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O corpo pícaro em Octavio Paz

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Academic year: 2021

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O CORPO PÍCARO EM OCTAVIO PAZ

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de doutor em Literatura. Orientador: Prof. Dr. Marcos José Müller

Florianópolis 2018

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Assis, Adriana Carolina Hipolito de

O CORPO PÍCARO EM OCTAVIO PAZ / Adriana Carolina Hipolito de Assis; orientador, DR. MARCOS JOSÉ MÜLLER, 2018.

491 p.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura, Florianópolis, 2018.

Inclui referências.

1. Literatura. 2. CORPO, PICARESCA, OCTAVIO PAZ, LACAN. I. MÜLLER, DR. MARCOS JOSÉ. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Dr. Marcos José Müller, pela liberdade de escolha acadêmica, pela paciência e dedicação como orientador; à coordenação do Programa de Pós-Graduação em Literatura e em Filosofia da UFSC e à CAPES, órgão de fomento desta pesquisa. Agradeço a Dr. Celso Lafer pelas conversas por e-mail sobre Octavio Paz. Agradeço à curadoria e às bibliotecárias da Casa das Rosas que me forneceram material do acervo pessoal de Haroldo de Campos sobre Octavio Paz. Agradeço ao SOGIPA que possibilitou conhecer a esgrima mais de perto, ao medievalista Roberto Holz, que me mostrou o acervo pessoal de instrumentos musicais; ao Masp e ao Instituto Tomie Ohtake, que me permitiram fotografar o acervo e a todos que, direta ou indiretamente, ajudaram-me na execução deste trabalho.

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Este trabalho é dedicado em memória à minha mãe, Nair, à minha filha Carolina, minha família Hipólito e ao Marcos, meu marido.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo o estudo da falta na picaresca em Octavio Paz. A picaresca está inserida no ensaio Conjunciones y Disyunciones. Octavio Paz, neste ensaio, reconhece o diário de Armando Jimenez, A Picardia Mexicana, com intenção de libertar, de retirar a repressão do corpo do pícaro e da literatura popular mexicana. Essa ação libertadora em Octavio Paz está também presente em outros ensaios, nos quais defende a inventividade pícara, assim como os desejos socialmente denegados. As narrativas pícaras situam-se em uma geografia da Espanha do século XVII. Nela, a imagem de Lazarillo de Tormes surge como um fantasma narrativo fixado à imago espanhola. A figura do pícaro Lazarillo de Tormes migra para o México no processo de aculturação. Assim, Lazarillo de Tormes passa a ser a entrada do real lacaniano, da falta e da rejeição foraclusiva herdada da Espanha. A picaresca manifesta-se nas imagens selecionadas por Octavio Paz como metáfora de inclusão social dos sintomas pícaros relacionados, sobretudo às anomalias e síndromes. O olhar de Octavio Paz busca, como na picaresca, reinserir a figura do pícaro a partir da negatividade positiva da filosofia de Hegel em laço com a psicanálise freudiana, que aqui discuto por uma vertente lacaniana. Trata-se de um contributo ensaístico para a psicanálise e para os estudos literários sobre Octavio Paz.

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Paz. The picaresque is inserted in the essay Conjunctions and Disjunctions. Octavio Paz, in this essay, recognizes the journal of Armando Jimenez, The Picardia Mexicana, with the intention of liberating, of withdrawing the repression of the body of the pícaro and popular Mexican literature. This liberating action in Octavio Paz is also present in other essays, in which he advocates mischievous inventiveness, as well as socially denied desires. The mischievous narratives are located in a geography of seventeenth-century Spain. In it, the image of Lazarillo de Tormes appears as a narrative ghost fixed to the Spanish imago. The figure of the picaro Lazarillo de Tormes migrates to Mexico in the process of acculturation. Thus, Lazarillo de Tormes happens to be the entrance of the Lacanian real, of the lack and foracliusive rejection inherited from Spain. The picaresque is manifested in the images selected by Octavio Paz as a metaphor for the social inclusion of picato symptoms related, especially to the anomalies and syndromes. The look of Octavio Paz seeks, as in the picaresque, to reinsert the figure of the rogue from the positive negativity of the philosophy of Hegel in tie with the Freudian psychoanalysis, that I discuss here by a Lacanian side. It is an essayistic contribution to psychoanalysis and to literary studies on Octavio Paz.

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SUMÁRIO

I .- INTRODUÇÃO ... 11

1.. - Octavio Paz herdeiro de Hegel ... 18

1.2. - O reconhecimento em Hegel e o Nome-do-Pai na figura do mestre. ... 32

1.3. - Para não sair do mesmo: sublimação e poesia medieval. ... 36

1.4.- Sublimação em Lutero, tradução picaresca. ... 48

1.5 - Usinas da paz medieval ... 59

1.6- Fidelidade e Infidelidade medieval e a picaresca. ... 63

1.7- Quando o bem sublima o mal: o ojo del culo espejo del alma. ... 75

1.8- Um certo Platão em Hegel: o fantasma pícaro está fora do tempo. ... 86

1.8.1- A música na picaresca é para tique-tique-tar. ...99

1.8.2- A picaresca desde a aculturação é sublimação...115

1.8.3- A servidão e a mediação do gozo na picaresca...143

1. 9- A falta em Hegel em em Jacques Lacan no contexto da picaresca...154

2. - Uma paisagem, um quadro pícaro: o engodo pícaro, a mentira e o roubo...166

2.1. - A Foraclusão pícara...182

3. - Primeiro engano, o pícaro veste a prêt-à-porter: a defesa da inventividade...197

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... 227

3.3. - Terceiro engano: o pícaro baudelariano é um maldito...236

3.4.- Quarto engano: as defesas grotescas...248

3.5.- Quinto engano: o Banquete Rabelais...261

3.6- Sexto engano: o riso grotesco...275

3.7 - Sétimo engano: poéticas do oco no teatro Kabuki ...283

4. - Chillida entre o Oriente e o Ocidente: a leveza e o peso ...288

4.1 - O engodo faz rir na máscara do teatroKabuki...303

4.2. - Máscaras Mexicanas...320

4.3- Trompe l'oeil: quando o olhar cai...327

4.4- Uma questão de estilo: a carta roubada...339

4.5. - A astúcia pícara da alma colada...352

4.6 - As margens do texto: Sor Juana Inês e o Soneto em Ix. ...359

4.6.1.- Analogias das margens...363

4.6.2. - Analogias, alegorias e ironia das margens...390

4.6.3- As margens do texto, uma possibilidade de leitura...396

5.- CONCLUSÃO...430

6. - REFERÊNCIAS...454

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I INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo o estudo da falta na picaresca em Octavio Paz. A picaresca está inserida no ensaio Conjunciones y Disyunciones. Octavio Paz, neste ensaio, reconhece o diário de Armando Jimenez, A Picardia Mexicana, com intenção de libertar, de retirar a repressão do corpo do pícaro e da literatura popular mexicana. Essa ação libertadora em Octavio Paz está também presente em outros ensaios, nos quais defende a inventividade pícara, assim como os desejos socialmente denegados. As narrativas pícaras situam-se em uma geografia da Espanha do século XVII. Nela, a imagem de Lazarillo de Tormes surge como um fantasma narrativo fixado à imago espanhola. A figura do pícaro Lazarillo de Tormes migra para o México no processo de aculturação. Assim, Lazarillo de Tormes passa a ser a entrada do real lacaniano, da falta e da rejeição foraclusiva herdada da Espanha.

Para compreender o reconhecimento feito por Octavio Paz sobre a picaresca foi necessário seguir o olhar do poeta mexicano. Buscar nas imagens, na estética por ele vinculada, a forma como incluía o pícaro mexicano. Octavio Paz vincula as imagens pícaras à morte do povo mexicano como base de suas discussões estéticas, críticas. A morte no México estrutura-se a partir de duas bases: pela negatividade positiva e pela morte esfacelada, foraclusiva, a picaresca é sempre expulsa de seus espaços. Octavio Paz

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essencialmente trata da morte pulsional na Picardia Mexicana, assim como em outros ensaios, as faltas são tamponadas por sublimações e fantasias.

