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Desigualdade de raça e de gênero no Brasil, a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais: reflexões sobre as políticas públicas de enfrentamento

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JOYCE DE MARIA

DESIGUALDADE DE RAÇA E DE GÊNERO NO BRASIL, A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: REFLEXÕES SOBRE AS

POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO

Florianópolis 2019

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JOYCE DE MARIA

DESIGUALDADE DE RAÇA E DE GÊNERO NO BRASIL, A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: REFLEXÕES SOBRE AS

POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Prof. Danielle Maria Espezim dos Santos, Dra.

Florianópolis 2019

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Dedico aqui a cada uma de nós que se foi lutando, na militância ou na vida. Entre a ânsia de citar seus nomes e o receio de invisibilizar àquelas que não citarei, fico apenas com a simplicidade do ato de dizer: obrigada por todas as sementes deixadas; nelas vocês ainda vivem.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço minha avó, Osmarina Cardoso de Almeida, uma das principais responsáveis pelo caminho aqui percorrido, academicamente e na vida. A pessoa que mais me apoiou no início, acreditando, confiando e enaltecendo. Aquelas frases em minha defesa, no momento decisivo, ainda ecoam aos meus ouvidos. Agradeço todo esforço e luta de vida, no passado por minha mãe e mais recentemente por mim. Em conjunto, agradeço toda minha ancestralidade. Todos que lutaram, mesmo que indiretamente, para que eu aqui chegasse.

À minha mãe, Simoni de Almeida de Maria, agradeço toda sua força e tranquilidade. Suas escolhas foram essenciais e certeiras, e a ajuda primordial, mesmo nos pequenos gestos do cotidiano. Sou imensamente grata por ter uma mulher tão incrível intercedendo por mim. Sempre lembrarei de todas as suas ações durante minha vida, incluindo o período de realização desta monografia, o qual foram de fundamental importância.

Agradeço minha amada sobrinha Isa, que mesmo com poucos anos de vida já faz tanto por mim, muitas vezes sem nem entender ou, ao menos, saber. Cheia de luz, energia e amor, pessoa maravilhosa que, seguindo os caminhos da avó e da bisavó, é de grande importância para minha vida e meus projetos.

Tudo por elas, minha avó, mãe e sobrinha.

Agradeço também meu pedacinho de primavera, Jess, por permanecer ao meu lado, me apoiando, me dando forças e me arrancando risadas até nos piores momentos. Receber amor durante esse processo foi uma das formas mais eficazes de alcançar motivação. Sou muito grata por esses olhos que foram, e são, fuga em dias nublados. Sou muito grata por te amar.

Agradeço meu benzin, Lud, que, mesmo à cerca de mil e trezentos quilômetros de distância, se faz sempre tão presente, tornando minha vida mais cor de roxo, lilás e, recentemente, dourado. Agradeço todo o amor e toda a ajuda recebida, ressaltando a contribuição como profissional e melhor designer do mundo. Agradeço por tu ser, e me permitir ser, por bem mais que trinta anos.

À minha orientadora, Danielle, agradeço principalmente a ajuda, a confiança e o acolhimento. Este trabalho só chegou ao resultado pretendido devido ao grande auxílio e apoio de uma grande professora. Poucas vezes me senti tão bem

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recebida e aceita em uma instituição. Fazer junto e com vontade, foi o grande diferencial. Muito obrigada por ser exceção!

Aos meus maravilhosos amigos, também agradeço. Apesar da distância, me ajudaram muito, acreditando, torcendo e demonstrando afeto. Não citarei o nome de cada um, mas todos eles sabem quem são, principalmente aqueles que eu parei para trocar energias, mesmo nos dias mais atarefados. Minhas amigas, especialmente, agradeço por serem tão maravilhosas.

Agradeço, ainda, àquelas que me transmitiram forças nos momentos mais difíceis. Cito, neste momento, apenas duas das centenas de mulheres negras que me inspiram, aqui, e também na vida.

À Antonieta de Barros, primeira marca da convicção do que eu construiria aqui. Costumo dizer que eu não poderia falar de algo diferente, e Antonieta reafirmou o que eu já sabia. Como deputada estadual, foi a primeira mulher negra a assumir um mandato popular no Brasil, e a primeira deputada mulher a integrar a Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Jornalista, professora, escritora e política, nascida em 1901 na cidade de Florianópolis, merecedora de todo reconhecimento e lembrança. Grande fonte de inspiração!

À Tássia Reis, presente durante todo o processo, por meio da poesia, com as suas palavras e com a sua voz. Identificação extremamente importante, por intermédio de uma personalidade totalmente inspiradora. Versos que funcionam vezes como abraços, vezes como silêncio, mas sempre como impulso. Eu só posso agradecer muito, enquanto levo comigo cada palavra preenchida, sempre.

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“Fui toda vida céu, toda vida alta

Me joguei no mar, sem querer fui nauta

Por pauta na onda da incompreensão, revolta Vivida em posição de condição, bandida Me solta, quis vida e a mesma quis fluir Respirei o não e nunca me poluí

Poli a flor lá do lixão pra eu fazer muda

E fui plantar meus versos com efeito de arruda” (Tássia Reis).

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RESUMO

A pesquisa tem como objetivo verificar o alcance das políticas públicas ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais, e sua efetividade no enfrentamento da desigualdade racial e de gênero na sociedade brasileira. Os métodos de pesquisa utilizados são, o método de abordagem de pensamento dedutivo e de natureza qualitativa, e o método de procedimento monográfico, enquanto a técnica de pesquisa é a bibliográfica, com base em artigos científicos e doutrinas, e a documental, com base em legislações. A desigualdade racial e de gênero atinge especialmente a mulher negra, pela interseccionalidade de raça e gênero que a alcança e a leva à base da estrutura social. Assim, perseguindo os conceitos de raça, gênero, interseccionalidade, desigualdade, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e políticas públicas, conclui-se com a pesquisa que as políticas públicas alcançam o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, apesar de não enfrentarem, efetivamente, a desigualdade de raça e de gênero na sociedade brasileira, mesmo que contribuam para sua diminuição.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 9

2 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO COMO UM FATO SOCIAL ... 11

2.1 ENTENDENDO GÊNERO E RAÇA ... 11

2.2 O CONTEXTO HISTÓRICO DA DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO .... 13

2.2.1 A desigualdade de gênero na história do Brasil ... 15

2.2.2 A desigualdade racial na história do Brasil ... 17

2.2.3 A figura da mulher negra... 22

3 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO NA SOCIEDADE BRASILEIRA .. 28

3.1 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO ... 31

3.2 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO 35 3.3 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO NA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA 42 4 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DIREITOS FUNDAMENTAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO ... 46

4.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO ... 46

4.1.1 O princípio da dignidade da pessoa humana ... 46

4.1.2 Os direitos fundamentais ... 48

4.2 A FUNÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA GARANTIA DE DIREITOS ... 50

4.3 POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO NA ÁREA DA EDUCAÇÃO E DO MERCADO DE TRABALHO ... 54

4.3.1 Políticas públicas na área da educação ... 58

4.3.2 Políticas públicas na área do trabalho ... 61

5 CONCLUSÃO ... 65

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1 INTRODUÇÃO

Apresentando como objeto as políticas públicas de enfrentamento da desigualdade racial e de gênero, a presente pesquisa tem como objetivo verificar o alcance das políticas públicas ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais, e sua efetividade no enfrentamento da desigualdade racial e de gênero na sociedade brasileira, partindo para tanto do seguinte problema de pesquisa: As políticas públicas alcançam o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, e efetivamente enfrentam a desigualdade racial e de gênero?

