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Memória, paisagem identitária e topofilia: sentido de espaço em Goodbye to a River e The Man Who Rode Midnight

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Contexto (ISSN 2358-9566) Vitória, n. 31, 2017/1

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Memória, paisagem identitária e topofilia:

sentido de espaço em Goodbye to a River

e The Man Who Rode Midnight

Memory, Identitary Landscape and Topophilia:

Sense of Place in Goodbye to a River

and The Man Who Rode Midnight

Adolfo José de Souza Frota

Universidade Estadual de Goiás – UEG

RESUMO: O objetivo do artigo é analisar três aspectos importantes nos romances Goodbye to a

River e The Man Who Rode Midnight: a memória, a paisagem identitária e a topofilia. A partir do conceito de sentido de espaço, o texto tenta explicar como as personagens constroem suas vidas tendo como ponto determinante o conceito da memória ligada a uma atitude espacial topofílica. Outro aspecto a ser analisado é como a perda do espaço implica na ameaça da perda da identidade.

PALAVRAS-CHAVE: Memória. Identidade. Topofilia. Sentido de espaço.

ABSTRACT: This article aims at analyzing three important aspects in the novel Goodbye to a

River and The Man Who Rode Midnight: memory, identity landscape and topophilia. From a sense of space the text tries to explain how the characters build their lives having as a determining point the concept of memory linked to a topophilical spatial attitude. Another aspect to be analyzed is how the loss of space implies the threat of loss of identity.

KEYWORDS: Memory. Identity. Topophilia. Sense of Space.

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Introdução

O homem busca e, de acordo com determinados fatores1, encontra no espaço

uma força simbólica de representação da identidade e da conservação da memória em seus dois aspectos: individual e coletivo. Ele se relaciona com o ambiente à sua volta de tal forma que lhe atribui um valor intrínseco muitas vezes não partilhado por outros habitantes e transeuntes desse mesmo espaço. Mas, conservemos apenas o seu valor simbólico na representação do espaço romantizado, onde homem e natureza estabelecem uma sociedade interessante e proveitosa para o primeiro, que culmina em um tipo de dependência desta parceria largamente utilizada na literatura.

Há uma tendência teórica de estudo da concepção da memória e sua conexão íntima e quase “simbiótica” com o espaço. Em Landscape and Memory (traduzido no país como Paisagem e memória), Simon Schama (1995) sugere o quão entrelaçados estão a natureza e os seres humanos e como a floresta se tornou um verdadeiro símbolo da memória e da identidade do povo (normalmente, aquele que está mais intimamente ligado à terra e à paisagem rural). Dessa forma, cada paisagem2 é criada na mente humana, que guarda as

relações de cada grupo estabelecido com o espaço que ocupa e transita. Segundo o autor, “[p]aisagens são cultura antes de ser natureza; construtos da

1 A título de ilustração, poderia citar fatores culturais, religiosos, pessoais, afetivos, sociais,

entre outros.

2 Nos estudos de geografia, referindo-me ao Brasil, é estabelecida uma diferenciação entre

paisagem e espaço a partir da categorização feita por Milton Santos. Em A natureza do espaço, Santos (2006, p. 66) afirma que a paisagem seria um “conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza”. Já o espaço seriam “essas formas mais a vida que as anima”. O que diferencia paisagem e espaço é a presença humana. Enquanto que o espaço se configura pela presença necessária do homem, a paisagem, não, mesmo que seja criação antropológica. Neste artigo, opto por não fazer diferenciação entre os dois termos. Ao me referir à paisagem, estou acompanhando o raciocínio de Simon Schama, conforme será explicitado em seguida, fazendo uma ponte entre homem e natureza transformada por sua ação.

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imaginação projetados na madeira, água e rocha”3 (SCHAMA, 1995, p. 61). Na

tese de Schama (1995, p. 6-7), a paisagem é trabalho da mente, uma vez que “[a]ntes que possa ser o repouso dos sentidos, a paisagem é trabalho mental. Seu cenário é concebido tanto a partir de estratos sociais quanto de camadas de rocha”4.

Tanto Elmer Kelton quanto John Graves, romancistas de interesse deste texto, escrevem sobre a paisagem texana, especificamente sobre a geografia rural tão importante para as suas personagens ligadas a uma memória da natureza e da relação entre homem e meio ambiente. Os dois autores, consagrados nos Estados Unidos, podem ser considerados verdadeiros “guardiões da paisagem da memória”5 (SCHAMA, 1995, p. 17), ou seja, pessoas encarregadas de

preservar a memória de um determinado lugar. Pierre Nora (1993, p. 18), acertadamente, intitula essa categoria antropológica de “homens-memória”.

Mas, Nora (1998) vai além. Ele demonstra haver uma certa mudança de paradigma, de uma “atomização” da memória geral para uma memória privada, quando a memória é menos “vivida coletivamente” para ficar mais particularizada. A partir desse pressuposto, o autor francês chega ao conceito de “lugares da memória”:

São lugares, com efeito, nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos.

3 “Landscapes are culture before they are nature; constructs of the imagination projected onto

wood and water and rock”. Todas as traduções são de minha autoria. O texto original sempre virá em nota de rodapé.

4 “Before it can ever be the repose for the senses, landscape is the work of the mind. Its scenery

is built up as much from strata of memory as from layers of rock”.

5 “Guardians of landscape memory”. O autor citado trabalha com o conceito de paisagem ao se

referir a um espaço que se diferencia da floresta, mesmo que ambos sejam natureza. Em poucas palavras, a paisagem seria o espaço natural ocupado e transformado pelo homem. Já a floresta seria o espaço selvagem, ou seja, o wilderness, o espaço não domesticado. A paisagem funciona como um ambiente consagrado pelo homem que o habita e extrai a sua sobrevivência a partir de uma interação sustentável. Pode ser um ambiente rural, ou seja, o espaço de transição entre a natureza bruta (virgem ou pouco transformada) e o espaço domesticado.

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de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica (NORA, 1998, p. 21).

Michael Pollak (2015, p. 202) entende que os lugares da memória estão particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser pessoal. É possível observar uma certa tendência de valorização e preservação da memória que envolve, consecutivamente, a conservação espacial. Nas duas narrativas escolhidas para este artigo, The Man Who Rode Midnight e Goodbye to a River, a preservação seria do espaço e dos habitantes que retiram suas forças espirituais e vivem suas histórias atreladas à natureza. Como será observado, o aspecto narratológico tem uma aura nostálgica na medida em que os dois textos literários enfatizam a relação identitária das personagens com as regiões onde habitam (ou percorrem).

Se por um lado, Nora (1998) reconhece a construção de “lugares da memória” com objetivo de preservação, por outro lado, é possível também perceber uma força contrária que vem para extinguir qualquer vestígio da presença humana em prol do acúmulo de capital, de desenvolvimento econômico. Seligman-Silva (2006, p. 39) sinaliza para uma reação simbólica da sociedade no cultivo de uma “cultura da memória”, ou seja, para uma “resistência ao esquecimento ‘oficial’” que viabiliza a perigosa “cultura da amnésia, do apagamento do passado, que caracteriza nossa sociedade globalizada pós-industrial”.

