capítulo, pela própria exigência da pesquisa, discutiu-se a relação entre os documentos que regulamentam a educação brasileira e o conceito de cidadania. Neste momento da pesquisa deparou-se com vários documentos nacionais e influências internacionais que regulamentam a educação brasileira. Num primeiro momento foi necessário fazer uma leitura a fim de situar os documentos no tempo e no espaço e, assim, presenciar o conceito de cidadania e a possibilidade de ser estudado para, por fim, estabelecer critérios para a escolha

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dos documentos a serem analisados. Desse modo, foram utilizados dois critérios: primeiro, selecionar os documentos que tivessem uma influência direta na construção das políticas públicas para a educação brasileira e, após, encontrar nesses documentos, mesmo que disperso, o conceito de cidadania.

Após a utilização dos critérios supracitados, os documentos selecionados foram: a Constituição Federal do Brasil, de 1988; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), de 1996 e a nova LDBEN; e o Plano Nacional de Educação (2001-2011 e 2014-2024). A leitura dos documentos possibilitou sinalizar uma relação muito próxima entre a concepção de cidadania, educação e as Leis e Diretrizes que regulamentam a educação brasileira. Nessa direção, procurou-se analisar se o conceito de cidadania contido nos documentos que regulamentam a educação do Brasil possui alguma relação com a compreensão de cidadania contido nas obras de Hannah Arendt. Trata-se de compreender e perceber em que medida a educação no Brasil está baseada na esfera social, inserindo os indivíduos no mercado de trabalho e aumentando o seu poder de consumo, e como o conceito de cidadania que dá base a esses documentos busca (re)inserir os indivíduos nas esferas públicas, onde, por meio de suas palavras e ações, pode participar ativamente dos destinos da cidade, exercendo a sua cidadania. O terceiro e último capítulo traz contribuições que permitem refletir sobre a relação existente entre educação e cidadania. Num primeiro momento, busca-se compreender esta relação, assumindo um estudo de exploração parcial de algumas obras interpretativas de Paulo Freire e, posteriormente, de Dermeval Saviani, as quais estão inseridas em um período em que emerge a confiança associada à emergência das lutas sociais, e uma educação capaz de formar cidadãos já conscientes de sua responsabilidade política e do seu comprometimento com a mudança social. Por fim, busca-se confrontar essas compreensões com as reflexões de Hannah Arendt, que propicia revisitar alguns conceitos (cidadania, política, esfera pública, esfera privada...), de certo modo, clássicos, com as lentes do presente, reafirmando com propriedade a sua atualidade.

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1 O CONCEITO DE CIDADANIA EM HANNAH ARENDT

O objetivo deste capítulo é compreender o conceito de cidadania apresentado por Hanna Arendt em seu livro A condição humana. Desse modo, procedeu-se uma cautelosa leitura de seus escritos, o que permitiu o entendimento de sua argumentação no contexto da obra.

Destaca-se que o conceito de “cidadania” não é uma definição-chave na referida obra, entretanto, ao tratar da pluralidade dos homens, da sua participação no espaço público, da liberdade para agir, discursar e deliberar em conjunto sobre os assuntos públicos, Arendt (2010) fala de “ser político”, aqui traduzido por “ser cidadão”.

A busca pela garantia do espaço público, o agir em conjunto e também a liberdade de decidir mediante as palavras, é a grande preocupação de Arendt nessa obra. Com esses pressupostos surge a autêntica política e a dignidade da vida pública, demonstrados pela autora mesmo diante das experiências do totalitarismo. No momento em que os homens buscam agir em conjunto (pluralidade), a partir de palavras e ideias no espaço público, tendo em vista os interesses da cidade, é possível compreender a dimensão da cidadania, pois política e liberdade só aparecem quando há um espaço público que permite a palavra e a ação.

As leituras permitiram compreender que cidadão, para Arendt (2010), é um ser da polis e, que cidadania significa a participação desse ser na esfera pública. O objetivo deste capítulo é, justamente, compreender o conceito de cidadania no que tange às suas características e finalidades.

Neste intuito, o estudo inicia a partir do mapeamento de alguns conceitos que são fundamentais para Arendt como: vita activa, trabalho, fabricar, agir3 e, por conseguinte, a condição humana.

Em seguida, o estudo busca compreender os conceitos de esfera pública e esfera privada a partir da Grécia Antiga para, posteriormente, compreender o surgimento do domínio social na Era Moderna, e a forma como este se impõe sobre o domínio público e privado.

Realizada a distinção entre o domínio público, privado e social, busca-se entender como ocorreu a transformação do cidadão em um mero consumidor, ou seja, a substituição do ser político pelo animal social. A transformação do cidadão que vivia na polis em um animal social que, gradativamente, perde a sua capacidade de agir na esfera pública para apenas viver, segundo a autora, como um consumidor voraz.

3 Optou-se em seguir a tradução de Almeida (2011), que utiliza como referência o texto de Arendt em alemão (que

foi revisado e modificado por Arendt), e se traduziu, assim, Arbeit (labor) por trabalho, Herstellen (work) por

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Por conseguinte, a sociedade passou a excluir a possibilidade da ação e espera de cada membro um certo tipo de comportamento, impondo várias regras para normalizar os membros, admitindo apenas a adaptação e a homogeneização. A violência que antes era uma condição pré-política adentra no domínio público e silencia os homens, tornando-os menos humanos. Assim, as atividades do trabalho, fabricar e agir não são apenas requisitos para a vita activa, mas condições necessárias para consumir ferozmente todo o mundo ao seu redor.

Por fim, para a Arendt (2010), a retomada do lugar próprio do cidadão na Era Moderna se mostra cada vez mais difícil em um mundo que privilegia a busca pela satisfação das necessidades. Quando, porém, parece que não há mais caminho para resgatar o espaço público, a autora apresenta o conceito de natalidade, a possibilidade do novo, a esperança de um novo agir.

