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JOGO ANADIÔMENO E A INSTAURAÇÃO DA VISUALIDADE

VISÍVEL X DIZÍVEL

1. JOGO ANADIÔMENO E A INSTAURAÇÃO DA VISUALIDADE

Interessa-nos nesse momento esmiuçar os procedimentos a ponto de entender como as questões em Polaroids fundamentam-se poeticamente na linguagem criando suas bases no campo visual. Para pensar o processo criativo de Frank, retomamos Andrea (figura 20, p.61), já discutida anteriormente como repetição com singularidade e diferença. Nesta imagem um movimento se constrói a partir do ritmo dos elementos que estão colocados no trabalho; as palavras, imagens, cores, espaços vazios e também sua forma, sugerem uma modelagem incompleta em espera de desfecho. O que o encontro destes procedimentos sobre a mesma superfície aponta é uma operação como um processo de montagem de onde emerge a dinâmica das relações. Aqui o jogo em questão é o da alteração, ou seja, um movimento de linguagem que instaura a imagem de um novo, transfigurado desde seu caráter de coisa.

Para minha filha Andrea que morreu num acidente de avião em Tical, na Guatemala, em 23 de dezembro, ano passado. Ela tinha 21 anos de idade e viveu nessa casa e eu penso nela todo dia103; em Andrea (figura 20, p.61) essas são as frases que se encontram manualmente escritas sobre a superfície. Um pouco mais abaixo é possível ainda ler os trechos: dentro de velhos apetrechos... não manter...diário...agora as coisas estão melhores104, além da assinatura: 1975, Robert Frank, em Mabou, Nova Scotia, Canada. Ao contrário de muitos de seus trabalhos, onde a palavra existe como significante numa perspectiva anônima e obscura, aqui as palavras comunicam um relato que narra um fato passado e seu contexto (que a filha tenha morrido, onde e quando) em conjunção com seu presente (que agora as coisas estão melhores a partir de Mabou). Encontro de tempos onde o passado é tornado presente numa proximidade que desdobra o distante em agora e as noções temporais, tanto do pretérito imperfeito (died, was, lived, last year) quanto do presente (think, every day, now), passam a coexistir em gerúndio, como ação que está acontecendo. Também na disposição entre a fotografia e o vácuo de imagem há uma operação que varia entre esses dois extremos quando jogam em alternâncias, ora pulsando preenchidos ora esvaziados. Se deste modo temos dois momentos que se diferenciam, o que gera um movimento rítmico, tanto a foto quanto o vácuo de imagem se apresentam como significantes. Aqui não se trata de um tudo ou um nada. A sutileza está em que o nada é

103 For my daughter Andrea who died in an airplane crash in Tical in Guatemala on Dec 23, last

year. She was 21 years old and she lived in this house and I think of Andrea every day. (Tradução

nossa).

também preenchimento. O movimento de oposições de mesmo modo também acontece entre o colorido de azul-céu e as pinceladas amarelo-sol quando concorrem suas cores suaves com os pedaços agudos de negro que grudam na parte inferior da obra como coágulos de sangue que não se dissolvem. Vazios, cores suaves, gama tonal de cinzas em fotografias em preto e branco, palavras e tempo, camadas que vão surgindo de uma base de papel de fibra organicamente imperfeito.

