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(1)

filosofia contemporânea

carlos joão correia

o

2015-2016 1ºSemestre

(2)

"Há quatro características dos fenómenos mentais que

os impossibilitou de se inserirem na nossa concepção

«científica» do Mundo enquanto feito de coisas

materiais. E são estas quatro características que

tornaram realmente difícil o problema Mente-Corpo: são

tão embaraçosas que levaram muitos pensadores, na

Filosofia, na Psicologia e na Inteligência Artificial, a

dizer coisas estranhas e implausíveis acerca da Mente.

John Searle

(3)

[1] A mais importante destas características é a consciência. E, no momento em que estou a escrever isto, e vocês, no momento de a lerem, somos ambos conscientes. É um facto evidente que o Mundo contém tais estados e eventos mentais conscientes, mas é difícil ver como é que meros sistemas físicos podem ter consciência. [...] Penso que a existência da consciência deveria ser espantosa para nós. É bastante fácil imaginar o Universo sem ela, mas se o fizermos, veremos que imaginámos um universo verdadeiramente sem sentido. A consciência é o facto central da existência especificamente humana, porque sem ela todos os outros aspectos especificamente humanos da nossa existência - linguagem, amor, humor e assim por diante - seriam impossíveis. A propósito, penso que é algo escandaloso que as discussões contemporâneas na Filosofia e na Psicologia tenham tão pouca coisa de interessante a dizer-nos sobre a consciência.

John Searle

(4)

[2] A segunda característica intratável da Mente é o que os filósofos e psicólogos chamam de «intencionalidade», a característica pela qual os nossos estados mentais se dirigem a, ou são acerca de, ou se referem a, ou são de objectos e estados de coisas diferentes deles mesmos. A propósito, «intencionalidade» não se refere apenas a intenções, mas também a crenças, desejos, esperanças, temores, amor, ódio, prazer, desgosto, vergonha, orgulho, irritação, divertimento, e todos aqueles estados mentais (quer conscientes ou inconscientes) que se referem a, ou são acerca do Mundo, diverso da mente. Ora a questão acerca da «intencionalidade» tem muita semelhança com a questão acerca da consciência. Como é que esta substância dentro da minha cabeça pode ser acerca de alguma

coisa? Como é que ela se pode referir a algo? Ao fim e ao cabo, esta substância no

crânio consiste em «átomos no vazio», tal como o resto da realidade material consta de átomos no vazio. Ora, como é que, em termos grosseiros, podem átomos no vazio representar alguma coisa?

John Searle

(5)

[3] A terceira característica da Mente que parece difícil de inserir dentro de uma concepção científica da realidade é a subjectividade dos estados mentais. Esta subjectividade é assinalada por um facto como este: posso sentir as minhas dores e vocês não. Eu vejo o Mundo do meu ponto de vista; vocês vêem-no a partir do vosso ponto de vista. Eu sou consciente de mim mesmo e dos meus estados mentais internos, enquanto inteiramente distintos da individualidade e dos estados mentais das outras pessoas. Desde o século XVII, pensámos a realidade como algo que deve ser igualmente acessível a todos os observadores competentes – isto é, que pensam que ela deve ser objectiva. Ora, como é que vamos acomodar a realidade dos fenómenos mentais subjectivos à concepção científica da realidade enquanto totalmente objectiva?

John Searle

(6)

[4] Finalmente, há um quarto problema, o problema da causalidade [causation] mental. Todos nós supomos, como parte do senso comum, que os nossos pensamentos e sentimentos são realmente importantes para a maneira como nos comportamos, que efectivamente têm algum efeito causal sobre o mundo físico. Decido, por exemplo, levantar o meu braço e - vejam - o meu braço levanta-se. Mas se os nossos pensamentos e sentimentos são verdadeiramente mentais, como podem eles afectar algo de físico? Como pode algo que é mental originar uma diferença física? Pensamos, supostamente, que os nossos pensamentos e sentimentos podem de algum modo produzir efeitos químicos nos nossos cérebros e no resto do nosso sistema nervoso? Como pode uma tal coisa ocorrer? Pensamos, supostamente, que os pensamentos podem embrulhar-se a si mesmo nos axónios ou sacudir as dendrites ou esgueirar-se para dentro da membrana celular e atacar o núcleo da célula?