A desigualdade, como um problema social, mostra-se pela estruturação da sociedade marcada pela diferença relevante entre determinados grupos. Quando há a junção de duas ou mais espécies de desigualdade, pode-se visualizar a interseccionalidade destas. Para a presente pesquisa, com enfoque na raça e no gênero, afirma-se a interseccionalidade da desigualdade racial e de gênero, que atinge especialmente a mulher negra, figura em destaque para os objetivos propostos.

A promoção da igualdade é o mecanismo de quebra ou diminuição das desigualdades. E a igualdade, como um direito, tem as políticas públicas como caminho para sua promoção. Para o tema abordado, em especial a promoção da igualdade racial e de gênero. Assim, as políticas públicas, como um conjunto de ações desenvolvidas com o intuito de atender aos princípios e direitos constitucionais, sobretudo direitos fundamentais, são de grande importância para a verificação do enfrentamento da desigualdade racial e de gênero.

A partir desses conceitos, a pesquisadora, sendo mulher e negra, é motivada pela posição social que ocupa, ligada com o dilema pessoal que se caracteriza pelo incômodo à pouca representatividade de determinados grupos em espaços sociais e de poder, derivada das desigualdades existentes. Isto porque, quando se trata da questão de gênero e da questão racial, a mulher negra encontra-se, pela interseccionalidade, em grande desigualdade, pertencendo aos grupos que são pouco vistos em espaços enaltecidos enquanto são amplamente vistos em espaços marginalizados.

Ainda, cabe identificar a importância da pesquisa à comunidade acadêmica e à sociedade, se mostrando relevante ao tratar de um problema social antigo,

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imediato e em constante discussão. Na área acadêmica, a pesquisa relacionada à presença majoritária de determinados grupos em espaços sociais e de poder, contrastando com a desigual e minoritária presença de outros grupos, se revela importante frente aos fundamentos e princípios constitucionais vigentes, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade. Assim como, para a sociedade, a reflexão e análise sobre essas diferenças são essenciais para compreensão da desigualdade racial e de gênero como um fato e problema social a serem combatidos por intermédio de mecanismos como as políticas públicas.

Posto isto, para a construção da monografia, são elaborados três objetivos específicos, perseguidos por meio do segundo, do terceiro e do quarto capítulo aqui presentes. O segundo capítulo “A desigualdade racial e de gênero como um fato social”, tem por finalidade demonstrar historicamente a existência da desigualdade racial e de gênero, recorrendo ao estudo da antropologia e da história, criando uma linha do tempo explicativa, tanto da questão de gênero quanto da questão de raça, individualmente e também interseccionadas.

O terceiro capítulo “A desigualdade racial e de gênero na sociedade brasileira” tem o propósito de apontar estatisticamente a existência da desigualdade racial e de gênero, e confirmar sua materialização na sociedade brasileira, por meio de pesquisas oficiais averiguando educação, trabalho e distribuição de renda no Brasil. Já o quarto capítulo “Dignidade da Pessoa Humana, Direitos Fundamentais e Políticas Públicas de enfrentamento da desigualdade racial e de gênero”, tem o objetivo de identificar políticas públicas relacionadas à promoção da igualdade racial e de gênero, para isto explorando os princípios e direitos fundamentais, e as funções sociais das políticas públicas.

Por fim, quanto à metodologia utilizada na pesquisa, o método de abordagem é de natureza qualitativa e de pensamento dedutivo, visto que parte do problema social da desigualdade racial e de gênero para alcançar as políticas públicas de enfrentamento da desigualdade racial e de gênero, enquanto o método de procedimento é o monográfico. Já a técnica de pesquisa é a bibliográfica, com base em artigos científicos e doutrinas, e a documental, com base em legislações.

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2 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO COMO UM FATO SOCIAL

Este capítulo reserva-se à exposição conceitual de gênero, raça e seus complementos, à demonstração histórica da desigualdade racial e de gênero, e à compreensão do recorte necessário dado para a interseccionalidade que atinge a figura mulher negra.

2.1 ENTENDENDO GÊNERO E RAÇA

Previamente, antes de demonstrar historicamente a existência da desigualdade racial e de gênero para entendê-la como um fato social, é necessário que se compreenda o que é o gênero e o que é a raça, quando se discute desigualdade racial e de gênero. Para isso, há de se verificar a conceituação e a compreensão social, que inclusive podem não caminhar juntas.

Desse modo, a compreensão de gênero importa, inicialmente, a diferenciação com o sexo. Assim, de forma simplificada, enquanto o sexo refere-se ao aspecto biológico, o gênero é construído por fatores socioculturais. Contudo, o gênero e o sexo não estão desvinculados. Pelo contrário, o conceito de gênero parte da construção social e histórica do conceito de sexo, fazendo com que características biológicas sejam instituídas culturalmente com determinados padrões vinculados ao gênero feminino ou masculino. No dizer de Simone de Beauvoir:

Ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam-se de feminino. (BEAUVOIR apud BALESTERO, 2017, p. 109).

Dentre muitas conceituações formais de gênero, Saffioti (2004, p. 45) determina: “[...] o gênero é a construção social do masculino e do feminino.” Defendendo, ainda, o uso do termo patriarcado para definir as desigualdades nos papéis sociais dos gêneros, argumentando que é a ordem patriarcal de gênero que atribui qualidades positivas aos homens e negativas às mulheres, criando a ideia de inferioridade social.

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Não diferente do conceito de gênero, o conceito de raça também é uma construção social, como discorre Kabengele Munanga (2003):

[...] o conceito de raça tal como o empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação. A raça, sempre apresentada como categoria biológica, isto é natural, é de fato uma categoria etnosemântica. De outro modo, o campo semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam. Os conceitos de negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul, na Inglaterra, etc. Por isso que o conteúdo dessas palavras é etno-semântico, político-ideológico e não biológico. Se na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de um biólogo molecular a raça não existe, no imaginário e na representação coletivos de diversas populações contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a partir das diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. É a partir dessas raças fictícias ou “raças sociais” que se reproduzem e se mantêm os racismos populares.

No mesmo sentido, o entendimento de Stuart Hall é de que:

A categoria “raça” não é científica. As diferenças atribuíveis à “raça” numa mesma população são tão grandes quanto àquelas encontradas entre populações racialmente definidas. “Raça” é uma construção política e social. É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo. (HALL apud BAPTISTA, 2014, p. 204).

Conforme mencionado por Kabengele Munanga (2003), durante décadas os estudos da ciência biológica evoluíram para o entendimento que há atualmente, século XXI, de que a raça não é uma realidade biológica, mas apenas um conceito para explicar a diversidade humana e dividi-la em grupos. Assim, partindo da conclusão de que, biológica e cientificamente, as raças não existem, biólogos antirracistas chegaram a sugerir que o conceito fosse repudiado dos dicionários e dos textos científicos. Contudo, o conceito de raça:

[...] persiste tanto no uso popular como em trabalhos e estudos produzidos na área das ciências sociais. Estes, embora concordem com as conclusões da atual Biologia Humana sobre a inexistência científica da raça e a inoperacionalidade do próprio conceito, eles justificam o uso do conceito como realidade social e política, considerando a raça como uma construção sociológica e uma categoria social de dominação e de exclusão. (MUNANGA, 2003).