Aos pólos de um duelo onde os elementos jogam para expressar-se no campo da linguagem, Freud os nomeia Fort-Da. A noção desta expressão (traduzida do alemão em aqui-lá) vem da observação da brincadeira de seu neto de um ano e meio de idade durante suas investigações sobre a relação entre prazer, repetição e pulsão de morte. Instigado pela repetição das mesmas palavras e dos mesmos procedimentos no menino, ele compreende que é o jogo infantil o campo, e nesse sentido inclui um método, para a elaboração do sujeito na linguagem. Fort-da é o que articulava a criança diante do fio esticado e recolhido durante o aparecimento e desaparecimento de seu carretel. Na ausência da mãe, a criança repetia inúmeras vezes esse jogo realizando o que Freud chamaria de renúncia instintual, sendo esta a troca de uma satisfação (no caso a presença da mãe) por uma nova satisfação (a volta do carretel como alusão ao alívio da volta da mãe a casa). Através da introdução de uma falta (no caso a ausência da mãe), e somente a partir desse lugar instituído é que se tornará possível que a criança se lance no processo de simbolização do objeto, ocorrendo, por consequência, o assassinato da coisa: o carretel deixado no canto como um resto qualquer depois de implicado na exigência de um desejo. Segundo Georges Didi-Huberman, esses jogos de ocultamento que Freud, numa intuição genial, produziu, a nosso ver, para que neles reconhecêssemos que o momento no qual o desejo se humaniza é também aquele no qual a criança nasce para a linguagem105.

O que Freud investiga em “Além do princípio do prazer”, de 1920, onde encontramos a análise da concepção de alteração, é na verdade o fator econômico da tendência do prazer no sujeito e de que modo isso se inscreve como experiência no que chama de repetição traumática. Segundo ele, a neurose traumática é a condição que ocorre após graves traumas gerando sintomas de indisposição subjetiva e incapacidade mental e seu conteúdo tende a repetir-se enquanto não alcance ser elaborado pelo inconsciente. Freud compreende que o princípio do prazer faz parte de uma tendência do aparelho psíquico de liberar-se de qualquer excitação que altere sua constância, num esforço de reduzi-la a zero.

Na medida em que ele vai desenvolvendo seu pensamento, e criando oposições para provocar a dialética que o fará caminhar em seus descobrimentos, compreende que existe uma instância para além do princípio do prazer que é, ao mesmo tempo, independente desse e comum a todos os seres humanos, a pulsão de morte. Em oposição à pulsão de vida que funciona em direção ao seu prolongamento, a pulsão de morte dirige a vida do sujeito em função de um retorno ao mundo inorgânico. A conclusão que tira naquele momento é que o conteúdo que faz com que a repetição se perpetue está atrelado ao inconsciente e relaciona- se ao princípio do prazer na medida em que, através de sua compulsão não libera o material recalcado, evitando assim o desprazer que surgiria com sua liberação. A partir de então, ampliando o campo de elaboração sobre a instância da repetição, para além do viés daquela que ocorre determinada por um trauma de guerra ou físico, Freud põe-se a examinar como ela, a repetição, engendra diferentes dinâmicas psicológicas na construção do sujeito. Este mecanismo interessa-nos não como campo clínico, mas na medida em que a repetição aparece como dinâmica criativa na esfera da arte.

Do mesmo modo que a criança, o artista mergulha no jogo anadiômeno de repetição que flui e reflui, para constituir a criação no campo artístico. No movimento rítmico do jogo de preenchimento e esvaziamento do objeto, seu estatuto altera-se simbolicamente transformando-se em visualidade. A repetição na criação artística não é necessariamente da ordem do traumático, mas constitui o procedimento da criação e o movimento rítmico do qual surgirão o trabalho e sua imagem. Como assinala Didi-Huberman, o momento do desaparecimento do carretel enquanto objeto visível, e a criança olhando seu jogo como se sofre a ausência repetida - e cedo ou tarde fixada, inelutável, definitiva – de uma mãe106, é o que o torna uma imagem visual.

Fig. 24: Tony Smith. The Black Box, madeira pintada, 57 x 84 x 84 cm, 1961.

