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VISÍVEL X DIZÍVEL

4. O GESTO QUE DESEMPATA

O que é um gesto? Como através dele o procedimento plástico articula a repetição com seu viés significante? Do mesmo modo que na fotografia, onde o gesto depende do encontro do olho com uma questão que se encontra no mundo requerendo um impulso hábil em direção ao ato para congelar um espaço-tempo no fotograma, na pintura o gesto também depende da continuidade do pensamento pela inteligência do tato.

Em “A obra-prima desconhecida”, Honoré De Balzac conta a história do pintor Frenhofer, único aluno do grande mestre Marbuse, em sua obssessiva busca por pintar a carne sublime através da imagem de sua musa Catherine Lescault. Sem ter encontrado uma mulher à altura de sua obra que lhe servisse de modelo, Frenhofer acaba produzindo somente um delírio, uma obra que acontece dentro de seu imaginário e não na tela da pintura. Mas antes do dar-se conta fatal, Frenhofer, acreditando deter a verdade sobre a pintura onde o gesto final é o que termina a obra, reprova a incompletude da obra de Porbus (outro personagem-pintor do romance) dizendo: apesar de tão louváveis esforços não consigo crer que este belo corpo está animado pelo morno alento da vida... Vossa senhoria contenta-se com a primeira aparência que se oferece, ou como muito a segunda, ou a terceira; Não é assim que se comportam os lutadores vitoriosos!...Que é o que falta? Um nada, mas esse nada é tudo.95 E com o pincel em punho, paf, paf, paf, pon, pon, pon, termina o quadro de Porbus.

Fig. 22: Robert Frank, Mabou, técnica: impressão revelada de gelatina de prata com tinta acrílica, 51,1 x 60,6 cm, 1979. Fonte: The Lines of my hand, 1989.

Em Mabou (figura 22), de 1979, um gesto pictórico irrompe a superfície fotográfica unindo as três imagens inferiores da imagem. A pincelada cintila na superfície com tal potência que parece relegar às fotografias o papel de fundo insípido, como um cenário para sua aparição. Balzac escreve nas palavras do enfático Fenhofer: Vê rapaz? Só conta a última pincelada. Porbus deu cem, e eu só dei uma. Ninguém saberia nos dizer o que há debaixo.96

Para os personagens de Balzac, a obra só se define no seu último momento de criação quando, através do gesto, o acabamento da pintura é eficaz ou torna-se um total fracasso, invalidando o quadro como um todo. O gesto final é o que decide seu desempate e é também, segundo Didi-Huberman, onde se espera uma construção ideal do sujeito pintor, mesmo que esta espera seja super heróica, pode-se dizer assim, sobre-humana, heróica em qualquer caso, aporética sem dúvida, desesperada.97 Em “La pintura encarnada”, Didi-

96 BALZAC, 2007, p.180.

Huberman parte da novela de Balzac para problematizar os procedimentos inerentes à carne da pintura. A questão essencial de seu argumento é o paradigma da encarnação tomado como limite da obra de arte. Esta noção diz respeito à possibilidade dos pigmentos sobre a tela em produzir uma aparência de entidade viva e natural, atravessando o espectador com a carga de sua potência. A pintura encarnada seria então a tela imaginada como dotada de vida, como um corpo vivo onde poderíamos sentir as pulsações e mesmo as emanações de sua respiração. Assim, Didi-Huberman conceitua o colorido-sintoma como a pintura que poderia imaginar-se como corpo e como sujeito: colorido de vicissitude e, portanto, do despertar do desejo.98

Mas se Frenhofer intervêm no quadro de Porbus com tanta autoridade e alcança o poder da encarnação no gesto final, na sua própria tela ele estremece diante de dar à obra seu lugar no mundo, imerso na velha fantasia de como calcular o humor da tela. Diante da dúvida do tato, o sujeito da certeza é substituído pela loucura da consciência e imobiliza-se. Imobilidade que também indica um evitamento da cristalização do movimento. Para Lacan, distinguimos um gesto de um ato em seu instante terminal, enquanto o ato se perde, o gesto é o que gera a possibilidade de sentido, do novo olhar sobre o acabado. Não esqueçamos que a pincelada do pintor é algo onde termina um movimento. Encontramo-nos aí diante de algo que dá novo e diverso sentido ao termo regressão – encontramo-nos diante do elemento motor, no sentido de resposta, no que ele engendra, para trás, seu próprio estímulo.99

Ao contrário de Frenhofer, Robert Frank, depois de vagar através das seis fotografias verticais da proposição pela paisagem ensaiando a busca de sua paragem, assume finalmente o instante terminal quando sustenta a intervenção pictórica na imagem Mabou (figura 22, p.66). Em oposição à subtração inerente ao processo fotográfico, quando há escolha de parte do todo que constituirá o fotograma, em Polaroids a adição da tinta à superfície é o que sugere a possibilidade de significação do gesto no trabalho. Um gesto que presume que o todo possa ser re-significado, tomando nova via de articulação. Uma elaboração que não depende de um, mas de dois, quando é June, sua mulher, que concretiza o esboço pictórico sobre a superfície.

98 Ibid, p.31.

Fig. 23: Robert Frank, Mabou, impressão revelada de gelatina de prata com tinta acrílica, 51,1 x 60,6 cm, 1994. Fonte: Moving Out, 1994.

Quinze anos mais tarde, em 1994, na republicação de Mabou (figura 23), em Moving Out, a imagem ganha uma nova proposição. Na nova versão, outras pinceladas são adicionadas (entre as fotografias cinco e seis e na parte inferior da imagem) além do gesto principal se deslocar e mudar de cor. Voltemos a Frenhofer e sua intervenção na obra de Porbus, quando ele diz: vê como com três ou quatro pinceladas e uma pequena veladura azulada poder-se-ia fazer circular o ar ao redor da cabeça dessa pobre santa que devia estar se afogando e se sentir prisioneira nessa atmosfera carregada? Observa como esta roupagem agora ondula e como se tem a sensação de que a levanta a brisa100. Esta é a concepção que articula o potencial da imagem em questão, onde o gesto pictórico encarna na superfície como pós-produção, engendrando uma repetição que desvela materialmente sua diferença ao mesmo tempo em que encobre aquela que a impulsionou. Um gesto que engendra para trás sua significação e esboça para frente, através das vibrações, rotações, voltas, gravitações, danças ou saltos101, certa idéia de infinito.

100 BALZAC, 2007, p.179.

CAPÍTULO III

VISÍVEL X VISUAL

Um dia de manhã o céu é de laca azul, o sol ainda está atrás das colinas. Sobre o caminho de tábuas o menino passou. Eu o olho até que ele desaparece. E depois fecho os olhos para reencontrar ainda a imensidão do olhar cinzento.

Marguerite Duras

A criação artística é a experiência capaz de romper com a atividade repetitiva do mundo instaurando um novo lugar. O olhar brutal, diz Flusser sobre os artistas, rasga as superfícies e revela abismos por detrás das coisas102. Mas o que são os abismos detrás das coisas senão o que pré-existe ao nosso olhar? O que propomos a partir de então, baseando- nos na teoria da arte de corrente francesa e na psicanálise, é a hipótese de que o que se revela na série Polaroids é o movimento do desejo como causa da imagem. Uma problematização do campo do olhar em que a falta é o elemento instaurador do processo de simbolização da linguagem e a função do olhar é o que permite ver, não em primeira instância, mas como resposta a um dado a ver.