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Baptista (2014, p. 205), ao justificar o uso do termo, se coloca no sentido de que: “[...] só há sentido em usar o termo raça em uma sociedade racializada, ou seja, que define a trajetória social dos indivíduos em razão da sua aparência.”

Para mais, partindo desses conceitos e dessas definições, não se nega a existência do termo “etnia”, também empregada, muitas vezes, para definir diversidades fenotípicas. Porém, diferencia-se raça de etnia, na medida em que, segundo Munanga (2003): “o conteúdo da raça é morfo-biológico e o da etnia é sócio-cultural, histórico e psicológico.” Para Nilma Lino Gomes (2012, p. 730; 742):

[...] do ponto de vista sociológico, as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da Sociologia ou das Ciências Sociais, que trata das identidades sociais. [...] ao elegermos a raça como categoria central de análise, não abandonamos a etnia como um dos aspectos que nos ajudam a compreender as várias questões que envolvem a população negra, no Brasil, e a construção das suas identidades. O termo “étnico-racial”, ao nos referirmos ao segmento negro da população, abarca tanto a dimensão cultural (linguagem, tradições, religião, ancestralidade), quanto as características fenotípicas socialmente atribuídas àqueles classificados como negros (pretos e pardos, de acordo com as categorias censitárias do IBGE).

Mais adequado, nesse momento, ao falar de desigualdade racial, o uso do termo “raça” no sentido de identificar o grupo social no qual as pessoas negras estão inseridas, sobretudo porque a desigualdade racial está ligada diretamente ao racismo, pela sua origem, como ideologia de supremacia e inferioridade de raças, podendo ser verificado posteriormente.

2.2 O CONTEXTO HISTÓRICO DA DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO A desigualdade, no seu entendimento mais amplo, é marcada pela inferiorização de determinados grupos sociais, por motivo de gênero, raça, origem, classe social, orientação sexual ou qualquer outro aspecto que os tornem fora de um padrão de referência criado. Assim, determinadas características da individualidade, como o sexo, a cor da pele, a nacionalidade, interferem e determinam os espaços e as oportunidades sociais dos sujeitos. Nesse sentido, não há democracia com desigualdade, sendo posto que:

[...] a democracia exige igualdade social. Isto não significa que todos os socii, membros da sociedade, devam ser iguais. Há uma grande confusão

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entre conceitos como: igualdade, diferença, desigualdade, identidade. Habitualmente, à diferença contrapõe-se a igualdade. Considera-se, aqui, errônea esta concepção. O par da diferença é a identidade. Já a igualdade, conceito de ordem política, faz par com a desigualdade. As identidades, como também as diferenças, são bem-vindas. Numa sociedade multicultural, nem deveria ser de outra forma. Lamentavelmente, porém, em função de não se haver alcançado o desejável grau de democracia, há uma intolerância muito grande em relação às diferenças. [...] As desigualdades constituem fontes de conflitos, em especial quando tão abissais como no Brasil. Em casos como este, e eles existem também em outras sociedades, as desigualdades traduzem verdadeiras contradições, cuja superação só é possível quando a sociedade alcança um outro estado, negando, de facto e de jure, o status quo. (SAFFIOTI, 2004, p. 37, grifo nosso).

O gênero e a raça são construções sociais que, pela forma que são constituídos, acabam por transformar diferenças (biológicas e fenotípicas) em desigualdades (RIBEIRO, 2008). Compreender o cenário dessa transformação é entender por definitivo que diferenças, sejam elas de qualquer natureza, não justificam a desigualdade, que por si só não existiria, só existindo pela interferência hierarquizada das construções históricas e sociais. Nesse sentido, Mário Theodoro (2014, p. 207) afirma que é o racismo o motivo da transformação da diferença em desigualdade quanto à questão racial, argumentando que:

O racismo transforma diversidade em desigualdade. Operando a partir de uma escala de valores que torna socialmente aceitável, e mesmo justificável, a distribuição desigual das posições sociais privilegiadas, o racismo reafirma e consolida a subalternidade da população negra. Reproduzido histórica e estruturalmente, este mecanismo perpassa as relações sociais e inscreve no país uma forma particular de convivência entre desiguais. Sua vigência naturaliza a desigualdade e reforça o processo de legitimação e de engessamento da hierarquia social, contribuindo para a escassa mobilidade racial que ainda caracteriza o país. Assim, o racismo constitui-se em um importante obstáculo ao enfrentamento da pobreza e da desigualdade social.

Ao contrapor com a questão de gênero, é possível afirmar também que o sexismo e o patriarcado são os motivos da transformação de diferenças (sexo biológico) em desigualdades, ressaltando novamente a construção social do gênero.

Kimberle Crenshaw (2002), ao discorrer sobre as desigualdades de gênero e de raça interseccionadas, as denominando de “discriminação interseccional”, afirma que tanto a desigualdade de raça quanto a desigualdade de gênero podem se tornar invisíveis individualmente, posicionando-se no sentido de que:

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A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em contextos onde forças econômicas, culturais e sociais silenciosamente moldam o pano de fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação. Por ser tão comum, a ponto de parecer um fato da vida, natural ou pelo menos imutável, esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível. O efeito disso é que somente o aspecto mais imediato da discriminação é percebido, enquanto que a estrutura que coloca as mulheres na posição de 'receber' tal subordinação permanece obscurecida. Como resultado, a discriminação em questão poderia ser vista simplesmente como sexista (se existir uma estrutura racial como pano de fundo) ou racista (se existir uma estrutura de gênero como pano de fundo). Para apreender a discriminação como um problema interseccional, as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da estrutura, teriam de ser colocadas em primeiro plano, como fatores que contribuem para a produção da subordinação. (CRENSHAW, 2002, p. 176, grifo nosso).

Seguindo o entendimento de Crenshaw (2002), para a compreensão das desigualdades racial e de gênero interseccionadas, as questões de gênero e as questões raciais se colocam em conjunto no plano de fundo proposto, objetivando a não invisibilização de nenhuma das desigualdades. Antes disso, porém, cabe o contexto histórico individual do surgimento de ambas. Isto porque, as desigualdades racial e de gênero surgiram de processos distintos em tempos divergentes, se encontrando apenas em um determinado período da história. Cumpre demonstrar então, brevemente, de que forma esses processos ocorreram no Brasil.

2.2.1 A desigualdade de gênero na história do Brasil

O sexismo, ligado diretamente com o gênero e refletindo uma estrutura de poder e submissão, é a primeira forma de opressão na história da humanidade, recaindo sobre os sujeitos que carregam o sexo feminino. Das configurações da sociedade sexista, baseadas na subordinação da mulher, houve o surgimento de uma consciência crítica acerca da opressão ao gênero feminino apenas a partir do século XVII, com a origem do movimento feminista somente no final do século XVIII, inicialmente nos países europeus, e posteriormente nos Estados Unidos. No Brasil, o movimento só surge no século XIX, com Nísia Floresta Brasileira Augusta, precursora do feminismo no país e na América Latina. (COSTA; SARDENBERG, 2008).

As ideias feministas na atualidade são ligadas à diversas vertentes teóricas. Os diferentes conceitos de feminismo atestam a diversidade dessas vertentes.