Nas duas narrativas escolhidas para análise, Elmer Kelton e John Graves denunciam, em tom lamentoso, a destruição da memória topográfica a partir da inundação de regiões onde personagens habitam ou percorrem. Águas de um Rio Lete moderno, que apagam traços culturais, sinais da existência humana, de história.

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Goodbye to a River e The Man Who Rode Midnight: aspectos representativos

de uma memória topográfica

O desenvolvimento econômico tem como provável correlato modificações da natureza, normalmente conflitantes e impactantes. O conflito ou o receio provocado pelo desenvolvimento regional, com a substituição de determinadas atividades econômicas e a alteração da geografia natural do Texas, é tema das narrativas The Man Who Rode Midnight, de Elmer Kelton, e Goodbye to a River, de John Graves. Esses dois livros discutem, basicamente, qual seria o impacto imediato na vida dos habitantes (rancheiros, cowboys, pescadores, ribeirinhos) quando as regiões habitadas por eles fossem inundadas pela construção de lago e represas. Evidentemente, o maior problema não se restringe apenas às alterações geográfica e ecológica. Há, além dos aspectos mencionados, uma questão de história cultural e individual na discussão da conservação da memória ameaçada pela transformação espacial. Sendo assim, dois vieses se descortinam na abordagem deste texto: o aspecto memorialístico, posto em perigo por transformações geográficas; e o aspecto espacial, em decorrência de represamento de água, que ameaça, perigosamente, o contato afetivo das personagens com o seu espaço rural. A relação entre estes dois aspectos é o tema do presente texto.

O livro de Kelton apresenta como personagem principal Wes Hendrix, um

cowboy de idade avançada e que foi famoso na juventude por montar o

conhecido cavalo Midnight. Morando na cidade de Big River, Texas, e sendo proprietário de um rancho em crise financeira, Hendrix lamenta não possuir sucessor, já que o filho Truman mora em Houston e trabalha como contador. O neto, Jim Ed, mora também em Houston. Sua situação é mais preocupante porque os moradores mais influentes de Big River, inclusive o prefeito Levitt, pretendem substituir a principal fonte de renda da cidade (a atividade pecuarista) com o intuito de torná-la um ponto turístico das águas. Para isso, algumas propriedades teriam que ser vendidas para um grupo de investidores.

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Um lago seria construído. O problema era que a propriedade de Wes Hendrix teria que ser, da mesma forma, vendida. Houve, inclusive, oferta de compra com valor acima de mercado. Porém, o velho cowboy se nega terminantemente a vender a propriedade porque, justifica ele, sua história de vida estava ali. Wes questiona o neto: “‘Como você sabe o quanto ela vale? Como você põe um preço em quarenta e poucos anos? Você não viveu nem a metade desse tempo’” (KELTON, [s.d.], p. 28-29)6. Vê-se nesse desabafo que o velho cowboy não

admite quantificar, monetariamente, as quatro décadas vividas no rancho. Não se pode por preço na memória feliz.

Truman, interessado em pegar sua fatia da herança, envia o filho para observar o avô e servir como testemunha no processo de interdição que iria impetrar. Jim chega à fazenda do avô e, com o passar dos meses, acaba se afeiçoando ao ancestral e à atividade de cowboy até se voltar contra o pai. No final, vencido pela doença e assédio das autoridades locais, Wes vende o rancho, mas investe o dinheiro em outra propriedade que estava em dívida, o rancho

Chatfield-Dawson. Assim, ele continuaria sendo um cowboy.

Já a narrativa de John Graves, publicada em 1960, está em primeira pessoa. O próprio autor (que se torna personagem de seu próprio texto) decide fazer um relato poetizado de sua viagem pelo rio Brazos, no Texas, em outubro de 1957, quando descobriu que havia planos de construção de usinas hidrelétricas e de inundações de porções de terra para irrigação. Com isso, sua história e, além disso, a história de outros habitantes da região, muitos deles já desaparecidos, seriam apagadas. Em homenagem àqueles ribeirinhos, tantos heróis quanto vilões (ele não emite julgamento), e, acima de tudo, em homenagem à sua própria história e àquela porção do rio Brazos, a sua porção do rio, Graves

6 “How do you know what it’s worth? How do you put a price on forty-odd years? You ain’t lived

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escreve Goodbye to a River como um relato memorialista e de despedida daquele lugar.

O ato de escrever sobre o rio e seus habitantes tem como principal motivo a preservação, já que, além do represamento da água, Graves está ciente de que os próprios habitantes seriam, inevitavelmente, substituídos com o passar dos anos. Da mesma forma Elmer Kelton busca preservar a memória do cowboy tradicional (que viveu na virada do século XIX e início do século XX). Sua personagem principal, Wes, é uma homenagem a um antigo cowboy que ele conhecera na juventude e que exercera forte influência. Ele também se chamava Wes (cf. KELTON, [s.d.], p. 8). Assim, para que as memórias pudessem ser preservadas, os dois autores escreveram The Man Who Rode Midnight e

Goodbye to a River porque,

[q]uando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, o próprio evento que nele esteve envolvido ou que dele teve consequências, que a ele assistiu ou dele recebeu uma descrição ao vivo de atores e espectadores de primeira mão – quando ela se dispersa por alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades que não se interessam mais por esses fatos que lhe são decididamente exteriores, então o único meio de preservar essas lembranças é fixá-los por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pensamento morrem (HALBWACHS, 2006, p. 101).

As duas narrativas apresentam a mesma preocupação com o desaparecimento de porções espaciais por causa da força irresistível do progresso. Além do desaparecimento geográfico, o que fica explícita é uma tentativa de resgate da memória como se essa ação implicasse, de forma significativa, o resgate da própria identidade, compreendida aqui, na esteira de Michael Pollak (2015, p. 204), como “a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria”, portanto, “a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros”. Segundo Jacques

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Le Goff (2003, p. 469): “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”. Sendo um elemento constituinte do sentimento de identidade, nos dois aspectos (individual e coletivo), Pollak (2015, p. 204) conclui ser a memória, também, “um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”.

Conforme analisa Suzzane Nalbatian (2003, p. 41-42), desde Rosseau, há uma forte associação da memória com a natureza. Ela (a memória) tem sido uma operação voluntária que envolve totalmente a sensibilidade humana, sendo assim um sistema de apoio constante para a identidade humana. Essa atitude romântica encontra eco na literatura de Graves e de Kelton, tendo em vista que as narrativas estão baseadas na íntima relação das personagens com o espaço e, acima de tudo, com a memória que o espaço desperta. Como um fator importante para a consecução da identidade, a topografia memorialista engloba a atitude positiva do sujeito que se encontra pelo processo de interação com o espaço impregnado de lembranças. Para Georges Poulet (1992), a lembrança, por ato da imaginação ou mesmo da razão, diferencia espaços. O lugar, que se torna afetivo, permanece à parte no espaço do espírito do homem. São lugares, na verdade, que residem na memória, que são criados por sonhos ou pela participação nos sonhos de outros. Existem “lugares diretamente percebidos por nós em sua beleza particular, e realçados pela presença de um ser que lhes confere algo de sua própria individualidade” (1992, p. 23).

Citando o poema de William Butler Yeats, “The Trembling of the Veil”, em um dos capítulos de sua narrativa, John Graves parece concordar com a declaração do poeta irlandês quando este afirmou interrogativamente: “Todas as raças não tiveram sua primeira unidade de uma mitologia que os unem à rocha e à colina?”