A morte é símbolo do povo mexicano, compreendê-la fez-me encontrar a filosofia de Hegel como uma das bases das críticas de Octavio Paz, que também está presente nos estudos da psicanálise em intersecção com a filosofia de Hegel. As faltas revelam-se na palavra como sintoma recalcado, morto, como o real em Jacques Lacan. As faltas do pícaro situam-se na fase de espelho, na inversão do vaso de flores lacaniano, na estrutura da fome, da privação sofrida pelo pícaro desde a infância e da inserção das anomalias e síndromes que se inseriram à paisagem mexicana no século de Oiro da Espanha. O conceito da falta na psicanálise é também marcado pela morte na castração, pela cultura do não, do supereu que lhe impõe a derrota, a escravidão como um imperativo. Ao pícaro resta entreter, ser o bobo da corte, fazer rir ou achar mecanismos de defesa para ser aceito socialmente. O pícaro veste a roupa de bem para ser aceito pelo modelo oficial. Mas para manter, satisfazer os desejos primários - o seio materno -, o pícaro demanda: mente, rouba e engana. O percurso de demandas pícaras constrói uma biblioteca imaginária que produz arte e literatura. Cada diáspora e/ou peregrinação é um quadro, no qual se repete de forma automatizada a foraclusão sofrida pelo pícaro. Cada imagem poética é um quadro pícaro que Octavio Paz torna pertencente à paisagem latina e mundial. Cada quadro é

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também uma hélice dos vórtices do barroco latino. A demanda pícara constrói a imagem de um caracol.

A figura do pícaro sempre esteve de forma germinal nos espaços do Ocidente e do Oriente que Octavio Paz busca conciliar, incluir no cenário mundial. A picaresca no Ocidente inicia com os gregos, em Satiricón ele é um escravo que espelha poder. Em Lutero é um Lazarillo que serve como tradutore/traidore do Outro de Deus, na Idade Média ele é um quixotesco que se perde em alucinações imaginárias que deve ser esgrimado, ou, ainda, é um grotesco comilão, felador que não se limpa direito. Na modernindade ele é um Dandy, um Baudelairiano melancólico, um demente. No Oriente o pícaro é um budista zen da fome, um boneco Kabuki, no Oriente sino-japonês o pícaro é um menos, mas com potência de uma espada minimalista, ideogramática. No Oriente hindu o pícaro é um polimorfo, um deus grotesco. O encontro miscigenado entre o Oriente e o Ocidente põe o budismo hanayna em proximidade com o gongorismo espanhol. A mesma relação se dá entre a arte e o teatro oriental mahayana, essencialmente ideogramático como os glifos mexicanos ou os hieróglifos egípcios. A estética de Sor Juana Inês ou de Chillida são também orientais, ambos praticam as posições de sade-sutra.

Octavio Paz ao estabelecer comparações estéticas da arte latina com as orientais, estrangeiras não sabia que essa mistura estética repetia o gesto do processo de aculturação, não sabia que as misturas estavam no corpo, nas anomalias que criaram um tipo

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de barroco espelhado na psique do sujeito que é a alíngua lacaniana, a imagem do caracol do Soneto em Ix, de S. Mallarmé e da biblioteca espiralada de Sor Juana Inês que expõe as faltas espelhadas alongando o gozo com silogismos. As imagens espiraladas latinas aproximam-se da imagem do kundalinī, do budismo hanayana. O caracol é um vórtice barroco que escoa analidade reprimida, introjetada como escravidão, o pícaro é sempre menos um (-1). A escravidão dá-se pela fase de espelho e pela incapacidade de lutar dialeticamente pela conquista de seu espaço, de sua soberania, é o que se observa em Satiricón. Para Hegel é a autoconsciência que faz do sujeito dono de seu destino. Se ele não sobrevive à derrota dialética, é um escravo. A lógica do abuso, da chiganda instala-se no Ocidente pela picaresca, a prova disso está marcada na imago latina de Lazarillo de Tormes à Gusman de Alfarrache, o alemán que para sobreviver atalaya, rouba. Neste sentido, Octavio Paz é tão busca vidas quanto o pícaro. Por isso o poeta e crítico mexicano sempre busca compreender, reconhecer e conciliar o Ocidente com o Oriente para negociar sua inserção como embaixador nos espaços. Octavio Paz sempre fez grandes laços dos sintomas antes de entrar em uma geografia. E fazia-o à moda hegeliana. O reconhecimento, a sublimação e a fantasia, assim como desejo derivado da fome é uma alavanca da negatividade positiva que serve para balizar e compreender a imago dos pícaros irracionais, que estão sempre fora do tempo histórico racional, da normalidade de Hegel. O

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tempo irracional é também inventivo, surreal, é o tempo de um certo platão hegeliano, que foge do tempo histórico, mas que se revela na palavra como falta. As revelações são também objeto de busca de Octavio Paz, o poeta mexicano seleciona e combina em uma paisagem, um punctum para depois ler, analisar o quadro. Octavio Paz, além de embaixador, era um crítico de arte e um articulador político que incluiu a picaresca para pôr a arte e a literatura popular latina em pé de igualdade com a arte moderna/contemporânea como o fez com M. Duchamp. Para Octavio Paz as obras duchampianas estão par a par com a arte popular. O texto da Picardia de Mexicana, de Armando Jimenez é um exemplo disso a picardia foi reconhecida no mundo inteiro a partir do ensaio Conjunciones y Disyunciones. Esse ensaio não é o único que procura incluir, salvaguardar a foraclusão pícara, latina. Quase todos os ensaios de Octavio Paz de uma forma ou de outra retratam o mesmo gesto. As defesas pícaras são muitas e Octavio Paz, mais do que autorizar o discurso, reconhece que o pícaro é um artista que nunca foi valorizado. Para Octavio Paz a arte popular presente na Picardia Mexicana, era também vanguardista, contemporânea. O poeta e ensaísta mexicano precisou mergulhar na psique, nas raízes da rejeição do pícaro observando a repressão sofrida pela sociedade e pela religião protestante para encontrar a repressão que se esconde nas máscaras do povo mexicano. Octavio Paz dedicou dois tomos de suas obras completas para falar da imagem do pícaro. Em Privilégios de la Vista encontra-se o olhar

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de Octavio Paz e, nele, o corpo pícaro, a imagem, a palavra que se revela. Octavio Paz busca no olhar a revelação da palavra como falta sublimada, como fantasia desejante, como mecanismo de defesa para ter o discurso e o sintoma aceito.

No percurso da picaresca a falta surge para falar tanto da morte estrutural do sujeito quanto das perdas, do resto do objeto a que comparece nos textos como letra. A psicanálise neste trabalho surge como um contributo ensaístico para a análise do corpo pícaro. O corpo pícaro pulsa, angustia-se, esmola para ser reconhecido por linguistas, por gramáticos e por poetas e críticos como Octavio Paz. A falta em Octavio Paz revela-se numa aliança topológica com a psicanálise, com a antropologia como eixo estratégico conduzido pela filosofia de Hegel que aqui exponho via Alexandre Kojève, via Platão, via Merleau-Ponty no debate interno com os Seminários: A Relação de Objeto, A Ética da Psicanálise, O Avesso da Psicanálise, dentre outros. A falta, portanto, é a grande musa dos ensaios de Octavio Paz, pois exibem, revelam o corpo faltante, morto. A palavra revelada libera o corpo, o ojo del culo, o espelho da alma. E é exatamente por isso que acredito que a falta, sobretudo em Conjunciones y Disyunciones - ensaio motriz que utilizo para análise e crítica do real neste trabalho – possibilita compreender como a palavra ganha corpo. A palavra ganha corpo na medida em que o sujeito se defende de forma inventiva, a arte escreve o inconsciente, revela o espelho da alma.

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A literatura e a psicanálise lacaniana unem-se na tentativa de dar ao objeto de estudo, o corpo pícaro, um novo olhar sobre Octavio Paz. A falta no presente trabalho trata das defesas, das sublimações, das fantasias que veste prêt-à-porter. Lacan é também herdeiro de Hegel, uma das bases da psicanálise está nos desejos que são negados pelo sujeito, pelo pícaro. A renúncia dos desejos pícaro é fator de foraclusão e de demanda social. O pícaro é explorado porque não fala e não vê. Embora o percurso lacaniano aponte para os espelhos, há uma ambiguidade entre o primitivismo e as anomalias, as deficiências do homem acéfalo que não fala e não vê com o sujeito que tem linguagem e vê, ambiguidade também presente na filosofia de Hegel que Jacques Lacan critica. De qualquer forma, tanto a psicanálise quanto a atitude inclusiva de Octavio Paz casam-se na tentativa de conciliar opostos para além das diferenças ou das semelhanças entre Oriente e o Ocidente, ambos direta ou indiretamente criticam a exploração e a repressão sofrida pelos pícaros.