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Entretanto, pode-se dizer que o posicionamento central do movimento feminista é ligado a emancipação do ser mulher das opressões que a alcançam, como a opressão social, cultural, política, econômica, física e psicológica. Nos dizeres de Costa e Sardenberg (2008, p. 24): “O feminismo, como doutrina que preconiza a igualdade entre os sexos e a redefinição do papel da mulher na sociedade, é certamente a expressão máxima de consciência crítica feminina”. No mesmo sentido, dispõe Balestero (2017, p. 130) ao afirmar que:

A igualdade de gênero é essencialmente uma questão de direito humano, sendo necessária a construção de um caminho rumo à paridade de participação nos espaços de poder, pois as mulheres devem ser tão livres quanto os homens e deve haver igualdade de oportunidade entre os sexos na família e na sociedade, sendo esta ideia básica do feminismo. (BALESTERO, 2017, p. 130).

Nesse contexto, com o movimento feminista, foi que a trajetória universal do ser mulher no tempo “partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação.” (PERROT apud BALESTERO, 2017, p. 107).

Contudo, retomando ao período em que as configurações da sociedade se davam de forma predominantemente patriarcal, o Brasil Colônia, herdando a cultura do país colonizador, constituía-se em padrões de gênero pré-estabelecidos, sobretudo quanto à submissão da mulher, que vivia uma situação limitada, voltada a vida familiar e doméstica. Como descrito por Costa e Sardenberg (2008), na família patriarcal e burguesa, o marido possuía amplos poderes sobre a mulher, que era confinada no interior da casa com papel principal de reprodutora, casando-se relativamente jovem e gerando muitos filhos, sendo totalmente excluída das questões econômicas, políticas, sociais. Destacando, ainda, as autoras:

Cumpre lembrar que, enquanto na Europa e, mais tarde nos Estados Unidos, procedia-se à revolução em todas as esferas da vida social, inclusive nas relações pessoais e na família, deslanchada pelo “novo” modo de produção que ali se estabelecia, no Brasil, como nos demais países da América Latina, ainda se vivia sob um regime colonial, escravocrata, patriarcal. (COSTA; SARDENBERG, 2008, p. 32).

O contexto histórico patriarcal no Brasil é suficientemente explicativo quanto aos papéis sociais idealizados durante décadas. Enquanto as mulheres: “[...]

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são socializadas para desenvolver comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os homens, ao contrário, são estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas, que revelem força e coragem.” (SAFFIOTI, 2004, p. 35). E mesmo com todas as transformações e avanços ao longo dos séculos, sobretudo com as lutas do movimento feminista: “[...] alguns pontos são perpetuados e naturalizados na sociedade de forma que retificam [ratificam] o discurso patriarcal e masculino sobre a mulher, legitimando, inclusive, o preconceito e a violência de gênero.” (BALESTERO, 2017, p. 130).

Apresentado este contexto histórico da desigualdade de gênero no Brasil, cumpre prosseguir com a descrição do processo histórico da desigualdade racial no Brasil, para alcançar a compreensão das desigualdades racial e de gênero interseccionadas, como já justificado anteriormente.

2.2.2 A desigualdade racial na história do Brasil

A desigualdade racial no Brasil é marcada, principalmente, pela negação e invisibilização histórica, tanto do próprio sujeito quanto, e até mesmo, da existência da própria desigualdade. Assim, não há como se falar em enfrentamento da desigualdade racial sem antes reconhecê-la e admiti-la como fato social. O reconhecimento parte, sobretudo, do entendimento histórico da formação da desigualdade. Não se trata apenas de conhecer, mas principalmente de aceitar como existente.

Partindo do apontamento de Mário Maestri de que “pouco compreenderemos da história brasileira se desconhecermos o nosso passado escravista” (MAESTRI apud RIBEIRO, 2014, p. 31), conhecer os processos históricos é essencial para a compreensão das desigualdades nas suas formações atuais. Assim, no mesmo sentido, iniciando o estudo das políticas públicas brasileiras, sobretudo políticas de promoção à igualdade racial, é indispensável que se compreenda, antes de tudo, a origem das pautas raciais no Brasil e por que elas se fazem necessárias.

Nesse sentido, a marca inicial do surgimento da desigualdade racial brasileira é chegada dos negros no Brasil, no século XVI, por volta do ano de 1549,

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quando as primeiras levas de escravizados trazidos do continente africano desembarcam em São Vicente para o trabalho (MOURA, 1992). Importante que se entenda que:

[...] o Brasil, da mesma forma que a maioria dos países da América Latina e Caribe, caracteriza-se como multirracial, multicultural, multirreligioso e pluriétnico. Uma grande marca dessa região é o colonialismo, a partir da invasão européia, com a exploração dos recursos naturais e o estabelecimento do trabalho escravizado – primeiro dos indígenas e depois dos africanos. (RIBEIRO, 2014, p. 39).

Matilde Ribeiro (2014), analisando a Carta de Achamento do Brasil, escrita por Pero Vaz de Caminha, explica a intenção dos colonizadores europeus: apropriar, explorar, dominar. As perspectivas patrimonialistas eram de apropriação das terras, em detrimento dos indígenas, que aqui já viviam, e dos africanos, que, trazidos de distintas regiões do continente africano ao Brasil, foram escravizados para o trabalho. Daqui parte um conceito e um termo adequado para se referir às pessoas negras que foram trazidas para o Brasil, a utilização do termo “escravizado”, e não “escravo”, como muito utilizado. A substituição de termo é muito defendida por estudiosos, pela etimologia e conceitos a ambos atribuídos. O termo “escravo” imprime, além de uma percepção de condição natural, a linguagem senhorial; enquanto o termo “escravizado” reproduz a conexão histórica de trabalho e exploração, imposto pelos agentes escravistas, não pela natureza, como colocam em discussão Carboni e Ribeiro (2003).

No contexto em que o escravizado “[...] não tinha nenhum direito, e pelas Ordenações do Reino podia ser vendido, trocado, castigado, mutilado ou mesmo morto sem ninguém ou nenhuma instituição pudesse intervir em seu favor” (MOURA, 1992, p. 15-16), surge um movimento de resistência dos próprios escravizados por meio dos quilombos, que posteriormente contribuiu, de forma significativa, para o desgaste do sistema escravista. Como movimento emancipacionista, e movimento político independente, o quilombo serve de centro organizacional de protesto, manifestação e reivindicação dos escravizados rebeldes contra o sistema, a classe senhorial e a repressão da rebeldia ali já colocada. Os quilombos, assim, articulam-se nacionalmente desde o início da escravidão, atravessando todo o sistema escravista, assumindo presença ameaçadora para a classe senhorial (MOURA, 1992).

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Entre os séculos XVI e XIX, destacam-se acontecimentos para a compreensão do fim do período escravocrata no Brasil. No início do século XIX, acontecem as lutas pela Independência, participando os escravizados como combatentes, ora aderindo ao movimento da Independência para conseguir a alforria, como foi lhes prometido, ora participando ao lado dos portugueses, quando não fugiam para as matas ou para os quilombos já existentes. No entanto, de Brasil Colônia a Império, o sistema escravista permanecia no país, até que em 1850 é extinto o tráfico de pessoas da África para o Brasil, iniciando a crise do sistema escravista. Com o aumento do preço do escravizado no país, surgem as primeiras leis protetoras, para que o capital investido no negro escravizado seja protegido. Cumulada a extinção do tráfico de pessoas, havia ainda a redução numérica causada pelas mortes de escravizados em guerras, bem como das mortes de escravizados por envelhecimento (MOURA, 1992).