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(2002, p. 21)7. A ideia de Yeats é que os homens, de todas as raças, têm uma

primeira unidade advinda da mitologia que os liga à terra. O livro de Graves é, posso assim dizer, a confirmação e o desenvolvimento filosófico dessa ideia pela relação íntima entre o autor/narrador/personagem (lembrando que John Graves é o autor e a personagem narradora) e a região por onde ele percorre, às margens do rio Brazos, no Texas. Essa mitologia que une o homem a terra perpetua o legado cultural da humanidade no ambiente em que ele (o homem) está intimamente atrelado. É por esse motivo que Graves escreve:

Às vezes você considera a terra por ela mesma, pelo que ela apenas revela, e às vezes ela força seus fantasmas sobre você, o cheiro das pessoas que viveram e morreram lá. Eles não têm que ser fantasmas individuais […] frequentemente eles são apenas a sensação que um tempo passado tem por você, o cheiro de uma era … e eles não

precisam cheirar bem (2002, p. 36)8.

Os mitos locais e as histórias que ecoam pelas margens do rio Brazos, as vidas das várias gerações que viveram no mesmo lugar, são partes do rio, de sua herança: “Todas as pessoas assassinadas, escalpeladas, estupradas, torturadas, vermelhas e brancas, todos os nomes orgulhosos que pertenceram às colinas e vales e desvios e cruzamentos” (GRAVES, 2002, p. 7)9. Personagens como

Bigfoot Wallace, Oliver Loving, Charles Goddnight e vários outros citados e relembrados durante a viagem de canoa, foram pessoas que transitaram pelas margens desse rio texano, que são não só desconhecidos para nós brasileiros, mas, inclusive, para a maioria dos texanos. Entretanto, todos eles são tão

7 “Have not all races had their first unity from a mythology, that marries them to rock and

hill?”.

8 “Sometimes you take country for itself, for what shows merely, and sometimes it forces its

ghosts too upon you, the smell of people who have lived and died there. They do not have to be individual ghosts [...] often they’re only the feel that a time past has for you, the odor of an era . . . and they don’t have to smell good”.

9 “All the murdered, scalped, raped, tortured people, red and white, all the proud names that

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importantes para o autor. É por isso que ele confessa: “Poucas pessoas fora do Oeste do Texas já ouviram falar sobre a maioria deles” (GRAVES, 2002, p. 7)10.

Esses nomes que, reconhece Graves (2002), ficam soando na sua mente significam os mitos locais que pairam sobre o todo e fornecem a fundação solidificada para o sentido de ligação espiritual com as suas memórias. Goodbye

to a River parece tentar corrigir a impressão do autor de que atualmente as

pessoas estão menos ligadas à história, e isso fica solidificado, se assim posso me exprimir, na representação topográfica da paisagem, que é transformada em nome do progresso:

Através do rio uma fenda nos algodoeiros mostrou onde o Córrego Elm chega ao Brazos de um ponto histórico, um vale que costumavam chamar de Indian Hole. As pessoas estão hoje menos “ligadas”, conforme Yeats, às rochas circundantes, aos vales e pradarias, e pensam cada vez menos nisso ao ponto de os antigos nomes se perderem. [...] Lá, em 1858, um camarada chamado Tom Choctaw, junto a um grupo de parentes e amigos, descobriu o privilégio de se ter um índio junto aos colonos brancos. A lição não os fez bem porque ninguém sobreviveu, mas eles aprenderam de qualquer forma (GRAVES, 2002, p. 46)11.

O que Graves evidencia é a constatação de que o Indian Hole talvez não mais exista porque as pessoas se esqueceram de sua história, se esqueceram, inclusive, da sua real localização. Em torno de um século depois (lembro que a viagem de Graves acontece em 1957), o evento de 1858 já estava quase esquecido, assim como onde havia ocorrido. Esta seria apenas mais uma das várias histórias a se perder com o passar dos anos, embora Graves a conhecesse.

10 “Few people outside of West Texas ever heard of most of them”.

11 “Across the river a gap showed in the cottonwoods where Elm Creek comes to the Brazos

from […] another historic spot, a vale they used to call the Indian Hole. People are less ‘married’ now, in Yeat’s sense, to surrounding rocks and hollows and prairies, and think less of them, so that the old names get lost […] There, in 1858, an old fellow named Choctaw Tom, together with a band of his relatives and friends, learned what an ineluctably sweet privilege it was to be a red man on the white man’s fringe of settlement. The lesson didn’t do most of them much good because they didn’t survive it, but they learned it anyhow”.

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O alargamento de vários trechos do rio Brazos só aumentaria o perigo do esquecimento dessas histórias. John Graves, por ainda conseguir percorrer suas margens, objetiva “eternizá-las” no seu relato, prestando, ao povo da região, sua mais sincera homenagem. Consequentemente, a impressão mais evidente é que a narrativa alerta para essa perda do contato com o espaço rural, que implica no enfraquecimento da memória e, até, o seu desaparecimento pela inundação da região.

Entretanto, o represamento do rio não significa ser, necessariamente, o único poder destruidor da memória, que ameaça extinguir a lembrança do lugar. Na verdade, a memória dos eventos do passado está cada vez mais desvanecida pela própria atitude da sociedade quando, curiosamente, institui momentos no calendário para a rememoração, ou ressuscita eventos em panfletos, como se isso fosse suficiente. De fato, o que Graves observa é que as histórias já vêm mergulhando em uma névoa por um longo tempo:

O fato é que as histórias têm mergulhado em um nevoeiro por longo tempo, como talvez elas devessem. Promotores, obrigatoriamente barbados, promovem, em pequenas cidades, eventos centenários e ressuscitam antigos derramamentos de sangue em panfletos e festivais [...] Algumas cidades preservam concursos anuais e museus. Mas os significados estão alterados lá, [...] de tal forma que as realidades grosseiras do passado têm se desvanecido a cada ano (GRAVES, 2002, p. 142)12.

A constatação de John Graves corrobora a ideia de que “[n]ossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida” (HALBWACHS, 2006, p. 78-79), tendo em vista que os eventos mencionados estão temporalmente distantes e são estranhos aos seus promotores. Os concursos, as encenações, os

12 “The fact is, the stories have been retreating into fog for a long time, as maybe they should.

Boosters in compulsory beards stage centennials in the little towns and resurrect the old bloodshed in pamphlets and festivals […] Some towns maintain annual pageants, and museums. But the significances are transmuted there, […] so that the rough-edged realities of the past have faded dimmer each year”.

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museus e os panfletos têm um efeito oposto ao seu objetivo primário: não preservam a memória porque elas já estão modificadas. A memória é significativa pelo seu teor experiencial, pois que vem das experiências, da história vivida, jamais da história aprendida.

Wes Hendrix sabe disso e, por esse motivo, se torna um ponto de resistência simbólica às mudanças e à força avassaladora do progresso inevitável. Ao buscar preservar o rancho, mesmo que ele esteja dando prejuízo financeiro, o velho

cowboy tenta preservar a sua memória pessoal familiar, da época de juventude,

quando era conhecido por ter montado Midnight e quando, acima de tudo, vivera com a esposa Maudie. O apego ao rancho indica ser ele uma personagem que se nutre na essência da memória topográfica do passado, que não volta mais.

