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A REPETIÇÃO QUE INSTAURA A DIFERENÇA

VISÍVEL X DIZÍVEL

3. A REPETIÇÃO QUE INSTAURA A DIFERENÇA

Fig.20: Robert Frank, Andrea, impressões reveladas em gelatina de prata, várias mídias, 27,5 x 35,4 cm, 1975. Fonte: Moving Out, 1994.

Outro procedimento muito sintomático como o uso de palavras em Polaroids é a repetição, tanto de imagens num mesmo trabalho quanto de trabalhos similares ao longo dos anos em diferentes publicações. Assim a repetição atua como visibilidade, fazendo- se dizer pelo que insiste e pelo que da insistência sobrevive, num lugar que a cada retorno se faz outro. Concentremo-nos em Andrea (figura 20), de 1975, para considerar de que maneira podemos nos relacionar com esse mecanismo. Nessa imagem vemos apresentar-se um espaço de elo entre as fotografias da casa, da paisagem e de Andrea. Entenderíamos esse procedimento como o Isso-Foi, de Roland Barthes, na sua tentativa de fazer acreditar na realidade tangível do objeto fotográfico como invólucro de uma memória e a eternização de sua fixidez. Para o pensador, esta é a essência da fotografia,

seu noema, de dupla posição conjunta: de realidade e de passado87. Mas diante da necessidade de repetição das fotos da paisagem e da casa, o impulso dessa crença esvanece-se denunciando a fragilidade de uma possível ontologia da fotografia. Não poderíamos pensar que essas fotografias entrariam em jogo para atestar sua existência falando-nos com certeza daquilo que foi, equivalendo-se ao modo como Barthes confia à imagem de sua mãe: diante da foto de minha mãe criança, eu me digo: ela vai morrer!88. Se representar é tornar presente o que foi e não mais pode ser num tempo cronológico e linear, o acontecimento, onde pensamos o trabalho de Frank, carrega consigo o paradoxo de ser a própria apresentação no espaço e tempo, ou sua atualização.

Ao contrário da manifestação do aspecto ratificador da imagem fotográfica situada no plano do consciente, o processo de repetição de imagens sugere a resistência do sujeito em aproximar-se do que lhe mostra o inconsciente. A repetição das imagens fotográficas em Andrea aponta para o recalque daquilo que não pode vir à luz e repetir- se-á compulsivamente até que encontre uma possibilidade de desvio. Concluímos então que a imagem fotográfica não concretiza neste trabalho a noção de representação, pois nela o repetido significa ao invés de representar. Desse modo, o procedimento fotográfico atua como movimento de linguagem e alteração, ou seja, desenvolvendo seu potencial de transfigurar a coisa até alcançar-lhe sua imagem, ou seja, projetando-a para além de sua literalidade de objeto.

Para Gilles Deleuze, a representação (e para tal ele refere-se ao teatro da representação) é algo morto que eterniza sempre o mesmo, enquanto que, e em oposição, o teatro da repetição gera o movimento, aquilo que põe em cena a própria mutação, como coloca o autor:

... Não lhes basta, pois, propor uma nova representação do movimento; a representação é já mediação. Pelo contrário, trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda a representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição; de substituir representações imediatas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, voltas, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito. Esta é uma idéia de homem de

teatro, uma idéia de encenador – avançado para o seu tempo.89

87 BARTHES, 1984, p.115. 88 Ibid, p.142.

Fig. 21: Carmela Gross, Carimbos, 1977/1978. Fonte: site da artista, 2007.

Conceitualmente, a repetição divide-se em duas, a repetição do mesmo e a que compreende uma diferença90. Para pensar a repetição do mesmo, poderíamos usar a série Carimbos (1977-1978) de Carmela Gross (figura 21). Nessa série a artista subtrai a cor, a materialidade pictórica, as nuances e a organicidade da pintura, serializando a pincelada através de 80 unidades de carimbo (cada carimbo da série contém um traço pictórico reproduzível em folhas de papel de tamanho 0,70m x 1,00m). Carmela subverte o procedimento plástico da pintura destituindo a singularidade do traço e desarticulando a expectativa da obra artística calcada na habilidade, como comenta: aquela pincelada que antes fazia parte de um universo que forma um todo, que é um desenho, que é uma pintura, que se posiciona frente ao mundo com uma integridade, vira um fragmento, vira repetição, um gesto burocrático91. Os carimbos reproduzem cópias ao infinito, e como explora Walter Zanini sobre o trabalho de Carmela Gross, a automatização do gesto concebe a uniformidade da leitura sígnica e, sem possibilidade de desvio, é calcado na repetição do mesmo. 92

90 Ibid, p.396.

91 Arte e Ensaios no 12, Revista do PPGAV EBA UFRJ, 2005, p.09.

Ao contrário da repetição que não carrega sua diferença, as imagens de Polaroids tratam daquilo que não pára de configurar-se e a cada concretização é investido de novas singularidades. Trabalhos que detêm uma história e recuperam seu destino através da possibilidade de significar o passado na diferença da repetição no presente. Em Andrea (figura 20, p.61), a repetição reitera o mesmo procedimento que acontece em outras de suas imagens, gerando a diferença entre o uso de uma e outra fotografia que se encontram na mesma imagem. O que se repete nunca é o mesmo, mas sim uma potência que a cada aparição revela o que lhe é mais interior e secreto, sugere Gilles Deleuze. Repetir não é um pensamento, mas uma ação que põe em movimento o impulso capaz de gerar um acontecimento, deslocando sua direção e re-significando o dado fixo, como comenta Deleuze:

Se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um notável contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é transgressão. Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em

proveito de uma realidade mais profunda e mais artística.93

A repetição com diferença é a potência de linguagem que instaura o novo a partir da experiência. Sempre atrelada a duas manifestações, sendo uma o gesto e a outra o invólucro, ela forma-se, disfarçando-se; não preexiste aos seus próprios disfarces e, formando-se, constitui a repetição nua em que se envolve94. Em Andrea (figura 20, p.61), é possível aproximar-se dos elementos que se repetem através dos gestos materializados plasticamente na imagem; porém o si da repetição, o que está na origem do próprio gesto, escapa à possibilidade de apreensão, é o próprio inominável.

93 DELEUZE, 2006, p. 21. 94 Ibid, p.50.