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O CONCEITO DE CIDADANIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL

Inicia-se a análise do conceito de cidadania a partir do que institui a Constituição Federal brasileira de 1988 e, mesmo que não seja um documento específico da área de Educação, ela se constitui no vértice que orienta a criação de todos os outros documentos legais, inclusive, aqueles que regulam a Educação no Brasil. Desse modo, se um documento passa a ignorar ou ferir a Carta Magna, compromete a sua eficácia e se torna sem efeito por sua inconstitucionalidade, como reiteram Canotilho e Moreira (1991, p. 45): “a Constituição ocupa a primeira posição da escala hierárquica no que se refere ao ordenamento jurídico”. Assim, ainda segundo os autores:

Isto quer dizer, por um lado, que ela não pode ser subordinada a qualquer outro parâmetro normativo supostamente anterior ou superior e, por outro lado, que todas as outras normas hão de conformar-se com ela. [Desse modo,] [...] toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo, de modo a eliminar as normas que se não conformem com ela.

Assim, estabelecida a importância do texto constitucional para este estudo, inicia-se a busca pela compreensão do conceito de cidadania, abordando o termo e a importância de possuir uma Constituição. Num segundo momento far-se-á uma incursão no texto da Carta Magna de 1988, a fim de buscar as principais ocorrências do termo cidadania, destacando o seu art. 205, que apresenta a referência específica aos objetivos da educação brasileira. Por fim, far-se-á a triangulação das informações coletadas para apresentar qual ou quais os conceitos de cidadania foram obtidos.

Após duas décadas marcadas pela Ditadura Militar e pelas violações aos direitos humanos, surgiu no cenário brasileiro a Carta Magna de 1988. Seu texto apresenta as marcas de um processo constituinte em que estão presentes várias vozes dissonantes, testemunhando um processo democrático que começava a se instaurar.

Distintos movimentos sociais organizados e outros segmentos da sociedade escolheram seus representantes legalmente votados e eleitos para a participação da Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1º de fevereiro de 1987, composta por 559 constituintes, deputados e senadores.

Cabe ressaltar que a Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, deixa caracterizada a influência de documentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e de tratados internacionais, como o Pacto Internacional sobre os

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos que, posteriormente foram ratificados.

Para Castro (2008), a Constituição Federal brasileira de 1988 possui pontos principais, que são: a República representativa, federativa e presidencialista; o fortalecimento e a ampliação dos direitos considerados individuais e das liberdades públicas; o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; o voto permitido e também facultativo para analfabetos e maiores de 16 anos; a educação obrigatória e gratuita, além de temas voltados ao meio ambiente e à preservação de obras e bens históricos, artísticos e culturais. Desse modo, é possível afirmar que a Constituição Federal de 1988 ficou conhecida como a “Constituição Cidadã”.

É importante destacar que a expressão “cidadania” é empregada com diversos sentidos ao longo do documento constitucional, como será possível observar doravante. O texto que segue dedica-se a apontar as principais presenças do termo “cidadania” para, em seguida, explicar qual o conceito que melhor se adapta ao documento.

Em seu art. 1º, inciso II, a Constituição Federal de 1988 afirma que a República Federativa do Brasil é constituída em Estado democrático de direito, tem a cidadania como um de seus principais fundamentos. Do mesmo modo, a expressão também é utilizada no art. 5º, inciso LXXI, ao afirmar que “conceder-se-á mandado de injunção19 sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, a soberania e à cidadania.” Ainda no art. 5º, o inciso LXXVII apresenta o cidadão como parte legítima para propor ação popular.

Posteriormente, o termo cidadania aparece no art. 22, inciso XIII, quando é estabelecida a competência privativa da união para legislar sobre “nacionalidade, cidadania e naturalização”. Enquanto isso, no art. 58 assegura-se, tanto quanto possível, às comissões parlamentares: solicitar depoimentos de qualquer autoridade ou cidadão.