Sendo a lembrança o seu único recurso, Wes sente-se ameaçado pelo assédio da família e das autoridades de Big River. “A lembrança”, escreve Ecléa Bosi (1997, p. 53), “é a sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens lembrança”. Para uma personagem como Wes tão ligada ao passado, o fato de perder o rancho simboliza uma perda maior do que apenas a propriedade: na verdade, há por trás de seu receio o medo de perder a sua história e as boas lembranças do passado:

Ele [Wes] olhou através da sala para o manto onde muitas fotografias velhas ficavam. “Sabe por que tenho lutado tanto com eles sobre essa questão do lago? É por causa da terra, claro, porque eu amo este lugar. Porém, é mais do que a terra; são as memórias ligadas a ela. Este lugar mantém as memórias vivas.

“Se eu saísse daqui e fosse morar na cidade do jeito que o seu pai [de Jim Ed] quer, receio que as memórias enfraqueceriam. Seriam como árvores de raízes cortadas; secariam e morreriam. Eu também.

Preciso da terra. É onde minhas raízes estão” (KELTON, s/d, p. 216)13.

13 “He stared across the room at the mantle, where so many old photographs stood. “You know

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As memórias de Wes são aquilo que o fortalece diante das mudanças do mundo, o seu solo firme, daí a alusão da raiz que o sustenta na terra, e daí o empenho em não vender o imóvel porque a nossa experiência indica que árvore desenraizada ou com raiz fraca não se sustenta: cai na primeira ventania ou morre desnutrida. Outro fator a ser considerado é a percepção aguçada desta personagem ao estar ciente de que o seu último ato de heroísmo será isolado e recriminado pela maioria. Quando jovem, Wes foi admirado por ter vencido um dos maiores desafios do cowboy em competição, agora, em idade avançada, ele se tornou um empecilho para a marcha do progresso em Big River. Em conversa com Jim Ed, ele confessa:

“Estranha a forma como a vida muda as coisas em você. Naquela época, quando montei o velho Midnight, as pessoas tiravam fotos minhas. Meu nome estava nos jornais. As pessoas desviavam o caminho para vir apertar minha mão e conversar. Fui herói por um tempo e as pessoas se gabavam dizendo que me conheciam. Agora, tudo se foi; nada mais importa. Sou só um velho no meio do caminho de todos” (KELTON, [s.d.], p. 114)14.

Wes tem ciência de que sua era já havia passado. Ele se sente deslocado porque perdeu a sensação de pertencimento à cidade de Big River. Muito embora alguns tenham conhecido ele na juventude, como o prefeito Levitt e a primeira dama, os interesses comerciais sobrepujavam qualquer consideração do passado. O

But it’s more than just the land; it’s the memories that are tied up in it. This place keeps the memories alive.

If I was to leave here and go live in the city the way your daddy wants me to, I’m afraid the memories would fade. They’d be like trees with their roots cut off; they’d dry up and die. So would I. I need the land. That’s where all my roots are”.

14 “Strange, the way life changes things on you. That time I rode Ol’ Midnight, they taken my

picture. My name was in the papers. People went out of their way to shake my hand and talk to me. I was a hero for a while, and people liked to brag that they knew me. Now all that’s gone; it don’t mean a damned thing anymore. I’m just an old man standin’ in everybody’s way”.

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xerife da cidade, Wally, pretendia fazer um resort nas terras herdadas da esposa. Em conversa com Wes, ele comenta:

“Aquela velha foto me fez pensar em algo melhor do que uma banca de iscas. Você poderia montar um estábulo, Wes. Você sempre amou cavalos. Você poderia alugá-los para as pessoas cavalgarem em volta do lago. E quantos homens hoje podem dizer que montaram o velho Midnight em seu auge? Você poderia se aproveitar disto. As pessoas viriam para te ouvir contar as histórias antigas de rodeio.”

Jim Ed viu o rosto do avô ficar nublado. O velho primeiro olhou fixamente para a foto, depois para o xerife [...]. “Wally, você já leu sobre Buffalo Bill?”

“Claro. Coisas como aquelas me fizeram querer ser oficial de paz.” “Buffalo Bill era um caçador de búfalo e escoteiro de índio. Era um dos bons. Mas chegou uma época quando não precisavam mais disso. Aí ele entrou em um show business e começou a zombar de tudo que havia feito antes. Ele exagerou a verdade até o ponto onde não sabia mais o que era fato ou mentira. Preferiria criar porcos a me

transformar em algo assim” (KELTON, [s.d.], p. 110-111)15.

O velho cowboy se nega a ser uma mera caricatura daquilo que ele foi um dia, pois ele tem um código ético a seguir e que jamais abandona. Lembrando Buffalo Bill, que ficou famoso ao promover shows com a temática western, Wes alerta que Buffalo “exagerou” tanto na verdade ao ponto de não saber mais o que era fato e o que era mentira. A posição questionadora de Hendrix se opõe à imagem que Buffalo construiu de si. É verdade que Hendrix não deseja fama,

15 “That old picture just made me think of somethin’ better than a bait stand. You could set up

a ridin’ stable, Wes. You’ve always loved horses. You could rent them for people to ride around the lake. And how many men alive today can say they rode old Midnight in his prime? You could make hay on that. People would come just to hear you tell those old rodeo stories.”

Jim Ed watched his grandfather’s face cloud. The old man stared first at the picture, then at the sheriff. […]. “Wally, did you ever read about Buffalo Bill?”.

“Sure. Stuff like that was that made me want to be a peace officer”.

“Buffalo Bill was buffalo hunter and an Indian scout. A good one, too. But there come a time when they didn’t need such things anymore. So he went into show business and made a mockery out of every real thing he’d done. He stretched the truth till even he didn’t know what was fact and what was lie. I’d sooner slop hogs for a livin’ than turn into somethin’ like that”.

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muito menos dinheiro. Ele só quer ser lembrado por todos como um sujeito ligado a terra e que, certa vez, realizou uma ação notável.

Como eram escassos e poucos confiáveis aqueles que o conheceram ainda na juventude, dando pouca importância para a sua história pessoal, em certo momento, Wes, quando se vê obrigado a assinar a venda da fazenda, foge com o neto para sua antiga cidade, destruída e abandonada depois que o recurso natural (petróleo) havia sido extinguido. Como “[a] memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, [...] enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo” (BOSI, 1997, p. 54), na falta dessa proximidade, o último recurso de Wes se descortina num retorno às origens da memória mais antiga. Ele busca a recordação de momentos mais felizes no lugar da infância, uma vez que Big River se tornara um ambiente hostil. Recordar é trazer de volta ao coração, quer dizer, trazer as imagens felizes à antiga sede da memória (DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO, 2015), e o que Wes tenta é, exatamente, trazer de volta ao coração (como a sede simbólica da memória) as lembranças felizes.

