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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO

Neste capítulo buscou-se compreender o conceito de cidadania na obra A condição humana, de Hannah Arendt. No decorrer desta reflexão foi possível perceber que a concepção de cidadão é um conceito do homem que passa a adentrar na esfera pública e se ocupa da esfera decisória de poder. Assim, apesar de o cidadão ter praticamente sumido da esfera pública e ser gradativamente transformado em consumidor, ele não perdeu totalmente a sua capacidade de agir, pois o conceito de natalidade sempre traz consigo a possibilidade de uma ação que transforme, que (re)cria espaços e leva o homem a retomar o exercício de sua cidadania.

Nessa capacidade de agir está contida a esperança de congregar novamente os homens em uma esfera pública, onde as suas necessidades não estejam acima da liberdade e da coragem, que são fundamentais para experimentar a pluralidade inerente a uma vida pública. Assim, é na esfera pública que os homens usam palavras e exemplificam com exatidão a passagem do herói grego para o cidadão grego. As palavras expressam muito mais que ideias individuais, elas revelam a identidade de cada homem, distinguem cada indivíduo dos demais na pluralidade do mundo público. E, além de se revelarem por meio do agir e das palavras, os homens apenas podem dizer aos demais quem foram e quem são, mas jamais quem eles serão. Por isso, a História humana não possui autor, não tem princípio nem fim, e está aberta à liberdade de agir, de mudar e transformar o que era no que será.

A esfera pública é denominada por Arendt (2010) de espaço “entre”, ou seja, é o espaço da pluralidade que não exclui a voz e a vez de cada cidadão, antes disso, garante que cada cidadão tenha a liberdade de se expressar e persuadir os demais por meio do diálogo ao invés

da força física. Convencer o outro por meio do discurso e da ação confere poder ao homem e se congrega em torno de uma causa comum. Cabe lembrar que o poder não pode ser confundido com vigor, ou força, pois ambos podem ser aplicados na violência, mas jamais para inaugurar o poder.

O fim do poder e, consequentemente, da esfera pública, não advém, necessariamente, da violência física contra os homens, mas pode advir do isolamento dos indivíduos. Por isso, quando a esfera social se coloca sobre as esferas privada e pública na Era Moderna, o homem torna-se um animal social.

A esfera social traz consigo características da vida privada para a luz da esfera pública. Assim, são expostas intimidades e necessidades do indivíduo que causam sensação de isolamento, e ele passa a ser destituído da coragem e da liberdade, que são condições necessárias para adentrar no espaço público onde os homens se tornam cidadãos, tendo suas vidas destinadas à polis.

Com o advento da esfera social na Era Moderna a alienação do homem da vida pública fez com que o trabalho prevalecesse sobre a fabricação e a ação. Desse modo, surgiu a sociedade de massas, que transformou o animal social em um consumidor voraz.

O constante consumo não apenas isolou os homens, mas também os limitou à atividade do trabalho. Como resultado, o homem conseguiu aumentar o seu poder de consumo e ter coisas melhores, mas é fundamental esclarecer que este é um fator necessário para a sociedade de massas, onde os indivíduos se consumam ao consumirem. Esse consumo exacerbado pode até contribuir para a ascensão social do indivíduo, porém, não fundamentalmente para adentrar na esfera decisória.

Nesse contexto, chegou-se ao ponto-chave desta pesquisa, pois há suspeita de que o conceito de cidadania contido nos documentos que regulamentam a educação no Brasil tem priorizado essa dimensão social em detrimento da amplitude política no exercício da cidadania. Isto é, mesmo que a educação contribua para a redução da pobreza, que inclua os oprimidos, ela não garante a participação desses indivíduos na esfera pública, tampouco a sua formação crítica, pois eles vão precisar (re)pensar o seu lugar nessa sociedade de massa. Antes de tudo, porém, tem como prioridade preparar os indivíduos para atender de modo qualificado às demandas de um mercado sempre mais exigente e competidor.

O objetivo deste estudo não é negligenciar a esfera social em detrimento da participação, trata-se, porém, de compreender e perceber em que medida a educação no Brasil está baseada na esfera social, inserindo os indivíduos no mercado de trabalho e aumentando o seu poder de consumo. Também, a forma como o conceito de cidadania, que dá base a estes documentos,

busca (re)inserir os indivíduos nas esferas públicas, onde, por meio de suas palavras e ações podem participar ativamente dos destinos da cidade, exercendo sua cidadania.

Assim, é com este objetivo que no seguinte capítulo busca-se apresentar o que Arendt compreende por “a crise na educação”, e a distinção entre a educação e a política para, posteriormente, apresentar os documentos que regulam a educação brasileira. Em seguida, realiza-se um estudo parcial de algumas obras de Paulo Freire e Dermeval Saviani, as quais norteiam as políticas públicas da educação no Brasil e, desta forma, procede-se a análise entre o conceito de cidadania que eles abordam e as características apontadas por Arendt na construção do conceito de cidadania.