A partir da década de 1870 se inicia o processo principal para a abolição de 1888, chamado de movimento abolicionista, organizado por intelectuais, se configurando fortemente apenas em 1880 (MOURA, 1992). Segundo Schwarcz (2007, p. 24): “O fato é que a partir da década de 1880 o abolicionismo tomou as ruas e os jornais da época, assim como ficaram evidentes as falácias dessa sociedade escravocrata, que mantinha um discurso liberal como fachada.”

Em 1880 nasce a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, seguida da Confederação Abolicionista, em 1883, enquanto, já em 1884, era extinta a escravidão no Ceará e no Amazonas. Algum tempo depois, em 1885, é promulgada a Lei dos Sexagenários, que libertava escravizados com mais de 60 anos, desde que trabalhassem mais três anos para lograr a emancipação, na intenção do Estado de acalmar os movimentos e evitar rebeliões de escravizados (SCHWARCZ, 2007). Não sendo as manobras do Estado suficientes, em 1888 acontece a ruptura final, como explica Clóvis Moura:

Além dessas causas estruturais, fatores externos levam o sistema escravista a um impasse cuja solução foi a Abolição sem reformas. O dilema se apresentava diante dos fazendeiros: ou aceitavam a Abolição compromissada como o Trono queria, conservando-lhes os privilégios, ou correriam o risco de ver a Abolição feita pelos próprios escravos [escravizados], através de medidas radicais, como a divisão das terras senhoriais. A concordata foi feita. O problema da mão-de-obra já estava

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praticamente resolvido com a importação de milhares de imigrantes. O trabalhador nacional descendente de africanos seria marginalizado e estigmatizado. O ideal de branqueamento das elites seria satisfeito, e as estruturas arcaicas de propriedade continuariam intocadas. O negro, ex-escravo [escravizado], é atirado como sobra na periferia do sistema de trabalho livre, o racismo é remanipulado criando mecanismo de barragem para o negro em todos os níveis da sociedade, e o modelo de capitalismo dependente é implantado, perdurando até hoje. (MOURA, 1992, p. 62, grifo do autor).

Assim, em 13 de maio de 1888, há a abolição oficial da escravatura no Brasil, com a Lei Áurea, lei de n. 3.353/88, com apenas dois artigos, assim disciplinados: “Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil. Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.” (BRASIL, 1888).

No mesmo período sucedeu, por meio de políticas estatais, a tentativa de branqueamento da população brasileira, já afirma Moura (1992, p. 9) ao comentar sobre as dúvidas quanto ao número total de africanos escravizados no Brasil, afirmando que as estimativas: “[...] variam muito e há sempre a tendência de se diminuir esse número, em parte por falta de estatísticas e também porque muitos historiadores procuram branquear a nossa população”. Não somente, em consonância com o incentivo à imigração europeia branca com as políticas de branqueamento da população, não houve o desenvolvimento de políticas reparadoras e de interação dos negros recém-libertos ao restante da sociedade, o que consolidou ainda mais as bases do processo de desigualdade racial no país. Marcas radicais de desigualdade entre negros e brancos que, ainda não superadas, permanecem até os dias atuais (RIBEIRO, 2014), com exclusão política, educacional, profissional, econômica, social. Em conjunto às políticas estatais que desfavoreceram a ascensão dos recém-libertos, havia ainda a conjuntura social, cultural e histórica, que não recebeu qualquer estímulo para mudança da imagem inferiorizada dos negros escravizados. Dessa forma, após abolição, as então:

[...] classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos [escravizados], guardam diante do negro a mesma atitude de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo [escravizado], o forro, bem como o mulato, eram mera força energética, como um saco de carvão, que, desgastado, era substituído facilmente por outro que se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça, e não como

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resultado da escravidão e da opressão. (RIBEIRO apud RIBEIRO, 2014, p. 71).

Após séculos de trabalho escravizado, seguidos da ausência de políticas compensatórias e inclusivas para a população negra pós-abolição, findaram na atribuição da responsabilidade aos próprios sujeitos vítimas do sistema escravista, quais sejam ex-escravizados e seus descendentes, que deveriam resolver seus próprios problemas, como se autores fossem. Não apenas isso, deveriam se sentir em dívida com seus senhores e com o Estado, já que perante o restante da sociedade brasileira, a liberdade dos escravizados, quando aceita, era vista como um favor, e não como direito de fato (RIBEIRO, 2014; SCHWARCZ, 2007).

Lilia Moritz Schwarcz explica essa conjuntura explanando uma das principais diferenças do Brasil com outros países quanto ao período pós-abolição:

Como se fôssemos avessos à representação da violência e da luta, no Brasil a Abolição foi entendida como uma dádiva, um presente que merecia atos recíprocos de obediência e submissão. Aos escravos [escravizados], recém-libertos só restava, pelo menos na visão das elites, a resposta servil e subserviente, reconhecedora do tamanho de “presente” recém-recebido. Diferentemente, dessa maneira, do processo vivenciado em outros países, onde a libertação foi absorvida como uma conquista, aqui ela representou continuidade e a reposição de hierarquias que, de tão assentadas, pareciam legitimadas pela própria natureza. (SCHWARCZ, 2007, p. 26).

O conjunto de fatores anteriores e subsequentes à abolição fez com que o trabalho escravo fosse substituído pelo trabalho livre. Como descrito por Theodoro (2014), a transformação do escravizado em trabalhador se deu de forma particularmente excludente, atenuada pelos mecanismos legais pré-abolição, como a Lei de Terras, de 1850, e a própria Lei da Abolição, de 1888, bem como pelos mecanismos legais pós-abolição, como o processo de estímulo à imigração. Essa construção histórica, então, é responsável pelas marcas radicais de desigualdade racial que permanecem até os dias atuais.

Concluindo este breve resumo sobre os caminhos que levam à atual desigualdade racial no Brasil, ressalta-se, novamente, a diferença com a desigualdade de gênero, que apresenta grandes avanços nas últimas décadas. Em análise comparativa, não se progrediu tanto nas questões raciais como nas questões de gênero. É o que esclarece Kimberlé Crenshaw, que descreve:

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O nível de organização e institucionalização da prática de direitos humanos com base no gênero está mais avançado do que o com base na raça. Essa importante diferença pode complicar os esforços para enfocar a subordinação interseccional. Enquanto existem várias instituições e ONGs internacionais que se dedicam a garantir os direitos humanos das mulheres, o número de instituições semelhantes sob a rubrica da raça é comparativamente limitado. Talvez em conseqüência disso, atualmente não haja consenso sobre a adoção de uma política de incorporação da perspectiva de raça (race

mainstreaming). Considerando que a afirmação de que a raça, ou outra

diferença correlata, continua a permear a maioria das sociedades é altamente contestada, a construção de um consenso sobre a importância de sua incorporação pode ser uma luta árdua. Obviamente as hierarquias de raça e outras a ela relacionadas não são iguais às de gênero, mas, dado o nível de desigualdade racial no mundo e a forma pela qual a raça, como o gênero, pode limitar dramaticamente a fruição dos direitos e garantias básicas, as instituições das Nações Unidas deveriam incorporar ao seu trabalho as análises que levam em conta a raça. (CRENSHAW, 2002, p. 184).

Para entender a importância do enfoque na dita subordinação interseccional é necessário que se compreenda o contexto no qual estão inseridos os sujeitos passivos centrais de tal subordinação. Além disso, existe uma margem da afirmação de grandes avanços quanto aos direitos e garantias das mulheres que precisa ser entendida e estudada, já que está diretamente relacionada ao acolhimento da perspectiva de raça nas discussões de gênero, ou seja, a interseccionalidade das questões aqui enfatizadas.