Em sua cidade natal quase completamente abandonada, Hendrix se depara com um cenário de destruição e a visita que ele faz a um velho amigo tem um efeito mais negativo do que terapêutico. Se Big River não lhe era favorável, sua antiga cidade natal decadente só acentuou, de forma negativa, a passagem inexorável do tempo e o apagamento das gerações anteriores. Avô e neto chegam à casa de um antigo amigo chamado Grover Cleveland Ransome. Nesse momento, a descrição da melancólica casa de Grover é feita sob a perspectiva de Jim Ed. Ele observa com assombro a característica lúgubre da sala de um homem em processo de decomposição física e memorialística:

A cadeira de balanço do velho tinha travesseiros no assento e na costa cobrindo o estofamento desgastado pela idade. As paredes estavam repletas de fotografias desbotadas que deveriam ter mais de cinquenta ou sessenta anos, [...]. Uma velha sela estava encostada no

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383 canto, empoeirada e ressecada, precisando de hidratação. Corda e

rédea jaziam sobre ela como se tivessem prontas para uso imediato, mas a corda estava tão velha e mole que estava pendurada como pano. Esporas suspensas em um gancho na parede, as perneiras ressecadas e quebradiças. Todas essas coisas eram relíquias de um passado desaparecido. O lugar era um museu desordenado e negligenciado, ou talvez mesmo um mausoléu para os vivos, pensou

Jim Ed (KELTON, [s.d.], p. 238-239)16.

Wes teve, nessa curta viagem, duas grandes lições: a primeira delas tem a ver com uma força mais poderosa do que o próprio interesse econômico: a força do esquecimento. Sua cidade natal estava abandonada porque não havia mais petróleo. O esgotamento deste recurso natural fez com que os moradores migrassem, e os poucos que continuaram estavam desaparecendo nas ruínas da decadência; a segunda lição abrange a sua vida. Contemplando a casa-museu-mausoléu de Grover, ele percebeu que a força irresistível do tempo é algo inevitável e certo. Por mais que tentasse lutar, a derrota seria iminente. Assim, ele decide voltar para Big River e vender o rancho, embora ocorra uma virada de situação no final do romance, quando ele aplica o dinheiro em

Chatfield-Dawson.

Curiosamente, Elmer Kelton põe no discurso de Glory B., a neta da proprietária de Chatfield-Dawson, portanto, sendo a jovem uma representante da nova geração convocada para exercer o seu papel na sociedade, a verdade aprendida por Wes no seu retorno à Big River: “Os tempos mudam. As pessoas vêm e vão, mas aquelas velhas colinas continuam as mesmas. Porém, misturadas e

16 “The old man’s rocking chair had pillows in the seat and back, covering upholstery frayed

from age. The walls were hidden by faded photographs that must have dated back fifty or sixty years […]. Most appeared to have been made at rodeos and on ranches. An old saddle lay in a corner, dusty and dry, badly in need of oiling. A rope and bridle lay across it as if ready for immediate use, but the rope was so old and limp that it hung like a drape. Spurs dangled from a hook on the wall, the leathers dried and brittle. All these things were relics of a disappeared past. The place was an unkempt, neglected museum, or perhaps even a mausoleum for the living, Jim Ed thought”.

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problemáticas, eu acho. Posso olhar para elas e recuperar minha perspectiva. São eternas” (KELTON, [s.d.], p. 261)17.

Apesar de as colinas serem “eternas”, o homem não é, e a memória é aquilo que poderia lhe dar, de forma simbólica, uma sobrevida, como os monumentos erigidos em honra de uma pessoa já falecida: “o monumento, como indica a etimologia latina da palavra, pretende ser a expressão tangível da permanência ou, pelo menos, da duração. É preciso haver altares [...], palácios e tronos” para que as pessoas “não fiquem sujeitos às contingências temporais” (AUGÉ, 2003, p. 58).

A preservação do rancho de Wes indica a sua preocupação com a memória do lugar, ou seja, a sua própria memória ameaçada pela inundação de uma represa. Considerando esse aspecto, tanto em Goodbye to a River quanto The

Man Who Rode Midnight, o elemento água, além do componente físico, pois a

água inunda, sugere uma representação simbólica. A água submerge lugares assim como submerge a memória dos lugares. Sendo assim, nas duas narrativas, a água representa o poder líquido do esquecimento. Os antigos gregos concebiam o temido esquecimento como um rio do submundo, o Lete, cujas águas, para aquele que se banhasse ou bebesse, faria com que se esquecesse de sua vida anterior. Considerando a simbologia desta imagem, a memória é mergulhada no elemento líquido, sendo, então, liquidada (WEINRICH, 2001, p. 24).

Em Goodbye to a River, a construção de represas no rio Brazos, de Posssum Kingdom (no condado de Palo Pinto, Texas) até Lake Whitney, cerca de 48 km de Waco, motiva John Graves a escrever o livro. Tal ato demonstra uma preocupação ecológica e antropológica do autor por causa do impacto

17 “Times change. People come and people go, but those old hills stay the same. However mixed

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geográfico e, também, sociocultural, já que várias histórias ocorridas nas margens do rio, com suas personagens icônicas, seriam inundadas. Além das histórias dos outros, sua própria história seria, da mesma forma, apagada:

Mas se você se parecer comigo, nem a certeza de mudança nem a sua necessidade ou mesmo qualquer filosofia distorcida irá poupá-lo de sentir certo temor enfurecido quando ouvir que o rio que você sempre conheceu, e que todos os homens daquele lugar […] logo não mais existirão. Uma porção do rio, de qualquer maneira, a minha porção (GRAVES, 2002, p. 8-9)18.

O fato de as duas narrativas apresentarem o dilema de seus protagonistas diante da ameaça de inundação contribui para a discussão da necessidade de preservação da memória em uma sociedade que prioriza o progresso. Uma questão que ficou evidente e que precisa ser melhor analisada é o papel que o espaço da memória exerce na consciência afetiva das personagens. Além de a memória ser um fator que contribui para a concepção da identidade, o espaço também é outro aspecto fundamental. Espaço e memória têm uma relação íntima e salutar. Paul Ricoeur (2012, p. 57) escreve que as “‘as coisas’ lembradas são intrinsecamente associadas a lugares”. Daí que:

Esses lugares de memória funcionam principalmente à maneira dos reminders, dos indícios de recordação, ao oferecerem alternadamente um apoio à memória que falha, uma luta na luta contra o esquecimento, até mesmo uma suplementação tácita da memória morta. Os lugares “permanecem” como inscrições, monumentos, potencialmente como documentos, enquanto as lembranças transmitidas unicamente pela voz voam, como voam as palavras (RICOEUR, 2012, p. 57-58).

18 “But if you are built like me, neither the certainty of change, nor the need for it, nor any

wry philosophy will keep you from feeling a certain enraged awe when your hear that a river that you’ve known always, and that all men of that place […] will shortly not exist. A piece or river, anyhow, my piece”.

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Essa atitude positiva explica, por exemplo, o motivo do interesse humano de manter o espaço valorizado. E como a literatura discute o comportamento humano, é possível observar a tentativa de preservação de lugares afetivos por meio das já aludidas reações simbólicas à passagem do tempo, fenômeno que é inevitável e inexorável.