Nesse sentido, questiona-se: o que compõe a crise na educação? O que distingue a educação da política no pensamento arendtiano? Por que a natalidade é tida como a essência da educação? Como o conceito de cidadania contribui para que os indivíduos tenham garantia de voz e vez e não apenas a opção de votar? O conceito de cidadania convida os indivíduos a agir na dialogicidade com seus iguais em vez de se comportar a partir das regras pré-estabelecidas e os homogeneízam para facilitar o convívio? Qual a noção de cidadania presente nas obras de Paulo Freire e Dermeval Saviani? Essas são algumas questões norteadoras que se pretende abordar a seguir, ao analisar os textos de Arendt, os documentos de educação e algumas obras de Paulo Freire e Dermeval Saviani.

2 EDUCAÇÃO E CIDADANIA

Desde o século XVII o direito à educação, presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é a condição necessária para que os indivíduos consigam ter acesso aos direitos civis, políticos e sociais, isto é, se tornar um cidadão. Desse modo, cabe refletir sobre a relação entre educação e cidadania, partindo-se da concepção de educar apresentada por Arendt em sua obra Entre o passado e o futuro (2013). De acordo com autora, a educação

[...] é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2013, p. 247).

Não obstante, são inúmeras as obras de comentadores que apresentam reflexões sobre as obras de Hannah Arendt, entre eles, José Sérgio de Carvalho (2008), que apresenta reflexões sobre a educação em seu texto O declínio do sentido público da Educação. O autor explica que no momento em que Arendt se refere à educação, ela parte da premissa de que o nascer de cada novo ser humano possui sempre duas dimensões: o nascimento e a natalidade, pois a criança é ao mesmo tempo um novo ser na vida e também um novo ser no mundo.

Segundo as reflexões de Carvalho (2008, p. 419),

[...] o nascimento é a maneira pela qual a vida se renova e perpetua suas formas. Já a natalidade indica que cada ser humano, além de ser um novo ser na vida, é um novo ser em um mundo pré-existente, constituído por [...] tradições, realizações materiais e realizações simbólicas às quais atribuímos utilidade, valor e significado.

Percebe-se, assim, que para Arendt (2013), a educação é o ato de acolher os novos e familiarizá-los com o mundo, “[...] tornando-os aptos a dominar, apreciar e transformar as tradições culturais que formam a herança simbólica comum e pública.” (CARVALHO, 2008, p. 419). O termo educação, para Arendt (2013), é constituído na relação entre o mundo comum e público e os novos que chegam com a natalidade. Nesse sentido, a aprendizagem e o ensino justificam-se não somente por sua funcionalidade ou aplicação imediata, mas também pela sua competência formativa.

Se a criança não fosse um recém-chegado nesse mundo humano, porém simplesmente uma criatura viva ainda não concluída, a educação seria apenas uma função da vida e não teria que consistir em nada além da preocupação para com a preservação da vida e do treinamento e na prática do viver, que todos os animais assumem em relação a seus filhos. (ARENDT, 2013, p. 235).

Ademais, não se educa os novos apenas em função do processo vital ou ainda para que consigam satisfazer os seus desejos mas, principalmente, para que consigam desfrutar e recriar o mundo comum. Como são recém-chegados, primeiramente eles precisam conhecer o mundo para, em seguida, assumir a sua responsabilidade por ele. Nessa mesma perspectiva, em outro trabalho de Carvalho (2010), intitulado A liberdade educa ou a educação liberta? o autor explica que a educação tem por tarefa familiarizar os novos com as heranças históricas: a literatura, as artes, as ciências, a filosofia, os valores e as práticas sociais por meio dos quais foram legadas a compreensão do mundo e também a possibilidade do surgimento de novas formas de expressão.

O acesso à educação está intrinsecamente relacionado com a capacidade dos novos humanos exercerem de forma concreta a sua cidadania, a fim de que possam tomar parte nas decisões políticas e demais assuntos públicos. Para Habermas (1989), respeitar as diferenças, sem querer apenas obter sucesso por meio do convencimento, expor suas ideias, inovar em novos caminhos, ceder a um bem comum deveriam ser princípios mantidos e cultivados nos espaços escolares. Geralmente, os espaços educacionais são pensados e construídos para a sustentação de um sistema onde a intervenção do cidadão na esfera pública parece estar restrita apenas ao voto e não à dimensão política mais ampla defendida por Arendt.

Prossegue-se, agora, refletindo sobre os assuntos relacionados à esfera da educação. Para Arendt (2013), a crise na educação é reflexo das influências do rompimento do projeto da modernidade com a tradição, bem como do surgimento e fenômeno totalitário contemporâneo. A aproximação com os textos A crise na educação e Reflexões sobre Little Rock10, objetivam refletir sobre a crise na educação, a separação entre a educação e a política, a compreensão da tradição e da autoridade no espaço educacional e sobre a responsabilidade dos adultos frente ao mundo e às crianças. A autora propõe duas indagações fundamentais: primeiro, “Quais são os aspectos do mundo moderno e de sua crise que se revelaram na crise da educação [...]”? e, em segundo lugar, “O que podemos aprender a partir dessa crise [...] sobre o papel que a

10 Trata-se de uma análise crítica sobre a tentativa de integração racial na capital do Estado de Arkansas (USA),

onde o Estado tentou impor por meio das escolas, uma integração, porém, sem rever as leis que eram, em princípio, o sustentáculo do racismo. O resultado não poderia ter sido outro – a humilhação de crianças negras à rejeição branca.

educação desempenha em toda a civilização, isto é, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana”? (ARENDT, 2013, p. 234, grifo nosso).