No art. 61, a iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão, assim, garante aos cidadãos a iniciativa. Nos arts. 62 e 68 são encontrados os textos que passam a vedar a edição de medidas provisórias e leis delegadas, respectivamente, sobre nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral.

19 Mando de Injunção é o processo que permite pedir a regulamentação de uma norma da Constituição quando os

Poderes competentes não o fizerem. Este pedido é realizado para garantir o direito de alguém prejudicado pela omissão. Glossário Jurídico do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/ glossario/verVerbete.asp?letra=M&id=188. Acesso em: 12 abr. 2016.

Na sequência, o termo cidadania aparece, também, nos arts. 74, 89, 98, 101, 103-A e 131, nas mesmas afirmativas citadas nos parágrafos anteriores, porém, no art. 205, o termo trata sobre a finalidade da educação:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (grifo nosso).

Como se pode perceber, o termo cidadania aparece inúmeras vezes na Constituição Federal de 1988, o que denota certa valorização do tema no texto do documento. Assim, além do termo cidadania aparecer como sinônimo de nacionalidade, ele está relacionado aos direitos políticos, isto é, ao direito de votar e ser votado. Na Carta Magna de 1988, o conceito de cidadania está relacionado à ideia de ter nascido em solo pátrio, ou se naturalizar brasileiro e, posteriormente, está relacionado ao exercício dos direitos políticos, deixando clara a referência do direito de votar e ser votado, requisito fundamental para que seja possível assumir cargos públicos.

Para Silva (2008, p. 104), o termo cidadania não compreende apenas os direitos políticos. Segundo o autor, é necessário identificar um novo significado de cidadania, assim:

A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXVII), significa aqui, também, que o funcionamento do estado estará submetido à vontade popular.

De todos os artigos da Constituição Federal de 1988, o conceito de cidadania presente no art. 205 interessa particularmente a este estudo por conter o objetivo da Educação. Da mesma forma se faz presente nos próximos documentos com o objetivo de provar o seu alinhamento com o texto da Constituição, fazendo desse artigo mais que uma referência, um ponto de partida sobre o qual se alicerçam os documentos que regulam a Educação no Brasil.

Inicia-se a análise do art. 205, cujo texto tem algumas referências podem contribuir na compreensão do conceito de cidadania como uma das finalidades da Educação atual.

A primeira frase do artigo afirma que “A educação [é] direito de todos”, e pode ser comparado com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que no seu art. 26, § 1º, expressa: “Toda pessoa tem direito à educação”. O ser humano, portanto, enquanto portador de direitos naturais, está acima do conceito de cidadão, neste sentido, compreendido como o conjunto dos direitos civis, políticos e sociais. Tais direitos, antes apenas recomendações,

passam a ser uma questão legal, portanto, o Estado passa a se responsabilizar pela educação, por isso o texto reitera: “Educação, direito de todos e dever do Estado e da Família [...].”

A educação como um “dever do Estado” se reporta à questão denunciada por Arendt (1989), quando esclarece que para conseguir acessar os direitos humanos, alterados para direitos fundamentais, não basta ser um humano, é preciso também existir enquanto cidadão. Mesmo que seja estrangeiro, é preciso ter referências legais do seu país de procedência para, posteriormente, ter acesso à educação. Nenhuma inscrição/matrícula é realizada sem os documentos civis – sem legalidade –, do contrário, o indivíduo simplesmente não existe e a ele não se aplica nenhum direito. Decorre daí um dos sentidos da expressão de Arendt (1989) acerca da importância de “Ter direito a ter direitos”, ou seja, pertencer a um lugar no mundo.