2.2.3 A figura da mulher negra

Por meio de todo o contexto histórico, já apresentado, das desigualdades, tanto de gênero quanto de raça, é perceptível a diferença dos avanços sociais entre mulheres brancas (atingidas pela discriminação de gênero) e mulheres negras (atingidas tanto pela discriminação de gênero quanto pela discriminação de raça). Os avanços e conquistas de direitos das mulheres não alçaram, e ainda não alcançam, de igual forma mulheres brancas e mulheres negras. Assim como todos os avanços quanto às questões raciais não atingem de forma igual homens negros e mulheres negras. E é nesse sentido que a interseccionalidade e o recorte se fazem necessários. Em relação a pauta feminista, é necessário o recorte racial. E em relação a pauta racial, é necessário o recorte de gênero. Isto porque, a mulher negra, atingida pelo gênero e pela raça:

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[...] não participa no processo produtivo em igualdade de condições com homens brancos, negros, amarelos e mulheres brancas e amarelas, situando-se, assim, na base da hierarquia social, penalizada em relação a oportunidades e mobilidade na estrutura ocupacional. (CARNEIRO; SANTOS

apud RIBEIRO, 2014, p. 136).

As mulheres negras pertencem ao grupo que:

[...] não foi socializado para assumir o papel de explorador/opressor, no sentido de que não nos permitem ter qualquer “outro” não institucionalizado que possamos explorar ou oprimir. (As crianças não representam um outro institucionalizado, embora possam ser oprimidas pelos pais). As mulheres brancas e os homens negros têm as duas condições. Podem agir como opressores ou ser oprimidos. Os homens negros podem ser vitimados pelo racismo, mas o sexismo lhes permite atuar como exploradores e opressores das mulheres. As mulheres brancas podem ser vitimizadas pelo sexismo, mas o racismo lhes permite atuar como exploradoras e opressoras de pessoas negras. Ambos os grupos têm liderado os movimentos de libertação que favorecem seus interesses e apoiam a contínua opressão de outros grupos. O sexismo masculino negro prejudicou a luta para erradicar o racismo, assim como o racismo feminino branco prejudica a luta feminista. (HOOKS, 2015, p. 207-208).

Em síntese, a estrutura social se mostra em: “[...] um debate sobre o racismo onde o sujeito é homem negro; um discurso de gênero onde o sujeito é a mulher branca; e um discurso sobre a classe onde “raça” não tem lugar.” (KILOMBA

apud RIBEIRO, 2017, p. 23). É importante ressaltar, nesse sentido, que a figura desse

ser, mulher negra, só está inserida na sociedade como base da estrutura social pela interseccionalidade que a alcança. E mesmo na base da estrutura social, ainda há níveis imaginários entre todas as mulheres negras, podendo a posição social ser agravada conforme alcance de outras desigualdades além da racial e a de gênero, como classe social, orientação sexual, identidade de gênero, nacionalidade, e afins. Como exemplo, a figura da mulher negra, lésbica e periférica, ou ainda, a figura da mulher negra, estrangeira e mãe. Assim, a conceituação de interseccionalidade se mostra importante para maior compreensão dos seus desdobramentos. Kimberlé Crenshaw (2002, p. 177) define:

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos

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ou ativos do desempoderamento. [...] As mulheres racializadas freqüentemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por conseqüência, estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões, posicionados nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas, devem negociar o 'tráfego' que flui através dos cruzamentos.

As implicações quanto à estrutura social, e seus desdobramentos, são muitas, cabendo neste momento apenas a interseccionalidade de dois segmentos, a raça e o gênero. A partir daí, é possível então a discussão dos recortes necessários para o movimento negro e, ainda mais, para o movimento feminista.

Partindo do feminismo, tem-se que para as mulheres negras, o movimento funciona de forma distinta. Quanto ao trabalho, como exemplo, enquanto o feminismo do século XIX tinha como uma das pautas a luta pelo direito de trabalhar em igualdade de condições com os homens, essa pauta não alcançava a mulher negra, que desde o período escravocrata já trabalhava, e muitas vezes em igualdade de condições com o homem negro escravizado (DAVIS, 1982). Inclusive, a origem do feminismo, e portanto sem recorte, não discutia “[...] quem seria chamado para cuidar dos filhos e manter a casa se mais mulheres [...] fossem libertadas do trabalho doméstico e tivessem o mesmo acesso a profissões que têm os homens brancos.” (HOOKS, 2015, p. 194). Um número vasto de mulheres negras tinham que executar tarefas nas suas próprias casas, bem como nas casas para quem trabalhavam como assalariadas de serviço doméstico, algumas vezes conduzindo a situações de negligenciarem seu próprio lar e até os seus filhos para substituir esposas e mães em milhões de casa de brancos (DAVIS, 1982, p.168).

Na história universal, proporcionalmente mais mulheres negras trabalharam fora de casa do que as mulheres brancas, já indicava Angela Davis em 1982, afirmando que:

O enorme espaço que o trabalho ocupou na vida das mulheres negras, segue hoje um modelo estabelecido desde o início da escravatura. Como escravas [escravizadas], o trabalho compulsoriamente ofuscou qualquer outro aspecto da existência feminina. Parece assim, que o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras sob a escravatura começa com a apreciação do papel de trabalhadoras. O sistema da escravatura define os escravos [escravizados] como bens móveis. As mulheres eram olhadas não menos que os homens, eram vistas como unidades rentáveis de trabalho, elas não tinham distinção de gênero na medida das

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preocupações dos donos de escravos [escravizados]. (DAVIS, 1982, p.10, grifo nosso).

O feminismo, que nasce como luta à igualdade de gênero, como já visto anteriormente, tem o fundamento de que a luta é pelos direitos de todas as mulheres, sem, portanto, distingui-las. Porém, a medida que dentro do grupo “mulheres” há vários outros grupos com demandas diferenciadas, faz-se necessária a discussão sobre direitos distintos para alcance de todas. Não há como demandas diferentes serem contempladas com direitos idênticos. A não distinção torna-se um problema de exclusão dentro do próprio movimento. Já exemplifica hooks1 (2015), enquanto alguns

grupos de mulheres lutam por determinados dilemas da pauta feminista, outros estão mais preocupados com a sobrevivência econômica e a discriminação que os atinge. E é nesse âmbito que, ao criticar aspectos do movimento feminista, dialoga a autora:

O sexismo, como sistema de dominação, é institucionalizado, mas nunca determinou de forma absoluta o destino de todas as mulheres nesta sociedade. [...] exploração e discriminação são palavras que descrevem com mais precisão a sorte coletiva das mulheres. [...] Em termos gerais, as feministas privilegiadas têm sido incapazes de falar a, com e pelos diversos grupos de mulheres, porque não compreendem plenamente a inter-relação entre opressão de sexo, raça e classe ou se recusam a levar a sério essa inter-relação. As análises feministas sobre a sina da mulher tendem a se concentrar exclusivamente no gênero e não proporcionam uma base sólida sobre a qual construir a teoria feminista. Elas refletem a tendência, predominante nas mentes patriarcais ocidentais, a mistificar a realidade da mulher, insistindo em que o gênero é o único determinante do destino da mulher. Certamente, tem sido mais fácil para as mulheres que não vivenciam opressão de raça ou classe se concentrar exclusivamente no gênero. Embora se concentrem em classe e gênero, as feministas socialistas tendem a negar a raça ou fazem questão de reconhecer que a raça é importante e, em seguida, continuam apresentando uma análise em que a raça não é considerada. (HOOKS, 2015, p. 197; 207, grifo nosso).