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1 OCTAVIO PAZ, HERDEIRO DE HEGEL

Figura 1- 32º Bienal de São Paulo – 2016, Mate - Born Dead, de Luke Willes Thompson.

Em diversos ensaios Octavio Paz afirma indiretamente que a dialética é sinônimo de normalidade, sonho utópico ou, talvez, desejo de proteção de Coisa materna que almeja salvaguardar os pícaros mexicanos foracluidos em Conjunciones y Disyunciones reinserindo-os à circularidade, à lógica de Hegel, ou, ainda, resquício filosófico platônico-hegeliano que pensa o sujeito como aquele que está fora do tempo histórico. Para Hegel, à dialética situa-se dentro do tempo histórico, sair da circularidade temporal histórica é estar fora do sentido lógico-racional e, portanto, fora da Lei. O tempo para Octavio Paz vem marcado pelo

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barroco retilíneo, pelo tempo cosmogônico e pelo tempo histórico. No ensaio Los Signos en Rotación y otros ensayos o tempo histórico manifesta-se como marcha, como prosa. O tempo cósmico é marcado pela circularidade da poesia. Parte deste pressuposto encontra-se também em Los Hijos de Limo, texto no qual o poeta observa na tradição a manutenção do tempo histórico pela repetição do cânone presente nas imagens de ideal de eu e no verso fixo; e, na ruptura como um furo temporal possibilitado pelo movimento vanguardista, como espaço de rebelião estética decorrente do surrealismo e de todas as mudanças estéticas que surgiram como sinônimo de ruptura de um tempo vertiginoso, industrial, marcado pela contradição delirante e pela razão crítica. Paz afirma em Los Hijos del Limo que

[...] Hegel tuviese razón, la dialéctica disuelve las contradicciones sólo para que éstas renazcan imediatamente. El ultimo gran sistema filosófico de Occidente oscila entre el delírio especulativo y la razón crítica [...] (PAZ, 1990, p. 51)

Neste ensaio, Octavio Paz refere-se à aparente contradição ocidental marcada pelo tempo histórico em Hegel. Para Paz, o tempo histórico vem marcado pela unidade do ser em oposição dialética com o outro. As contradições e embates realimentam o tempo, assim como sua lógica racional. O Ocidente, afirma Paz, em Corriente Alterna, necessita da negação de um tempo não racional, lógico, visível e, portanto, factual para conciliar a contradição do tempo anti-histórico, cosmogônico, mítico,

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primitivo, poético, mas incluso à circularidade do tempo histórico. Aliás, Octavio Paz, em Corriente Alterna, dedica um capítulo para falar da dialética materialista marxista e do niilismo de Nietzsche - da morte de Deus - em oposição à dialética de Hegel que vê no tempo histórico a junção de outros tempos - o tempo teológico e o tempo cósmico - para a construção de um tempo barroco, latino. Para Octavio Paz a arte não é só materialismo dialético, há uma dualidade entre história e natureza que observa como falseamento crítico. Para o ensaísta mexicano, o marxismo não é historicismo, mas natureza. O que Paz tenta dizer é que os marxistas negam o espírito, o saber absoluto de Hegel que também pode ser lido na religião como espaço de transcendência e na poética como espaço do nada em devir ou, ainda, na psicanálise, como um espaço inconsciente. O materialismo dialético nega a religião e, portanto, a arte, a poesia:

El arte es lo queda de la religión: la danza sobre el hoyo. La dialéctica es lo que de la razón: la crítica de lo real y la exigência de encontrar el punto de intersección entre el movimento y la esencia. (PAZ, 1975, p. 131).

Para Octavio Paz, falar do tempo é uma forma de reafirmar a dialética hegeliana pela morte, pela negatividade na constituição do ser. Na obra El Laberinto de la Soledad y otros ensaios (1997) o dia dos mortos mais do que uma metáfora de interação social – rito religioso público – é pretexto para interromper a solidão e festejar juntos aos vivos, a morte. Todos os anos, afirma o poeta

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mexicano, a Fiesta del Grito serve para aniquilar, matar simbolicamente o povo mexicano. Este gesto é, ao mesmo tempo, uma forma de situar o sujeito no tempo pela negatividade e é uma forma de compreender a finitude do ser. Para Hegel a consciência da morte ou da finitude é o que possibilita ao homem, com os ritos mortuários, fazer cultura. O que condiz com a estética ensaística de Octavio Paz que vê a morte como rito cosmogônico/natural conciliado ao tempo histórico/cultural. Tempo que se movimenta pelo desejo e que caminha para o futuro, para o devir.

Afora a questão do tempo, Octavio Paz faz referência constante à concepção do ser e o nada em devir de Hegel. Em La outra voz poesia y fin de siglo, observa-se a relação desejante do poeta com a filosofia hegeliana ao observar o aleatório, o acaso em Mallarmé como o nada em devir.

Es conocida la emoción con que, hacia 1866, Mallarmé descubrió el pensamento de Hegel. Hay una indudable semejanza: ambos, el filósofo y el poeta, parten de la final identidade entre el ser y el nada. La dialéctica está destinada, según Hegel, a mediar entre los distintos modos del ser hasta la final afirmación plenaria del ser; a esta idea corresponde la ambición de Mallarmé: resolver el azar (el linguaje) en un número absoluto (el poema). A la inversa del soberbio Hegel – y en esto su humildad fue también sabiduría – Mallarmé termina por proferir apenas un Quizás [...]. (PAZ, 1990, p. 28).

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Embora a dialética do ser e do nada e de outros conceitos relacionados à filosofia de Hegel estejam presentes no bojo teórico/ensaístico de Octavio Paz, existem ensaios como Conjunciones y Disyunciones (PAZ, 1996), que apresenta nas entrelinhas a crítica à lógica e à racionalidade hegeliana, sobretudo por manter à margem da sociedade a literatura popular pícara e, consequentemente, o povo mexicano de origem indígena, os crioulos, os que apresentam anomalia cromossomática ou os que portam algum tipo de síndrome considerados irracionais, marginais fora da Lei. A negatividade, a proibição em excesso culmina em foraclusão. Segundo Octavio Paz

[...] Nueva picardia mexicana: el princípio de placer es subversivo. El orden dominante, cualquiera que sea, es repressivo: es el orden de la dominación. La crítica social assume con frecuencia la forma de burla contra la pedantería de los cultos y las ridiculeces de la “buena educación”. Es un elogio implícito, a veces explícito, de la sabiduría de los ignorantes. Dos sistemas de valores: la cultura de los pobres y la de los ricos. La primera es heredada, inconsciente y antigua; la segunda es adquirida, consciente y moderna. La oposición entre ambas no es sino una variación de la vieja dicotomia entre espontaneidade y conciencia, sociedad natural y sociedad culta. (PAZ, 1996, pp. 121-122)

Esse embate da ordem do saber apontada acima põe a revelação da palavra na berlinda das discussões hegelianas entre a

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natureza e a cultura, na diferença corpos – animal/naturante e animal/homem - igualada pelo sexo e pelo desejo. O sexo, assim como o desejo, afirma Paz, identifica-nos, somos nossos sintomas: cara del culo, cara del vulva, cara del pênis. Por isso a escritura de Paz propõe a otredad, conceito que posiciona a literatura e a latinidade na alteridade e na diferença com o outro como sintoma, cada cara tem um ojo diferente do outro. A figura do pícaro é, neste sentido, basilar, pois expõe o furo inconsciente recalcado e característico da cultura latina. A crítica de Paz - para além do embate subjacente à luta de classes entre ricos e pobres apontada anteriormente -, estaria no dispêndio econômico, na mais valia dos desejos pícaros sacrificados/sufocados por uma economia capitalista selvagem e pelo recalque constituído moralmente pela cultura religiosa protestante que os pôs à margem da sociedade. Neste sentido, grande parte da base teórica hegeliana presente em Octavio Paz serve à crítica e, ao mesmo tempo, à inclusão via reconhecimento da picaresca no Estado. O reconhecimento em Hegel dá-se quando o sujeito reconhece a si no outro de forma desejante, produtiva. Octavio Paz busca incluir a picaresca utilizando técnicas budistas para liberá-los do recalque, mas no fundo essa liberação é também hegeliana. Paz reconhece o discurso, o saber absoluto, mas não retira o pícaro da miséria e da exclusão ou mesmo compreende o sintoma, a cara del culo de forma aprofundada. Se, por um lado, essa questão torna-se paradoxal, na medida em que põe em conflito a crítica feita por Paz

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a Georges Bataille em A Parte Maldita, posicionada numa lógica de perdas suntuárias e de capitalismo nascente, selvagem, por outro posiciona-o numa aliança com a psicanálise que busca compreender o sujeito transcendente na sublimação, na fantasia, no conceito que satisfaz a fome do logos e não do corpo. Octavio Paz faz uso da psicanálise freudiana e não da lacaniana para liberar os afetos dos pícaros. Para o poeta, assim como para Freud, a revelação da palavra alivia paliativamente o desejo recalcado.