John Searle

(7)

Estas quatro características, consciência, intencionalidade, subjectividade e causação mental, são o que fazem parecer tão difícil o problema Mente-Corpo. No entanto (…), todas elas são características efectivas das nossas vidas mentais. Nem todo o estado mental possui todas. Mas qualquer explicação satisfatória da Mente e das relações Mente-Corpo deve ter em conta as quatro características. Se a teoria de alguém acaba por negar alguma delas, saiba que deve ter havido algures um erro.”

John Searle, Mente, Cérebro e Ciência. Trad.port., Lisboa: Edições 70. 1987, 20-22 [Minds, Brains and Science. Cambridge, Mass.:Harvard University Press. 1984, 15-17]

John Searle

(8)

"É a consciência que torna o problema mente-corpo intratável. [...] A experiência consciente é um fenómeno generalizado. Ocorre em muitos níveis da vida animal, embora não possamos estar certos da sua presença em simples organismos e se torne muito difícil dizer, em geral, o que confere evidência dela. [...] Sem dúvida alguma [experiência consciente] ocorre em inúmeras formas totalmente inimagináveis para nós, noutros planetas de outros sistemas solares através do universo. Mas independentemente do modo como possa variar, o facto de que um organismo tem realmente [at all] consciência, significa basicamente que há algo que é ser esse organismo. [...] Podemos designar isso como o carácter subjectivo da experiência. Esta [experiência] não é apreendida por nenhumas das familiares [...] análises redutoras do mental, pois todas elas são logicamente compatíveis com a sua ausência. Não é analisável em termos de um sistema explicativo de estados funcionais, ou estados intencionais, visto que estes poderiam ser propriedades de robots e autómatos que se comportassem como pessoas embora não experimentassem nada. [...] Não nego que os estados mentais conscientes e acontecimentos causem comportamentos, nem nego que não se possam dar caracterizações funcionais. Apenas nego que este tipo de análise seja exaustiva. [...] Se a análise deixa alguma coisa de fora, o problema está mal colocado. [...] Para exemplificar a conexão entre a subjectividade e um ponto de vista, e para sublinhar a importância dos aspectos subjectivos, ajudará explorar o assunto tendo em conta um exemplo que mostre claramente a divergência entre dois tipos de concepção, subjectiva e objectiva.

Thomas Nagel

(9)

Assumo que todos nós acreditamos que os morcegos têm experiências. Afinal de contas, são mamíferos, e não existe qualquer dúvida que têm experiência do mesmo modo que os ratos, os pombos ou as baleias têm experiência. [...] A essência da crença de que os morcegos têm experiências é que há algo que é ser como um morcego. [...] Os seus cérebros estão feitos de modo a relacionar os impulsos propulsionados com os ecos subsequentes e a informação recebida permite aos morcegos uma discriminação precisa de distância, tamanho, forma, movimento e de textura comparável àqueles que temos através da visão. Mas o sonar de um morcego, embora claramente uma forma de percepção, não é de forma alguma similar na sua operação a nenhum dos sentidos que possuímos e não há razão para supor que é algo que subjectivamente nós possamos experienciar ou imaginar. [...] Quero saber o que é para um morcego ser um morcego. [...] O que permanece de se ser um morcego se se remover o ponto de vista do morcego? Mas se a experiência não tem [...] uma natureza objectiva que possa ser apreendida por muitos pontos de vista, então como poderemos supor que um marciano investigando o meu cérebro pudesse pela observação dos processos físicos apreender os meus estados mentais [...]?"

