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Saúde: dever de todos e direito do Estado

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Academic year: 2021

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Saúde: dever de todos e

direito do Estado

Premissa fundamental a partir da qual se costuma tratar do direito à saúde e delimitar suas balizas é a que consta logo no início do caput do art. 196 da Constituição Federal: “A saúde é direito de todos e dever do Estado…”. Enfatiza-se, portanto, a condição da saúde como direito subjetivo cujos titulares são os cidadãos e cuja obrigação de garantia e tutela é do Estado. Essa categorização ressalta a saúde sob a ótica de um direito individual da pessoa e atrelado ao direito à vida e à dignidade próprias.

Existe, entretanto, uma outra vertente do direito à saúde que vem ganhando cada vez mais atenção ultimamente, sobretudo por conta da pandemia da COVID-19. É aquela que visualiza a saúde como um direito de toda a coletividade. Trata-se da “saúde pública”, que, apesar de já ser antiga conhecida dos sanitaristas e cientistas (na idade média já se estudavam e

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aplicavam medidas de vigilância sanitária e epidemiológica), nunca despertou tanto o interesse da comunidade em geral como nos tempos recentes.

Se muitas vezes a saúde pública é esquecida ou menosprezada no meio jurídico em razão da “moda” da discussão do direito individual à saúde (direito dos indivíduos ao recebimento de determinado medicamento ou tratamento), não é por falta de previsão ou proteção pelo ordenamento pátrio.

Em primeiro lugar, é preciso atentar para o fato de que o direito à saúde está previsto no rol dos direitos fundamentais sociais constantes no art. 6º da Constituição, e não no art. 5º, que trata dos direitos individuais. Isso não se deve unicamente ao fato de esse direito pressupor uma prestação positiva do Estado como forma de garanti-lo. Sucede que, muito além de um direito individual de cada pessoa, há também um direito de toda a coletividade à saúde geral. Nisso reside o seu caráter de direito social.

A l é m d o m a i s , a s a ç õ e s d e v i g i l â n c i a s a n i t á r i a e epidemiológica estão expressamente elencadas como competências do SUS (art. 200, II, da Constituição e art. 6º, I, da Lei nº 8.080/90). Tanto a Lei nº 8.080/90 como as demais leis e atos normativos que compõem o arcabouço jurídico do direito sanitário estão repletos de referências e regulamentações de medidas e políticas públicas relacionadas à saúde coletiva. O aspecto fundamental que aqui se pretende ressaltar no trato da saúde pública diz respeito ao dever dos cidadãos de colaborar para a sua manutenção. A obrigação de garantir a saúde da sociedade vista como um todo não é apenas do Estado, mas também de cada pessoa. Neste sentido, o art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.080/90 dispõe que:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

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(…)

§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.

Por outro lado, o direito à preservação da saúde coletiva p e r t e n c e à c o m u n i d a d e e m g e r a l , n ã o p o d e n d o s e r individualmente atribuído a cada pessoa. Aqui é que se inverte a lógica da saúde como “direito de todos e dever do Estado”, tal qual prevista no caput do art. 196 da Constituição, para uma saúde que também consiste em “dever de todos e direito do Estado”. A acepção de “Estado” ora adotada não é a de Administração Pública ou aparato estatal, mas sim a de “nação”, ou seja, do elemento subjetivo daquilo que se toma como Estado.

Acontece que a preservação da saúde coletiva, por sua própria essência, depende necessariamente de uma conduta colaborativa de cada indivíduo que compõe a sociedade. A pandemia da COVID-19, que assola terrivelmente todo o planeta e de maneira especialmente grave o nosso país, está repleta de exemplos de como a postura individual de uma pessoa tem o potencial de resguardar ou de prejudicar a saúde de muitas outras. Vejamos apenas alguns.

Sabe-se que para uma política eficiente de vacinação atingir seus efeitos de forma satisfatória não basta que o indivíduo que pretende se proteger do vírus receba a vacina. Considerando que, via de regra, os imunizantes não possuem cem por cento de eficácia, é preciso que o máximo de pessoas possível também seja vacinada de forma que a circulação viral seja acentuadamente reduzida. Assim, aliando-se a redução das chances de contágio com a redução da possibilidade de desenvolvimento da doença em suas formas mais graves quando o contágio ocorre, a proteção como um todo se torna robusta.

É fato comprovado cientificamente, também, que o uso de máscaras tem o condão de promover uma significativa redução da

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possibilidade de contágio, com índices muito melhores quando tanto aquele que pode potencialmente transmitir o vírus como aquele que pode potencialmente recebê-lo estão com as bocas e narizes cobertos pelo aparato. Além disso, o uso massivo das máscaras serve como estímulo à sua utilização pela sociedade, ao passo que a não utilização geral desincentiva a utilização por aqueles que o fazem.

Mencionem-se, ainda, as medidas de distanciamento social, também com eficácia científica já comprovada no combate à COVID-19 e também a outros vírus. Não basta que aqueles que não queiram colocar sua saúde em risco mantenham-se distantes dos demais, até porque na maior parte das vezes o isolamento absoluto é impraticável. É preciso que a comunidade em geral adote a prática para impedir a circulação do vírus como um todo.

O que se pretende dizer, enfim, é que a lógica da proteção da saúde coletiva como um direito tão fundamental como o é a saúde individual jamais será a de que cabe a cada indivíduo cuidar de sua própria vida. Pelo contrário, todos os cidadãos têm o dever de zelar também pela saúde dos outros. Há uma

obrigação particular de cada pessoa de se comportar de forma a

proteger a saúde da comunidade como um todo, ainda que não queira cuidar da saúde própria ou que o comportamento para tanto exigido não repercuta diretamente no próprio corpo. Não se trata apenas de altruísmo, benevolência ou simples dever moral, mas de imposição jurídica.

O direito à saúde alheia merece tanta proteção como o direito à saúde própria. A vida alheia deve se sobrepor a eventuais restrições pontuais na liberdade própria porque o direito à vida é pressuposto de todos os demais e, nessa condição, deve ser protegido com primazia. A pessoa que não aceita qualquer restrição à própria liberdade para seguir deveres de conduta necessários à proteção da saúde pública não apenas age de maneira egoísta, mas viola um dever jurídico imposto pela Constituição Federal e, de maneira ainda mais clara e

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expressa, pelo art. 2º, §2º, da Lei nº 8.080/90.

Se a saúde individual é um direito de todos e um dever do Estado, a saúde coletiva é um dever de todos e um direito do Estado (população). Desta forma, se o cidadão pode exigir que o Estado cuide de sua saúde, a sociedade pode exigir que cada cidadão cuide da saúde dos demais. Quem se recusa a se comportar como as medidas de saúde coletiva impõem não pode exigir que o Poder Público assegure sua saúde própria. A liberdade de um só vale se a liberdade dos outros também valer. A liberdade de todos depende de todos estarem vivos.

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