Diante da ideia de natalidade, Arendt (2013) apresenta o conceito de liberdade, e busca tratar dos requisitos para a pluralidade, para a cidadania, os quais não podem dispensar a ação nem a palavra. Assim, segundo a autora, mesmo diante da destruição da esfera pública, é possível um novo nascimento, não apenas o começo de uma outra vida mas, principalmente, uma totalmente diferente das anteriores. A grosso modo, a natalidade é a possibilidade e a capacidade de o indivíduo se atualizar constantemente, de fazer o novo, o que é possível por intermédio da ação no mundo.

1.1 A VITA ACTIVA E A CONDIÇÃO HUMANA

Antes de abordar a condição humana, Arendt (2010, p. 26) inicia a sua obra explicando a expressão vita activa que, para ela, significa: “a vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo.” Com esta expressão, a autora busca designar três atividades humanas que considera fundamentais: trabalho, fabricar e agir, sendo que cada uma delas corresponde a uma das condições básicas de existência do ser humano. Assim, passa-se a definir cada uma das três atividades que compõem a vita activa.

Segundo Arendt (2010), o trabalho corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo e resultante declínio estão ligados às necessidades vitais satisfeitas pela atividade do trabalho. Além disso, a autora afirma que, para que se consiga sobreviver, a condição humana da vida depende do trabalho. Com isso, busca-se satisfazer determinadas necessidades, adentrando no ciclo da produção e consumo. Na Modernidade, porém, esse ciclo se estende cada vez mais para outras dimensões, pois não se consome somente alimentos, mas também imagens e modelos de vida, pois os produtos são considerados parte da

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cultura. Ademais, mesmo que a produção e o consumo sejam incessantes, satisfazer as carências vitais, sendo elas biológicas ou não, sempre será uma exigência. Esse ser humano que está submetido às necessidades sempre urgentes e obrigado a trabalhar para atendê-las é denominado por Arendt de animal laborans. Por fim, essa atividade não pode ser comunicada, pois ela é um movimento singular, de privação do corpo em relação ao outro.

O ser humano, no entanto, não está somente preso ao processo vital. Por meio de outra atividade, o fabricar, o homem pode romper esse ciclo incessante de produção-consumo e estabelecer um mundo que o proteja do contínuo ciclo natural. Assim, o homem é capaz de fabricar artefatos que lhe dão estabilidade e oferecem um lar que ele não possui por natureza. Desse modo, o homo faber supera o incessante ciclo temporal do animal laborans. Por meio da obra, o homem modifica o mundo e estabiliza a vida humana. Ele se torna artesão de um mundo que lhe é próprio. É por isso que a condição humana para o fabricar é o fato de estar no mundo, a mundanidade. A atividade do fabricar, contudo, não é considerada antipolítica, pois, por mais que o homo faber se isole para fabricar alguma coisa, ele está ligado com o mundo tangível das coisas que está a produzir, e é justamente essa artificialidade humana que, em última instância, une e separa o ser humano.

Além de trabalhar e fabricar, o homem também é capaz de agir. Essa atividade ocorre unicamente entre os homens, ou seja, “corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo.” (ARENDT, 2010, p. 8). Cada novo ser humano que chega ao mundo é singular, ou seja, com cada novo nascimento não começa apenas uma outra história de vida, mas uma totalmente nova, diferente de todas as que já se antecederam ou que ainda virão. A singularidade é constantemente mostrada e reafirmada no espaço público, onde não se revela como é alguém, mas sim quem é esse alguém. A resposta para essa pergunta se dá a partir das palavras e também das ações que são espalhadas no mundo e que admitem o reconhecimento entre os indivíduos. A identidade do homem ou de cada homem, portanto, só pode ser vista e reconhecida pelos outros. Assim, o nome de alguém nada revela sobre como é ou quem é essa pessoa, a não ser que um dia, em algum lugar, se possa ouvir as suas palavras ou assistir as suas ações4.

Não obstante, o fato de estar entre outros singulares instiga-o a se relacionar e se comunicar com os diferentes, estabelecendo assim um espaço de convivência. Nesse espaço, cada ser humano pode se revelar, apresentar, singularizar e distinguir. Destarte, “[...] nenhuma atividade pode tornar-se excelente se o mundo não proporcionar um espaço adequado para o

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seu exercício.” (ARENDT, 2010, p. 60). Com as suas ações, os homens podem (re)criar o espaço do aparecimento, o lugar da política e também das histórias humanas.

A ação, segundo Arendt (2010, p. 8), “é a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria.” Diferentemente do trabalho, que busca satisfazer as necessidades vitais, e da atividade do fabricar, que visa um produto final, a ação não se reduz a uma função nem a um meio, mas tem em si mesma a sua finalidade. Do mesmo modo, a ação deve vir sempre acompanhada do discurso, senão perde o seu caráter inovador, pois, “se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como um ser distinto e único entre iguais.” (ARENDT, 2010, p. 223). Se assim não fosse, em lugar de homens que agem haveria robôs mecânicos a realizar coisas que seriam humanamente incompreensíveis (ARENDT, 2010).

Arendt (2010), ao analisar especificamente a atividade da ação, alerta para o fato de que não obstante todos os aspectos da condição humana tenham alguma semelhança com a política, a pluralidade é especificamente a condição pela qual existe toda vida política. É fundamental compreender que a pluralidade não se dá pelo simples fato da junção de seres singulares, mas sim, pela relação que os seres singulares têm entre eles. A pluralidade, os objetos, as palavras e as ações se relacionam entre os indivíduos e passam a condicionar a sua identidade. É fato, porém, que a pluralidade permite enxergar que o homem não está sozinho, e que existem tantas opiniões sobre algo quanto pessoas que habitam o mundo, cada uma com a sua singularidade.

Ressalta-se ainda que Arendt (2010), além de apresentar as três condições, oferece mais duas condições nas quais os seres humanos existem: a natalidade e a mortalidade. E, desse modo, das três atividades o agir é o que tem a relação mais estreita com a condição humana da natalidade, pois o novo começo pode fazer o homem sentir-se no mundo, com a capacidade de fazer o imprevisível, isto é, de agir. A autora alerta que, no sentido de estabelecer uma iniciativa, o elemento de ação é inerente a todas as atividades humanas e, portanto, de natalidade. Além disso, “como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.” (ARENDT, 2010, p. 10).

