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livro inovacao no ensino superior em enfermagem

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Academic year: 2021

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Simone de Oliveira Camillo

Enfermeira e Doutora em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria do Controle de Doenças da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo

Professora do Curso de Graduação em Enfermagem da Faculdade de Medicina da Fundação do ABC, Santo André - São Paulo

Pesquisadora do Núcleo Interinstitucional de Investigação da Complexidade - NIIC – Grupo de Pesquisa em Educação e Complexidade – GRUPEC, do Centro Universitário Nove de Julho.

Linha de pesquisa: Fundamentos Filosóficos e Epistemológicos da Educação

Ana Lúcia da Silva

Enfermeira, Mestre e Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Professora, Orientadora e Vice-Coordenadora no Programa de Pós-Graduação da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, área de Concentração em Saúde Coletiva.

Pesquisadora do Núcleo Interinstitucional de Investigação da Complexidade - NIIC – Grupo de Pesquisa em Educação e Complexidade – GRUPEC, do Centro Universitário Nove de Julho.

Linhas de pesquisa: Formação para a humanização, Fundamentos Filosóficos e Epistemológicos da Educação e Saúde Coletiva e da Família.

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Prefácio

A autora é enfermeira, docente de enfermagem que teve a coragem de enfrentar o desafio de pesquisar o processo educacional em enfermagem na perspectiva da teoria da complexidade de Edgar Morin. Portanto, este livro, é uma versão da sua dissertação de mestrado, apresentada no Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra Ana Lúcia da Silva, que eu tive o prazer e orgulho de participar como membro da banca examinadora.

O tema é a prática pedagógica dos docentes de graduação em enfermagem buscando junto a esses sujeitos o olhar no modo como realizam a sua prática cujo objeto é formar o aluno para o cuidar do outro, um cuidar verdadeiramente humano, um cuidar complexo ao ser humano.

Para tanto faz uma análise dos aspectos históricos do processo ensino aprendizagem na enfermagem brasileira, resgata o paradigma cartesiano e o modelo biomédico relacionado ao processo ensino-aprendizagem em enfermagem. E finaliza sua introdução apresentando e refletindo sobre a teoria da complexidade de Edgar Morin, que consiste no marco conceitual do trabalho realizado. É neste momento que o leitor se depara e compreende as concepções da teoria da complexidade e a educação em enfermagem, quando inegavelmente a autora constrói o alicerce da sua pesquisa.

No entanto é no capítulo no qual faz a apresentação e discussão dos resultados é que se mostra a relevância do estudo, quando a partir das atrizes, isto é, das docentes entrevistadas, revela-se a ação pedagógica ao sinalizarem a responsabilidade docente, a união de saberes, a complexidade humana, o estímulo a criatividade e curiosidade do aluno, a transdisciplinaridade, a cidadania. É sem dúvida, o ápice da pesquisa, quando a autora expressa com rigor e profundo conhecimento o diálogo entre os conceitos da teoria da complexidade com os resultados do olhar das docentes sobre o seu cotidiano pedagógico.

No último capitulo retoma aos pressupostos iniciais, agora numa outra perspectiva, a partir das revelações, vislumbrando a possibilidade do ensino de enfermagem ter como eixo a condição e a complexidade humana.

Diante do exposto posso dizer que este trabalho é inovador e adensa o conhecimento na área do ensino em enfermagem porque mostra, defende e sustenta a possibilidade de se ter uma proposta pedagógica no referencial da teoria da complexidade, mostrando ser possível como bem escreve a autora “perseguimos uma ciência com consciência, bem como um processo ensino aprendizagem com uma visão humana em relação ao cuidar do outro, com uma visão que reduza a fragmentação do ensino do cuidar do outro”.

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APRESENTAÇÃO

Vivemos numa época cuja principal característica é a divisão de tudo. Essa visão de mundo extremamente reducionista, mecanicista e pragmática, voltada para as aparências, a competitividade e a vivência individualista dos sentidos, nos moldes dos ideais industrialistas de nosso tempo, leva-nos a um processo de cegueira e conduz a excluir tudo aquilo que não seja quantificável e mensurável, eliminado dessa forma, a subjetividade humana.

Trata-se do paradigma cartesiano, cujas linhas mestras foram concebidas e, em sua maior parte, consolidadas pelos trabalhos notáveis do filósofo e matemático francês René Descartes. A crença cartesiana na verdade infalível da ciência é o modelo ainda dominante e arduamente defendido pela grande maioria dos cientistas refletindo-se no cientificismo que se tornou típico na cultura ocidental. A influência do paradigma cartesiano é concreta em todos os segmentos da sociedade. Na saúde, o modelo biomédico é imperativo na priorização das questões biológicas em detrimento de outros aspectos, sendo o corpo humano compreendido como um objeto que pode ser desmontado e seus mistérios entendidos de uma forma racional. Sabemos que o predomínio do conhecimento fragmentado gerado pelo modelo biomédico dificulta a percepção da complexidade do ser humano.

As tendências atuais voltadas à formação do profissional enfermeiro com uma postura crítica e reflexiva, com habilidades que vão além de aspectos técnicos, constituem um grande desafio para as instituições formadoras.

Assim, não podemos esquecer que, o docente tendo em vista seu papel central nas instituições de ensino de educação superior, necessita ter a compreensão da importância de estar preparando os educandos para a vida social, valorizando seu conhecimento específico, sua criatividade, sua responsabilidade pessoal e social, estimulando a pluralidade do pensamento, da crítica, da dialógica quanto ao fazer político, da justiça social, da liberdade, da ética e do respeito ao ser humano. Para isso, é

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necessário debates a respeito das políticas educacionais e de seus fundamentos pedagógicos para que possa ocorrer transformação no sistema de educação de ensino superior.

Este livro é de significativa importância no que diz respeito à: subsidiar reformulações nos currículos de Graduação em Enfermagem numa sintonia com as políticas educacionais e de saúde do país; disseminar e debater a Teoria da Complexidade, de Edgar Morin (1921- ) no âmbito da Saúde; valorizar a condição humana do processo ensino-aprendizagem.

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1. O CONTEXTO DO ENSINO UNIVERSITÁRIO

“... Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. Daí é que é preciso nos elevarmos... Trabalhemos, pois, para bem pensar...”. (Pascal, 1979, p.124).

Dificuldades globais e inter-relacionais originadas do paradigma cartesiano, que tem norteado os últimos quatro séculos, têm nos levado, ao desenvolvimento tecnológico e a um afastamento essencial do ser humano.

O discurso de diferentes segmentos da sociedade atual, no Brasil e no mundo a respeito da educação e do conhecimento enfocando o significado social, cultural, político e econômico vem trazendo novas exigências na formação dos profissionais de diferentes áreas.

Não contemplando somente as demandas e necessidades do mercado, as universidades, enquanto instituições de ensino, exercem um importante papel social nessas novas mudanças, visando a construção do saber, do conhecimento e de formas de interação com a prática mediante condições que estimulem a reflexão, a capacidade de observação, análise, críticas e resoluções de problemas, possibilitando a autonomia de idéias e a formulação de pressupostos. Ampliam-se os horizontes, tornando o educando um agente ativo com possibilidades de contribuir para transformar a sociedade na qual irá interagir. Para isso, devem propiciar, no cotidiano da sala de aula, atividades que possibilitem aos alunos o desenvolvimento de atitudes e ações crítico-reflexivas, tendo como objetivo a formação do aluno/pessoa/cidadão. Porém, isso tem implicado buscar superar a fragmentação do conhecimento, a centralização no papel do professor no desenvolvimento das aulas e a carência de contextualização.

O processo ensino-aprendizagem nesse momento de crise de paradigma apresenta-se na linha da racionalidade técnica, herdada pelo cartesianismo e, segundo a qual, o graduando deve ser preparado para a atividade profissional de forma instrumental, dirigida para a solução de problemas biológicos.

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No entanto, acredita-se que, para enfrentar desafios tão grandes, necessita-se muito mais do que apenas a reorganização do ensino universitário. Torna-se necessário adequar as práticas dos profissionais na busca por novas habilidades, competências, atitudes e valores éticos que venham atender as prerrogativas por um cuidar complexo. Além disso, é importante a defesa de uma educação libertadora que possibilite a conscientização desse estar no mundo que conduz necessariamente a inserção crítica na realidade (Freire, 2003b).

De acordo com Saupe (1993) a prática pedagógica do docente de enfermagem tem como predominância um modelo bastante eclético, que valoriza os fundamentos da pedagogia tradicional, incorpora aspectos do ideário humanista, orienta-se por ações preconizadas pelo modelo tecnicista, mas considera também alguns valores do discurso progressista. Sendo que a necessidade atual que se apresenta, em relação ao ensino superior, é a formação de profissionais flexíveis e críticos, aptos para a inserção em diferentes setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira. Os futuros profissionais devem ser pessoas capazes de reconhecer que não deve haver lacunas entre o biológico e o psicossociocultural.

Carvalho et al. (1999) acrescenta que a figura do professor está revestida por um caráter humanista em relação à expectativa dos alunos, ou seja, esperam um professor competente do ponto de vista técnico, imparcial, humano, compreensivo, orientador e justo. Que os acompanhem nos procedimentos, que os estimule, fazendo-os compreender que são capazes e que tenha um comportamento ético, ou seja, que não os constranjam, não os advertindo em público e nem comentando seus erros com outros membros da equipe.

Continuando, o professor deve se dedicar perseverantemente a:

“... formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusá-lo do que não fez...” (Freire, 2003a, p. 17).

A relação professor-aluno deve ser considerada como ponto chave num processo em que percebemos pessoas distintas, com experiências únicas, sendo

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aproximadas com o objetivo da construção e elaboração do conhecimento (Rocha e Silva, 2001). E, para que esta fase seja crítica,

“É preciso que desde o começo do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado” (Freire, 2003a, p. 22-23).

Ensinar exige: rigorosidade metodológica, pesquisa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, estética e ética, corporeificação das palavras pelo exemplo, risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento e a assunção da identidade cultural, consciência do inacabamento, reconhecimento de ser condicionado, respeito à autonomia do ser do educando, bom senso, humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores, apreensão da realidade, alegria e esperança, convicção de que a mudança é possível, curiosidade, segurança, competência profissional e generosidade, comprometimento , compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo, liberdade e autoridade, tomada consciente de decisões, saber escutar, reconhecer que a educação é ideológica, disponibilidade para o diálogo, querer bem aos educandos (Freire, 2003a).

Diante disso, Freire por meio de metáforas faz críticas ao processo ensino-aprendizagem onde temos o educador como o sujeito que conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado:

”... a narração os transforma em vasilhas, em recipientes a serem enchidos pelo educador. Quanto mais vai enchendo os recipientes com seus depósitos, tanto melhor o educador será. Quanto mais se deixem docilmente encher, tanto melhores educandos serão...O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca” (Freire, 2003b, p.58).

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conteúdo adequado das informações, mas também do que o aluno é capaz de fazer de posse delas, ou seja, refletir, reelaborá-las e utilizá-las com adequação, desenvolvendo continuamente o espírito de busca e a curiosidade intelectual, devendo ser composto por respeito, diálogo, seriedade de intenções, cognição e afetividade (Rocha e Silva, 2001; Moretto et al, 1998).

Freire defende a idéia que no processo ensino-aprendizagem:

“... o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa... Que o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto na intercomunicação” (Freire, 2003b, p.64-68).

Porém, há relatos na literatura sobre processo ensino-aprendizagem que evidencia a dificuldade por parte dos docentes em lidarem com questões que saiam do contexto instrumental (técnico). De acordo com Ohl (1995), o professor da disciplina de Fundamentos de Enfermagem, como um dos primeiros a participar ativamente do processo de formação profissional do aluno de graduação, demonstra não estar preparado para enfrentar as dificuldades do estudante ao deparar com a realidade hospitalar. Segundo a autora, os professores referiram sentir dificuldades para perceber e lidar com os aspectos emocionais que o aluno manifesta no decorrer de sua experiência no campo de estágio, embora reconheçam tratar de um ser despreparado, imaturo, inexperiente e dependente da ação do professor para desenvolver o aprendizado.

As angústias, incertezas e inseguranças que assolam estudantes, principalmente de cursos em que a saúde, a doença, a vida das pessoas fazem parte de sua rotina de trabalho, na maioria das vezes, não é percebida pelos seus professores ou dirigentes e muito menos discutida em sala de aula (Amorim, Moreira e Carraro, 2001).

Fiorano (2002), por sua vez, acrescenta que, tanto como enfermeira assistencial, como docente, sempre esteve presente o desafio de perceber o outro além do que seus olhos pudessem ver, conseguir compreender o que os olhos dessas pessoas queriam falar, valorizar as emoções refletidas em cada atitude. Para a mesma, o professor deve perceber seus alunos não somente enfocando a vertente intelectual da

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aprendizagem, mas também privilegiando as dimensões sociais e afetivas, propiciando assim um processo educativo completo e voltado à formação do cidadão consciente e operante.

Para tal é imprescindível que no processo ensino-aprendizagem haja dialogicidade como prática da liberdade e o diálogo verdadeiro que se faz por um pensar crítico (Freire, 2003b, p.83-84).

Portanto, é importante e de extrema necessidade preparar profissionais com capacidade técnica para influenciar nas decisões políticas e com sensibilidade poética para melhor compreender a condição humana. O processo de ensino-aprendizagem na enfermagem, além de facilitar o conhecimento essencial a uma prática terapêutica, quer seja no âmbito da graduação ou da pós-graduação, deverá promover as capacidades intelectuais e as competências para a investigação, avaliação crítica do exercício profissional e dos planos de ação política (Sá,1999).

O ensino superior em Enfermagem no Brasil

O ensino de enfermagem iniciou-se oficialmente em 1890, com a promulgação do Decreto n.791, tendo como objetivo preparar os enfermeiros para trabalhar nos hospícios e hospitais civis e militares (Galleguillos e Oliveira, 2001). As primeiras Escolas de Enfermagem foram: Alfredo Pinto (1890); a Escola da Cruz Vermelha (1916) e a Escola de Enfermeiras, anexada ao Hospital Geral de assistência do Departamento Nacional de Saúde Pública em 1923, que posteriormente chamou-se Anna Nery (Gomes, 1991).

Considera-se que a enfermagem moderna foi introduzida no Brasil em 1923 e tinha como exigência para o ingresso no curso: atestado de bons antecedentes, saber ler e escrever corretamente e conhecer aritmética elementar. O conteúdo era voltado para noções práticas de propedêutica hospitalar, curativos, pequena cirurgia, cuidados especiais a certas categorias de enfermos, administração interna da escrituração do serviço sanitário e econômico das enfermarias (Gomes, 1991).

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projeto de educação sanitária. Assim, patrocinada pela Fundação Rockefeller, um grupo de enfermeiras americanas vem ao Brasil para colocar em prática um programa de ensino para o curso de enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública e organizar o serviço de enfermagem de saúde pública (Galleguillos e Oliveira, 2001). Porém, de acordo com Rizzoto (1999) os primeiros programas confirmam o ensino voltado à assistência hospitalar.

Desta forma, a enfermagem brasileira incorpora o modelo americano, que já havia adaptado o modelo Nightingaliano para suas necessidades tecnicistas, com predomínio do sistema de treinamento em serviço, onde não havia interesse no crescimento intelectual das alunas. Este modelo indica um mínimo de conteúdo teórico e o uso da concepção de condicionamento que valoriza a aprendizagem por repetição das técnicas, direcionado para o trabalho de enfermagem em instituições hospitalares e atendendo assim, à medicina curativa e hospitalar (Antunes, Shigueno e Meneghin, 1999; Galleguillos e Oliveira, 2001).

A enfermagem brasileira institucionaliza-se subordinada à prática médica, conformando-se a um papel utilitarista e complementar, valorizando a técnica pela técnica. Assim, a pedagogia predominante no ensino de enfermagem era a de condicionamento: aprender a fazer sem questionar o porquê (Antunes, Shigueno e Meneghin, 1999).

Em 1926 são feitas as primeiras alterações no programa de ensino. Verificou-se que houve aumento significativo de disciplinas relacionadas ao atendimento do indivíduo no hospital, predominando o modelo biomédico e afastando ainda mais, o exercício da enfermagem vinculado à saúde pública (Rizzoto, 1999).

As práticas pedagógicas nessa época mantiveram-se voltadas para condicionar o pessoal de enfermagem a aprender técnicas, para cumprir rapidamente o papel que se esperava dele: atender à demanda dos cuidados necessários, valorizado pelo aprendizado das técnicas (Antunes, Shigueno e Meneghi, 1999).

Em 1949 um novo currículo foi elaborado pela Divisão de Educação da Associação Brasileira de Enfermagem, que regulamentou o ensino de enfermagem, e a

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exemplo do currículo norte-americano, continha um grande número de especialidades médicas com conteúdos de enfermagem. Do ponto de vista pedagógico, nada havia mudado. Prevalecia a concepção do condicionamento. A ênfase no fazer e na repetição das técnicas, tolhia a criatividade das alunas (Garcia, Chianca e Moreira, 1995).

Em 1962 é fixado o primeiro currículo mínimo para cursos de enfermagem, com base na Comissão de Peritos em Enfermagem nomeada pelo Ministério da Educação, da Associação Brasileira de Enfermagem e das 19 Escolas de Enfermagem do país. Foi regulamentado o currículo de enfermagem, sendo reduzida a duração do curso para três anos, a introdução de especializações no quarto ano optativo e a eliminação da disciplina de Enfermagem em Saúde Pública, que passou a ser optativa. Dessa forma, a formação da enfermeira ficou ainda mais restrita ao atendimento individual e curativo (Galleguillos e Oliveira, 2001).

A aprovação desse currículo trouxe insatisfação para as enfermeiras docentes e membros da Associação Brasileira de Enfermagem, gerando discussões em toda a década de 60. A categoria reivindicava o aumento de três para quatro anos letivos na tentativa de melhorar a qualidade do ensino e como forma de atender as reais necessidades de saúde do país. É importante lembrar que a saúde no Brasil foi, durante muitos anos, vista sob a égide meramente tecnicista. Esse modelo favorece a dicotomia saúde/doença, prevenção/cura, e exerce hoje grande influência na construção da identidade profissional do enfermeiro (Galleguillos e Oliveira, 2001).

Em 1972 o currículo mínimo novamente é reformulado. Criam-se as habilitações em Saúde Pública, Enfermagem Médico-Cirúrgica e Obstetrícia, para serem cursadas de forma optativa (Galleguillos e Oliveira, 2001).

A justificativa dada para uma nova reformulação do currículo mínimo de enfermagem, se deve à necessidade enfatizada pelo Conselho Federal de Enfermagem, em preparar o enfermeiro para dominar cada vez mais as técnicas avançadas em saúde, em razão da evolução científica, uma vez que a profissão médica passara a necessitar de uma enfermagem especializada, para juntos atuarem na assistência curativa, privilegiando, sobretudo o ensino centrado no modelo médico de assistência hospitalar.A

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especialização era feita durante a graduação, prejudicando a formação geral (Germano, 1985).

Segundo Godoy (2002), essa organização de proposta curricular fez com que o ciclo básico passasse a consumir quase 50% da carga horária total do curso, em detrimento do tronco profissionalizante, que gerou enorme preocupação quanto às reais possibilidades do egresso, no desempenho profissional.

Em 1992 nova mudança curricular. Dentre as alterações mais relevantes, destaca-se a ampliação do curso para quatro anos (Godoy, 2002). Novamente em 1994 após inúmeros debates, novas diretrizes para o ensino de enfermagem são tomadas. Entre elas: aumento da carga horária mínima, participação do enfermeiro dos serviços de saúde e no ensino mediante propostas de integração docente-assistencial; contenção de disciplinas relativas às ciências biológicas e humanas nos currículos plenos; os conteúdos relativos à Saúde Pública excluída no currículo anterior retornaram sob a designação de Saúde Coletiva. Porém, manteve-se a subdivisão em especialidades médicas evidenciando a dificuldade de ruptura com a matriz norte-americana que orientou o ensino de enfermagem desde seu início no Brasil (Galleguillos e Oliveira, 2001).

No dia de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei n.9.394, é publicada no Diário Oficial da União atribuindo à educação superior, algumas finalidades como: desenvolver o pensamento reflexivo e o espírito científico; formar diplomados nas diferentes áreas do conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira; estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica, entre outras (Brasil, 1996). Percebe-se dessa forma, preocupação relacionada ao desenvolvimento da formação cultural, científica e reflexiva dos profissionais, para que estes possam de maneira qualificada, prestar serviços à comunidade, garantindo saúde para todos. Ao mesmo tempo, a flexibilidade concede às

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instituições de ensino superior a liberdade de influenciar o perfil de aluno que deseja formar, definindo parte considerável de seus currículos plenos, o que representa um avanço.

Em se tratando das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem e dentro da perspectiva de assegurar a flexibilidade, a diversidade e a qualidade da formação oferecida aos estudantes, as diretrizes devem estimular o abandono das concepções antigas e herméticas das grades (prisões) curriculares, de atuarem, muitas vezes, como meros instrumentos de transmissão de informações, e garantir uma sólida formação básica, preparando o futuro graduado para enfrentar os desafios das rápidas transformações da sociedade, do mercado de trabalho e das condições de exercício profissional (Brasil, 2001).Dessa forma, os objetivos são: levar os alunos dos cursos de graduação em enfermagem a aprender a aprender, ou seja: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser (Delors, 2003).

Após essas considerações históricas é oportuno sinalizar que o Curso de Graduação em Enfermagem deve conter um projeto político pedagógico construído coletivamente, centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem. Este projeto deverá buscar uma formação complexa mediada por uma articulação entre o ensino, a pesquisa e a extensão/assistência. As atividades teóricas e práticas presentes desde o início do curso, devem permear toda a formação do graduando, de forma integrada e transdisciplinar, estimulando o aluno a refletir sobre a realidade social, as dinâmicas de trabalho em grupos e as relações interpessoais (Brasil, 2001).

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2. PARADIGMA MODERNO

“... o mundo está cheio de cegos vivos, Eu acho que vamos morrer todos, é uma questão de tempo, Morrer sempre foi uma questão de tempo... Mas o que verdadeiramente agora nos está a matar é a cegueira...” (Saramago, 1995, p.285).

O pensamento cartesiano

Vivemos numa época cuja principal característica é a divisão de tudo. Esta crise reducionista foi provocada em grande parte pelo saber filosófico extremamente mecanicista da ciência moderna, e em parte pelo modo capitalista de nossas relações, tanto humanas quanto econômicas. Assim:

"... a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminado assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão em longo prazo. Sua insuficiência para tratar nossos problemas mais graves constitui um dos mais graves problemas que enfrentamos. De modo, que quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade, quanto mais a crise progride mais progride a incapacidade de pensar a crise...” (Morin, 2002a, p. 14).

Essa visão de mundo extremamente reducionista, mecanicista e pragmática, voltada para as aparências, a competitividade e a vivência individualista dos sentidos, nos moldes dos ideais industrialistas de nosso tempo, obriga-nos a reduzir o complexo ao simples, isto é, a separar o que está ligado (Morin,2002a). Trata-se do paradigma cartesiano, cujas linhas mestras foram concebidas e, em sua maior parte, consolidadas pelos trabalhos notáveis do filósofo e matemático francês René Descartes.

Descartes procurou um modo de chegar a verdades concretas. Sua filosofia, exposta principalmente no Discurso sobre o Método, o mais amplamente lido de todos os

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Argumenta que as idéias são incertas e instáveis, sujeitas à imperfeição dos sentidos. Algumas idéias, porém, se apresentam ao espírito com nitidez e estabilidade, e ocorrem a todas as pessoas da mesma maneira, independentes das experiências dos sentidos (que chama de idéias inatas). Considera essas idéias claras, distintas, e inatas e vai demonstrar que essas são as verdadeiras idéias. A primeira idéia que examina é a do próprio Eu. Desta idéia, diz êle, não se pode duvidar. É a idéia do próprio Eu pensante, enquanto pensante. E então conclui com sua célebre frase: "Penso, logo existo". (Cogito, ergo sum)" (Descartes, 1979).

Toda a concepção de mundo e de homem de Descartes se baseia na divisão da natureza em dois domínios opostos: o da mente ou espírito (res cogitans), a "coisa pensante"; e o da matéria (res extensa), a "coisa extensa". Mente e matéria seriam criações de Deus, partida e ponto de referência comum a estas duas realidades. Para Descartes a existência de Deus era essencial à sua filosofia científica. Em relação ao corpo humano, reconhece como a mais perfeita das máquinas (mecanicismo); trabalha por impulsos naturais (instintos), mas os efeitos destes instintos automáticos e desejos podem ser controlados ou modificados pela mente, pelo poder de vontade racional (Descartes, 1979).

Descartes tinha como objetivo, usar seu método analítico para formar uma descrição racional completa de todos os fenômenos naturais num único sistema preciso de princípios mecânicos regidos por relações matemáticas. Seu método de raciocínio e as linhas gerais da teoria dos fenômenos naturais que oferece, inspirado no rigor matemático e em suas "longas cadeias de razão", pode ser compreendido em quatro momentos:

“O primeiro, era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse em nenhuma ocasião, de pô-lo em dúvida.

O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a

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pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

E o último, de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir” (Descartes, 1979, p.37-38).

A crença cartesiana na verdade infalível da ciência é o modelo ainda dominante e arduamente defendido pela grande maioria dos cientistas refletindo-se no cientificismo que se tornou típico de nossa cultura ocidental. Morin, Ciurana e Motta (2003, p.17) refletem que esse modelo: “... enfatiza a necessidade de proceder, em qualquer pesquisa ou estudo, a partir de certezas estabelecidas de maneira ordenada e nunca pelo acaso”. Os princípios desse paradigma são :

“1. Princípio de universalidade: só há ciência do geral. Expulsão do local e do singular como contingentes ou residuais;

2. Eliminação da irreversibilidade temporal, e, mais amplamente , de tudo que é eventual e histórico;

3. Princípio que reduz o conhecimento dos conjuntos ou sistemas do conhecimento das partes simples ou unidades elementares que os constituem;

4. Princípio que reduz o conhecimento das organizações aos princípios de ordem (leis, invariâncias, constâncias) inerentes a essas organizações; 5. Princípio de causalidade linear, superior e exterior aos objetos;

6. Soberania explicativa absoluta da ordem, ou seja, determinismo universal e impecável: as aleatoriedades são aparências devidas à nossa ignorância. Assim, em função dos princípios 1,2,3,4 e 5, a inteligibilidade de um fenômeno ou objeto complexo reduz-se ao conhecimento das leis gerais e necessárias que governam, as unidades elementares de que é constituído;

7. Princípio de isolamento/separação do objeto em relação ao seu ambiente;

8. Princípio de separação absoluta entre o objeto e o sujeito que percebe / concebe. A verificação por observadores / experimentadores diversos é suficiente não só para atingir a objetividade, mas também para excluir o sujeito;

9. Ergo: eliminação de toda a problemática do sujeito no conhecimento científico;

10. Eliminação do ser e da existência por meio da quantificação e da formalização;

11. A autonomia não é concebível;

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verdade intrínseca das teorias. Toda a contradição aparece necessariamente como erro;

13.Pensa-se inscrevendo idéias claras e distintas num discurso monológico“ (Morin, 2002b, p.330).

Conforme Morin:

“... a separação sujeito/objeto é um dos aspectos essenciais de um paradigma mais geral de separação/redução, pelo qual o pensamento científico ou distingue realidades inseparáveis sem poder encarar sua relação, ou identifica-as por redução da realidade mais complexa a menos complexa. Assim, física, biologia, antropossociologia tornaram-se ciências totalmente distintas, e quando se quis ou quando se quer associá-las é por redução do biológico ao físico-químico, do antropológico ao biológico...” (Morin, 2002b, p.138).

Todo este quadro de tecnicismo individualista e de descrédito em valores humanistas têm causa fundamental: a nossa visão de mundo alicerçada em referenciais mecanicistas. O paradigma cartesiano baseou-se na crença de que o conhecimento científico poderia alcançar a certeza absoluta e final numa compreensão completa e definitiva da realidade. Porém a maioria das ciências obedece ao princípio da redução, que limita o conhecimento do todo ao conhecimento de suas partes, reduzindo o complexo ao simples.

O princípio da redução leva naturalmente a um processo de cegueira e conduz a excluir tudo aquilo que não seja quantificável e mensurável, eliminado dessa forma, o elemento humano. Obedece estritamente ao postulado determinista, ocultando o imprevisto, o novo e a inovação (Morin, 2002b).

Ainda em Morin:

“... a inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional. Destrói no embrião as possibilidades de compreensão e de reflexão, reduz as possibilidades de julgamento corretivo ou da visão em longo prazo. Por isso, quanto mais os problemas se tornam multidemensionais, maior é a incapacidade de pensar sua multidimensionalidade, quanto mais a crise progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise, mais os problemas se tornam planetários,

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mais eles se tornam impensáveis. Incapaz de considerar o contexto e o complexo planetário, a inteligência cega torna-se inconsciente, irresponsável...” (Morin, 2003b, p.43).

O modelo biomédico e o processo ensino-aprendizagem em Enfermagem

Esse modelo prioriza as questões biológicas em detrimento de outros aspectos, ou seja, deixa de considerar a influência de fatores psico-emocionais e o sócio-ambientais no processo saúde-doença, sendo o corpo humano compreendido como um objeto que pode ser desmontado e seus mistérios entendidos de uma forma racional. Esse pensamento reducionista levou à fragmentação, tanto da ciência como do homem em si, de seus sentimentos, emoções e valores.

O processo ensino-aprendizagem na Enfermagem foi moldado pelo discurso biomédico e demarcada pelas enfermeiras nightingaleanas no início do século XX e se perpetua com exatidão, firmeza e disciplina até os dias de hoje. Diante disso, os enfermeiros organizam seu processo ensino-aprendizagem e conseqüentemente, suas práticas em torno desse modelo, levando-os muitas vezes a priorizar a doença e não a pessoa em si.

O modelo biomédico vê o ser humano como um ser predominantemente físico, portanto a prática dos enfermeiros fica mais centrada nas necessidades físicas dos doentes. Os cuidados que permitam uma expressão do desenvolvimento da pessoa num contexto biopsicossociocultural, levando em conta as suas necessidades, os seus recursos, o seu cotidiano, os seus valores, crenças e mitos, não são contemplados. Como o paciente sente, percebe e recebe esta assistência não interessa ao processo ensino-aprendizagem, e conseqüentemente permanece irrelevante em relação às práticas. Há uma separação do corpo e da mente, ou seja, a arte de cuidar é esculpida pela fragmentação do indivíduo (Sá, 1999).

A pouca preocupação em relação ao que o paciente pensa, sente e expressa, contrasta com o grande valor que é atribuído às técnicas que se executam, particularmente às mais sofisticadas. Com a implementação de novas tecnologias materiais na saúde aumenta o grau de dificuldade nos cuidados e a importância dos

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conhecimentos técnicos e seu perfeito domínio no dia-a-dia profissional tem recebido maior consideração. Os cuidados voltados para o diagnóstico, tratamento e cura são mais valorizados. A morte ou a impossibilidade de cura representa o fracasso que pode ter como conseqüência a insatisfação pessoal.

A presença do modelo biomédico nas rotinas, a massificação e a seriação dos cuidados, a desvalorização atribuída por alguns enfermeiros aos cuidados que não sejam eminentemente relacionados à tecnologia material, a despersonalização do paciente quando este é chamado pela patologia que tem e não pelo seu nome, o pouco tempo disponível para o relacionamento interpessoal com o paciente em contraste com o tempo gasto com as técnicas, caracterizam um cuidar humano não adequado. Dessa forma, o processo ensino-aprendizagem em Enfermagem deve ter como ponto fundamental, a valorização do todo na mesma proporção que é valorizada a parte, pois do contrário estaremos fragmentando a condição humana e nos tornando reducionistas.

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3. UM NOVO PENSAMENTO: A TEORIA DA COMPLEXIDADE

“O pensamento complexo, um pensamento que pensa” (Morin e Moigne, 2000, p.197).

Podemos dizer que a Teoria da Complexidade surgiu para questionar a fragmentação e o esfacelamento do conhecimento, em que o pensamento linear oriundo do século XVI, colocava o desenvolvimento da especialização como supremacia da ciência, contrapondo-se ao saber generalista e globalizante (Morin e Moigne, 2000). Diante disso, por considerar que o pensamento complexo seja indispensável para todos os que trabalham com educação e que possuam preocupações referentes à produção do conhecimento multidimensional em saúde, passaremos a apresentar aspectos sobre essa teoria.

Sobre Edgar Morin

Edgar Nahoun (que mais tarde adotou o sobrenome "Morin") nasce em Paris no dia oito de julho 1921. Filho único de um casal de judeus sefarditas (descendentes dos judeus expulsos da península ibérica em 1492/1496), perde sua mãe aos dez anos de idade, fato que o marcará por toda a vida sendo fonte geradora de seu pensamento sobre a Complexidade (Morin, 2003c).

Em 1965 é convidado a participar de um grande projeto de pesquisa multidisciplinar, financiado pela Delegação Geral de Pesquisa Científica e Técnica, na comuna de Plozevet. Passa o ano de 1965 pesquisando, com ajuda de diversos colaboradores. O resultado levou dois anos para ser redigido e acabou gerando polêmica. A transdisciplinariedade de Morin foi considerada "herética" e fez com que a Delegação Geral de Pesquisa Científica e Técnica lhe aplicassem uma "repreensão científica". Com aversão crescente ao meio acadêmico parisiense passa, cada vez mais, a exercer atividades fora de Paris (Morin, 2003c).

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Em 1967 é convidado por Jacques Robin a se tornar membro do "Grupo dos Dez", onde se aprofunda na biologia e descobre o pensamento cibernético, por intermédio de Henri Laborit e Jacques Sauvan (Morin, 2003c).

Em 1969, por sugestão de Monod e John Hunt, o Instituto Salk de pesquisas biológicas o convida a passar um ano em La Jolla, Califórnia, Estados Unidos. Lá, conhece a revolução biológica e genética, iniciada com a descoberta da estrutura em dupla hélice da molécula do ácido desoxirribonucléico (Watson e Crick). Inicia-se na "três teorias" que considera interpenetrantes e inseparáveis: a cibernética (Wiener e Bateson), a teoria dos sistemas e a teoria da informação (SESC online,2004).

A partir de 1970, é iniciado, por Henri Atlan, no pensamento de Heinz von Förster, na teoria da auto-organização e na teoria dos automata auto-reprodutores de Von Neumann. Nesse processo de encontros, reaprendizados e reorganização dos princípios do conhecimento, concebe a idéia de um livro que se chamaria "La Méthode" (O Método). Publicou seis volumes: O Método I –a natureza da natureza; O Método II- a vida da vida; O Método III- O conhecimento do conhecimento; O Método IV- as idéias, habitat, vida, costumes, organizações; O Método V- a humanidade da humanidade onde aborda a essência do pensar complexo e O Método VI- ética (SESC online, 2004).

Entre suas incessantes viagens a vários países do mundo, participa em 1996 das conferências na Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro ao lado de Baudrillard e Michel Maffesoli; do seminário internacional "A cultura das Métropoles" no Serviço Social do Comércio em São Paulo (capital) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (SESC on-line, 2004).

Em 2000, recebe no Brasil o título Honoris Causa da Universidade Católica de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ainda neste ano, apresenta pela primeira vez a trajetória de sua vida e do seu pensamento em: "Dos Demônios: atelier ao vivo do pensamento de Edgar Morin", realizado no Serviço Social do Comércio em São Paulo (capital). Participa como convidado especial do renomado programa de debates "Roda Vida" na Televisão Cultura em São Paulo (SESC online, 2004).

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Em 08 de Julho de 2001, comemora seus 80 anos. É homenageado pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) - onde é presidente da Agência Européia de Cultura - sob a patronagem de seu diretor geral Koichiro Matsura e de Jack Lang, ministro da Educação Nacional da França (SESC online, 2004).

A Teoria da Complexidade

A Teoria da Complexidade apresenta um pensamento que integra os diferentes modos de pensar, opondo-se aos mecanismos reducionistas, simplificadores e disjuntivos. Considera todas as influências recebidas, internas e externas, e ainda enfrenta a incerteza e a contradição, sem deixar de conviver com a solidariedade dos fenômenos existentes. É um pensamento desprovido de certezas e verdades científicas. Morin (2002c, p.103) escreve que: “o conhecimento complexo necessita do diálogo retroativo ininterrupto das aptidões complementares / concorrentes / antagônicas que são análise / síntese, concreto /abstrato, compreensão/ explicação”. Dessa forma, o que é complexo recupera, por um lado, o mundo empírico, a incerteza, a incapacidade de se atingir a certeza de formular uma lei eterna, de conceber uma ordem absoluta. Por outro lado, recupera alguma coisa que diz respeito à lógica, ou seja, à incapacidade de evitar contradições (Morin, Ciurana e Motta, 2003). Morin (2003b) acrescenta dizendo que há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo, e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto do conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si.

Podemos dizer que a teoria da complexidade surgiu para questionar a fragmentação e o esfacelamento do conhecimento, em que o pensamento linear oriundo do século XVI, colocava o desenvolvimento da especialização como supremacia da ciência, contrapondo-se ao saber generalista e globalizante. Da mesma forma, podemos dizer que o pensamento complexo é essencialmente um pensamento que trata com a incerteza, que pode esclarecer as estratégias do nosso mundo incerto e que é capaz ao mesmo tempo de conceber a organização (Morin e Le Moigne, 2000).

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De acordo com Morin, Ciurana e Motta (2003 p.43):

“... a palavra “complexidade” do ponto de vista etimológico, é de origem latina, provém de complectere, cuja raiz plectere significa trançar, enlaçar. Remete ao trabalho da construção de cestas que consiste em entrelaçar um círculo, unindo o princípio com o final de pequenos ramos. A presença do prefixo “com” acrescenta o sentido da dualidade de dois elementos opostos que se enlaçam intimamente, mas sem anular sua dualidade. Por isso, a palavra complectere é utilizada tanto para designar o combate entre dois guerreiros, como o abraço apertado de dois amantes. Em francês, a palavra “complexo” aparece no século XVI: vem do latim complexus, que significa que “abraça”, particípio do verbo complector, que significa eu abraço, eu ligo” .

Em suas reflexões sobre ciência e filosofia, Morin contrapõe-se ao pensamento reducionista, linear e simplificador. Destaca as relações e dependências multidimensionais de todos os saberes, tais como a biologia, a antropologia, a sociologia e a física, e ainda coloca o pensamento mítico-simbólico-mágico ao lado do racional-lógico-científico, ou seja, entende a complexidade como um tipo de pensamento que não separa, mas une e busca as relações necessárias e interdependentes de todos os aspectos da vida humana (Petraglia, 2000).

A base da epistemologia da complexidade desenvolvida por Edgar Morin advém de três teorias que se inter-relacionam: a teoria da informação, a cibernética e a teoria dos sistemas (Petraglia, 2002).

A teoria da informação se ocupa essencialmente na análise problemas relativos à transmissão de sinais no processo comunicacional. A cibernética é a ciência que estuda as comunicações e o sistema de controle dos organismos vivos e máquinas em geral. Compreende a idéia de retroação, que substitui a causalidade linear pela curva causal. Trata-se de uma teoria das máquinas autônomas, em que a causa atua sobre o efeito, que por sua vez age sobre a causa. E a teoria dos sistemas afirma que “o todo é mais que a soma das partes”, indicando a existência de qualidades emergentes que surgem da organização do todo e que podem retroagir sobre as partes; mas “o todo é também menos que a soma das partes”, pois as partes têm qualidades que são inibidas pela organização global. No conceito de sistema, como compreendido por Morin, está presente

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a idéia de rede relacional: os objetos dão lugar aos sistemas e as unidades simples dão lugar às unidades complexas, levando em consideração fenômenos como tempo e espaço (Petraglia, 2000).

De acordo com Morin (2002b, p.261) em relação à Teoria da Complexidade: “... não basta conceber como problema central o da manutenção das relações todo/partes, uno/diverso, há que ver também o caráter complexo destas relações”. Eis o que Morin coloca:

“O todo é mais do que a soma das partes, visto que em seu nível surgem não só uma macrounidade, mas também emergências, que são qualidades/propriedades novas; o todo é menos do que a soma das partes, porque elas sob o efeito das coações resultantes da organização do todo, perdem ou vêem inibirem-se algumas das suas qualidades ou propriedades; o todo é mais do que o todo, porque o todo enquanto todo retroage sobre as partes, que, por sua vez, retroagem sobre o todo (... o todo é mais do que uma realidade global é um dinamismo organizacional); as partes são ao mesmo tempo menos e mais do que as partes, as emergências mais notáveis dentro de um sistema muito complexo, como a sociedade humana, efetuam-se não só no nível do todo, mas também e, sobretudo dos indivíduos; as partes são eventualmente mais do que o todo... A riqueza do universo não está na sua totalidade dispersiva, mas nas pequenas unidades reflexivas desviadas e periféricas que nele se constituíram; o todo é menos do que o todo, há dentro do todo, zonas de sombra, ignorâncias mútuas e até cisões, falhas entre o reprimido e o exprimido, o imerso e o emergente, o generativo e o fenomenal; o todo é insuficiente, o que decorre de tudo quanto precede; o todo é incerto, ...é igualmente incerto no sentido de que, no universo vivo, tratamos com politotalidades, em que cada termo seu pode ser concebido ao mesmo tempo enquanto todo e parte; o todo é conflituoso, ...todo sistema comporta forças antagônicas à sua perpetuação...” (Morin, 2002b, p.261-264).

A Teoria da Complexidade apresenta sete princípios para um pensamento que une. Segundo Morin são complementares e interdependentes. São eles:

“-princípio sistêmico ou organizacional que liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, segundo o elo indicado por Pascal: ‘Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes’ . A idéia sistêmica, oposta à idéia reducionista, é que ‘o todo é mais do que a soma das partes’ ...O todo é igualmente, menos que a soma das partes,

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cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto;

- princípio hologrâmico põe em evidência este aparente paradoxo das organizações complexas, em que não apenas a parte está no todo, como o todo está inscrito na parte;

- princípio do circuito retroativo permite o conhecimento dos processos auto-reguladores. Este princípio rompe com o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e o efeito age sobre a causa;

- princípio do circuito recursivo ultrapassa a noção de regulação com as de autoprodução e auto-organização. É um circuito gerador em que os produtos e os efeitos são, eles mesmos, produtores e causadores daquilo que o produz;

-princípio da autonomia/dependência (auto-organização), os seres vivos são seres auto-organizadores, que não param de se auto-produzir e, por isso mesmo, despendem energia para manter sua autonomia. Como tem necessidade de retirar energia, informação e organização de seu meio ambiente, sua autonomia é inseparável dessa dependência; é por isso que precisam ser concebidos como seres auto-eco-organizadores. O princípio da auto-eco-organização vale especificamente para seres humanos, que desenvolvem sua autonomia na dependência de sua cultura e para as sociedades que se desenvolvem na dependência de seu meio geológico. Um aspecto chave da auto-eco-organização viva é que ela se regenera permanentemente a partir da morte de suas células; -princípio dialógico, une dois princípios ou noções que deviam excluir-se reciprocamente, mas são indissociáveis em uma mesma realidade. Deve-se conceber uma dialógica ordem/desordem/organização desde o nascimento do Universo: a partir de uma agitação calorífica (desordem), onde, em certas condições (encontros aleatórios), principalmente de ordem vão permitir a constituição de núcleos, átomos, galáxias e estrelas. Sob as mais diversas formas, a dialógica entre a ordem, a desordem e a organização via inúmeras interretroações, está constantemente em ação nos mundos físico, biológico e humano. Este princípio permite assumir racionalmente a inseparabilidade de noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo. A complexidade incorpora as noções de ordem, desordem e organização, presentes em todos os sistemas. Ordem-desordem é uma relação inseparável que tende a estabelecer a organização. É um processo fundamental para a evolução do universo e é norteador da relação dialógica e ao mesmo tempo una, complementar, concorrente e antagônica;

-princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento. Esse princípio opera a restauração do sujeito e revela o problema cognitivo central: da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução feita por uma mente/cérebro, em uma cultura e época determinadas" (Morin, 2002a, p.93-96).

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O pensamento complexo só pode ser entendido por um sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível, que não reduz a multidimensionalidade à explicações simplistas ou esquemas fechados de idéias. Este configura uma nova visão de mundo, que aceita e procura compreender as mudanças constantes do real e não pretende negar a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza, e sim conviver com elas.

De acordo com Morin há uma série de pontos que tem por objetivo elucidar as características do pensamento complexo. São eles:

“... o estatuto semântico e epistemológico do termo ‘complexidade’ não se concretizou ainda. Diferentes autores, da matemática à sociologia , utilizam o termo de forma às vezes bastante diversa...; ...quase todos os autores diferenciam ‘complexidade’ e ‘complicação’...Pode-se afirmar que, com o discurso sobre a complexidade, abordamos um problema lógico e geral. Em outras palavras, a complexidade diz respeito não apenas à ciência, mas também à sociedade, à ética e à política. É , portanto, um problema de pensamento e de paradigma que envolve uma epistemologia geral...; ...um pensamento que reconhece o movimento e a imprecisão é mais potente do que um pensamento que os exclui e os desconsidera irreflexivamente...; ...um pensamento complexo nunca é um pensamento completo. Não pode sê-lo, porque é um pensamento articulante e multidimensional. A ambigüidade do pensamento complexo é dar conta das articulações entre domínios disciplinares fraturados pelo pensamento desagregador...; ...o Pensamento complexo sabe que existem dois tipos de ignorância: a daquele que não sabe e quer aprender e a ignorância (mais perigosa) daquele que acredita que o conhecimento é um processo linear, cumulativo, que avança trazendo a luz ali onde antes havia escuridão, ignorando que toda luz também produz sombras como efeito...; ...O pensamento complexo não despreza o simples, mas critica a simplificação. Nesse sentido, a complexidade não é nem simplificação colocada às avessas, nem a eliminação do simples: a complexidade é a união da simplificação e da complexidade... Não rejeita o pensamento simplificador, mas reconfigura suas conseqüências através de uma crítica a uma modalidade de pensar que mutila, reduz, unidimensionaliza a realidade. Corrige e ressalta a cegueira de um pensamento simplificador que pretende tornar transparente o vínculo entre pensamento linguagem e realidade; que postula a ilusão de uma absoluta normalização de uma realidade de infinitas proporções, silenciosa e abismante” (Morin, Ciurana e Motta, 2003, p.52-59).

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A Teoria da Complexidade e a identidade humana

A identidade humana comporta segundo Morin (2003a), o reconhecimento do nosso duplo enraizamento no cosmo físico e na esfera viva e, ao mesmo tempo, nosso desenraizamento propriamente humano. Estamos simultaneamente dentro e fora da natureza. Diante disso refere que a nossa condição cósmica concerne :

“... no gigantesco cosmo em expansão, constituído de bilhões de galáxias e de bilhões de estrelas. ... há talvez quinze bilhões de anos; nossos átomos de carbono formaram-se em um ou vários sóis anteriores ao nosso; nossas moléculas agruparam-se nos primeiros tempos convulsivos da Terra; essas macromoléculas associaram-se em turbilhões dos quais um, cada vez mais rico em diversidade molecular, se metamorfoseou em organização de novo tipo, em relação à organização estritamente química; uma auto-organização viva” (Morin, 2003b, p.49) .

Em relação à condição física:

“... uma porção de substância física organizou-se de maneira termodinâmica sobre a Terra, por meio de imersão marinha, de banhos químicos, de descargas elétricas, adquiriu vida. A vida é solar, pois, todos os seus elementos foram forjados em um sol e reunidos em um planeta cuspido pelo sol. Nós seres vivos, somos um elemento da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um diminuto broto da existência terrena” (Morin, 2003b, p. 49).

Quanto à nossa condição terrestre:

“... pertencemos ao destino cósmico, porém estamos marginalizados: nossa Terra é o terceiro satélite de um sol destronado de seu posto central. Ela autoproduziu-se e se auto-organizou-se na dependência do Sol; constituiu-se em complexo biofísico a partir do momento em que se desenvolveu a biosfera. Somos a um só tempo seres cósmicos e terrestres...” (Morin, 2003b, p.49-50).

Morin (2003a, p.29) nos diz que da Terra, efetivamente originou-se a vida, e do desenvolvimento multiforme da vida policelular originou-se a animalidade; por fim, o mais recente desenvolvimento de um ramo do mundo animal tornou-se humano.

Em relação à condição humana, a importância da hominização é primordial porque nos mostra como a animalidade e a humanidade constituem juntas nossa

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condição. Com a cerebralização e a juvenilização que andam juntas com a hominização, há o favorecimento do desenvolvimento da complexidade social. O aparecimento da cultura opera numa mudança de órbita na evolução. As culturas se tornam evolutivas, por inovações, absorção do aprendido, reorganizações, as técnicas que se desenvolvem, as crenças e os mitos que mudam; foram às sociedades que, a partir de pequenas comunidades arcaicas, se metamorfosearam em cidades, nações e impérios gigantes. A linguagem por sua vez, é a encruzilhada essencial do biológico, do humano, do cultural, do social. É uma parte da totalidade humana, que por sua vez está contida na linguagem. É, na verdade, o nó de toda a cultura e de toda sociedade humana (Morin, 2003a, p.33-37).

Para Morin (2003a) a humanidade surge de uma pluralidade e de uma justaposição de trindades: indivíduo-sociedade-espírito, cérebro-cultura-mente e razão-afetividade-pulsão. Porém, afirma que o ser humano define-se, antes de tudo, como trindade indivíduo/sociedade/espécie. O indivíduo é um termo dessa trindade e cada um desses termos contém os outros. Não só os indivíduos estão na espécie, mas a espécie também está nos indivíduos. Da mesma forma, não só os indivíduos estão na sociedade, mas a sociedade também está nos indivíduos, introduzindo-lhes desde o seu surgimento, a sua cultura. Ainda:

“... as interações entre indivíduos produzem a sociedade e esta retroage sobre a cultura e sobre os indivíduos. Assim, a espécie produz os indivíduos produtores da espécie, os indivíduos produzem a sociedade produtora dos indivíduos; espécie, sociedade, indivíduo produzem-se; cada termo gera e regenera o outro (a relação entre esses três termos é dialógica: significa que o complementar pode tornar-se antagônico)” (Morin, 2003a, p.52).

Por meio dessas idéias, podemos perceber que as instâncias ligadas em trindade são inseparáveis. O indivíduo é a um só tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico, espiritual. Assim:

“... como não ver que o mais biológico –o nascimento, o sexo, a morte - é ao mesmo tempo, o mais impregnado de símbolos e de cultura? Nascer, morrer, casar-se são também atos religiosos e cívicos. Nossas atividades biológicas mais elementares, comer, beber, dormir, defecar, acasalar-se estão estreitamente ligadas a normas, interdições, valores, símbolos, mitos, ritos, prescrições, tabus, ou seja, rituais (refletir, meditar) estão

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ligadas ao cérebro, e as mais estéticas (cantar, dançar) estão ligadas ao corpo. O cérebro, pelo qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos, são totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, culturais” (Morin, 2003a, p.53).

Ao mesmo tempo, há uma unidade humana, e esta por sua vez traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Assim, de acordo com Morin (2003b, p.55): “... compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno”.

Partindo deste princípio :

“... o indivíduo é irredutível, sendo aberrante qualquer tentativa de dissolvê-lo na espécie e na sociedade. É o humano que dispõe das qualidades do espírito e mesmo de uma superioridade em relação à espécie e à sociedade, pois só ele tem a consciência e a plenitude da subjetividade. A possibilidade de autonomia individual atualiza-se na emergência histórica do individualismo, mesmo permanecendo inseparável do destino social e histórico...” (Morin, 2003a, p.73).

Diante disso, Morin (2003a) refere que a noção de indivíduo só ganha sentido ao comportar a noção de sujeito. E ser sujeito implica situar-se no centro do mundo para conhecer e agir (noção de egocentrismo). Essa noção de egocentrismo comporta um princípio de exclusão e outro de inclusão. O princípio de exclusão corresponde ao fato de ninguém poder ocupar o seu lugar no mundo, nem mesmo um gêmeo univitelino que dispõe da mesma identidade genética. Estes podem ter tudo em comum, salvo o mesmo Ego, pois este não se partilha. É a qualidade do sujeito, ou seja, a sua ocupação do espaço egocêntrico por um Eu que unifica, integra, absorve e centralizam cerebral, mental e afetivamente as experiências de uma vida que torna cada gêmeo único, não as suas características particulares (singularidades genéticas, anatômicas, psicológicas, afetivas).Desse modo :

“... nenhum outro indivíduo pode dizer Eu em meu lugar, mas todos os outros podem dizer eu individualmente. Como cada indivíduo vive e experimenta-se como sujeito, essa unicidade singular. É a coisa humana mais universalmente partilhada. O sujeito é egocêntrico, mas o egocentrismo não conduz somente ao egoísmo” (Morin, 2003a, p.75).

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Já o princípio de inclusão nos permite incluirmos numa comunidade: Nós (casal, família, partido, Igreja). E permite-nos incluir esse Nós no centro do mundo. O sujeito pode, por amor, dedicar-se ao outro. Assim :

“... há na situação do sujeito uma possibilidade egoísta que vai até o sacrifício de tudo para si, e uma possibilidade altruísta que vai até o sacrifício de si... Tudo se passa como se houvesse em nossa subjetividade um quase duplo programa; um comando ‘para si’ ; outro comando ‘para nós’ ou ‘para outros’. Dedicamo-nos ora estritamente a nós mesmos, ora aos nossos, nossos filhos, nossos pais, nossos amores, nosso partido, nossa pátria. O programa altruísta pode ser focalizado de várias maneiras; por um lado, destina o sujeito ao Nós, ao Nós no sentido sociológico do termo, pátria, partido, religião; por outro lado ainda, destina- o a Ti. De fato, o quase duplo programa é ainda mais complexo; tudo acontece como se cada um tivesse um tetraprograma, correspondente não somente à trindade humana indivíduo/sociedade/espécie, mas também à relação intersubjetiva de amizade e de amor.” (Morin, 2003a, p.76). O indivíduo vive para si e para o outro dialogicamente, porém por maior que seja nossa possibilidade de integração num Nós, a equação subjetiva Ego/Eu é pessoal e inalienável. Pode-se partilhar e viver por empatia a alegria e a dor do outro, mas a alegria e o sofrimento, ainda que partilháveis, são intransferíveis. O outro significa ao mesmo tempo, o semelhante (pelos traços humanos ou culturais comuns) e o dessemelhante (pela singularidade individual ou pelas diferenças étnicas), sendo que a qualidade do sujeito permite-nos percebê-lo na semelhança e dessemelhança. O fechamento egocêntrico torna o outro estranho para nós. Assim como a abertura altruísta o torna simpático, ou seja, o sujeito é por natureza fechado e aberto ( Morin, 2003a).

O outro se encontra no âmago do sujeito:

“... a relação com o outro se inscreve virtualmente na relação consigo mesmo; o tema arcaico do duplo está profundamente enraizado em nossa psique, mostra que cada um carrega um alterego (eu mesmo-outro), ao mesmo tempo diferente e idêntico ao eu. Por carregarmos essa dualidade, na qual ‘eu é um outro’, podemos, na simpatia, na amizade, no amor, introduzir e integrar o outro em nosso Eu... Na intersubjetividade, produz-se conivência. A possibilidade de compreensão permite reconhecer o outro como outro sujeito e senti-lo, eventualmente, no amor como alterego, outro si mesmo” (Morin, 2003a, p.78).

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Embora o sujeito individual seja singular, é um ponto de holograma contendo toda a trindade e ele não está sozinho porque o Outro e o Nós moram nele. O Eu por sua vez está sozinho na ocupação do espaço egocêntrico. Há nele um nó incomunicável e que não comunga com nada (Morin, 2003a).

O ser humano na verdade, constitui o cosmo em si, pois contém a multiplicidade interior, as personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, o sono e a vigília, a obediência e a transgressão, o ostensivo e o secreto.

“... Cada um contém galáxias de sonhos e de fantasias, impulsos indomáveis de desejos e amores, abismos de infelicidade, vastidões de indiferença gelada, abrasamento de astros em fogo, avalanches de ódio, extravios idiotas, clarões de lucidez, tempestades de demências... Cada um contém uma solidão inacreditável, uma pluralidade extraordinária, um cosmo insondável” (Morin 2003a, p.94).

Diante do que foi apresentado até o presente momento sobre a identidade humana, podemos dizer que o ser humano é sem dúvida o que Morin define como Homo complexus :

“... o ser humano não só vive de racionalidade e de técnica; ele se desgasta, se entrega, se dedica a danças, transes, mitos, magias, ritos; crê nas virtudes do sacrifício, viveu freqüentemente para preparar sua outra vida além da morte. Por toda parte, uma atividade técnica, prática intelectual testemunha a inteligência empírico-racional; em toda parte, festas, cerimônia, cultos com suas possessões, exaltações, desperdícios, ‘consumismos’, testemunham o Homo ludens, poeticus, consumans, imaginarius, demens. As atividades de jogo, de festas, de ritos não são apenas pausas antes de retomar a vida prática ou o trabalho; crenças nos deuses e nas idéias não podem ser reduzidas a ilusões ou superstições: possuem raízes que mergulham nas profundezas antropológicas; referem-se ao ser humano em sua natureza. Há relação manifesta ou subterrânea entre o psiquismo, a afetividade, a magia, o mito, a religião. Existe ao mesmo tempo unidade e dualidade entre Homo faber, Homo ludens, Homo sapiens e Homo demens. E no ser humano, o desenvolvimento do conhecimento racional-empírico-técnico jamais anulou os conhecimentos simbólicos, míticos, mágicos ou poéticos. Através da trilogia do espírito, da afetividade, do anel que liga e opõe a racionalidade, afetividade, imaginário, mito, estética, lúdico, despesa, o

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