Ainda no entendimento de bell hooks, para que seja contemplada toda diversidade de experiências dentro do grupo de gênero, há a necessidade de que seja determinado até que ponto o sexismo será força opressiva na vida de cada mulher diante dos fatores como classe, raça, religião e orientação sexual, que criam essa diversidade, superando-se, assim, um dos preceitos do pensamento feminista

1 bell hooks: a autora utiliza seu nome com letras minúsculas; segue-se, portanto, em todo o trabalho,

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moderno que afirma que todas as mulheres compartilham a mesma sina e a mesma forma da opressão de gênero (HOOKS, 2015).

Nesse âmbito, para elucidar ainda mais as críticas ao feminismo não interseccionado, bem como as formas da desigualdade de gênero e racial, e suas distinções, observa-se o discurso de Sojourner Truth, abolicionista afro-americana, escritora e ativista dos direitos da mulher, na Convenção dos Direitos da Mulher (EUA), em 1851:

Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra é que alguma coisa deve estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do sul e as mulheres do norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos, muito em breve, ficarão em apuros. Mas em torno de que é toda essa falação? Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? E daí eles falam sobre aquela coisa que tem na cabeça, como é mesmo que chamam? (uma pessoa da plateia murmura: “intelecto”). É isto aí, meu bem. O que é que isto tem a ver com os direitos das mulheres ou os direitos dos negros? Se minha caneca não está cheia nem pela metade e se sua caneca está quase toda cheia, não seria mesquinho de sua parte não completar minha medida? Então aquele homenzinho vestido de preto diz que as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não era mulher! Mas de onde é que vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele. Se a primeira mulher que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça para cima! E agora elas estão pedindo para fazer isto. É melhor que os homens não se metam. Obrigada por me ouvir e agora a velha Sojourner não tem muito mais coisas para dizer. (TRUTH apud RIBEIRO, 2017, p. 13).

O discurso se deu nos Estados Unidos no século XIX, antes mesmo da abolição da escravatura no Brasil, que só aconteceu 37 anos depois. Além de criticar, indiretamente, o feminismo não interseccionado, ao questionar porque nunca ninguém lhe ajudou a subir carruagens ou a passar por cima da lama (provavelmente ninguém os direcionou tais gentilezas pela questão racial, e não de gênero), Sojourner Truth também clama, por todas as mulheres, pelos mesmos direitos dos homens (focalizando o gênero, e não a raça).

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Por meio da compreensão do processo histórico da desigualdade racial na sociedade brasileira, demonstrado neste capítulo, entende-se que no Brasil, na mesma época do discurso nos Estados Unidos, o contexto era outro, de fato. Entretanto, a figura da mulher negra brasileira no século XX se moldava de forma muito parecida à realidade apresentada no discurso de Sojourner, esquecida nas lutas pelas questões de gênero e pouco contemplada com os avanços durante as décadas.

Assim, diante do contexto histórico das questões raciais e de gênero, e da interseccionalidade que atinge a figura da mulher negra, torna-se relevante a efetiva demonstração da desigualdade racial e de gênero na sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XXI, e 131 anos pós-abolição, para o entendimento da necessidade de mecanismos que as enfrentem. Efetiva demonstração esta que se segue no próximo capítulo.

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3 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Este capítulo tem por objetivo apontar estatisticamente a existência da desigualdade racial e de gênero no Brasil, sendo parte essencial para o entendimento dos processos raciais e de gênero na sociedade brasileira.

As formas de concretização das desigualdades, de forma geral, podem ser demonstradas efetivamente por intermédio de dados estatísticos. Para o objeto desigualdade racial e de gênero na sociedade brasileira, há aspectos relevantes que merecem destaque, como a educação, o mercado de trabalho e a renda. Aspectos estes diretamente relacionados, à medida que a educação é o principal caminho de inserção no mercado de trabalho, e a renda o principal resultado desta inserção, como já indicam Lima, Rio e França (2013). Nesse aspecto, níveis educacionais mais avançados, como aprimoramento e especialização, geralmente estão ligados à boas posições no mercado de trabalho e rendas elevadas, como indicam as pesquisas relacionadas.

A mulher negra, pertencente ao grupo social que é maior atingido pela desigualdade racial e de gênero, é o ponto principal para a verificação dos dados e posterior demonstração das desigualdades. Assim, todos os tópicos se desenvolvem a partir dessa perspectiva. E diante da maior vulnerabilidade do grupo social mulher negra, já afirma Carneiro:

Raça e sexo são categorias que justificam discriminações e subalternidades, construídas historicamente e que produzem desigualdades, utilizadas como justificativas para as assimetrias sociais, que explicitam que mulheres negras estão em situação de maior vulnerabilidade em todos os âmbitos sociais. (CARNEIRO, 2017, p.19).

Em oposição à ideia de maior vulnerabilidade da mulher negra, no Brasil tem sido habitual a desconsideração da interseccionalidade das desigualdades, a partir da propagação de ideias de que o racismo se encontra superado e de que não existentes mais barreiras às mulheres, difundindo um pensamento de concreta igualdade de raça e de gênero (MARCONDES et al., 2013). Essa propagação da ideia de superação do racismo no país é um dos pontos centrais da dificuldade de alcançar, de fato, a igualdade racial, como explicado por Munanga, por meio de um comparativo histórico com a África do Sul e Estados Unidos:

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Depois da supressão das leis do apartheid na África do sul, não existe mais, em nenhuma parte do mundo, um racismo institucionalizado e explícito. O que significa que os Estados Unidos, a África do Sul e os países da Europa ocidental se encontram todos hoje no mesmo pé de igualdade com o Brasil, caracterizado por um racismo de fato e implícito, as vezes sutil (salvo a violência policial que nunca foi sutil). Os americanos evoluíram relativamente em relação ao Brasil, pois além da supressão das leis segregacionistas no Sul, eles implantaram e incrementaram as políticas de “ação afirmativa”, cujos resultados na ascensão sócio-econômica dos afro-americanos são inegáveis. Os sul africanos evoluíram também, pois colocaram fim às leis do apartheid e estão hoje no caminho de construção de sua democracia, que eles definem como uma democracia “não racial”. No Brasil o mito de democracia racial bloqueou durante muitos anos o debate nacional sobre as políticas de “ação afirmativa” e paralelamente o mito do sincretismo cultural ou da cultura mestiça (nacional) atrasou também o debate nacional sobre a implantação do multiculturalismo no sistema educacional brasileiro. (MUNANGA, 2003, grifo nosso).

O racismo e o sexismo, assim, como formas de discriminação: “[...] são vivenciados cotidianamente por grande parte da população brasileira, justamente em uma sociedade que se conclama democrática, mas que não se materializa como igualitária para diversos de seus segmentos” (LOPES apud BAPTISTA, 2014, p. 202). Para Lima, Rio e França (2013), embora atualmente, no século XXI, a conjuntura seja de redução das desigualdades no Brasil, ainda prevalecem e persistem padrões que afetam de forma específica as mulheres, os negros e, em especial, as mulheres negras. Saffioti (2004, p. 31) define esses padrões: “Na ordem patriarcal de gênero, o [homem] branco encontra sua segunda vantagem. Caso seja rico, encontra sua terceira vantagem, o que mostra que o poder é macho, branco e, de preferência, heterossexual.” Assim, considerando a desigualdade racial no país, a primeira vantagem é a da raça, seguida do gênero, classe social e orientação sexual, como colocado por Saffioti (2004).