Ao se adentrar no conceito de condição humana, no entanto, Arendt (2010, p. 11) adverte que: “a condição humana não é o mesmo que a natureza humana, e a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem à condição humana não constitui algo equivalente à natureza humana.”

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Nesse sentido, em que consiste, então, a condição humana? Esta abordagem sobre a condição humana tem início a partir do estudo realizado por Aguiar (2006, pp. 55-56, grifo nosso) sobre a categoria condição humana presente no pensamento de Hannah Arendt:

A humanidade do homem não é algo que possamos garantir a partir de sua definição em determinada direção. Trata-se de um acontecimento que se manifesta nas suas ações, palavras, pensamentos e obras. Os homens não são coisas que possam ser definidos uma vez por todas. O ser-próprio de um homem, o seu quem, só se revela quando dele se contar a história, feitos e palavras. O quem é a pessoa, o homem compreendido como ser humano. É importante frisar isso para que não caiamos numa visão estética ou religiosa da dignidade humana, isto é, na concepção que a reduz às obras que os homens produzem ou a uma alma imortal. Dignidade humana só pode ser pensada em relação com a estatura do homem no mundo, sua importância, seu lugar e valor, sem, todavia, em momento algum, significar isso uma caída na visão que aponta o homem como o fim último da criação, senhor da natureza e da sociedade. Essa concepção permite o distanciamento com qualquer forma de substancialismo e padrão, pois esse quem é narrativo e não teórico, se revela nos feitos e palavras e não na adequação comportamental a um padrão aprioristicamente dado. Para surgir, o

quem necessita da liberdade como condição humana, cujo sentido não é o

distanciamento de uma condição escrava, superada por uma condição soberana de autonomia absoluta, mas, principalmente, do amor mundi, da disposição de agir e se interessar por algo que não é, da ordem da posse e, sim, do mundo comum sobre o qual o homem não tem controle algum.

No entendimento de Dalcin (2007, p. 27), Arendt percebe a categoria humana no sentido do acontecimento, do como e não do quem, considerando que não está empenhada em investigar a essência que dota o homem de humanidade, mas conduz seu pensamento a fim de entender a condição humana sempre fundada no humano real, fenomênico, aquele cuja condição sine qua non de existência é

a própria vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o planeta Terra. Estas condições – enfatizemos: condições e não determinações absolutas – são as fundamentais para que o homem possa aparecer, estar, encenar sua vida no mundo e dele desaparecer. Embora não expliquem ‘o que’ somos – apenas possibilita dar algumas respostas ao ‘quem somos’ – ‘pela simples razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto’. (ARENDT, 2010, p. 19).

Não obstante, a autora lembra que,

As condições da existência humana: a vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e a Terra [embora nos ajude a compreender], jamais podem ‘explicar’ o que somos ou responder à pergunta sobre quem somos, pela simples razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto. (ARENDT, 2010, p. 13).

Conforme Arendt (2010, p. 11), “a objetividade do mundo [...] e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria

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impossível sem coisas, [...] [seria assim,] um não mundo, se não fossem os condicionantes da existência humana.” Ainda segundo a autora, a mudança mais radical que poderia ocorrer com a condição humana seria uma emigração dos homens da Terra para algum outro planeta. E, mesmo que o evento, já não inteiramente impossível, implicasse numa vida em condições totalmente diferentes das que lhe são oferecidas na Terra, o trabalho, o fabricar e o agir deixariam de ter o mesmo sentido

Por fim, a condição humana ultrapassa a compreensão das condições nas quais a vida foi dada ao homem. Assim,

[...] Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato tornam-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus atores humanos. Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou mantenha uma duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana. É por isto que os homens, independentemente do que façam, são sempre condicionados. Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana. (ARENDT, 2010, pp. 10-11).

Para Dalcin (2007), a distinção entre os dois modos de vida (bios) – a vita activa e a vita contemplativa – era assim reconhecida na tradição filosófica e religiosa até meados da Era Moderna. A ideia tradicional do mundo grego compreendia a contemplação como a mais elevada das faculdades humanas, atividade de ordem superior em relação à vita activa. Esta percepção coincidiu com a descoberta dos filósofos que adotaram a contemplação como seu modo de vida, considerando-a superior à vida política do cidadão na polis. Arendt (2010) acredita que no transcurso da existência, é possível que um homem viva sem nunca ter se entregado à contemplação, porém, não é possível que um homem permaneça em estado de contemplação durante toda sua existência.

Diante do que foi exposto até o momento, é possível compreender que a vita activa depende da relação entre as três atividades: o trabalho, o fabricar e o agir. E necessário, porém, ir além do trabalho que sustenta a vida do homem, caminhar pelo fabricar que ajuda a constituir a artificialidade do mundo, até chegar ao agir que insere o homem na esfera pública onde ele pode ter uma vida dedicada aos assuntos públicos. É nesse caminhar que estão fixadas as condições que o homem necessita para deixar de ser apenas um vivente e experimentar a vita activa.

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1.2 AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA

Para compreender o caminho que leva o homem à construção e ao exercício de sua cidadania, Arendt (2010) busca referências na experiência de cidades-Estado, vivenciadas na Grécia Antiga, principalmente no século V a.C., conhecido também como o Século de Péricles. Não obstante, o interesse da autora pela polis não provém do âmbito historiográfico. Segundo Almeida (2011), Arendt também não entendia que essa experiência política pudesse se tornar uma proposta para a política atual, como se fosse possível realizar uma “nova polis”. A autora, evidentemente, não desconhecia que o exercício político dos cidadãos livres era possível somente à custa do trabalho escravo.

Em outro momento, Arendt (2004a, p. 47) adverte que “[...] o homem precisava ser livre ou se libertar para a liberdade, e esse ser livre do ser forçado pela necessidade da vida era o sentido original do grego scholé ou do romano otium, o ócio, como dizemos hoje.”