Thomas Nagel

(10)

Podemos atribuir tipos gerais de experiência baseando-nos para tal na constituição e no comportamento do animal. É deste modo que descrevemos o sonar de um morcego como uma forma de percepção frontal tridimensional; pensamos que os morcegos sentem alguns tipos de dor, medo, fome, desejo sexual, e pensamos que eles possuem outras formas de percepção que nos são mais familiares para além do sonar. Mas pensamos também que estas experiências têm em cada caso um carácter subjectivo específico que está para além da nossa capacidade de concepção. E, a haver vida consciente algures noutras partes do universo, é bem provável que algumas das suas formas sejam indescritíveis, ainda que recorramos aos termos experienciais mais gerais de que dispomos. (Aliás, o problema não se confina a casos exóticos, pois verifica-se entre duas pessoas. Por exemplo, o carácter subjectivo da experiência de uma pessoa surda e cega de nascença é-me inacessível e o carácter subjectivo da minha experiência é-lhe provavelmente também inacessível. Isso não nos impede de acreditar que a experiência do outro tem um tal carácter subjectivo.)”

Thomas Nagel. Mortal Questions. Cambridge Univ.Press. 1979,165-170.

Thomas Nagel

(11)

“Existe outra teoria possível, que é diferente, quer do fisicalismo, quer do dualismo. O dualismo é a perspectiva segundo a qual és composto por um corpo e por uma alma e a tua vida mental se desenrola na tua alma. O fisicalismo é a perspectiva segundo a qual a tua vida mental consiste em processos físicos no teu cérebro. Contudo, outra possibilidade é a de a tua vida mental se desenrolar no teu cérebro, mas todas essas experiências, sentimentos, pensamentos e desejos não serem processos físicos no teu cérebro, o que equivaleria a dizer que a massa cinzenta de milhares de milhões de células nervosas no teu crânio não é apenas um objecto

físico. Tem muitas propriedades físicas – desenrolam-se nele grandes quantidades

de actividade química e eléctrica –, mas também tem processos mentais.

A perspectiva de que o cérebro é o lugar da consciência, mas que os seus estados conscientes não são apenas estados cerebrais, é designada por teoria do aspecto dual. Chama-se assim porque significa que quando comes um chocolate se produz um estado ou um processo no teu cérebro com dois aspectos: um aspecto físico, que envolve diversas transformações químicas e eléctricas, e um aspecto mental – a experiência do sabor do chocolate.”

Thomas Nagel. What does it all mean? Oxford: Oxford Univ.Press. 1987, 27-34. (trad. port. Lisboa: Gradiva. 1995, 29-35)

Thomas Nagel

(12)

“O problema do corpo e das suas relações com a consciência é frequentemente obscurecido pelo facto de se estabelecer antes de mais o corpo como uma certa coisa dotada das suas leis próprias e susceptível de ser definida a partir de fora, ao passo que se atinge a consciência pelo tipo de intuição íntima que lhe é próprio. Se, de facto, depois de ter apreendido a «minha» consciência na sua interioridade absoluta, e por uma série de actos reflexivos, eu procurar uni-la a um certo objecto vivo, constituído por um sistema nervoso, um cérebro, glândulas, órgãos digestivos, respiratórios e circulatórios, cuja própria matéria é susceptível de ser analisada quimicamente em átomos de hidrogénio, de carbono, de azoto, de fósforo, etc., irei encontrar dificuldades insuperáveis: mas tais dificuldades provêm de eu tentar unir a minha consciência, não ao meu corpo, mas ao corpo dos outros. Com efeito, o corpo cuja descrição acabo de esboçar não é o meu corpo tal como ele é para mim. Nunca vi nem verei o meu cérebro nem as minhas glândulas endócrinas. Mas simplesmente, por ter visto dissecar cadáveres de homens, eu que sou um homem, e por ter lido tratados de fisiologia, concluo que o meu corpo é exactamente constituído como todos aqueles que me foram mostrados numa mesa de dissecação ou cuja representação a cores contemplei em livros. Dir-me-ão, sem dúvida, que os médicos que me trataram, os cirurgiões que me operaram, puderam fazer a experiência directa deste corpo que eu não conheço por mim mesmo.

Sartre

(13)

Não discordo nem sustento que sou desprovido de cérebro, de coração ou de estômago. Mas importa, antes de tudo, escolher a ordem dos nossos conhecimentos: partir das experiências que os médicos puderam fazer sobre o meu corpo é partir do meu corpo no meio do mundo e tal como ele é para outrem. O meu corpo, tal como ele é para mim, não me aparece no meio do mundo. Decerto que pude ver eu próprio num ecrã, durante uma radioscopia, a imagem das minhas vértebras, mas estava precisamente fora, no meio do mundo; apreendia um objecto inteiramente constituído como um isto no meio de outros istos, e somente por um raciocínio é que o levava a ser meu: ele era muito mais a minha propriedade do que o meu ser.

É verdade que vejo, que toco nas minhas pernas e nas minhas mãos. E nada me impede de conceber um dispositivo sensível de tal ordem que um ser vivo possa ver um dos seus olhos enquanto o olho visto dirige o olhar para o mundo. Mas convém notar que, também neste caso, sou o outro relativamente ao meu olho: apreendo-o como órgão sensível constituído no mundo de uma certa maneira, mas não posso «vê-lo a ver», ou seja, apreendê-lo enquanto ele me revela um aspecto do mundo. Ou ele é coisa entre as coisas, ou então é aquilo por que [ce par quoi] as coisas se descobrem em mim. Mas não pode ser tudo ao mesmo tempo. De igual modo, vejo a minha mão tocar nos objectos, mas não a conheço no seu acto de lhes tocar.” Sartre, O Ser e o Nada. Ensaio de ontologia fenomenológica. Lisboa: Círculo de Leitores. 1993, 312-313 [Paris: Gallimard. 1943, 350-351]).

Sartre

(14)

“Eu próprio não posso evitar tomar posição em relação ao problema legado pela tradição filosófica mais antiga, de Platão a Descartes, de Espinosa, de Leibniz a Bergson, o da união da alma e do corpo. Este antagonismo situa-se ao nível das entidades últimas, irredutíveis, primitivas (ou como se queira) constitutivas do que os filósofos analíticos gostam de chamar o mobiliário do mundo. Este nível é o da ontologia fundamental. Nos tempos de Descartes e dos cartesianos – Malebranche, Espinosa, Leibniz –, ainda se acreditava ser possível apreender a realidade última em termos de substância, ou seja, de algo que existe em si e por si. E perguntava-se se o ser humano seria feito de uma ou de duas substâncias, segundo a ideia que se tinha de substância. Destas grandes querelas, alimentadas por um aparelho argumentativo considerável, subsistem apenas, nos nossos dias, formas bastardas e esqueléticas, denominadas, por exemplo, paralelismo psicossomático, interaccionismo, reducionismo, etc. É à custa de uma simplificação abusiva que dualismo espiritualista e monismo materialista acabam por se opor maciçamente.

Não é no plano desta ontologia, cujas bases foram abaladas por Kant, na “Dialéctica Transcendental” da primeira Crítica, que me situarei. Limitar-me-ei, modesta mas firmemente, ao plano de uma semântica dos discursos feitos, por um lado, sobre o corpo e o cérebro, e, por outro lado, sobre o que o que, para ser breve, chamarei de mental (…).

Ricoeur

(15)

A minha tese inicial é que os discursos defendidos por cada um dos lados decorrem de duas perspectivas heterogéneas, isto é, não redutíveis uma à outra e não deriváveis uma da outra. Num discurso, trata-se de neurónios, de conexões neuronais, de sistema neuronal, no outro fala-se de conhecimento, de acção, de sentimento, isto é, de actos ou de estados caracterizados por intenções, motivações, valores. Combaterei, pois, aquilo a que doravante chamarei uma amálgama semântica e que vejo resumida na fórmula, digna de um oximoro: “O cérebro pensa”. É de um dualismo semântico, exprimindo uma dualidade de perspectivas, que parto. […] Devemos, pois, evitar transformar um dualismo de referentes num dualismo de substâncias. A interdição desta extrapolação do semântico para o ontológico tem por consequência que, no plano fenomenológico em que me situo, o termo mental não se confunda com o termo imaterial, isto é, não-corporal. Muito pelo contrário. O mental vivido implica o corporal, mas num sentido da palavra corpo irredutível ao corpo objectivo tal como é conhecido das ciências da natureza. Ao corpo-objecto opõe-se semanticamente o corpo vivido, o corpo próprio, o meu corpo (do qual falo), o teu corpo (a ti, a quem me dirijo), o seu corpo (dele, dela, cuja história conto). Assim, o corpo figura duas vezes no discurso, como corpo-objecto e como corpo-sujeito, ou melhor, corpo próprio. Prefiro a expressão corpo próprio a corpo-sujeito, pois o corpo é também dos outros e não só o meu. Portanto: corpo como parte do mundo e corpo do qual eu (tu, ele, ela) apreendo o mundo para me orientar e nele viver.

Ricoeur

(16)

Ricoeur

Dualismo semântico

A minha hipótese de partida é, pois (…) que não vejo nenhuma passagem de uma ordem de discurso para outro: ou falo de neurónios, etc., e estou numa certa linguagem, ou falo de pensamentos, de acções, de sentimentos e alio-os ao meu corpo, com o qual mantenho uma relação de possessão, de pertença. Assim posso dizer que as minhas mãos, os meus pés, etc., são os meus órgãos no sentido em que caminho com os meus pés, apreendo com as minhas mãos; mas tudo isto decorre da vivência e não posso deixar-me encerrar numa ontologia da alma, por assim dizer. Pelo contrário, quando me dizem que tenho um cérebro, nenhuma experiência viva, nenhuma vivência corresponde ao que me dizem, e assim apreendo-o nos livros (…).

[Defendo assim] um dualismo semântico. No fundo, se tivesse de procurar um antepassado, este seria Espinosa (…). Para ele, a unidade de substância deve ser procurada muito mais acima, ao nível do que ele chama, no livro I da Ética, Deus sive

natura. Ou falo a linguagem do corpo, modo finito, que era para ele o do espaço ou

falo a linguagem do pensamento, modo finito distinto, a que ele continuava a chamar alma. Pois bem, falo as duas linguagens, sem as poder misturar. “

Ricoeur/Changeaux, O que nos faz pensar?, trad.port. Lisboa: Edições 70, 21-23; 27 [Ce qui nous fait penser. La Nature et la Règle, Paris: Odile Jacob. 1998, 24-26;30-31]).

(17)

John Eccles

Singularidade

“Considero que há duas proposições básicas para qualquer tentativa de nos compreendermos a nós próprios e de compreendermos a nossa relação com o mundo incluindo outros eus. Essas proposições podem classificar-se como certezas primordiais.

Em primeiro lugar, a certeza de que existimos como um ser autoconsciente [self-consciousness] único. Em segundo lugar, a certeza de que o mundo material existe, incluindo o nosso corpo e o nosso cérebro.

A filosofia contemporânea negligencia problemas relacionados com a unicidade vivida por cada si [self]. [...] Centrarei a minha atenção no acontecimento mais extraordinário no mundo da nossa vivência, nomeadamente a emergência de cada um de nós como um ser autoconsciente único. [...] Não há dúvida de que cada pessoa humana reconhece a sua própria singularidade e isto é aceite como a base da vida social e da lei. Ao examinarmos os motivos desta convicção, a neurociência moderna elimina uma explicação em termos do corpo. Restam duas alternativas possíveis – o cérebro e a psique [Psyche]. Os materialistas devem subscrever a primeira, mas os dualistas interaccionistas têm de encarar o Si [Self] como a entidade que tem a vivência da unicidade.