Aspectos representativos de uma topografia memorialista e identitária em

Goodbye to a River e The Man Who Rode Midnight

A preservação da memória implica na preservação do espaço. O espaço é uma necessidade biológica e, para os seres humanos, é também “uma necessidade psicológica, um requisito social, e mesmo um atributo espiritual” (TUAN, 1980, p. 66). Preservar a memória é concentrar-se no esforço de conservação da identidade, pois trata-se da permanência da história pessoal (ou coletiva). É por esse motivo que Marc Augé (2003, p. 52) estabelece três fatores centrais para a constituição do lugar19: eles se pretendem identitários, relacionais e

históricos. Ao se referir ao primeiro fator, o autor francês confirma a importância do lugar de nascimento (que poderia ser, por extensão, o lugar da infância ou de uma experiência feliz e marcante), pois ele constitui a identidade individual. Isso provavelmente explica a importância dada ao espaço doméstico de Wes Hendrix, em The Man Who Rode Midnight, assim como ocorre às margens do rio Brazos, a parte do rio de John Graves, em Goodbye to a River. Esse é o sentido de espaço, de pertencimento a uma tradição memorialística. O sentido de espaço, informa Doreen Massey (2001, p. 119), estaria associado à memória, ao êxtase e à nostalgia, ou seja, as tradições passadas que, no caso das duas narrativas, corriam perigo de desaparecimento.

19 Augé diferencia lugar (caracterizado pela presença humana) e espaço (termo mais abstrato

e matemático para se referir a uma extensão ou distância). Como a intenção do artigo não é discutir e diferenciar conceitos, opto por me referir a espaço ou lugar com o mesmo sentido antropológico, até porque, outros autores (Michel de Certeau e Mieke Bal) categorizam espaço e lugar com o sentido contrário proposto por Augé.

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A valoração espacial das personagens centrais das duas narrativas abrange esse sentido. Se para uma criança, explica Schama (1995), a visão da natureza pode estar carregada de memórias, mitos e sentidos complicados, muito mais complexa poderia ser a mesma natureza para os olhos de um adulto: “Apesar de estarmos acostumados a separar natureza e percepção humana em dois reinos, elas são, de fato, indivisíveis” porque “[a]ntes de serem o repouso das sensações, a paisagem é trabalho da mente. Seu cenário é construído muito mais pelos estratos da memória do que por leitos ou rochas” (SCHAMA, 1995, p. 6-7)20.

Em Goodbye to a River, fica evidente que a narrativa de John Graves tem um tom confessional e afetivo, como se fosse a despedida do lugar e, acima de tudo, da sua história pessoal agregada à história dos povos ribeirinhos, tendo em vista que o rio pertencia a ele; a paisagem, a fauna e flora, as cores da natureza faziam parte de sua constituição espiritual:

O Brazos pertencia a mim naquela tarde, todo ele. De fato, pertencia. O céu azul de outono (os céus limpos no Texas, em outras épocas do ano, tendem a ser brancos, alvos), o ar branco/amarelo, os cedros e carvalhos verdes, dourados e vermelhos, as rochas do tamanho de edifícios, o sol nas minhas costas […] Pertenciam a mim, e os pássaros chilreantes e os animais não vistos (os rastros dos veados e quatis sobrepondo-se na lama das margens) […] Os sons das pessoas e uma consciência delas me comovem de tempos em tempos […] um mugido de vaca […] mas era outono, e eles não estavam no rio. Ele era meu (GRAVES, 2002, p. 52)21.

20 “For although we are accustomed to separate nature and human perception into two realms,

they are, in fact, indivisible. Before it can ever be a repose for the senses, landscape is the work of the mind. Its scenery is built up as much from strata of memory as from layers or rock”.

21 “The Brazos belonged to me that afternoon, all of it. It really did. The autumn-blue sky (fair

skies in Texas at other times of year tend to be white, bleached), the yellow/white air, the cedars and oaks green and gold and red, the rocks the size of buildings, the Sun on my back […] Belonged to me and the whistling birds and the unseen animals (deer and coon tracks overlaid each other in the shore’s silt […] People’s sounds and a consciousness of them touched me from time to time – […] a cow call […] but it was fall, and they weren’t on the river. It was mine”.

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Seu objetivo é revisitar apenas uma “parte do rio”, a sua parte, aquela que lhe é familiar desde a sua juventude, pois “você compreende apenas uma parte do rio. O rio todo [...] é muito para se compreender” (GRAVES, 2002, p. 4)22. Mas, essa parte não é uma escolha aleatória, e sim um trecho “do rio que tivesse significado para mim durante uma boa parte da minha vida na forma como partes de rios podem ter significados” (GRAVES, 2002, p. 4)23.

O afeto nutrido pelo espaço é analisado por Yi-Fu Tuan (1980, p. 5) quando ele cunha o termo topofilia. Segundo o autor, a palavra significa “o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico” tendo como ponto de partida a experiência pessoal e, posso assim dizer, feliz do sujeito com o espaço. O afeto necessita de um espaço reduzido, o que parece indicar aquela parte do rio mencionada por Graves, embora seja uma extensão considerável, mas não é o todo. Conforme Tuan,

a topofilia necessita um tamanho compacto, reduzido às necessidades biológicas do homem e às capacidades limitadas dos sentidos. Além disso, uma pessoa pode se identificar mais facilmente com uma área, se ela parece ser uma unidade natural. A afeição não pode se estender a todo um Império, porque frequentemente, este é um conglomerado de partes heterogêneas, mantidas unidas pela força. Ao contrário, a região natal (pays) tem continuidade histórica e pode ser uma unidade fisiográfica (um vale, litoral, ou afloramento calcário) pequena o suficiente para ser conhecida pessoalmente (1980, p. 116-117).

Em The Man Who Rode Midnight, a topofilia compreende tanto o ambiente externo (como a extensão territorial dos ranchos) quanto as casas dentro das propriedades. Quando Wes esclarece para o neto de que ele está em casa e que “‘[c]asa é qualquer lugar neste rancho’”24 (KELTON, [s.d.], p. 79), ele quer

dizer que se sente protegido e acolhido em sua propriedade, como se ela fosse

22 “You can comprehend a piece of a river. A whole river [...] is much to comprehend”.

23 “A piece of it that has had meaning for me during a good part of my life in the way that

pieces of rivers can have meaning”.

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uma parte integrante da sua residência íntima, que é sinônimo de constituição emocional. Yi-Fu Tuan escreve:

Os pertences de uma pessoa são uma extensão de sua personalidade; ser privado deles é diminuir seu valor como ser humano, na sua própria estimação. A roupa é o pertence mais pessoal. [...] Além da roupa, uma pessoa no transcurso do tempo, investe parte de sua vida emocional em seu lar e além do lar, em seu bairro. Ser despejado, pela força, da própria casa e do bairro é ser despedido de um invólucro, que devido à sua familiaridade protege o ser humano das perplexidades do mundo exterior. Assim como algumas pessoas são relutantes em abandonar um velho casaco por um novo, algumas pessoas – especialmente idosas – relutam em abandonar seu velho bairro por outro com casas novas (1980, p. 114, grifo do autor).

Wes alega ter dedicado 40 anos à vida no rancho. Deixar para trás a propriedade equivaleria a abandonar toda a memória que ele tinha do lugar. Uma personagem ligada a terra como é Wes sente-se deslocada quando é obrigada a estar em outro lugar que não seja o dela: “Nas poucas vezes que a avó Maudie [de Jim] obrigou ele a visitar a cidade, ele agiu como uma criança perdida e confusa” (KELTON, [s.d.], p. 18)25.