Do mesmo modo, Aristóteles (2007, p. 20-22) afirma que os escravos “[...] ajudam-nos com sua força física em nossas necessidades quotidianas” e, desse modo, “[...] existe um interesse comum e uma amizade recíproca entre o senhor e o escravo, quando é a própria natureza que os julga dignos um do outro.” Essa libertação, diferente de liberdade, deveria ser atingida por alguns meios, ou seja, o modelo escravagista era o meio decisivo, pois, outros eram forçados a assumir a preocupação com a vida diária. Diferente do sistema atual, isto é, da exploração capitalista que visa objetivos econômicos, a exploração do trabalho escravo na Antiguidade serviu para liberar os senhores a fim de que pudessem exercer a liberdade da coisa política.

É nessa tradição das experiências políticas dos gregos que Arendt (2010) se inspira para discutir a participação do homem nas esferas pública e privada para, num segundo momento, discutir como na Era Moderna essas duas esferas foram sendo substituídas pela esfera social e, a partir disso, apresentar as consequências que essa transposição trouxe para o exercício da cidadania.

A reflexão de Arendt (2010) parte da premissa de que todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de os homens viverem juntos, mas é a ação a única que não pode sequer ser imaginada fora do espaço entre os homens. Diante disso, segundo Arendt (2010, pp. 26-27),

A atividade do trabalho não requer a presença de outros, mas um ser que trabalhasse em completa solidão não seria ser humano, e sim um animal laborans no sentido mais literal da expressão. Um homem, [...] fabricando e construindo um mundo habitado somente por ele mesmo, seria ainda um fabricador, embora não um homo faber: teria perdido a sua qualidade especificamente humana e seria, antes, um deus – certamente

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não o Criador, mas um demiurgo divino como Platão o descreveu em um dos seus mitos. Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um deus é capaz da ação, e só a ação depende inteiramente da constante presença de outros.

Do mesmo modo, é importante destacar que os homens viviam entre iguais5, sem uma hierarquia que tomasse a sua voz ou vez, cujas condições eram necessárias para ter um espaço público que, por suas características diferentes, se distanciava da esfera privada. É importante destacar que no momento em que existe dominação e sujeição, isto é, uma relação entre dominadores e dominados, isto nada tem a ver com a experiência da política grega, pois o que permitia a experiência de liberdade aos cidadãos gregos era o encontro na Ágora, o qual acontecia entre os iguais. E, no momento em que a igualdade é reconhecida, ela passa a fazer sentido aos homens e, mesmo possuidores de diferenças, a igualdade permite o surgimento de algo completamente novo, decorrente da união entre os homens.

Viver em uma polis significa que tudo deve ser decidido por meio de palavras e da persuasão, e não com o uso da força e da violência. Para os gregos, usar a violência para forçar as pessoas, ou ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos, típicos da vida fora da polis ou, ainda, características da vida em família, onde o chefe da casa utilizava os seus poderes despóticos.

Era na polis que os cidadãos livres – homens que possuíam as necessidades da vida e também do lar já atendidas – se reuniam para desempenhar a atividade política. A Ágora era o espaço destinado para o encontro mediado somente pela palavra, onde se discutia sobre a cidade e o convívio dos homens. Para Arendt (2004a, p. 47), “o que distingue o convívio dos homens na polis de todas as outras formas de convívio humano, que eram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade. [...] Ser-livre e viver-numa-pólis eram, num certo sentido, a mesma coisa.” A Ágora era, portanto, o espaço destinado para os assuntos públicos.

A liberação era condição essencial para a cidadania, porém, não o suficiente para que os homens fossem realmente livres, a liberdade só se configurava como algo real quando ocorria a união entre os iguais na praça pública. Como já foi apontado anteriormente, as relações desiguais só deixam possibilidades para a dominação de uns sobre os outros, ou seja, justamente o oposto da liberdade.

5 A igualdade, para Arendt (2010), é um conceito político e passa a se estabelecer a partir das relações que

acontecem no mundo e que necessita ser compreendida como um reconhecimento político. Assim, percebe-se que a pluralidade e a igualdade humanas são relativas e se apresentam como um paradoxo que cabe à esfera política encarar e discutir. “A igualdade, [...] longe de estar ligada à justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade: ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de governar e mover-se em uma esfera na qual não existiam governar nem ser governado.” (ARENDT, 2010, p. 39).

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Neste momento é oportuno tecer algumas considerações acerca daqueles que viviam fora da polis. Nesse sentido, quando os gregos diziam que os escravos e os bárbaros era aneu logou, isto é, não tinham o domínio da palavra, queriam dizer que os mesmos estavam impossibilitados da conversa livre.

[...] Na mesma situação encontra-se o déspota que só conhece o ordenar; para poder conversar, ele precisava de outros de categoria igual à dele. Portanto, para a liberdade não se precisava de uma democracia igualitária no sentido moderno, mas sim de uma esfera limitada de maneira estreitamente oligárquica ou aristocrática, na qual pelo menos os poucos ou os melhores se relacionassem entre si como iguais entre iguais (ARENDT, 2004a, p. 49, grifo nosso).

Cabe lembrar que os espaços públicos e privados estavam muito bem distinguidos para os gregos, pois no âmbito privado, cada homem livre era o senhor, e todas as definições eram por ele delegadas, já que a palavra e a autoridade do patriarca estavam imbuídas pelo lugar que ele ocupava. No momento em que adentrava na Ágora essa posição de autoridade era abandonada, pois nela todos se relacionavam como iguais. Em seu livro A Política, Aristóteles (2007, p. 22) caracteriza ambas as situações da autoridade nos dois âmbitos da vida: “a autoridade doméstica é uma monarquia, [...] toda família é governada por um só: a autoridade civil ou política é aquela que governa homens livres e iguais.” Orgulhosos de serem cidadãos livres, os atenienses talvez ainda sintam mais orgulho de serem cidadãos iguais. A igualdade é mesmo, para eles, a condição da liberdade.

Não obstante, conforme Arendt (2010, pp. 28-29), com o surgimento das cidades-Estado o homem recebera, “[...] além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma nítida diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon).”

