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VISÍVEL X DIZÍVEL

2. PALAVRA E IMAGEM

Se, na lógica dos sonhos, sonhamos em imagens, mas a elucidação se dá através da palavra, esses dois tipos de inscrição engendram diferentes mecanismos. Para Maurice Blanchot palavra e imagem têm diferentes lógicas: a visão está calcada dentro dos limites de um horizonte e supõe uma apreensão do tangível baseada na tradição ocidental do olhar; a palavra, por sua vez, transgride e desorienta82. Esses termos não se referem à palavra cotidiana, aquela destinada a apontar no mundo e comunicar. A palavra em questão é aquela que se desvia do caminho preciso e alcança uma ambigüidade inquietante. Assim, em Polaroids, a palavra assume-se errante e, num processo de busca, circunda o centro sem nunca tocá-lo.

Para Blanchot, a linguagem não re-apresenta o mundo exterior, mas funda sua própria realidade. É uma forma de pensamento que está calcada num apelo interior, ultrapassando a concepção histórica e suas verdades. O autor chama de experiência do fora o espaço potencial da escrita como dimensão de existência, para além do previsível e do conhecido. Nessa busca e criação de mundo, a palavra é o recurso que materializa esse movimento.

A palavra obscura, da qual tratamos aqui, abre um leque de percursos na dimensão de um vir a ser. Sua experiência é latente e, como no sonho, sem encobrir nem desvelar, impõe- se como traço no mundo, como argumenta Blanchot: Escrever, não é expor a palavra ao olhar. O jogo da etimologia corrente faz da escrita um corte, um dilaceramento, uma crise.83

82 BLANCHOT, 2001, p.63. 83 Id., p. 66.

Fig: 17 Robert Frank, Blind, Love, Faith, impressão de gelatina de prata, 60,5 x 51 cm, 1981. Fonte: Storylines, 2004.

Na imagem Blind, Love, Faith (figura 17), Robert Frank escreve sobre a emulsão da superfície da gelatina de prata da fotografia. A caligrafia é vulnerável e aponta certa descontinuidade de traço que passeia do fino ao grosso, repetindo-se reiteradamente num mesmo trecho diversas vezes até somar-se um pequeno borrão. Num outro instante, o traço torna-se evanescente a ponto de diluir-se no fundo. O tríptico vertical é construído a partir de certa repetição de cena onde as paisagens se alternam em distâncias - perto, longe, nem tão perto – causando o ritmo imperfeito na dinâmica da imagem. As três palavras começam em letras maiúsculas e sugerem três inícios: Cegueira, Amor e Fé. De eterno início, a promessa

ecoa na palavra porvir, abrindo perspectiva de inscrição e continuidade na medida em que está sendo escrita, palavra tanto mais exigente porque designa e engaja o futuro, que é também um futuro a ser dito, diz Blanchot.84

Se ver depende de uma realidade palpável, de um condicionamento construído culturalmente, talvez seja essa, para Robert Frank, a impossibilidade de abandonar-se na crença da fotografia única, direta, sem manipulação ou sobreposição. Os elementos intrínsecos da fotografia apontam para a lógica ótica calcada no olho fisiológico quando toda a obra de Robert Frank depõe o seu contrário, o que a circunda é justamente a transgressão dos limites do visível e do dizível. Em New Years Day (figura 01, p.19), por exemplo, a arranhadura da caligrafia arranca literalmente a emulsão do papel, inscrevendo a letra na própria carne da superfície de prata. Em letras maiúsculas que estão na área de sombra BE HAPPY pronuncia-se imperativamente como um slogan que murmura insistentemente. Uma palavra que aqui não é legenda, mas latência que reverbera paralelamente à visão de uma paisagem remota que se localiza no tempo.

Fig.18: Robert Frank, Words, de 1987. Fonte: The Lines of My Hand, 1989.

Em Words (figura 18), a palavra se desdobra em texto, conceito e imagem. Sobredeterminada ela compete com a fotografia direta a sua esquerda. Como num teatro, a cena montada expõe seus personagens-significantes. Se pensarmos que os retratos de estúdio, a partir da metade do século XIX, tinham a função de retirar o sujeito de seu contexto para afirmá-lo socialmente através de signos externos, o que vemos em Words é sua inversão. O cenário não investe os personagens com estereótipos, mas é investido a partir deles, funcionando como filtros de intermediação. O procedimento que articula os campos do verbo e do visual nesta imagem joga uma equação que nega o momento de síntese mantendo em suspenso sua realização. Palavra e fotografia se afetam mutuamente criando um campo miscigenado onde entra em cena, diante do horizonte abruptamente interrompido, a mediação do olhar pela linguagem.

Se, ver é talvez esquecer de falar e falar é puxar do fundo da palavra o esquecimento que é o inesgotável85, Robert Frank soma essas duas inscrições e constrói imagens. Enquanto a visão distancia e aproxima o visível e o falar desenreda a matéria incessante da qual somos feitos, a imagem é a que habita a tenra fronteira entre eles, e joga no campo além do visível e invisível. Transcendendo o jogo do olhar, ela inscreve-se na ordem do fascínio como parâmetro do limiar entre os olhos e o desejo onde o figurável se faz.

Fig.19: Peter Downsbrough. Public Comission, 2006. Fonte: www.barbarakrakowgallery.com

Ao contrário do desdobramento da palavra em Polaroids, que de um interno inscreve-se no visível, em Public Comission (figura 19), de Peter Downsbrough, ela volta-se para o exterior para inscrever-se no espaço. Sua escultura/instalação se apresenta como uma estrutura de passagem materializada através de uma barra de ferro onde está anexada a palavra AND. Public Comission não é um objeto estético. Seu texto inclui o contexto da cidade, da arquitetura e do fluxo humano e o que parece propor, através da sugestão do atravessamento do conectivo AND, é a adição de duas esferas que não estão nem lógica nem necessariamente integradas. Mas, se de um lado a conjunção AND une dois elementos, por outro lado também o que parece somar engana e subtrai, afinal só pode ser adicionado o que não está junto e não se representa.

Ao contrário da palavra em Polaroids, que altera a superfície da imagem criando uma condição de latência onde a duração de tempo metamorfoseia a apreensão dos signos, o trabalho de Downsbrough altera o espaço urbano numa equação direta, como comenta o artista James Welling: o trabalho de Downsbrough é catalítico. Ele muda o espaço ao redor, enquanto os objetos ficam estáveis, insubstituíveis.86

Além de criar territórios em não-espaços, em que converge o debate sobre trabalhos tão diferentes? Em ambos os casos e de diferentes formas entra em pauta a questão da hibridação dos campos verbo-visual dentro do trabalho plástico. Frank e Downsbrough confluem para que ambos os mecanismos migrem como elementos que integram uma mesma estrutura, que já não pode mais anunciar-se como um campo que sustenta dois diferentes, mas dá forma a um novo, território heterogêneo. A experiência do enunciado é inserida e contamina a noção da pura visualidade com um gesto conceitual que amplia o território de articulação dos significantes. Já não se trata de contemplação, mas de um texto que adquire mais tessituras e amplia sua esfera relacional, o que se coloca é um potencial de jogo que demanda um espectador ativo.