A explicação desse deslocamento está na falta de laço afetivo com a cidade esvaziada de sentido, de história pessoal e familiar construída. Embora para alguns a cidade tenha o seu valor espacial, a consideração é feita sob a perspectiva de Wes e a sua sensação de inutilidade, afinal, o que um cowboy poderia fazer de atividade no meio urbano? Como ele cuidaria da terra se ela foi asfaltada? Como corrigir o problema de falta de espaço na urbe? Como lidar com o ar poluído? O que fazer da vida se faltam essas possibilidades? Desde Virgílio, há uma ideia de fuga da cidade e de valorização do campo, da vida em proximidade com a natureza: “Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas, cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes

25 “The few times Grandmother Maudie had forced him into visiting the city, he had been like

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emocionais poderosas. O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes simples” (WILLIAMS, 2011, p. 11). Wes explica ao neto o motivo do apego ao rancho e às memórias provenientes desse contato: “‘Comprei e paguei por este rancho centímetro por centímetro. Reguei cada planta com suor e um pouco de sangue, também. Criei meus filhos e passei a maior parte da minha vida de casado aqui com Maudie. Não vou desistir daqui para que você construa uma rampa de barco’” (KELTON, [s.d.], p. 109)26.

A história pessoal não pode, de forma alguma, ser abandonada em prol de um recomeço em outro ambiente, afinal, Wes não estava disposto a um recomeço na cidade. Para aqueles que já têm uma conexão com o passado, a memória que essa ligação desperta não pode ser desconsiderada, pois “[a] consciência do passado é um elemento importante no amor pelo lugar” (TUAN, 1980, p. 114). É o que explica Glory B. para Jim Ed: “‘Acho que uma casa antiga como esta não pode ser muito bonita para a maioria das pessoas, mas é como um pedaço da história familiar ainda viva. Meu bisavô a construiu. Minha avó ainda adora vir aqui e se lembrar’” (KELTON, [s.d.], p. 197)27. Sob essa perspectiva,

a cidade não proveria os recursos necessários para a vida de Wes porque a idade já avançada e o costume da vida no campo não poderiam ser desconsiderados em virtude de um recomeço na cidade.

Seria um recomeço sem a experiência necessária para o cultivo da topofilia. Tuan (1983) considera o fator experiência como atributo importante para o desenvolvimento afetivo espacial. O sentimento do espaço pode ser progressivo, ou seja, ser construído a partir da própria vivência, daí o fator da experiência ser levantado, já que “[e]xperienciar é aprender; significa atuar

26 “I bought and paid for this ranch an inch at a time. Watered every foot of it with sweat, and

a little blood, too. I raised my sons on it, and spent most of my married life here with Maudie. I ain’t givin’ that up just so you can build a boat ramp”.

27 “I guess an old house like this can’t be pretty to most people, but it’s like a bit of family

history still alive. My great-grandfather built it. My grandmother still loves to come over here and remember”.

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sobre o dado e criar a partir dele. O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é um constructo da experiência, uma criação de sentimento e pensamento” (TUAN, 1983, p. 10).

Pensando na experiência com o espaço, é possível visualizar o conceito de Tuan (1983) no romance The Man Who Rode Midnight quando as personagens discutem o valor afetivo do espaço (em especial, a planície de Big River) a partir de sua visualização. Neste momento, fica subentendido o papel fundamental que o sentimento tem como filtro afetivo na percepção do espaço e sua atribuição de valores. Quando Wes Hendrix chama atenção do neto: “‘Olhe mais adiante. Quero que você veja o motivo de eu não deixar eles tomarem este lugar sem uma boa luta. Já viu uma algo tão belo em sua vida?’”28, Jim Ed

somente conseguiu ver aquilo que um olhar mais objetivo, sem envolvimento emocional e menos íntimo estava apto: “Tudo que ele podia ver era a lateral da colina, camada sobre camada de calcário, mais íngreme até do que o outro lado que ele havia escalado” (KELTON, [s.d.], p. 21)29.

A visão que Wes tem da paisagem é diferente da de Jim pelo fato de o velho

cowboy ter passado boa parte da vida dele naquelas paragens. Assim, ele criou

um laço afetivo com o espaço, com o seu espaço. Jim, por ter vivido na cidade, via a colina e seus detalhes geológicos, porém, não a percebia da mesma forma que o avô pela falta de envolvimento emocional. É por isso que ele reconhece: “‘Devo estar perdendo algo’. [...] ‘Você vê algo que eu não consigo. Seus olhos devem ser diferentes’”30. O diálogo continua:

28 “Looky yonder. I want you to see why I’m not lettin’ them take this place without they put

up a fight. Ever see such a pretty sight in your life”.

29 “All he could see was the side of the hill, layer stacked upon layer of limestone, steeper even

than the side by which they had climbed”.

30 “‘I must be missing something’. [...] ‘You’re seeing something I don’t. Your eyes must be

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392 “É tudo isso. […] O campo, o gado, o frio da manhã... tudo. Mas que

diabos, garoto, você não tem nada disso na cidade.”

“Estes ranchos parecem todos iguais pra mim, nada além de colinas de calcário e carvalhos e cedros.”

“Tudo está como você ensinou os seus olhos a ver. Para mim, uma casa na cidade parece a mesma coisa. Mas na minha casa ou aqui em Liveoak você poderia me levar para qualquer lugar de olhos fechados e eu te diria onde estaria.

“Ainda parece todo igual pra mim” (KELTON, [s.d.], p. 55-56)31.

Glory B. também tenta fazer com que Jim Ed veja aquilo que tanto ela quanto Wes conseguem ver. Entretanto, é preciso haver maior contato e mais experiência para que o verdadeiro sentimento topofílico seja despertado:

“Ontem eu te trouxe aqui, mas você não conseguiu ver nada. Ainda não consegue?”

“Não sei o que você quer que eu veja”.

“Você verá quando estiver aqui mais tempo. Vou continuar te

trazendo aqui até você ver” (KELTON, [s.d.], p. 81-82)32.

As citações em sequência apresentam situações semelhantes: uma personagem (o avô ou a amiga de Jim Ed) procura mostrar a mesma paisagem natural de Big River em três momentos distintos, convidando Jim a observar a beleza da região. Nas três tentativas, ele não consegue ver nada além da topografia, pois

31 “It’s all this. […] The country, the cattle, the mornin’ cool… all of it. Hell, boy, you’ve got

nothin’ like this in the city”.

“These ranches all look the same to me, nothing but limestone hills and live oak trees and cedar brush”.

“It all goes to what you’ve taught your eyes to see. To me, one city house appears the same as any other. But on my place or here on Liveaok you could lead me anywhere blindfolded and I could tell you where I’m at”.

“It still all looks the same to me”.

32 “Yesterday I brought you up here, but you couldn’t see nothin’. You still don’t, do you?”.

“I don’t know what you want me to see”.

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o que está implícito é a visualização da natureza pelo filtro afetivo. Como Jim não tem qualquer conexão com Big River e suas colinas, não possui história e relação íntima com o lugar, a natureza está esvaziada de sentido que, coincidentemente, tem valor parecido para Wes e Glory, pois ambos sempre estiveram envolvidos com o campo. Pela perspectiva topofílica, onde a cultura influencia na percepção, “[m]uitos lugares, altamente significantes para certos indivíduos e grupos, têm pouca notoriedade visual. São conhecidos emocionalmente, e não através do olho crítico ou da mente” (TUAN, 1980, p. 180).