É necessário, portanto, entender essas duas esferas para compreender a condição de cidadão que se constituiu na esfera pública da polis grega e que inspirou a autora em suas reflexões acerca da condição humana.

1.2.1 A esfera pública

Num primeiro momento, para Arendt (2010), o termo “público” denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas não completamente idênticos. Primeiro, tudo aquilo que aparece no público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Entrar na esfera pública significa sair da esfera privada e estar exposto aos olhares do mundo. Conforme a

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autora, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós – constitui a realidade. No mesmo sentido, “[...] toda vez que falamos de coisas que estão ligadas ao nosso íntimo, trazemo-las para uma esfera, onde assumirão uma espécie de realidade que, a despeito de sua intensidade, elas jamais poderiam ter tido antes.” (ARENDT, 2010, p. 61).

Não obstante, sobre a aparência do homem na esfera pública, Arendt (2010, pp. 61-62) considera que,

A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos; e embora a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do surgimento da era moderna e do concomitante declínio do domínio público, sempre intensificará e enriquecerá grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, essa intensificação sempre ocorre à custa da garantia da realidade do mundo e dos homens.

A autora alerta, porém, que há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e radiante da constante presença de outros na cena pública, pois, nesta, só pode ser tolerado o que é considerado relevante, digno de ser visto e também ouvido. Assim, o irrelevante se torna automaticamente um assunto da esfera privada (ARENDT, 2010, pp. 63-64):

O que o domínio público considera irrelevante pode ter um encanto tão extraordinário e contagiante que todo um povo pode adotá-lo como modo de vida, sem com isso alterar-lhe o caráter essencialmente privado. [...] esse alargamento do privado [...] não o torna público, não constitui um domínio público, mas pelo contrário, significa [...] que o domínio público foi quase completamente minguado, de modo que, por toda parte, a grandeza cedeu lugar ao encanto; pois, embora o domínio público possa ser vasto, não pode ser encantador, precisamente porque é incapaz de abrigar o irrelevante.

Em relação a esta primeira característica do mundo público constata-se que público significa aparência, visibilidade, o que pode ser visto e ouvido pelo maior número de pessoas possível, é comunicável pois que relevante. Por isso, as coisas irrelevantes, assim como os sentimentos, pensamentos e paixões, mesmo que intensos, não pertencem à esfera pública. A aparência e a relevância são requisitos essenciais para que algo permaneça neste espaço.

Num segundo momento, o termo “público” passa a significar o próprio mundo, no instante em que é comum a todos os homens e diferente do lugar que privadamente ali se possui. Claro que esse mundo não é idêntico à Terra ou à natureza, enquanto espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Tem a ver, antes, com o artefato humano, com o que é fabricado pelas mãos do ser humano, assim como os negócios realizados entre aqueles que habitam o mundo feito pelo homem (ARENDT, 2010).

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A espera pública, enquanto mundo comum, baseia-se na presença dos outros e evita que um caia sobre os outros. Assim, “[...] o que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvidas, [...] mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las, relacioná-las e separá-las.” (ARENDT, 2010, p. 64). A autora entende que o princípio da caridade (conceito de Agostinho) teria sido o único desenvolvido a fim de propor uma comunidade que permaneça unida. Essa caridade estaria presente entre todas as pessoas, guiando-as, sejam elas santas ou criminosas. Para isso basta que se conceba que o mundo está condenado, assim como toda atividade que nele será realizada, com a ressalva quamdiu mundus durat (“enquanto dura o mundo”) (ARENDT, 2010).

A não mundanidade como um fenômeno político só seria possível se derivada da premissa de que as ações só são exercidas no mundo que, por sua vez, não durará. Calcando-se nesta noção, Arendt (2010) entende que é quase inevitável que esse desapego possa, de uma forma ou outra, dominar a cena política. Foi exatamente isso que teria acontecido após a queda do Império Romano e, visivelmente, estaria acontecendo hodiernamente.

O pensar do espaço público, segundo Arendt (2010), seja ele o espaço da ação, da liberdade, da pluralidade, da revelação, do aparecimento e do comprometimento de cada cidadão em viver na e para a polis, necessita exclusivamente da permanência e da relação entre os homens nesse espaço. Destarte, se o mundo deve conter um espaço público, não deve ser construído apenas pelas pessoas que estão vivas, mas tem que transcender a duração da vida dos homens mortais.

Arendt (2010, p. 67) explica que se não transcender essa imortalidade terrena, não há possibilidade de nenhum mundo público, pois “[...] o mundo comum é aquilo que adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos”, isto é, transcende o passado como também o futuro, está antes de nós e sobreviverá a nossa breve permanência nele. É isso que temos em comum com aqueles que vivem conosco, que estiveram antes de nós e que virão depois de nós, pois, esse mundo só pode existir ou sobreviver ao vir e ir das gerações na medida em que elas aparecem em público. Assim, “[...] é a publicidade do domínio público que pode absorver e fazer brilhar por séculos tudo o que os homens venham a querer preservar da ruína natural do tempo.” (ARENDT, 2010, p. 67).

Ademais, o espaço público depende da presença e da relação entre os homens. É fundamental ser visto e ser ouvido sem mudar ou perder a identidade na mais completa diversidade para que a realidade do mundo possa ser real e verdadeira. Caso contrário, o mundo comum termina quando é visto apenas sob um aspecto e quando se permite apresentar-lhe apenas uma única perspectiva.

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1.2.2 A esfera privada

A esfera privada é a esfera da casa (oikos), da família e daquilo que é próprio (idion) ao homem. O termo “privado” tem significado, em sua acepção original, de privativo. Assim, viver uma vida de forma privada é estar privado daquilo que é essencial a uma vida considerada humana.

[...] estar privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação objetiva com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, [...] de realizar algo mais permanente que a própria vida [...] privação da privacidade reside na ausência de outros, [...] o homem privado não aparece [...]. (ARENDT, 2010, p. 71, grifo nosso).

Diante desse contexto, cabe lembrar que é extraordinária a dificuldade que existe em compreender a divisão decisiva entre aquilo que compete à esfera pública e aquilo que faz parte da esfera privada, entre a esfera da polis e a esfera da família e, por fim, “[...] entre as atividades relativas a um mundo comum e aquelas relativas à manutenção da vida, que a via como axiomática e evidente por si mesma.” (ARENDT, 2010, p. 34).

Essa dificuldade de se compreender a distinção das esferas se dá pelo fato de o entendimento da linha divisória estar difusa, e é enxergada como uma comunidade política ou um corpo de povos como uma família, na qual os assuntos diários devem ser cuidados por uma gigantesca administração doméstica de âmbito nacional. Assim,

O pensamento científico que corresponde a esse desdobramento já não é a ciência política, e sim a ‘economia nacional’ ou a ‘economia social’, ou, ainda, a

Volkeswirtschaft, todas as quais indicam uma espécie de ‘administração doméstica

coletiva’; o que chamamos de ‘sociedade’ é o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada ‘nação’. (ARENDT, 2010, p. 34).

Do mesmo modo, é difícil compreender que, segundo o pensamento dos antigos sobre esses assuntos, o próprio termo “economia política” teria sido contraditório, pois o que era “econômico”, relacionado à vida do indivíduo e à sobrevivência da espécie não era assunto político, mas doméstico por definição (ARENDT, 2010). Nesse sentido, a autora comenta que:

O que impediu a polis de violar as vidas privadas dos seus cidadãos, e a fez ver como sagrados os limites que cercavam cada propriedade, não foi o respeito pela propriedade privada tal como a concebemos, mas o fato de que, sem possuir uma casa, um homem não podia participar dos assuntos do mundo porque não tinha nele lugar algum que fosse propriamente seu. (ARENDT, 2010, p. 35).

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Assim, é possível perceber que a distinção da esfera do lar está no fato de que nela os homens viviam em conjunto por suas carências e necessidades. E, portanto, segundo Arendt (2010, p. 36), “a comunidade natural do lar nascia da necessidade, e a necessidade governava todas as atividades realizadas nela.” Enquanto isso, a esfera da polis era a esfera da liberdade, e se havia alguma relação entre as duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida do lar compunha a condição óbvia para que houvesse a liberdade da polis.

Desse modo, segundo Arendt (2010), o que os filósofos gregos tinham como verdade, por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade estava presente exclusivamente na esfera política, enquanto a força e a violência são justificadas na esfera privada por serem os únicos meios de vencer a necessidade e tornar-se livre. Nesse contexto, a liberdade do cidadão lhe conferia lugar na esfera pública onde não havia desigualdade. Conforme a autora,

Uma vez que todos os seres humanos são sujeitos à necessidade, têm o direito de empregar a violência contra os outros; violência é o ato pré-político de liberar-se da necessidade da vida para conquistar a liberdade do mundo. Essa liberdade é condição essencial daquilo que os gregos chamavam de felicidade, eudaimonia, que era um estado objetivo dependente, em primeiro lugar, de riqueza e de saúde. Ser pobre ou ter má saúde significava estar sujeito à necessidade física, e ser um escravo significava estar sujeito, também, à violência praticada pelo homem. (ARENDT, 2010, p. 37).

Difere, assim, da esfera privada, que era o espaço da desigualdade (no sentido de não viver entre iguais, pois na pois só se conhecia iguais). Desse modo, pode-se inferir que, na esfera do lar, a liberdade não existia, pois o chefe da casa, seu governante, só era considerado livre no momento em que tinha o poder de deixar o lar e ingressar na esfera pública, no qual todos eram iguais. Aqui, o conceito de igualdade não estava ligado ao conceito de justiça, como nos tempos modernos.

O problema hoje, reside no fato de se vincular “[...] à igualdade o conceito de justiça e não o de liberdade e, desse modo, compreendemos mal a expressão grega para uma constituição livre, a isonomia, em nosso sentido de igualdade perante a lei.” (ARENDT, 2004a, p. 49). A isonomia, porém, não se refere à igualdade de todos perante a lei, nem que a lei seja igual para todos, mas sim, “[...] que todos têm o mesmo direito à atividade política; e essa atividade na polis era, de preferência, uma atividade da conversa mútua.” (ARENDT, 2004a, p. 49).

Outra característica de quem deixa a esfera privada para dedicar a vida aos assuntos de interesse comum era a coragem. Adentrar na esfera pública exigia coragem pois, no lar, os indivíduos se preocupavam com a vida e a sobrevivência. Sobre a coragem do cidadão em ingressar na esfera pública, Arendt (2010, pp. 43-44) esclarece que:

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Quem ingressasse no domínio público deveria, [...] estar disposto a arriscar a própria vida; o excessivo amor à vida era um obstáculo à liberdade e sinal inconfundível de servilismo. A coragem, portanto, tornou-se a virtude política por excelência, e só aqueles que a possuíam podiam ser admitidos em uma associação que era política em conteúdo e propósito e que por isso mesmo transcendia o mero estar junto imposto igualmente a todos – escravos, bárbaros e gregos – pelas premências da vida.

Arendt (2010) afirma que a vida definida como “boa” por Aristóteles era aquela do cidadão, justamente porque, já dominadas as necessidades de meramente viver, tendo se libertado do trabalho e também da obra, e superando o anseio inato de sobreviver, que é comum a todos os seres vivos, esta deixava de ser limitada ao processo biológico da vida. E, assim, o homem estava apto para adentrar na esfera pública e praticar sua cidadania.

1.3 A ESFERA SOCIAL E O SURGIMENTO DAS SOCIEDADES DE MASSA

O surgimento da esfera social na Era Moderna resultou na transposição da esfera privada para o mundo público, onde não há pluralidade, nem diversidade de opiniões, apenas a conformação das necessidades dos indivíduos privados.

Para Arendt (2010), o surgimento da sociedade trouxe consigo a ascensão da administração do lar, de suas atividades, seus problemas e dispositivos organizacionais do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública. Esse fato não apenas turvou a antiga fronteira entre a esfera privada e a pública, mas também alterou de modo significativo os dois termos e a sua importância na vida de cada cidadão, ao ponto de torná-los quase irreconhecíveis, isto é, toda satisfação das necessidades passou a ser um assunto comum.