Mas este não é somente dever do Estado, a família também é corresponsável pela garantia do acesso à educação, pois a maioria dos estudantes são muito jovens e precisam da tutela dos pais ou de parentes próximos. Do mesmo modo, a educação ainda será promovida e incentivada em colaboração com a sociedade, para que suas finalidades sejam cumpridas. Sobre as finalidades da educação, pode-se destacar três objetivos presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: primeiro, o pleno desenvolvimento do indivíduo; segundo, o seu preparo para o exercício da cidadania; e, terceiro, a sua qualificação para o trabalho. Esses objetivos aparecem, também, no art. 26, parágrafos 1º e 2º:

[...] A instrução técnica e profissional haverá de ser generalizada [...]. A educação terá por objeto o pleno desenvolvimento da personalidade humana e o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; favorecerá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos étnicos ou religiosos; e promoverá o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. Os pais terão direito preferencial para escolher o tipo de educação que se dará a seus filhos.

É importante observar que, embora os objetivos da educação estejam em sintonia, o texto não apresenta a palavra cidadania, porém o conceito parece estar dissolvido no segundo parágrafo, cuja ênfase recai sobre os direitos humanos e às liberdades. Já os outros dois objetivos se apresentam de forma mais coerente, uma vez que a qualificação para o trabalho está relacionada à afirmação de que a instrução técnica e profissional haverá de ser generalizada, enquanto o pleno desenvolvimento da pessoa corresponde à afirmação de que a educação terá por objetivo o pleno desenvolvimento humano.

É possível constatar que a dimensão dos direitos sociais expressos na condição de direitos fundamentais trouxe maior ênfase aos direitos sociais e, de certo modo, cidadão ou cidadã é considerado muito mais como um ter direito aos mínimos existenciais (o mínimo de

educação, mínimo de saneamento básico, salário mínimo...) do que exercer um direito político que está muito além da obrigação de votar e ser votado. É certo que, sem as necessidades básicas com um mínimo de dignidade, não é possível se inserir na esfera pública e se tornar visível na pluralidade, por meio de palavras e ações. Não obstante, como já foi apresentado no primeiro capítulo deste estudo, deve ser por esta razão que Arendt (1989) afirma que, para acessar à esfera pública na Grécia Antiga era necessário o homem ser livre, ou seja, livre das necessidades, de certo modo, até mesmo para não se tornar um refém delas. O que Arendt (1989) quer destacar é que as demandas sociais podem ser atendidas por regimes não democráticos e republicanos, dispensando o exercício da cidadania, ou mesmo, pela falta de liberdade, torná-lo impossível.

A partir da análise do conceito de cidadania presente na Constituição Federal de 1988, entretanto, a dúvida que se apresenta é, em que medida acessar os direitos sociais garante uma maior participação na esfera política, na esfera decisória de poder? Assim, talvez, a educação possa funcionar como um dos elos que possibilite unir as esferas, pelo fato de que um dos seus objetivos presentes hodiernamente seja o preparo para a cidadania. Entende-se que é possível educar para o desabrochar das competências e o desenvolvimento humano, para o trabalho e o futuro exercício da cidadania, o que Arendt compreende como apresentar o mundo como ele é20. É impossível, contudo, querer educar para a cidadania sem contribuir com o indivíduo e, posteriormente, atuar politicamente na sociedade. O risco de se privilegiar apenas um dos objetivos da educação é suprimir os demais objetivos, isto é, a formação para a cidadania e o pleno desenvolvimento humano, dando-se maior ênfase à formação para o trabalho e à formação do consumidor em detrimento do cidadão.

Ao analisar a Constituição Federal de 1988, faz-se necessário investigar pelo menos mais dois documentos que são os pilares legais para a educação brasileira – a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) e o Plano Nacional de Educação (PNE). Assim, busca- se investigar o conceito de cidadania nesses documentos para, posteriormente, no último capítulo, compreendê-los à luz de Hannah Arendt. Além disso, o objetivo do trabalho é, também, apresentar e discutir a concepção de cidadania presente em obras de Paulo Freire e Dermeval Saviani, a fim de buscar complementariedades e divergências com o pensamento arendtiano.

2.4 O CONCEITO DE CIDADANIA NA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO