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visualizar a concretização das desigualdades, sobretudo as de raça e gênero. Os dados estatísticos não só demonstram a configuração da desigualdade, como também permitem vislumbrar suas características, conforme o contexto histórico. Nesse sentido, importante visualizar a mulher negra no mercado de trabalho diante das desigualdades de raça e gênero. No entendimento de Lima, Rio e França (2013, p. 56): “[...] a participação das mulheres negras no mercado de trabalho é um aspecto extremamente relevante para a compreensão da interseccionalidade de gênero e raça na constituição das desigualdades sociais brasileiras.”

Inicialmente, quanto à extensão das desigualdades raciais no mercado de trabalho, para Lima, Rio e França (2013, p. 54):

[...] se revelam tanto na busca pelo emprego – com elevada taxa de desemprego para os negros – como na competição social por espaços e posições de poder – como a condição de empregador, de proprietários, posições de comando e chefia.

Ambos os aspectos relacionados, a competição social divide-se em dois momentos quanto à desigualdade de gênero e raça: um momento anterior, explicado, de forma geral, pelas desigualdades na educação e na condição social, e um momento imediato, explicado pelas discriminações enraizadas. A qualificação profissional é incontestavelmente relevante quanto ao espaço no mercado de trabalho, configurando-se em momento anterior para a competição social. Entretanto, quanto à abordagem da desigualdade racial e de gênero, não é apenas qualificação que se evidencia, devendo-se analisar e contestar também a desigualdade nas presenças de diferentes grupos no mesmo espaço no mercado de trabalho (como a diferença salarial ao mesmo cargo), bem como a possibilidade de preferência e preterimento na escolha de agentes profissionais com a mesma qualificação e experiência profissional,

o que forma o momento imediato da desigualdade de gênero e raça na competição social.

Entender esses momentos é essencial para a leitura crítica dos dados apresentados a fim de apontar as desigualdades de raça e de gênero. No mesmo sentido, quanto às formas e momentos da desigualdade, dialoga Lima:

Os negros estão fortemente concentrados nas ocupações da indústria tradicional e nos serviços gerais, sendo que o acesso à educação é um dos principais fatores de produção dessa desigualdade. Entretanto, mesmo quando eliminadas as diferenças educacionais, os negros ainda apresentam desvantagens, principalmente no acesso às melhores posições ocupacionais, demonstrando que há uma distribuição desigual de indivíduos no mercado de trabalho e um dos fatores dessa desigualdade é a cor. (LIMA apud LIMA; RIO; FRANÇA, 2013, p. 56).

Superada a compreensão desses aspectos relevantes e iniciando com os dados quanto ao mercado de trabalho, em 2016, 39,6% das mulheres negras estavam inseridas em relações precárias de trabalho, seguidas pelos homens negros (31,6%), mulheres brancas (26,9%) e homens brancos (20,6%), segundo pesquisa desenvolvida pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. Bem como, segundo a mesma pesquisa, as mulheres negras eram o maior contingente de pessoas desempregadas e no trabalho doméstico (RIBEIRO, 2017).

Sobre a inserção precária de trabalho de mulheres negras e homens negros, e a presença majoritária de mulheres negras no trabalho doméstico, também descrevem Lima, Rio e França (2013, p. 67), no mesmo sentido:

No entrecruzamento de raça e gênero, observa-se que há um forte contingente de mulheres pretas e pardas [negras] no serviço doméstico, enquanto os homens negros estão fortemente concentrados na indústria tradicional (especialmente indústria da construção) e nos serviços gerais em que há baixos salários e um alto grau de informalidade. Este padrão de inserção [...], produz efeitos significativos sobre os rendimentos oriundos do trabalho.

Para entender a razão das mulheres negras ainda serem o maior grupo social inserido no trabalho doméstico, é preciso compreender o padrão de inserção que coloca majoritariamente mulheres negras no serviço doméstico, que é explicado por Pereira (2011, p. 5): “A atual situação da mulher negra é fruto de raízes históricas,

cujo ideologia vigente ainda determina que o lugar da mulher negra seja a cozinha e o cuidado do lar.”

Assim, voltando ao contexto histórico, apesar de não haver nenhuma forma de segregação imposta após a abolição, os ex-escravizados se tornaram marginalizados no sistema econômico da época. O governo brasileiro iniciando o incentivo à imigração europeia, na tentativa de branqueamento da população, recebeu milhões de imigrantes europeus durante o final do século XIX e início do século XX. A força de trabalho dos imigrantes europeus, então, foi contratada preferencialmente, tanto na agricultura quanto na indústria (HERINGER, 2002).

Foi no período pós-abolição que novos arranjos proporcionaram uma conjuntura em que mulheres negras deixam de ser escravizadas domésticas e passam a ser empregadas domésticas, exercendo as mesmas atividades. Assim, o serviço doméstico no pós-abolição assume aspectos aproximados e semelhantes da estrutura escravista (PEREIRA, 2011). Explica a mesma autora:

O trabalho como empregada doméstica foi uma recorrência na vida das mulheres negras não se configurando, em alguns casos, apenas como porta de entrada para o mercado de trabalho, mas como a única forma possível de ocupação oferecida a essas mulheres. Existe historicamente uma precariedade estrutural do trabalho doméstico, no país, com trabalhadoras que foram colocadas imersas em proletariedade extrema, à margem da regulação salarial estatal. Sendo assim o trabalho doméstico contém, em si, a síntese da dominação, na medida em que articula a tríplice opressão secular de gênero, raça e classe. (PEREIRA, 2011, p.4).

Nesse seguimento, conforme mencionado por Cruz (2011, p. 5): “A respeito das atividades desenvolvidas pelas negras, nem o processo de abolição e nem mesmo a vinda de trabalhadoras brancas estrangeiras as excluiu do serviço doméstico.” Nesse âmbito, a contribuição de Silva, relacionando as disparidades com as políticas destinadas aos grupos segundo os aspectos de raça e gênero, é de que:

Se para as mulheres brancas das classes médias, um ponto importante para autonomia é sua inserção no trabalho remunerado, demandando políticas de ativação; para as mulheres negras das classes mais pobres, a participação no mundo do trabalho é, em geral, precoce, precarizada e as inscreve, de partida, em patamares desvantajosos. As demandas são, por conseguinte, diferenciadas. (SILVA, 2013, p. 109).

Prosseguindo, ao contrapor o lugar da mulher negra no mercado de trabalho com o lugar da mulher branca, verifica-se a disparidade entre os dois grupos.

Nos dizeres de Lima, Rio e França (2013, p. 56), inclusive retomando o trabalho doméstico:

As mulheres que começam a se movimentar para ocupações de nível superior são predominantemente brancas, enquanto há uma forte concentração de mulheres pretas e pardas [negras] no serviço doméstico. As mulheres provenientes das classes mais pobres (majoritariamente negras) dirigem-se para os empregos domésticos, de prestação de serviços e também para os ligados à produção na indústria; enquanto as mulheres de classe média, devido às maiores oportunidades educacionais, dirigem-se para prestação de serviços, para áreas administrativas ou de educação e saúde.

Para percepção das disparidades entre mulheres negras e brancas no mercado de trabalho, especificamente no trabalho doméstico, elucida-se dois gráficos quanto à presença dos dois grupos. O primeiro gráfico se refere à proporção de trabalhadoras domésticas negras e brancas no total de ocupadas, e o segundo gráfico se referente ao rendimento mensal de trabalhadoras domésticas negras e brancas: Gráfico 3: Proporção de trabalhadoras domésticas no total de ocupadas, por cor/raça (1995 a 2015)

Gráfico 4: Rendimento médio mensal das trabalhadoras domésticas, por cor/raça (1995 a 2015)

Fonte: Fontoura et al (2017, p. 25).

Mesmo se tratando da mesma área no mercado de trabalho (no momento, o serviço doméstico), os caminhos de inserção são distintos para os dois grupos sociais pertencentes do mesmo gênero, mulheres negras e mulheres brancas, sobretudo se interseccionado raça, classe e gênero, como já mencionado.

Ainda, mesmo que, como verificado nos dados referentes à educação, as mulheres negras possuam alto índice na esfera educacional, esse índice não lhes garante alto índice de rendimentos ou posicionamentos no mercado de trabalho, como afirmam Lima, Rio e França (2013), que discorrem:

Mesmo sendo mais escolarizadas que os homens, as mulheres brancas e negras têm salários inferiores aos dos homens de seu grupo de cor [grupo racial]. [...] Mesmo os avanços educacionais não foram suficientes para eliminar os padrões de desigualdades categoriais que se reproduzem, principalmente no que tange a espaços de poder e posições de alto status. O grupo mais desfavorecido nestes processos é o das mulheres negras, as quais, de modo geral, não conseguem reconverter suas aquisições educacionais em melhores rendimentos e posicionamentos no mercado de trabalho, e estão sobrerrepresentadas nas ocupações de menor prestígio. (LIMA; RIO; FRANÇA, 2013, p. 77).

Na mesma perspectiva, dialoga Silva: “[...] a maior escolaridade das mulheres em geral não se converte necessariamente em vantagem na remuneração do trabalho, o que é especialmente demonstrado quando os dados sobre rendimentos são controlados por escolaridade.” Assim, verifica-se o gráfico de rendimento médio mensal do trabalho de mulheres negras e brancas, e homem negro, em relação ao trabalhador branco, e anos de estudo:

Gráfico 5: Rendimento médio mensal no trabalho principal de trabalhadores de 16 anos ou mais de idade em relação ao trabalhador branco, segundo sexo, cor/raça e anos de estudo (2009) - Em %

Fonte: Silva (2013, p. 119).

Mais uma vez, a mulher negra encontra-se na margem, recebendo menos que a mulher branca, o homem negro e o homem branco, com a mesma escolaridade. Aponta Silva (2013, p. 119): “[...] as desigualdades raciais e de gênero moldam uma hierarquia do mercado de trabalho que se mantém mesmo entre grupos com mesma

escolaridade, em tese, fator primordial para melhor posicionamento no mundo do trabalho.” No entendimento de Baptista (2014, p. 202):

É perceptível [...] que as relações sociais no Brasil continuam se desenvolvendo a partir de um constructo estrutural racista e machista, que em última instância permanece discriminando e preterindo as mulheres negras em detrimento das mulheres brancas e de homens.

Para elucidar ainda mais, segue no gráfico 6 a taxa de desocupação de pessoas com 9 a 11 anos de estudo, ou seja, em média com o mesmo nível de escolaridade.

Gráfico 6: Taxa de desocupação das pessoas com 16 anos ou mais de idade, por sexo e cor/raça e de 9 a 11 anos de estudo (1995 a 2015)

Fonte: Fontoura et al. (2017, p. 15).

Complementar à desigualdade racial e de gênero no mercado de trabalho, segue-se para a visualização da desigualdade racial e de gênero na distribuição de renda, consequência lógica de uma sociedade em que se encontram presentes níveis educacionais desiguais entre os diferentes grupos raciais e de gênero, e disparidades evidentes nas presenças dos mesmos grupos no mercado do trabalho.

3.3 A DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO NA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA Ressalta-se o objetivo de reunir de forma breve os dados estatísticos, elaborados por meio de pesquisas, quanto às questões de raça e de gênero, para visualização das desigualdades referentes aos aspectos objetivos da distribuição de renda no Brasil, tendo em vista as relações existentes entre educação, mercado de trabalho e renda. Bem como, para verificação dos caminhos de desenvolvimento que resultam nas formas de distribuição de renda apresentadas adiante.

Ademais, os dados estatísticos selecionados seguem o critério de relevância para os objetivos do estudo, sobretudo a compreensão da desigualdade racial e de gênero seguindo o entendimento de interseccionalidade e de maior vulnerabilidade da figura da mulher negra. Dessa forma, diretamente aos dados, observa-se, no gráfico 7, o rendimento (em reais) dos diferentes grupos sociais quando chefes de família.

Gráfico 7: Rendimento domiciliar per capita médio, por sexo e cor/raça dos chefes de família (1995-2009) - Em R$

Quanto aos dados do rendimento domiciliar dos chefes de família, identificados no gráfico 7, discorre Marcondes et al. (2013, p. 29):

Os dados também indicam, de modo geral, uma melhora na renda per capita das famílias, beneficiando, mais fortemente, a população negra. É possível perceber, ao longo da série histórica aqui acompanhada, uma redução na desigualdade [...] Destaque-se, contudo, que, apesar da redução das desigualdades raciais de renda, a estrutura desta desigualdade permanece praticamente inalterada [...] entre 1995 e 2009, as famílias chefiadas por mulheres negras mantiveram-se sempre na posição de piores rendimentos, seguida pelos homens negros, mulheres brancas e, por último, pelos homens brancos. (MARCONDES et al., 2013, p. 29, grifo nosso).

Como verifica Silva (2013), ao comparar o total de renda dos grupos raciais e de gênero, mesmo que as disparidades tenham diminuído nos últimos anos, as mulheres negras não chegam a ter nem metade da renda auferida pelos homens brancos. No mesmo sentido, mostra-se adiante no gráfico 8, mesmo quando comparada a renda das mulheres negras e brancas, a renda das negras corresponde apenas cerca de 56% dos rendimentos das mulheres brancas.

Gráfico 8: Rendimento médio mensal de todas as fontes da população de 10 anos ou mais, por sexo, segundo raça, em relação ao homem branco (1999-2009) - Em %

Ademais, corroborando com estes dados, os microdados da PNAD/IBGE de 2017, e, portanto, mais recentes, chegam a números aproximados ao analisar o rendimento médio mensal (em reais) no trabalho principal de pessoas de 16 anos ou mais da população ocupada, de 1995 a 2015, conforme gráfico 9.

Gráfico 9: Rendimento médio mensal no trabalho principal da população ocupada de 16 anos ou mais de idade, por sexo e cor/raça (1995 a 2015)

Fonte: Fontoura et al (2017, p. 28).

Finalizando a apresentação de dados com objetivo de apontar efetivamente a concretização das desigualdades na sociedade brasileira, evidencia-se que o reconhecimento das desigualdades, sobretudo de raça e gênero, deve levar ao questionamento sobre os processos sexistas e racistas que comandam a vulnerabilização dos grupos sociais atingidos, e sobre os quais é indispensável que

as políticas públicas se concentrem para redução dessas desigualdades (SILVA, 2013). Assim, segue-se para o estudo das políticas públicas nessa perspectiva, em especial sobre a vulnerabilização e o espaço social das mulheres negras, grupo mais atingido pelos processos sexistas e racistas, como verificado. Nos dizeres de Ribeiro (2017, p. 25):

[...] pesquisas que pensam a partir dos lugares marcados dos grupos sociais conseguem estar mais próximas da realidade e gerar demandas para políticas públicas. Isso porque quando ainda se insiste nessa visão homogênea de homens e mulheres, homens negros e mulheres negras ficam implícitos e acabam não sendo beneficiários de políticas importantes e, estando mais apartados ainda, de serem aqueles que pensam tais políticas.

Não se nega os grandes avanços das últimas décadas, sobretudo no século XXI, para a população negra e para as mulheres, e especialmente para as mulheres negras, protagonistas permanentes da base da estrutura social. Contudo, todos os avanços ainda não são suficientes para redução significativa das desigualdades de raça e de gênero, tão pouco são suficientes para acabar completamente com as marcas existentes deixadas pelo passado escravocrata, sobretudo os preconceitos e privilégios enraizados. Assim, a fim de prosseguir no entendimento dos processos raciais e de gênero quanto às desigualdades existentes, cabe a identificação de políticas públicas relacionadas ao enfrentamento da desigualdade racial e de gênero demonstrada, o que se segue no próximo capítulo.

4 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DIREITOS FUNDAMENTAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE RACIAL E DE GÊNERO

De início, antes da identificação de políticas públicas relacionadas ao enfrentamento da desigualdade de raça e de gênero na sociedade brasileira, propósito que se preserva este capítulo, cabe discorrer sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais e os dispositivos constitucionais vigentes que justificam as políticas públicas de promoção da igualdade racial e de gênero, bem como compreender a função das políticas públicas, o que se faz a seguir.

4.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A