(18)

John Eccles

Singularidade

Se a unicidade vivenciada de cada um derivar directamente da singularidade do seu cérebro, temos de examinar os níveis de singularidade de cérebros humanos. Não podia ser a singularidade de toda a infinidade de pormenorizadas conexões dos 10000 milhões de células do córtex cerebral humano. Essas conexões estão em modificação constante em termos de plasticidade e de degeneração. A afirmação materialista mais vulgar é que a experiência de unicidade deriva da singularidade genética. (…) [Ora], o desenvolvimento fenotípico do cérebro está bastante distanciado das instruções genotípicas [...] Por exemplo, o genótipo está implicado na construção do cérebro, mas actua num meio que modela profundamente o seu processo de construção do fenótipo. No caso de gémeos verdadeiros, os genomas idênticos contribuíram para a construção de cérebros diferentes devido à diversidade do ruído de desenvolvimento. [...] Deste modo, há um imenso abismo de desenvolvimento entre as instruções genéticas fornecidas pelo zigoto e o cérebro do bebé recém-nascido. Compreender-se-á que o ruído de desenvolvimento torna caótica e incoerente qualquer tentativa para derivar a nossa experiência de unicidade da nossa singularidade genética.

(19)

John Eccles

Singularidade

Uma resposta frequente e superficialmente plausível para este enigma é a asserção de que o factor determinante é a singularidade das experiências acumuladas de um Si ao longo da sua existência. É fácil concordar que o nosso comportamento e as nossas memórias e, de facto, todo o conteúdo da nossa vida consciente interior dependem das experiências acumuladas das nossas vidas; mas, por extrema que seja a modificação, num determinado momento decisivo, que pode ser produzido pela exigência das circunstâncias, seríamos ainda o mesmo Si capaz de retraçar a nossa continuidade na memória até às primeiras recordações por volta de um ano de idade, o mesmo Si com um aspecto completamente diferente. Não poderia haver eliminação de um Si e criação de um novo Si!”

John Eccles, A Evolução do Cérebro. A Criação do Eu, trad.port. Lisboa: Instituto Piaget. 1995, 360-363 (Evolution of the Brain: creation of the Self. London/New York: Rourledge, 1989, pp.236-237).

(20)
(21)

”Se depois de eu morrer, quiserem

escrever a minha biografia, não há

nada mais simples.Tem só duas datas

- a da minha nascença e a da minha

morte. Entre uma e outra todos os dias

são meus.”

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos (escrito entre 1913-15; publicado em Atena nº 5, Fevereiro de 1925.)

(22)

A Lei de Leibniz ou o Princípio

da Identidade dos Indiscerníveis

Discurso da Metafísica §9

não é verdade que duas substâncias se

assemelhem inteiramente e sejam

diferentes solo numero

(23)

”””Imaginemos que, num belo dia, os lisboetas [les Lyonnais] decidem construir na Praça dos Restauradores [place Bellecour] uma torre que se assemelha traço por traço com a torre Eiffel. Para realizar este projecto ambicioso, decide‑se reencontrar os planos originais de Gustave Eiffel e de produzir a partir deles uma torre com a mesma escala, como o mesmo número e o mesmo género de traves de ferro, dispostas umas em relação às outras do mesmo modo do que acontece na torre Eiffel. Para levar a semelhança o mais longe possível, decide-se fabricar traves de ferro segundo as técnicas, os procedimentos e os métodos em uso em 1889 [...]. Encontramos, assim, duas torres Eiffel, a de Paris e a de Lisboa e, até aí, o risco de confusão é relativamente limitado: estas duas torres são simultaneamente numericamente diferentes e qualitativamente idênticas. Imaginemos agora que durante uma violenta tempestade a torre Eiffel de Paris desaba. [...] Imaginemos, em seguida, que os lisboetas oferecem por sua vez a sua torre Eiffel aos parisienses para os consolar desta perda. Decide-se assim deslocar a torre Eiffel lisboeta da Praça dos Restauradores ao Champ-de-Mars, na localização exacta da antiga torre Eiffel. E é aqui que o risco de confusão aparece. Na medida em que só subsiste uma única torre Eiffel, a ilusão de óptica pode iniciar-se e corre-se o risco de considerar esta torre Eiffel como a torre Eiffel, ou dito de outra forma de tomar a réplica pelo original [...]. Da mesma forma que ao folhearmos um livro sobre Piero della Francesca acreditamos estar a admirar a sua obra autêntica, os turistas em Paris acabariam por considerar que eles visitam a torre Eiffel embora não se tratando dela. É importante não esquecer este ponto, pois numerosas teorias sobre a identidade pessoal sofrem precisamente do que se poderia chamar a síndroma da torre Eiffel, isto é, desta passagem intempestiva e como insensível da identidade qualitativa à identidade numérica."