A valorização do espaço ocorre pelo sentimento, às vezes nem sempre positivo. Sendo o espaço um construto humano, fruto da percepção de um sujeito inserido no mundo e que interage com ele, é a sensação humana que possibilita o espaço ser especial. De acordo com Maurice Merleau-Ponty, a sensação é “uma estrutura de consciência, e, em lugar de um espaço único, condição universal de todas as qualidades, nós temos com cada uma delas uma maneira particular de ser no espaço e, de alguma maneira, de fazer espaço” (2006, p. 299).

A presença humana é fundamental para a construção do sentido de espaço, pois o sujeito percebe o mundo à sua volta, atribui-lhe significado e interage com o espaço e com outros sujeitos que os habitam. A memória também é um aspecto importante que contribui na valoração espacial. Como explica Tuan (1980, p. 206), “[p]ara fortalecer nosso sentido do eu, o passado precisa ser resgatado e tornado acessível”. A impressão é que John Graves, em Goodbye to a River encontra o significado da memória no curso do rio Brazos, daí o seu objetivo de viagem.

A proposta dele é descrever a unidade do rio em sua diversidade, nas várias personagens que transitam pelo espaço (e que, de certa forma, fizeram o

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espaço), nas várias partes que completam o todo, sem deixar de considerar que ele também é um componente desta unidade:

Um rio todo é a montanha do país, a colina, a planície, o pântano e o delta; é o leito de rocha, de areia, de alga e de lama; é a água azul, verde, vermelha, clara, marrom, grande, pequena, rápida, lenta, límpida e imunda; são todos os tipos de árvores e ervas, e todos os tipos de animais e pássaros e homens que pertencem e têm pertencido

às suas margens (GRAVES, 2002, p. 4)33.

O trabalho do autor de Goodbye to a River é a do explorador que enxerga a história local através da observação da paisagem. Como um prosador, ele conta anedotas que circulavam pela região (algumas já pertencentes ao folclore local) e eventos passados desde a era pré-colombiana até os tempos atuais (década de 50 do século XX). Esse tipo de atividade configura aquilo que Mikhail Bakhtin intitula, ao se referir ao trabalho de François Rabelais, como o “mito local” (local myth), que

explica a gênese de um espaço geográfico. Cada localidade deve ser explicada, começando com o nome do lugar e terminando com os belos detalhes do seu relevo topográfico, solo, vida vegetal e assim por diante – tudo surgindo do evento humano que ocorreu lá e deu ao lugar o seu nome e a sua fisionomia. O local é o vestígio de um evento, o vestígio do que o moldou. Tal é a lógica de todos os mitos locais e as lendas que tentam, através da história, dar sentido ao espaço (1992, p. 189)34.

33 “A whole river is mountain country and hill country and flat country and swamp and delta

country, is rock bottom and sand bottom and weed bottom and mud bottom, is blue, green, red, clear, brown, wide, narrow, fast, slow, clean, and filthy water, is all the kinds of trees and grasses and all the breeds of animals and birds and men that pertain and have ever pertained to its […] shores”.

34 “Explains the genesis of a geographical space. Each locality must be explained, beginning

with its place - name and ending up with the fine details of its topographical relief, its soil, plant life and so forth - all emerging from the human event that occurred there and that gave to the place its name and its physiognomy. A locality is the trace of an event, a trace of what had shaped it. Such is the logic of all local myths and legends that attempt, through history, to make sense out of space”.

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John Graves reconta algumas histórias ocorridas às margens do rio Brazos para recuperar o seu caráter histórico e dar um sentido de espaço. O que ele marca é a presença humana transformadora do espaço, a sua interação com o mundo, que nem sempre é uma atividade benéfica. De qualquer forma, Graves observa a influência modificadora do homem e da sua passagem pela natureza. Outro aspecto relevante é a marca essencial e viva do passado no presente. As citações de eventos em Goodbye to a River são quase todas concernentes ao papel do homem na criação ou mudança de um espaço social e no heroísmo de algumas personagens da região: “um era Jesse Veale ou Charles Goodnight, ou às vezes um índio, um bravo... Podia-se ver eles heroicos em tamanho e postura, transformados em mito, e tentavam, em fantasia e jogo, viver o mito”. Naquela época “[h]avia heroísmo, mas eram pessoas, também” (GRAVES, 2002, p. 37)35.

Graves ressalta que é preciso ter um olhar afetuoso para o rio caso se queira observar todas as suas histórias, inclusive as personagens heroicas ou mesmo vilãs; um olhar especial que agrega emoções, aguçado para a beleza da natureza e que extrai significados das rochas. Não é uma perspectiva geológica, mas a reverberação da experiência do observador que imprime à paisagem um sentido de integração histórica ao ponto de haver, na mesma proporção, uma espécie de comunicação espiritual:

Se o rio tiver significado para você poderás ver tudo isso a partir do arenito das ribanceiras onde as montanhas acabam. Você não tem que se esforçar para impor os contos sobre a paisagem; eles estão lá. ... Margaret Barton em Brannon’s Crossing com uma flecha próxima ao coração que eles receavam tirá-la, esguichando no ar com a pulsação, por toda a noite ... Bill Youngblood, cujo bando caçou e matou os

35 “One was Jesse Veale, or Charles Goodnight, or sometimes an Indian, a brave one…. One saw

them heroic in size and posture, and transmuted them into myth, and tried in reverie and play to live the myth. It is the process that in this day has shaped the whole Western legend into a raucous lie flooding out from bluely glowing television screens. / There was heroism, but there were people, too”.

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396 índios que tinham o seu escalpo, e galopou até o cemitério na hora

certa de por de volta à cabeça (GRAVES, 2002, p. 140)36.

Todas essas histórias até certo ponto folclóricas pertenciam à alma de Graves, à sua história porque “[o] Brazos pertencia a mim naquela tarde” (GRAVES, 2002, p. 52).37 O rio era dele porque a sua história se incorporara ao rio, por

isso ele o descreve como uma convergência geológica/ambiental/ histórica/pessoal. Mesmo que a região pudesse ser inundada, haveria possibilidade de integração temporária à história do Brazos. Sua homenagem materializou-se em seu adeus. O adeus ao rio é uma despedida ao passado pessoal, mas também coletivo pela evocação de várias histórias ocorridas ali com outras figuras históricas e até folclóricas. O sentido de espaço se caracteriza pela confluência da relação entre sujeito e entorno e das memórias que são evocadas por essa relação, sempre levando-se em conta que se trata de uma relação feliz. É por esse motivo que tanto Wes Hendrix quanto John Graves caracterizam uma tentativa simbólica de resistência às mudanças no mundo. Apoiam-se na memória feliz de suas interações espaciais.

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36 “If the river has meaning for you, you can see all of that from the sandstone bluffs where the

mountains drop away. You don’t have to strain to impose the tales on the landscape; they’re there. ... Margaret Barton at Brannon’s Crossing with an arrow next to her heart which they were afraid to pull out, throbbing in the air with her blood beat, all night long ... Bill Youngblood, whose cohorts gave chase and killed the Indian who had his scalp, and galloped to the graveyard just in time to put it back on his head”.

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Recebido em: 12 de abril de 2016. Aprovado em: 12 de dezembro de 2016.

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