Em “O que vemos, o que nos olha”, Didi-Huberman passeia pelo relato poético do artista Tony Smith sobre a constituição de The Black Box para compreender seu processo criativo. Durante as conversas de Tony Smith com seu amigo e crítico de arte E.C. Goossen sobre questões como dimensão específica e volumetria na escultura, o artista percebe um velho fichário em forma de uma caixa preta que o surpreende e o fascina pelo fato de sua dimensão assemelhar-se ao tamanho de um ser humano sepultado. Outra experiência que lhe chama atenção e que aparece em seu relato, como uma percepção relacionada à criação de The Black Box, é a ocorrência numa noite escura e maciça quando sentiu-se privado de visibilidade em relação ao entorno. Segundo Smith, essas duas situações, do fichário enigmático e da privação noturna, nas quais os objetos e suas fragilidades desaparecem mesmo quando estão muito próximos, acabam impulsionando o aparecimento de The Black Box. Para Didi-Huberman, a dinâmica da alteração que se joga a partir do que percebemos no relato de Smith é também a textura de sua constituição, como diz:

Compreende-se então que no vaivém rítmico, na escansão interna ao próprio jogo de palavras – a dimensão, o homem, o desaparecimento, o homem, a dimensão novamente – terá se projetado a existência de um objeto virtual: um objeto ele próprio capaz de uma associatividade e de uma latência às quais ele devia no começo a existência; um “objeto

complexo”, como dirá mais tarde Tony Smith107.

Se o neto de Freud empreende o jogo de elaboração a partir da falta da mãe, essa também é uma prerrogativa para o impulso da criação artística. Tony Smith engendra o ato criativo a partir de uma falta, transferindo as faltas interiores constituintes da condição humana para a ausência que suspeita no dentro do fichário negro, na invisibilidade da noite profunda e na incompreensão do sentido da morte. Faltas que acabam projetadas exteriormente como em suas esculturas, fazendo-nos hesitar constantemente entre o ato de ver sua demasiado escura forma exterior e o ato de sempre prever sua espécie de interioridade desdobrada, vazia, invisível em si108. The Black Box é um objeto virtual, assim como as próximas esculturas nas quais Tony Smith se debruçará serão, segundo Didi- Huberman, monumentos de absorção e de pura solidão melancólica109.

Em Andrea (figura20, p.61), o deslocamento do Fort-da (presente-ausente, longe-aí) também é responsável pelo nascimento do trabalho para o mundo da linguagem. Entre a distância e a proximidade da morte de uma filha, ou entre a possibilidade da elaboração de uma perda e sua impossibilidade, constitui-se paradoxalmente o momento quando se abre a ameaça de ser olhado pela perda, quando o que vemos é suportado por uma obra de perda, e quando disto alguma coisa resta110. Uma perda que introduz a falta que causa a proposição e toda a sua dialética visual, que faz do trabalho um resto, já que sua força consiste no processo em progresso e seu potencial de alteração. Em “Eu gostaria de fazer um filme...”, texto escrito por Frank, publicado como introdução ao volume dedicado ao seu trabalho na coleção Photofile, o fotógrafo ensaia os aspectos de desejo que o impulsionam a trabalhar, compreendendo que tudo que existe enquanto imagem deixa para trás suas referências, referentes e significados, sem apagar, entretanto, o que ali se sustenta enquanto projeção virtual do objeto, como comenta:

Enquanto eu aceito a melancolia e as dificuldades encontradas quando uso trabalhos feitos no passado, eu preferiria que essas velhas fotografias aparecessem no filme como elas aparecem para mim hoje, do mesmo modo bizarro e fragmentário... estranhos objetos de outro tempo ... parcialmente escondidos e curiosamente ressonantes, trazendo informações, mensagens que podem ou não ser bem-vindas, podem ou não ser reais. Objetos perturbadores que têm uma lenda para contar ou somente ficam encostados silenciosamente, freqüentemente justificando o interesse que se tem por eles111.

108 Ibid, p.106. 109 Ibid, p.104. 110 Ibid, p.80.

A ressonância dos objetos a que se refere Frank, e o fato de estarem parcialmente escondidos, aponta o potencial de alteração de coisa à imagem, fotografias que deixam de relacionar-se ao referente para instaurar um outro na projeção virtual do objeto artístico. Ambas as operações propositivas, de Tony Smith e Robert Frank, dão dessa maneira um lugar ao novo, àquilo que é criado no próprio movimento de inscrição no mundo da linguagem.