Desta forma, a discussão sobre as desigualdades raciais e de gênero deve sempre caminhar para o diálogo interseccionado, como já explorado, considerando as escalas sociais e os diferentes níveis de vantagens ou desvantagens dos indivíduos. Nesse sentido, Silva defende a incorporação das questões raciais e de classe às discussões de gênero:

A distribuição de recursos na sociedade é profundamente marcada pela condição de raça e gênero dos indivíduos. O debate tradicional sobre as desigualdades de gênero não raro obscurecia a heterogeneidade dos grupos de mulheres, dando centralidade às questões enfrentadas pelas mulheres

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das classes dominantes. O reconhecimento da diversidade das experiências, especialmente a partir da introdução da variável étnica e racial, permitiu aproximações para incorporar, à perspectiva feminista, a complexidade da realidade das mulheres, dos papéis que assumem e das expectativas a elas direcionadas. (SILVA, 2013, p. 109).

Partindo desses entendimentos e retomando ao pensamento inicial, aqui coloca-se em destaque a educação e o mercado de trabalho como duas das fontes principais para a redução das desigualdades de raça e de gênero no Brasil, pois responsáveis diretamente pela renda, acesso à saúde, oportunidades e presença nos espaços de poder (LIMA; RIO; FRANÇA, 2013). Antes de tratá-las como fontes de redução, porém, é necessário enxergá-las como fontes de demonstração material das desigualdades. E é nesse sentido que a apresentação dos dados estatísticos quanto à presença dos grupos raciais e de gênero na sociedade se faz importante.

Seguindo esse pressuposto, Menicucci (2013, p. 9) estipula: “O conhecimento sobre as formas como as desigualdades de gênero se produzem e reproduzem é condição para que elas possam ser enfrentadas [...]”. Assim, no mesmo sentido sobre a reprodução da desigualdade racial. Rebecca Tavares, explica: “[...] um país só pode evoluir e desenvolver políticas públicas efetivas quando conhece as causas dos problemas de sua população”. (TAVARES, 2013, p. 11). Nesse âmbito, preliminar demonstração das desigualdades de raça e de gênero, por meio de pesquisas e dados, para posterior identificação de políticas públicas de enfrentamento, ambas focalizadas na perspectiva da mulher negra.

Para melhor leitura dos dados que se seguem, é importante identificar a distribuição da população, que se encontra bem equalizada. Quanto à questão de gênero, em 2009, segundo o IBGE, as mulheres correspondiam a 51,3% da população, sendo que mulheres brancas e negras representavam 52,5% e 50,2% de seus respectivos grupos raciais. As mulheres negras respondiam por cerca de um quarto da população brasileira, onde do total de mulheres, 50% eram negras e 49,3% eram brancas, indicando participação maior de negras em comparação às brancas (MARCONDES et al., 2013).

No mesmo sentido, em 2013, o número era de 53.566.935 mulheres negras, para uma população brasileira estimada em 201,5 milhões de pessoas, representando assim as mulheres negras pouco mais de um quarto da população

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(CARNEIRO, 2017). Já em 2016, quanto à questão racial, segundo o IBGE (2017a), a população declarada branca representava 44,2% da população residente, ao passo que 54,9% representava a população declarada negra (pessoas pretas e pardas, pela divisão do Instituto).

Ressalta-se, nesse momento, ao falar de desigualdade racial, a escolha da concepção de pessoas negras de forma ampla, que abrange as categorias “preta” e “parda”, como denominadas pelo IBGE e outros institutos. Assim, segue o entendimento de que as pessoas que se declaram de cor/raça preta ou parda compreendem o mesmo grupo racial, qual seja cor/raça negra2. Isto porque, como

explicado por Heringer (2002), para propósitos estatísticos, diante da flexibilidade da classificação de cor no Brasil, é difícil diferenciar ambos os grupos (preto e pardo), além da proximidade dos dois grupos em termos de indicadores socioeconômicos, citando Nelson do Valle Silva e Carlos Hasenbalg como sociólogos e pesquisadores que consideram pretos e pardos juntos, como uma única categoria, significando negro aquele que se declara como preto ou pardo nas pesquisas.

A partir dessas compreensões então, cumpre apresentar, adiante, pesquisas e dados quanto à desigualdade de raça e de gênero no campo da educação, do mercado de trabalho e da distribuição de renda.

3.1 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO

O acesso à educação, bem como o alcance e a interferência da educação nos processos sociais e econômicos fazem com que a educação seja aspecto relevante para visualização da concretização das desigualdades. Determina Heringer (2002, p. 60): “O acesso à educação é geralmente apresentado pelos estudiosos como um dos principais fatores associados ao alcance de melhores oportunidades no mercado de trabalho e, consequentemente, um melhor rendimento.” Assim, no mesmo sentido, o entendimento de Pastora e Silva, de que:

2 Em todos as pesquisas apresentadas, a denominada população negra refere-se as pessoas negras

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A escolarização não é o único fator a determinar a forma como se processa a mobilidade social dos indivíduos, mas ainda é tida como um dos principais determinantes para o posicionamento socioeconômico dos indivíduos na hierarquização social (PASTORA; SILVA apud SOTERO, 2013, p. 48).

Portanto, demonstrada a importância da apresentação de dados estatísticos quanto ao aspecto relevante da educação, evidencia-se, de início, que as desigualdades na educação devem sempre dialogar com as questões de acesso, permanência e continuação do ensino, independentemente do nível. Dessa forma, a demonstração dos dados tem por objetivo esse diálogo múltiplo.

No ensino fundamental, desde o início do século XXI, observa-se a universalização da frequência para todos os grupos sociais aqui analisados, meninas negras e brancas, e meninos negros e brancos (LIMA; RIO; FRANÇA, 2013). Ou seja, no ensino fundamental não se visualiza a desigualdade de gênero e raça quanto à questão da presença, desconsiderando-se, entretanto, a qualidade de ensino e as demais características, importantes no resultado final referente à oportunidades e concorrências.

Já quanto ao ensino médio, a mesma universalização da frequência para todos os grupos não ocorre, sendo notável a desigualdade desde o acesso e permanência, como indica o gráfico 1.

Por outro lado, no ensino superior, e mais especificamente quanto à situação da mulher negra, observa-se, além da posição em que se encontra, seus avanços durante anos contrapondo ao comparativo dos avanços às posições dos demais grupos. Observa-se no gráfico 2, a presença dos grupos sociais no ensino superior, em percentual.

Como aponta Sotero (2013), a presença da mulher negra no ensino superior se mostra maior do que a presença do homem negro. Fato condizente tanto com a questão populacional quanto com os lugares sociais do homem negro, atingido com a desigualdade racial e seus fatores, além de ser atingido também pela “[...] necessidade de os homens se dedicarem cedo a uma profissão, pressionados pelas famílias ou devido à pobreza”, como sugere a mesma autora (2013, p. 49) ao mencionar a explicação de estudiosos ao relativo sucesso feminino.

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Gráfico 1: Taxa líquida de escolarização no nível do ensino médio, por raça e gênero (1995-2009) - Em %

Fonte: Lima, Rio e França (2013, p. 59).

Gráfico 2: Estudantes no ensino superior, por sexo e cor/raça (2003 e 2009) - Em %

Referências

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