Hoje, não apenas não concordaríamos com os gregos que uma vida vivida na privatividade do que é ‘próprio ao indivíduo’ (idion), fora do mundo do que é comum, é ‘idiota’ por definição, mas tampouco concordaríamos com os romanos, para os quais a privatividade ofereceria um refúgio apenas temporário dos assuntos da res publica. O que hoje chamamos de privado é uma esfera de intimidade cujos primórdios podemos remeter aos últimos períodos da civilização romana, embora dificilmente a qualquer período da Antiguidade grega, mas cujas peculiares de qualquer período anterior à Era Moderna. (ARENDT, 2010, p. 46).

Não obstante, hodiernamente, quando se fala em privatividade, não se pensa mais primeiramente em privação e, em parte, isso se deve ao enorme enriquecimento da esfera privada por meio do moderno individualismo. Parece ainda mais importante o fato de que a privatividade moderna é pelo menos nitidamente oposta ao domínio social – desconhecida dos antigos, que consideravam o seu conteúdo como assunto privado (ARENDT, 2010).

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Nesse contexto, um dos principais problemas que surgem na esfera social é a substituição da ação pelo comportamento ou homogeneização dos indivíduos. O homem vai substituindo o conflito pelo conforto, a busca do bem comum pelo crescimento social, até que as suas necessidades de ser são substituídas quase de forma completa pelo desejo de ter, de consumir a tudo e a si próprio, voltando ao estado de animal laborans, totalmente destituído de sua capacidade de ação.

O atual fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, passa a excluir qualquer possibilidade de ação que outrora era excluída somente da esfera privada. O que a sociedade espera é um certo tipo de comportamento de seus membros, impondo-lhes regras e normas a fim de tornar o seu comportamento homogêneo.

Diante da transformação nas esferas privada e pública, a gradual substituição da ação pelo comportamento resultou no surgimento da sociedade de massas. Isto significa que os grupos sociais existentes foram absorvidos por uma única sociedade, tal como as integrações familiares anteriores, isto é, aquilo que antes ficava restrito à esfera privada passou a adentrar e ser resolvido na esfera social.

Com o advento da sociedade de massas, a esfera social passou a controlar, com a mesma força, os indivíduos de todas as comunidades. Assim, a sociedade se iguala, e a vitória do mundo moderno somente possui reconhecimento político e jurídico no fato de que a sociedade conquistou a esfera pública, e que a distinção e a diferença tornaram-se assuntos da esfera privada (ARENDT, 2010).

Na Grécia Antiga, a igualdade era um fenômeno experimentado por poucos homens que se livravam das suas necessidades e podiam adentrar na esfera pública, onde não havia hierarquia e, por isso, estavam entre seus iguais. Essa igualdade, porém, que dava o direito de todos se revelarem mediante ações e palavras, provocava no cidadão um desejo de se distinguir dos demais a partir de feitos singulares. Já na Era Moderna o conceito de igualdade está baseado no conformismo inerente à sociedade, e se concretiza porque o comportamento substituiu o agir, tornando-se uma igualdade tutelada (ARENDT, 2010).

Desse modo, as leis que garantem a existência são aumentadas a cada dia, a fim de regular cada vez mais o comportamento do indivíduo, reduzindo a sua capacidade de ação e, consequentemente, afastando-o da esfera pública. Para a autora, a política é vista como uma esfera inferior, o que leva a maioria dos indivíduos a negligenciar a esfera política e não consiga mais ver relação alguma com a liberdade. Diante dessas contingências, Arendt (1993, p. 117) ressalta que a resposta para o sentido da política “não é hoje em dia nem evidente nem imediatamente clara”.

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Para Arendt (2010), a esfera pública era o único espaço onde os homens podiam mostrar quem realmente eram e o quanto eram insubstituíveis. Diferente da polis grega, a Era Moderna não pode lidar com a democracia direta experienciada pelas cidades-Estado, pois a população do Estado-Nação é demasiada grande para essa configuração. Politicamente, isso denota que quanto maior a população do corpo político, maior a chance de que a esfera social, e não a política, passe a constituir a esfera pública. Os gregos tinham a plena consciência de que a polis baseava-se na ação e no discurso e só conseguiria sobreviver se o número de cidadãos continuasse limitado. Assim, “grande número de pessoas amontoadas desenvolvem uma inclinação quase irresistível na direção do despotismo, seja o despotismo de uma pessoa ou do governo da maioria.” (ARENDT, 2010, p. 52).

Segundo a autora, em um tempo consideravelmente curto, a esfera social transformou todas as comunidades da Era Moderna em sociedades de funcionários e trabalhadores, as quais se baseavam em apenas uma única atividade para sobreviver. Arendt (2010) considera que a constituição de uma sociedade de trabalhadores não precisa se fundamentar apenas em operários, mas requer que todos os indivíduos passem a valorizar o que realizam como um modo de sustentar as suas próprias vidas e também a vida de suas famílias6.

Assim, o domínio social, local onde o processo da vida estabeleceu seu próprio locus público, desencadeou um crescimento artificial ou, por assim dizer, natural, contra esse crescimento que a esfera privada e a pública se mostram incapazes de defender. “A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da vida, [...] adquire importância pública, e na qual se permite que as atividades relacionadas com a mera sobrevivência apareçam em público.” (ARENDT, 2010, p. 56).

1.4 A TRANSFORMAÇÃO DO CIDADÃO EM CONSUMIDOR

Ressalta-se que a autora traçou seu caminho por uma lógica organizada em três etapas com o intuito de entender melhor a concepção de cidadão e cidadania. Primeiramente, como já foi supracitado, Arendt (2010) buscou demonstrar como o homem grego que vivia na esfera privada do lar conseguiria alcançar seu espaço na esfera pública da polis e, assim, ser considerado cidadão. Por conseguinte, a autora explica que a ascensão da esfera social na Era Moderna e, em curto tempo, a sobreposição desta esfera sobre as esferas privada e pública foi

6 Cabe ao homem pensar que lugar vai ter a educação neste imaginário: para o capitalismo, o mercado; para o

marxismo – crítica social, a revolução social; para a democracia republicana, deve potencializar a liberdade e o bem comum.