Stéphane Ferret. Le philosophe et son scalpel. Paris: Minuit. 1993, 14-15

(24)

E.M. Forster

1879-1970

o rei morreu, a rainha morreu”

a rainha morreu de desgosto”

(25)

”Estou à espera do autocarro quando um jovem ao meu lado me diz: ‘O

nome do pato comum selvagem é Histrionicus histrionicus’. Não há qualquer

problema em relação ao sentido da frase que ele enunciou: o problema está

antes em saber o que é que ele estava a fazer ao enunciá-la. Suponhamos que

o jovem enuncia esta frase em intervalos aleatórios; isto poderia ser uma

possível forma de loucura. Mas nós tornaríamos esta frase inteligível se uma

das seguintes situações se revelasse verdadeira. Ele confundiu-me com uma

pessoa que ontem se aproximou dele na biblioteca e lhe perguntou: 'por

acaso, sabe o nome latino do pato comum selvagem?'. Ou ele acabou de

chegar de uma sessão com o seu psicoterapeuta que o incitou a acabar com

a timidez falando com estranhos. 'Mas o que devo dizer?' 'Oh, qualquer coisa'.

Ou ele é um espião soviético que tinha combinado um encontro e enunciava

o estranho código que o identificaria perante o seu contacto. Em cada caso, o

acto de enunciação torna-se inteligível quando se descobre o seu lugar numa

narrativa.”

A. MacIntyre. After Virtue. A Study in Moral Theory. London: Duckworth. 1985, 210

(26)

Arte e Narrativa

“O público pode, por assim dizer, perceber a ‘originalidade’ da obra [de arte], mas não a sua relevância. Por outras palavras, dá-se uma falha de comunicação. Mas se é esse o problema, há uma solução evidente: reconstruir a conversa de maneira a que a importância da contribuição do artista seja posta em evidência, quiçá trazendo ao de cima pressuposições omitidas ou que passaram despercebidas, dando destaque a elementos do contexto anteriormente ignorados e tornando as intenções do artista explícitas ao mostrar que essas intenções são inteligíveis no âmbito da conversa e do seu contexto, etc.

É claro que reconstruir a conversa desta forma equivale a uma narrativa histórica. Quando se verifica um lapso na conversa – quando falta uma ligação -, ele é corrigido ao retomar a conversa de uma forma que a reconstrua historicamente, colmatando a falha em simultâneo. Sempre que é possível produzir uma conversa deste tipo, temos, em geral, motivo suficiente para classificar um candidato como obra de arte.”

(27)

“Parece, pois, plausível ter como válida a cadeia seguinte de asserções: o

conhecimento de si próprio é uma interpretação, - a interpretação de si

próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos,

uma mediação privilegiada, - esta última serve-se tanto da história como da

ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se

preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes

homens em que se mistura a história e a ficção.”

Ricoeur. “L’Identité narrative”. Esprit 7-8 (1988), 108.

1. O conhecimento de si próprio é uma interpretação.

2. A interpretação de si próprio tem como mediação: narrativa, signos e símbolos. 3. Esta mediação cognitiva usa tanto a narrativa histórica como a ficcional

4. história de uma vida: história fictícia ou ficção histórica.

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