Por outro lado, essa liberação do corpo pícaro em Conjunciones y Disyunciones abre espaço para a discussão do Avesso da Psicanálise, de Jacques Lacan, texto no qual põe em debate os discursos marxista, hegeliano e psicanalítico. Mas, antes de chegarmos a essa questão, é preciso compreender que o avesso, a psique mexicana, nunca havia sido pensada e/ou refletida por Octavio Paz. A maioria dos ensaios de Paz discutiam tradução, tradição, ruptura, poética, crítica, amor e erotismo e política. Somente depois do ensaio Conjunciones y Disyunciones que os sintomas mexicanos, dos latinos pícaros começaram a ser discutidos, embora tenham sido, na maioria das vezes, desviados pela crítica do corpo erotizado, pela crítica literária. A luta pelo reconhecimento pícaro instaurada pelo governo da razão, da oficialidade é, entretanto, mediada por homens ou por animais-homens da ótica hegeliana. Os animais pícaros, acéfalos, sobrevivem à margem da sociedade, da poética libertina como seres irracionais, rejeitados pela chingada – abuso sexual -, que

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necessitam ser reconhecidos e amparados pelo Estado. Por um lado, Conjunciones y Disyunciones põe em xeque o ideal do ser autoconsciente possuidor de um contorno, de uma unidade identificatória para incluir a picaresca acéfala, que pirateia, que faz uso da informalidade econômica para existir. Octavio Paz não sabia, mas inaugurou em Conjunciones y Disyunciones a inclusão dos rejeitados foracluidos utilizando Hegel.

Octavio Paz dá reconhecimento, Nome-do-Pai aos pícaros. Mas o faz pretendendo colocá-los em pé de igualdade na relação de dominação entre senhor e servo utilizando M. Duchamp. A pá, o urinol, o manequim de Duchamp inauguram uma nova estética. Nela, a obra perde a aura, o status segregado ao museu. Para Duchamp, a obra de arte está no corpo e na sua relação com o objeto cotidiano. A arte é de uso comum, está na artesania mexicana, na arte primitiva, no arado, no olhar, está presente na produção de Armando Jimenez, na Picardia Mexicana.

A luta pelo reconhecimento, para além da tentativa de eliminar a dualidade marcada pela dialética da dominação e da igualdade, visa à manutenção do discurso do senhor na figura do sádico que exige o reconhecimento – propriedade – de sua alcova/república. Dar reconhecimento em Paz não é uma atitude rebelde, revolucionária como a de Sade. O reconhecimento de Octavio Paz visa à liberdade de expressão conjuntamente à liberdade sexual do corpo pícaro. A perversão do poeta mexicano associa-se à virtualidade, ao conceito, ao logos de Hegel. Por isso

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Octavio Paz é pornográfico1, mas uma pornografia lícita, típica da literatura popular no liame entre a ingenuidade e a libertinagem. Na picaresca o corpo é grotesco, as partes do corpo hiperbolizam de forma barroca o bundão, o peitão, a chingada, enfiar dinheiro no rabo do gato como nas narrativas pícaras, etc. Octavio Paz não pactua com pornografia infantil, ilícita, somente a ficcional, a literária que aparece na comunicação de massa, na arte popular. O erotismo serve à liberação do sujeito na economia de um espaço irracional vendável, lícito, na medida em que se situa como sublimação, como fantasia do baixo corporal. O corpo do pícaro liberado apresenta autonomia, ou melhor, apresenta uma defesa abstrata, conceitual e não concreta de autoconsciência.

Para compreender essa passagem da autoconsciência é preciso repisar a Dialética do senhor e do escravo, de Hegel. A consciência (Bewusstsein) apresenta uma atitude passiva diante do mundo, passividade natural/animal que está muito próxima do gozo, do êxtase místico de Platão; já autoconsciência (Selbstbewusstsein), própria do homem que domina a natureza pela negação, contempla a si para tomar consciência de sua identidade. A parábola de Hegel da dominação e da servidão serve para explicar o nascimento do homem a partir da animalidade. Para

1 A negatividade, a castração possibilita a construção de uma virtualidade

no sujeito, a pornografia deriva dessa relação virtual que hiperboliza os sintomas relacionados à devoração presentes no Seminário A Relação de

Objeto. Ver mais no capítulo: Quarto engano: as defesas pícaras são grotescas.

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Hegel, a consciência animal não consegue dizer “eu” ou ser sujeito ativo em uma ação desejante, mas tem consciência do sentimento-de-si (Selbst-gefühl) que se afeta com o outro. Diferente da posição do dominador, do homem que sabe de si. Saber de si é também uma forma de conhecimento constituída pela ação desejante que, na troca de posições entre um sujeito e objeto, revela a si. O que significa que para Octavio Paz alteridade só existe no e pelo desejo, um desejo que se faz saber, que revela o eu-desejo para outro ou que pretende na contemplação do ser amar e erotizar. Daí que para Octavio Paz o erotismo, assim como a pornografia popular, são construção humana, sintaxe sádica construída na cultura, diferente da sexualidade observada pelo mexicano de natureza animal. A forma como Paz concebe essa questão é também observada na diferença de linguagem estabelecida entre o animal/natural e o animal/humano. O saber do animal/natureza comunica, mas sem expressividade, de forma grotesca, pornográfica, pois não revela suas faltas, hiperboliza o corpo do Outro, não faz saber de seus desejos e de seus sintomas, somente reflexa a natureza exterior, social, que é grotesca e pornográfica. As faltas surgem quando destruímos a realidade empírica do ser aí, ou da realidade objetiva para criar uma representação ou uma realidade subjetiva como eu-interno que deseja, que fantasia, que sublima pela linguagem. Neste sentido, as faltas são sempre conceituais, sublimatórias e, por conseguinte, de construção imaginária, de subjetividade do sujeito. O desejo busca outro desejo que é sempre animal. Esse

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desejo animal na luta pela transformação da natureza posiciona-se na permuta de posições – sujeito/objeto – e pretende o domínio sobre o desejo do outro, o que significa que a posição do pícaro como objeto ganha três configurações. A primeira diz respeito à exposição do corpo ao voyeurismo de algum sujeito, posição servil, masoquista de passividade animal extremamente desejante e de histeria feminina que, na demanda dos afetos expõe suas faltas - desejos edípicos negados – na repetição, no automatismo. A segunda diz respeito à derrota masoquista que apresenta uma raiz de exploração social constituída na luta, na disputa por dominação social e de desejo que põe o animal/natureza - e não o animal/cultural – na posição masoquista por não saber se expressar, por figurar como objeto concreto, como bicho-homem. Esse assujeitamento é criticado por Lacan na derrota de posição que reduz o sujeito a escravo-objeto que, mais do que não ter linguagem é foracluido socialmente por não ser reconhecido como pessoa desejada e humana. Garcia-Roza (1991, p. 110) explicita que “o desejo humano deseja é possuir o desejo do outro, é ser desejado ou amado pelo outro, é ser reconhecido em seu valor humano”. Esse reconhecimento só se realiza na palavra, na linguagem, ou seja, quando a palavra faz saber de suas faltas. Mas, quando se trata do animal/natureza, marca-se a derrota, a passividade imposta socialmente como escravidão no trabalho. O que faz da posição do senhor – a do saber absoluto - a de um imperador fixado na oficialidade do discurso racional ou do

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discurso monológico como afirma M. Bakhtin (BAKHTIN, 1981). Octavio Paz reconhece o pícaro na paisagem, tem-no como pertencente, porém o faz na posição de senhor libertador que reconhece como igual, mas o pícaro não fala. As ideias hegelianas presentes em Octavio Paz pretenderam dar ao pícaro uma posição de objeto de desejo e de consumo. Neste sentido, o pícaro entra na lógica hegeliana na ascensão - como do dharma da cultura de castas -, o pícaro é um marqueteiro – que vende a imagem sem ter voz - que se eleva socialmente na integração de opostos de Octavio Paz. Daí a picaresca ter por característica a valorização da imagem, da honra, do heroísmo que reafirma o prestígio social reconhecido pela lei. A matriz da ética e da moral em Hegel está encarnada na figura do senhor, do animal-homem como única concepção do sujeito verdadeiro no grafo, daquele que tem linguagem inconsciente, que não é um animal-naturante. O reconhecimento inclusivo de Paz é externo, serve à voz do povo. Em oposição a Hegel, os marxistas afirmam que a voz, assim como a expressividade reconhecida, é dada somente a um grupo de eleitos alienados ideologicamente pela morte e pelo Espírito. O reconhecimento em Hegel é pura abstração, é conceito até mesmo na satisfação da fome dos desejos. Marx utiliza a dialética do senhor e escravo

[...] como modelo de opressão de uma classe sobre a outra no modo de produção capitalista concedendo à consciência trabalhadora, ao final da figura, um papel

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antagonismo. (BORGES, 2009, p. 78). (Grifo meu)

A transformação da dialética dá-se via proletariado, o senhor e o servo não são atores concretos na luta pela transformação. A concretude reserva aos trabalhadores a verdadeira transformação social, mas, o que ocorre é conformação, o reconhecimento de serem escravos. Hegel diz que o modo de produção tem de ser regido pelo Estado, pelo saber absoluto que historicamente é alimentado pelo poder, que na contrapartida constrói uma democracia sem corpo que necessita de um oponente para manter o interesse da burguesia. A reivindicação marxista até mesmo na atualidade, está na inclusão do sujeito no Estado de forma concreta.

Lacan, no O Avesso da Psicanálise em sua revolta interna contra as formas de poder que exigiam dele a participação social, abre espaço de discussão sobre as formas de saber do discurso no direito e, portanto, do Estado, de Marx e da classe trabalhadora e da psicanálise. Os quatro tipos de discursos derivados deste debate estruturam-se em Jacques Lacan remoendo a dialética da dominação de Hegel como matriz e combustível das relações sociais. Todo excedente, toda mais valia deriva do discurso do senhor que necessita de um servo que detenha saber para que o senhor saiba. O servo ocupa a posição de objeto, de instrumento que se dedica a mais produzir para o senhor e não para si. O que movimenta o discurso do servo-objeto na psicanálise e em Hegel é

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a relação de reciprocidade entre o mestre-senhor e o escravo, ambos gozam no discurso do Outro. Na psicanálise, a dialética é reconhecimento, espelho narcísico constituído por oposição. A diferença dialética é aparente, o que resta é rivalidade com o outro, gozume (gozo + ciúme) e queda do corpo no real. A escravidão constrói a economia, a subjetividade social e o real: o gozo do servo é pura renúncia, branco vazio. Essa reversibilidade das posições de sujeito e objeto põe, de certa forma, a posição de Jacques Lacan no mesmo ponto dos marxistas e do direito, na medida em que se supõe saber sobre as faltas do sujeito, ou seja, em um mesmo ponto nada se sabe e em um mesmo ponto todos são sujeito e objeto. A posição discursiva marxista, embora se constitua de forma combativa, fá-lo ainda no assujeitamento masoquista e paradoxalmente no uso da dialética para derrotar o discurso do senhor. A psicanálise necessita da dialética hegeliana, da transcendência do ser, mas o faz preso à autoridade do mestre analista, do ego-senhor dono da verdade no grafo lacaniano que analisa os espelhos sociais como ameba insolúvel por não ter indivíduo. A base da contradição lacaniana é reivindicar o direito ao gozo daqueles que não têm ego, que espelham o discurso do senhor e nada sabem sobre si. A consciência-de-si, assim como a consciência de classe, não dá conta dos sintomas da psique, embora a classe trabalhadora lute pelo direito de todos, inclusive dos que não sabem e o discurso do direito, de Hegel, lute pelo direito privado individual e o universal conjuntamente à ética de Kant.

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1.2. RECONHECIMENTO EM HEGEL E O NOME-DO-PAI NA FIGURA DO MESTRE

É importante ressaltar a posição de Octavio Paz no cenário latino de sua época como embaixador que utiliza a arte como método de negociação. Grande parte do reconhecimento feito de seu povo em outros países advém da articulação do embaixador, do poeta e do ensaísta na partilha do sensível (RANCIÉRE, 2009) com o Estado e com o povo. Método de abordagem que denomino de MERTZ2. A literatura MERTZ, de Kurt Schwitters (CAMPOS, 1977), embora aparente ser um amontoado de frases e colagens de jornais e informações simbolizadas culturalmente descrito por Haroldo de Campos a propósito do poema de ANAFLOR - poema anagramático de amor espelhado pela flor de Ana, a “rubraflor, rubra Anaflor”-, fornece uma suplência simbólica enquanto textura sensória que funciona como uma cola de anima para aqueles que têm ou não anteparo imaginário. Kurt Schwitters trata neste poema da imagem do eterno feminino que possibilita, como afirma Haroldo de Campos, fazer um banquete totêmico e um intercâmbio fantasmático, memorialístico de colagens de animas: Anaflor, AnaLívia, AnaBlume, AnaMaria são utilizadas para fazer negociações. O que não deixa de ser o que Octavio Paz fazia para negociar o sentido com arte e fazer troca regada à fenomenologia,

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à lógica, à antropologia associada à psicanálise com acento imaginário desejante advindo da arte, da literatura, da alimentação e da cultura mexicana misturados a outras culturas.

A textura MERTZ serve de cola para dar reconhecimento ao povo mexicano, a estética MERTZ tem origem alemã, traz consigo uma herança dialética e uma herança fantasmática com a picaresca de Guzmán, personagem pícaro alemão. Todo pícaro é um negociante, um pregonero, um marqueteiro nos primórdios de Hegel. O reconhecimento dá-se pelo campo escópico, cada textura utilizada por Paz nas negociações é resposta às escolhas pessoais do poeta mexicano e é também virada de retorno da tradição picaresca de Lazarillo de Tormes3. Lazarillo não é só uma imago

3 A novela de Lazarillo de Tormes tem por estrutura um prólogo anônimo

que convida o leitor a conhecer a linhagem do personagem Lazarillo. O anonimato impede ou cria uma ambiguidade sobre a veracidade da narrativa. O que se registra é a figura de um Lazarillo, um fantasma, um delinquente, um retardado perdido nas ruas. As novelas que se sucedem derivam do abandono de seus pais. Lazarillo é dado a um mestre cego que o explora e o ensina a beber. Depois de iniciado pelo cego, Lazarillo troca de mestre, mas é sempre expulso, foracluido de seus espaços, por isso constrói diásporas. O segundo mestre de ofício é um Clérigo que o ensinou a resolver o banquete da fome roubando pelo buraquinho do baú; o terceiro mestre é um escudeiro com quem Lazarillo se identifica. O escudeiro tem honra, linhagem, espada e é cortês com as mulheres é um donjuanesco. Lazarillo cansado de passar fome, clona o escudeiro, rouba-lhe a identidade e vira um nobre espadachim. Veste a roupa de bem – do discurso oficial - e passa a ser aceito socialmente trapaceando. O quarto ensinamento vem de um Frei que fazia visitas à comunidade para saciar a fome, mas nada restava ao pícaro. O quinto mestre de ofício ensina-o a mentir para ganhar a vida, era um Cura que vendia imagens de santinhos. O Cura é acusado por um Aguazil (justiça) de falsidade ideológica e o pícaro é mais uma vez expulso daquele espaço. No sexto ofício, Lazarillo,

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presente na tradição espanhola, Lazarillo representa entrada no real no México.

Octavio Paz, assim como o pícaro Lazarillo de Tormes e Sor Juana Inês, servem ao povo mexicano e à latinidade, a servidão é apresentada neste trabalho em três posições discursivas: a de objeto-escravo-trabalhador para Hegel; a de mercadoria-objeto para Marx; e a de mais-de-gozar para Lacan. As três posições têm em comum o uso do pícaro como engrenagem da mais valia que na aparência é reconhecida socialmente. O reconhecimento é um dos elementos chaves para compreensão das faltas latinas, pois há faltas que não aparecem, faltam. Faltam porque há casos nos quais o pícaro – que representa algum tipo de portabilidade ou síndrome – não consegue expor as próprias faltas na luta dialética. Na maioria das vezes o pícaro repete a falta do senhor para ser reconhecido socialmente como um valor. Não interessa a Paz taxar o latino de imitador de ideias estrangeiras como um pirata que clona o outro para sobreviver. Interessa o reconhecimento do vaso

serve a um capelão que lhe dá um asno para vender água e ter boa vida, dinheiro e comida. Nesta passagem Lazarillo mais vez veste a roupa de bem e a espada para trabalhar como pregonero, Lazarillo vende com um tambor em praça pública o discurso do El Rey fazendo performances teatralizadas. Nesta passagem um Clérigo procura-o e propõe casamento com a criada do arcipreste em troca de casa, comida, emprego e respeito social, mas o pícaro é visto como um côrno. A mulher passa ser o seu negócio, mas o contrato é de chingada, pois a mulher é só do padre. Daí a picaresca fazer a crítica social às instituições oficiais, pois nelas há sempre um ojo del culo que se oculta. Cada narrativa é um contrato de aprendizagem moral, no qual o discurso oficial bate na cabeça de Lazarillo de Tormes para entrar na economia e agir corretamente.

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presente no texto El uso y la contemplación (PAZ, 1995a), da artesiana do povo que repete o gesto de Duchamp como furo de um sintoma pícaro reconhecido pelo Nome-do-Pai. O que significa que o reconhecimento de Paz é sábio, na medida em que dá autoritas a Armando Jimenez, autor da Picardia Mexicana.

Parte desse reconhecimento, desse valor estético utilizado como moeda de troca internacional por Octavio Paz vem marcado por um modelo hegeliano pertencente a um espaço particular e universal, de tradição e de ruptura. Reconhecimento que põe o sujeito na economia da simbolização desprendido do dualismo descartiano entre alma e o corpo, importa a Paz o retorno do sujeito à circularidade, à lógica do Ser e do Nada em devir de Hegel. Octavio Paz, assim como Hegel “constrói uma unidade entre o mundo natural e o mundo humano” (BORGES, 2009, p. 30) com intenção de unir dualismo na racionalidade. Racionalidade expressa como falta-a-ser: como movimento de representação desejante. Movimento dialético característico pela conciliação de opostos entre o Ocidente e o Oriente, Octavio Paz dá direito ao gozo do pícaro pelo reconhecimento de suas faltas via sublimação, via fantasia.

De certa forma, Paz ocupa o lugar do senhor moral e do escravo cuidador da latinidade situado na tradição psicanalítica freudiana de contorno sadomasoquista. Octavio Paz exerce a função de senhor-feminino que negocia a imagem do México e da latinidade com arte. Dar o direito ao gozo é uma forma de se

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manter numa posição sábia: dar pertencimento e igualdade. Paz retira a Picardia Mexicana da exclusão discursiva para um espaço de libertinagem erótica, de perversão reconhecida em Un más Allá Erótico: Sade (PAZ,1995a) como república dos sonhos construída com raízes ameríndias canibais, aztecas; com o primitivismo xamânico – muito próximo do tantrismo oriental -; com o discurso oficial católico presente no silogismo de chicote sádico de Sor Juana Inês. A sabedoria de Paz em Conjunciones y Disyunciones pretende a ruptura dos tabus sexuais e da moral que insiste no prestígio social como única forma discursiva para aceitar o sujeito primitivo/selvagem o índio nahuac, o coyote acéfalo e as anomalias cromossomáticas.

1.3. PARA NÃO SAIR DO MESMO: SUBLIMAÇÃO E POESIA MEDIEVAL

Uma das marcas de Octavio Paz é a sublimação, quase ou toda crítica dedicada ao poeta mexicano perpassa por esta questão, mas poucas críticas vinculam a psicanálise lacaniana ao conceito da filosofia de Hegel em Octavio Paz. A sublimação em Hegel está intrinsecamente atrelada à negatividade positiva. O homem só toma consciência-de-si quando refere a si mesmo como objeto, na medida em que se suprime dialeticamente o ser dado, sublima-se. O ser suprimido contempla-se, sabe de si. O homem reconhece a

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si e o mundo ao criar uma unidade de ser que se revela como sublimação. A negação conserva o ser, sublima a identidade dentro de uma ação temporal, por isso o homem histórico é livre, conceito contemplado de si e da realidade humana, a natureza humana é sempre virtual, enquanto conceito, enquanto logos. O sujeito transcendente constrói o conceito do ser, na medida em que se contempla no outro e o suprime, sublima-o, fazendo-o subsistir sob forma de um ideal de eu. Na esteira de Hegel, a psicanálise lacaniana compreende a sublimação pela negatividade. Para a psicanálise não haveria sujeito com traço único, não existiria temporalidade e memória fantasmática se não houvesse sublimação. O ser que retorna e que contempla a si faz linguagem, revela a palavra como sublimação, como fantasma. As faltas têm na origem uma discussão hegeliana, na medida em que comprovam os dispêndios do sujeito desde a negatividade, por isso as faltas são sublimações que retornam e revelam aquilo que foi negado. As sublimações são constituídas dentro de uma lógica racional, estão associadas a um ideal teológico de fundo platônico-hegeliano, no qual a perfeição revela-se pela ideia de individualidade que, para satisfazer o particular, torna-se singular e universal, torna-se única (único ser) e universal (animal), o homem, para ser, suprime a animalidade, sublima para ser indivíduo:

[...] a individualidade é uma síntese do particular com o universal, o universal sendo a negação ou a antítese do particular, que é o dado tético ou idêntico a si mesmo. Em outras palavras, a individualidade é

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uma totalidade, e o ser que é individual é, por isso mesmo, dialético. (KOJÈVE, 2014, p. 477).

Em Claude Lévi Strauss el Nuevo Festín de Esopo (1972) observa-se essa discussão derivada da lógica hegeliana do particular presente na poesia mexicana/latina e do universal como poesia pertencente ao mundo. Forma dialética que Octavio Paz busca compreender na antropologia de M. Mauss no debate interno com Georges Bataille a propósito do texto A parte Maldita. O ser constituído na negatividade positiva é sempre modelo, é sempre como advérbio do chefe da tribo, do Estado, do Saber Absoluto e da palavra que se revela como sublimação. Embora o termo sublimação aponte para o ideal de eu como um ser inserido na Lei, a sublimação positiva não faz tagarelice sobre o ideal, uma vez que promove a satisfação sexual de uma forma virtual-conceitual como ficção, como pornografia.

A negatividade sublimada é também pulsão de morte. A morte é a base de funcionamento da psique estabelecida pela redução do investimento, da excitação do desejo. Na pulsão de morte o desejo negado retorna, ressurge como um eco, como descarga derivada da castração. A pulsão de morte retorna ao primitivismo, ao instinto de origem animal-naturante manifestado no sujeito como gozo. O que significa que toda sublimação suprime uma pulsão sexual primitiva que nega o desejo pelo falo. As sublimações revelam o destino pulsional – o Trieb - derivado

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das perdas ou das faltas recalcadas do sujeito. No artigo a Conferência Introdutória sobre psicanálise, de S. Freud, observa-se a sublimação como renúncia do prazer parcial ou procriativo. A pulsão no cômputo das discussões sublimatórias, freudianas e lacanianas visam, além de atingir o alvo, à satisfação do desejo numa mudança de endereço, de objeto. O espelho narcísico também retorna como investimento libidinal sobre si mesmo, como pulsão sublimatória. Para Lacan, a sublimação freudiana dessexualiza o desejo arcaico marcado na cadeia de significante do sujeito como falta, como resto a ser analisado de um vazio interior, mas cheio de angústia pulsional. As pulsões, assim como as sublimações, têm em comum a inibição que engoda o objetivo sexual. A sublimação não mata a fome concreta, diriam os marxistas, e nem a fome sexual, mas engana masturbando-se. Esse ponto limite observado por Lacan com relação às sublimações revela o anel, a borda do vacúolo do sujeito como centro de proibição que escoa na arte, na literatura como sublimação. Para Octavio Paz, as sublimações aliviam as pulsões, a energia sexual psíquica e possibilita o reaparecimento dos fantasmas como forma de defesa das perversões eróticas que põem o sujeito no mais desejar. Importa para Octavio Paz o prazer, o desejo revelado na palavra nas mais variadas formas de expressão. O debate de Octavio Paz com Georges Bataille é também de ordem sublimatória. Segundo Octavio Paz, Bataille somente descarrega o sexo, por isso as imagens erotizadas bataillianas são violentas,

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embora reconheça a violência no primitivismo mexicano, azteca. Para Octavio Paz, o erotismo azteca é diferente do batailliano. A violência de Bataille é esfacelada, é pura perda suntuária vinculada à pulsão de morte, não há troca, comunicação, portanto não há propriedade, indivíduo com corpo e alma. Bataille é um receptáculo, um suporte vazio usado como Cavalo de Troia. Bataille é um soldado mercenário que pode ser usado tanto pela burguesia quanto pelo proletariado ou os dois ao mesmo tempo.

Octavio Paz tem uma estrutura platônica-hegeliana muito próxima a de Sor Juana Inês, acredita que onde há banquete há relação com o outro, troca comunicacional. Para trocar é preciso sublimar, conceituar, virtualizar o erotismo em linguagem. Paz acredita ainda que até mesmo o ser autoerótico, narcísico ou melancólico escreve, revela as faltas para satisfazer o luto ou como forma de manter a depressão repetindo num automatismo sublimação. A pulsão de morte revela as partes erógenas do corpo por imagens violentas, agressivas e/ou grotescas.

Uma das críticas sofridas com relação à sublimação em Octavio Paz está em não profundar a análise do objeto artístico. O quadro psicanalítico é observado como barroco mexicano de apaziguamento da Coisa das Ding. Para Octavio Paz o sujeito que sublima revela o sintoma e o resolve. Paz não lê a rede de relações que constitui um quadro para compreender a causa do desejo, o sintoma. A referência que faço à concepção das Ding está para duas proposições em Lacan, a primeira diz respeito ao sentido

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etimológico da palavra de origem jurídica, enquanto legalidade, enquanto poder do Estado constituído pela negação. E em outro sentido, das Ding é um acréscimo, um plus de negação como pura rejeição, foraclusão. Das Ding situa-se no reino do instinto moral, proibitivo, tendo como ponto fulcral o corpo mítico da mãe, da Coisa que pulsa como desejo recalcado. Para Garcia-Roza, a Coisa Ding, diferentemente de um objeto, caracteriza-se pela sua posição autônoma, que pode ou não se tornar um objeto, na medida em que se coloca diante da percepção de outrem até mesmo como lembrança encobridora, como fetiche. A Coisa Ding exerce um fascínio sobre Lacan que bebe de Heidegger do vaso/jarra como objeto absoluto, mas que é um lugar impossível, vazio. A Coisa freudiana aproxima-se da Coisa-em-si de Kant, na medida em que é objeto perdido que deve ser encontrado enquanto perda/castração. Para Freud, há dois tipos de representação da Coisa de ordem simbólica: a primeira é sache, que representa a palavra juridicamente, e das Ding como linguagem habitada em outro lugar. Assim, reencontrar das Ding e sache é buscar uma mãe-Ding interditada culturalmente, por isso toda mãe-Ding demanda na Idade Média. Das Ding não pertence, portanto, ao espaço de representação, embora seja uma presença de uma ausência como aquele olhar da mãe sempre presente. Para Garcia-Roza, a representação da palavra associa-se à lógica hegeliana, freudiana e saussuriana, na qual a representação

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[...] é entendida como uma representação complexa, formada por representações simples diversas: imagem acústica, imagem motora, a imagem da leitura e a imagem da escrita. Este conjunto forma um complexo representativo fechado. (GARCIA-ROZA, 1985, pp. 243-4).

A representação da palavra só se forma entre aparelhos de linguagem ou na relação entre o eu e o outro. As representações são, ainda, a palavra que se revela a partir da morte e que apresenta visualidade como um conjunto de associações perceptivas imagéticas do objeto: imagens visuais, acústicas, táteis que dão lugar às representações do objeto. A representação da palavra ganha uma topologia derivada de um dispêndio de energia inconsciente que representa não a coisa em si, mas o desejo sublimado. O que Octavio Paz não compreende é que toda sublimação é topologia na palavra, é destino pulsional ou do Grande Outro que se esgalha, por isso a psicanálise lacaniana se ocupa como o poema de Haroldo Campos em circular f(c)ulô nas bordas do orifício do corpo. É a partir das bordas que o olhar, que o cu se desdobra numa topologia analítica. É importante ressaltar que o papel de Octavio Paz não é a do analista, mas de um ensaísta. Paz jamais se aprofundaria no sintoma psicanalítico, jamais apontaria o engodo, a Coisa das Ding de forma aprofundada em um ensaio, uma vez que os utilizava para negociar, não era estratégico. Octavio Paz descreve o sintoma via sublimação, fá-lo para tornar a falta produtiva, simbolizável. Essa é a principal

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função da sublimação para Octavio Paz. A questão que se coloca é dar ou não sequência investigativa, psicanalítica a partir de uma falta sublimada. Octavio Paz olha para picaresca a fim de reconhecer e sublimá-los.

Em Los Privilegios de La Vista, encontra-se um pequeno acervo estético que nos possibilita pensar o olhar do poeta mexicano sobre a loucura e as formas de sublimação. Martín Ramírez é um dos artistas selecionados por Octavio Paz para compor um quadro sublimatório e privilegiado de se olhar. Ramírez não é o louco que pinta, ele representa um quadro associado à identidade mexicana e/ou latina. As obras de Ramírez pertencem a uma geografia e a um contexto mexicano que se modificava: a urbanização da paisagem árida de uma das regiões do México com a chegada da ferrovia trouxe, além das mudanças do espaço físico, o medo de ser substituído por uma máquina e de passar fome e miséria. O espaço geográfico dos quadros de Ramírez retrata disputas medievais com cangaceiros, com zorros que resistiam às mudanças. O medo de Ramírez não se restringe à privação, à fome, seus quadros expõem as faltas fóbicas ao reproduzir imagens de trilhos do trem, cortando o espaço como proibição. As pinturas de Ramírez são quase xilogravuras, são imagens talhadas por traços-cortes precisos de castração, mas suavizados pela sinuosidade, pelo jogo cartográfico dado à paisagem. São paisagens essencialmente amarelas, escoam a analidade e apresentam em sua maioria túneis, trens, janelas-bocas

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de desejo pulsional, além de representar a figura de panchudos4 e de imagens femininas sagradas próximas a Virgen de Guadalupe ou de entidades primitivas fertilizantes utilizadas nos ritos nahuac. Imagens medievais, escatológicas que expressam o fim de um tempo. O sentido de pertencimento esvaia-se, era devorado pelo aniquilamento do membro de Hans. Ramírez representa de certa forma, a repetição de Lazarillo de Tormes. A picaresca apresenta como imagem faltante uma boca-túnel como insígnia hispano-antropofágica que expressa a passagem da urbanização e da aculturação sofrida por Ramírez. Octavio Paz faz questão de dizer que a arte de Ramírez aproxima-se da arte de psicóticos:

[...] las obras de Ramírez un ejemplo más del arte de los psicóticos debe rechazarse

imediatamente. En primer término, no está claro – nunca lo estará – lo que se quiere decir con esta expresión. Además, el arte transcende – mejor dicho: ignora – la distinción entre las frágiles fronteras de la salud y la locura, como ignora las diferencias entre los primitivos y los modernos. En el caso de Ramírez, sin cerrar los ojos ante sus desarreglos psíquicos, lo que nos interessa es el valor artístico de sus obras. [...] Las composiciones de Ramírez

son evocaciones de lo que vivió y soño: un

jinete montado en un caballo brioso y con el pecho cruzado por las cananas (como tantos que habrá visto en su juventude,

4A figura do panchudo está presente na obra El Laberinto de la Soledad y otros obras (1997, pp. 38-39). O panchudo são mexicanos exilados

culturalmente, eles saem do México, como nas diásporas pícaras, para tentar a vida nos EUA. O. Paz entende que o povo mexicano os foracluiu de suas raízes, negando-lhe reconhecimento e trabalho.

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durante la Revolución mexicana, bandidos o guerrilleros), un acueduecto interminable, una iglesia de Pueblo, una locomotora flamante que atraviesa un paisaje petrificado, puentes, ciudades, parques, mujeres, más mujeres, la figura enigmática de la realidade primordial [...] Estas obras

no hacen pensar en los cuatro muros en que está encerrado el esquizofrénico ni en las galerias de espejos de la paranoia: son resurrecciones del mundo perdido de su passado y son caminhos secretos para llegar a otro. ¿Cuál es ese otro mundo? Es

difícil saberlo. El caminho que lleva a él es misterioso: un túnel y una boca de sombras. Bocas sexual y profética de la que brotan las visiones y por la que el artista descende en busca de una salida. Estas son obras cuentan una peregrinación. (PAZ, 1995a, pp. 122-123) (Grifo meu)

Na topologia do olhar sobre o quadro de Ramírez, observa-se que a urbanização da paisagem mexicana possibilitou a mestiçagem, mas trouxe a exclusão. Logo as imagens sublimadas de Ramírez repetem como furo no real a moralização sofrida neste processo. O caráter normatizador da sublimação tem por única função canalizar a falta, fechar ou abrir a boca/túnel como presença ou ausência materna presentificada na alternância de linhas e cores.

A percepção de Ramírez traduz e trova o inconsciente do Outro, via sublimação. Toda tradução é sublimação, pois carrega consigo a negação, nega-se e mantém o Nome-do-Pai para transcriar (CAMPOS, 2013a). O conceito de transcriação que aqui exponho, de certa forma transmutado para o campo psicanalítico,

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associa-se à crítica de Octavio Paz e à poesia concreta, ambos retiram o peso imitativo de uma tradução ao pé da letra para transcriar criativamente. Traduzir & Trovar (CAMPOS, S/D) é um dos ensaios de linha sincrônica dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos que repropõe o passado à luz da modernidade via tradução. A Idade Média é objeto de desejo concreto. Traduzir é uma forma de reinventar, transcriar o passado. Neste contexto, as trovas ganham relevância não só pela idealização amorosa presente nas discussões lacanianas, sobretudo na A Ética da Psicanálise, mas também pela escolha dos Campos pelo erotismo medieval, Ramírez traduz e trova de forma plástica a chingada mexicana de abuso moral e sexual que certamente sofreu. As trovas plásticas de Ramírez inserem a Idade Média como defesa do supereu, do Nome-do-Pai.

A crítica brasileira, sobretudo a de Antônio Candido vê a imitação como fator recorrente na formação da literatura que, no entanto, é refutado pela poesia concreta, assim como por Octavio Paz, que vê a arte sem fronteira. O quadro a seguir, o Tempo Suspenso de um Estado Provisório, de Marcelo Cidade, é também sublimação de um tempo conceitual iniciado por Duchamp, tempo retornante de esfacelamento do sujeito que não está distante de Ramírez, Marcelo Cidade não imita, ele traduz e trova. Marcelo Cidade mantém o como de Octavio Paz como conceito: do Nome-do-Pai e de Duchamp, mas o faz criativamente, transcriando.

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Figura 2 - Tempo Suspenso de um Estado Provisório, de Marcelo Cidade - MASP/2016

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1.4. SUBLIMAÇÃO EM LUTERO, TRADUÇÃO PICARESCA

A filosofia hegeliana é herdeira da moral religiosa luterana que, por sua vez, é base da crítica da picaresca. Os personagens pícaros neste cenário ilustram um pano de fundo: o embate entre a tradição católica mediada pela figura da Igreja que detém a patente da palavra que se revela (a Deus); e a ruptura luterana que pretendeu traduzir a bíblia sem intermediários, sem a Igreja Católica. Traduzir a bíblia para Lutero, mais do que lutar pela alteridade do discurso alemão, popularizá-lo era uma forma de virtualizar, potencializar as sublimações crísticas, católicas. Embora a filosofia hegeliana se assente no ateísmo, a região é, entretanto, um dos fundamentos de sua lógica. Toda a racionalidade da filosofia de Hegel sustenta-se na santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, formas derivadas da sublimação da palavra que se revela em Jesus, além disso o ateísmo, em Hegel, revela-se “no final: na morte de Deus. Ele ressuscita como um homem real, isto é, como comunidade, Igreja” (KOJÈVE, 2014, p.250). Embora na lógica hegeliana, Cristo permaneceça simbolicamente transcendente e migre para a figura do Estado, ele o faz de forma sublimada. Neste sentido, até mesmo o ícone da picaresca, o personagem Lazarillo de Tormes, carrega consigo o ateísmo crítico aparente. Lazarillo sublima, mas nega a moral católica reafirmando a figura de Deus como tradução. A

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sublimação por si só é uma topologia relacionada aos pecados revelados na palavra. Para a Igreja Católica os pecados perdoados são absolvidos, sublimados por orações, por isso têm sucesso, na medida em que se transmuta de um estado para outro: do mal para o bem com a intenção do sujeito elevar-se socialmente. A crítica luterana pecou, traiu a Igreja por traduzir (tradutore, traidore), pirateou a patente católica, portanto, seu sucesso não deriva do perdão da Igreja - as orações sublimam, derrotam o mal, o pecado -, mas diretamente de Deus. A Igreja exige fidelidade para que os pecados sejam perdoados, esse vazio moralista fiel é alvo de crítica luterana e da picaresca. Em Hegel essa questão aponta para a imagem do cidadão ideal/leal, o senhor intelectual e do escravo pícaro, as duas posições de senhor e do escravo são mediadas pelo Estado e carregam consigo uma raiz crística, tendo como base a dialética hegeliana. A religião revela-se em identidade com Deus e com o homem (Jesus), com o saber absoluto, o Espírito Santo. Logo, a sublimação surge como uma forma de perdoar os pecados, de aliviar a culpa e seguir siendo sublimando como os pícaros. Até mesmo as diásporas são peregrinações religiosas destinadas para refazer o caminho da sublimação. A caminhada expurga cartaticamente como na máxima aristotélica o erro primordial, o mal, o pecado.

Escravos do pecado original, afirma Lutero, os homens são sempre culpados à vista de Deus, à vontade, assim como desejo humano está sempre corrompido, logo, as indulgências, as bulas

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papais não poderiam interceder/retirar os pecados cometidos pelo homem, somente Deus poderia fazê-lo. O homem e por extensão o Papa não têm livre-arbítrio. Obedecer à Lei é, para Lutero (BRENTANO, 1968; LUTERO, 2009), sinônimo de ter nascido com alma, os nascidos da carne, dos desejos estão mortos, acéfalos, pois só têm corpo. E os que nascem chingados são considerados bobos, pícaros. É, ainda, pela Lei que vem o conhecimento do pecado, a escolha do homem é, para Lutero, desvio sublimatório, a verdadeira escolha é determinada por Deus. A Lei, a moral advinda de Deus equipara-se à lógica platônica-hegeliana: a essência do saber absoluto versus aparência da palavra que se revela sublimada. As indulgências, as bulas vendidas pela Igreja Católica são condenadas por Lutero por enganar os devotos. O cerne dessa questão estaria subjacente à tópica da racionalidade aristotélica, presente na racionalidade de Hegel e da ficção, da Arte Poética, de Aristóteles. Lutero busca a essência divina (Deus), nega a lei do homem, assim como a arte sublimada, por isso

[...] atacava a moral de Aristóteles, como

exclusivamente humana, e os métodos e conclusões dos escolásticos, Lutero levantava-se em seus sermões com extrema violência, contra uma prática que,

desde algum tempo, tinha alcançado, na Alemanha, incrível desenvolvimento, a distribuição, e logo depois a venda de indulgências; liberdade contra a pena temporal que ainda pesava, neste mundo ou no outro – no purgatório – sobre os pecados que a Igreja, pela voz de seus ministros, tinha absolvido da pena eterna. [...] o Papa

Referências

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