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transformando esse cidadão pertencente à esfera pública em um indivíduo regido apenas pelo consumo. Por fim, na terceira etapa, a autora se dedica à sua argumentação para mostrar como esse cidadão que esquece radicalmente da sua capacidade de ação e discurso se torna um consumidor voraz.

Assim, nesta terceira parte, Arendt (2010) busca retomar as características do trabalho e do fabricar a fim de dar sustentação à sua argumentação. A autora parte da premissa que durante a Era Moderna ninguém conseguiu estabelecer uma teoria que pudesse apresentar uma clara distinção entre aquilo que foi chamado de animal laborans e homo faber, isto é, entre o que foi considerado o trabalho do corpo humano e a obra feita por suas mãos (ARENDT, 2010). Segundo a autora, o trabalho é fruto do esforço físico, enquanto a obra é compreendida como resultado da materialização de uma ideia.

No novo contexto estabelecido, onde o trabalho passa a prevalecer sobre as demais atividades da esfera social, a grosso modo, os objetos de uso passam a ser considerados como bens de consumo. Assim, a autora afirma que:

Uma cadeira ou uma mesa sejam então consumidas tão rapidamente quanto um vestido, e um vestido se desgaste quase tão rapidamente quanto o alimento. Essa forma de relacionamento com as coisas do mundo, ademais, é perfeitamente adequada ao modo como elas são produzidas. A Revolução Industrial substituiu todo o artesanato pelo trabalho, e o resultado foi que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do trabalho, cujo destino natural é serem consumidos, ao invés de produtos da obra, que se destinam a serem usados. (ARENDT, 2010, p. 154).

Não obstante, “a interminabilidade do processo de trabalho é garantida pelas sempre recorrentes necessidades de consumo [...] a interminabilidade da produção só pode ser garantida se os seus produtos perderem o caráter de objetos de uso e se tornarem cada vez mais objetos de consumo” (ARENDT, 2010, p. 155), ou ainda, se o ritmo do uso constante for tão forte que a diferença objetiva entre o uso e o consumo, entre a durabilidade dos objetos e o rápido ir e vir dos bens de consumo, reduzir-se até se tornar insignificante, o que, em última instância transforma o cidadão em consumidor.

É claro que todo indivíduo necessita consumir para viver, essa é, sem dúvida, a finalidade do trabalho e, por esse fato, faz parte da vita activa. A crítica de Arendt (2010), contudo, baseia-se no sentido de que o consumidor não consome somente para viver, mas passa a viver para consumir. Assim, segundo ela:

[...] nossa necessidade de substituir cada vez mais depressa as coisas mundanas que nos rodeiam, já não podemos nos permitir usá-las, respeitar e preservar sua inerente durabilidade; temos de consumir, devorar, por assim dizer, nossas casas, nossas mobílias, nossos carros, como se estes fossem as “coisas boas” da natureza que se

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deteriorariam inaproveitadas se não fossem arrastadas rapidamente para o ciclo interminável do metabolismo do homem com a natureza. É como se houvéssemos rompido à força as fronteiras distintivas que protegiam o mundo, o artifício humano, da natureza, tanto o processo biológico que prossegue dentro dele quanto os processos naturais cíclicos que o rodeiam, entregando-lhes e abandonando-lhes a sempre ameaçada estabilidade de um mundo humano. (ARENDT, 2010, p. 155-156).

Cabe ressaltar que a necessidade que o ser humano tem em saciar as suas carências básicas não é ignorado por Arendt (2010), sendo esta uma pré-condição para que o indivíduo consiga alcançar a esfera pública e exercer a sua cidadania. Desse modo, não se pode pensar em alguém que, estando com fome se dedica a discutir assuntos de interesse comum. Saciar, contudo, essas necessidades e aumentar o seu poder de consumo para que consiga ter mais superfluidades contemporâneas ajuda de modo direto a manter o homem vivo, mas não ativo – no sentido de agir – fazendo dele um animal social e não um cidadão.

Ainda segundo Arendt (2010, pp. 165-166),

A verdade bastante incômoda de tudo isso é que o triunfo do mundo moderno sobre a necessidade se deve à emancipação do trabalho, isto é, ao fato de que o animal

laborans foi admitido no domínio público; e, no entanto, enquanto o animal laborans

continuar de posse dele, não poderá existir verdadeiro domínio público, mas apenas atividades privadas exibidas à luz do dia. O resultado é aquilo que eufemisticamente é chamado de cultura de massas; e o seu arraigado problema é uma infelicidade universal, devida, de um lado, ao problemático equilíbrio entre trabalho e consumo, e de outro, à persistente demanda do animal laborans de obtenção da felicidade que só pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e de regeneração, de dor e de alijamento da dor atingem um perfeito equilíbrio.

O problema não está no adentrar do trabalhador – que é cidadão – na esfera pública, mas sim, que o modo de viver do animal laborans passe a tomar conta da esfera dos assuntos de interesse comum. Ao observar a Era Moderna, do mesmo modo como fez Arendt, percebe-se o advento da sociedade de massas, a transformação do indivíduo em mero consumidor (animal laborans), a perda de sua capacidade de agir e, assim, passa-se a suspeitar de um fatalismo quase irreversível. A autora, porém, está mais centrada em acusar os processos históricos e sociais que tiraram o homem da esfera pública ao invés de dar alguma receita pronta para um (re)fazer político, quebrando, assim, a lógica do fatalismo e passando a considerar a natalidade como uma possibilidade de (re)começo. Assim, segundo ela:

O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidades das leis estatísticas e à sua probabilidade que, para todos os fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre aparece na forma de milagre. O fato de o homem ser capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, [...] ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isso, [...] só é possível porque cada homem é único, de sorte que cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo. Desse alguém que é único pode-se dizer verdadeiramente que antes dele não havia ninguém (ARENDT, 2010, p. 222-223).

Referências

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