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Recebido: 21/10/2020 Revisado: 30/10/2020 Aceito: 01/11/2020 Publicado: 05/11/2020

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A recepção da literatura indígena desenvolvida com o Método Recepcional de leitura1 The reception of indigenous literature developed with the Receptive Reading Method La recepción de la literatura indígena desarrollada con el Método de Lectura Receptiva

Recebido: 21/10/2020 | Revisado: 30/10/2020 | Aceito: 01/11/2020 | Publicado: 05/11/2020

Kathia Alexandra Lara Canizares ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7912-3449 Universidade Estadual Paulista, Brasil E-mail: kalcaniza@hotmail.com Rosa Maria Manzoni ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5921-0879 Universidade Estadual Paulista, Brasil E-mail: romana@hotmail.com

Resumo

O ensino de Língua Portuguesa deve incluir o estudo da cultura indígena, de escolas públicas e privadas, possibilitando a inclusão cultural e a superação do silenciamento e da invisibilidade da cultura indígena no sistema educativo, por meio da leitura de textos literários de autoria indígena e não indígena. Neste estudo desenvolve-se uma sequência didática, com finalidade pragmática, para promover atividades vinculadas à leitura de literatura indígena, com o intuito de responder: como se dá a recepção da literatura indígena por meio do Método Recepcional de Leitura (MRL)? Dessa forma, objetivou-se apresentar e validar uma proposta de organização de ensino da leitura de literatura de autoria indígena. Assim, parte-se da contextualização do objeto de estudo, problematização e relevância. A base teórica e metodológica que nortearam a pesquisa vincula-se aos pressupostos de leitura de literatura indígena de Thiél (2012) e Graúna (2013), ao MRL, de Bordini & Aguiar (1993) ancorado na Estética da Recepção de Jauss (1994, 2002). Foi possível observar que as modalidades literárias utilizadas, neste estudo, deram voz ao autor indígena contando a sua própria história, possibilitando a superação de algumas inverdades, legado do senso comum dos últimos 500 anos sobre os povos indígenas. A travessia pelas oficinas, por meio do MRL, da vivência estética e do conteúdo, com ênfase nas reflexões das textualidades indígenas,

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multimodalidade e pluralidade, promoveu a ampliação dos horizontes de expectativas dos alunos, aproximando-os dos horizontes de autores não indígenas e indígenas, mostrando empatia por meio das produções artístico-literárias.

Palavras-chave: Ensino; Literatura indígena; Método recepcional; Sequência didática de ensino.

Abstract

The teaching of Portuguese language should include the study of indigenous culture, from public and private schools, enabling cultural inclusion and overcoming the silencing and invisibility of indigenous culture in the educational system, through the reading of literary texts of indigenous authorship and not indigenous. In this study, a didactic sequence is developed, with a pragmatic purpose, to promote activities related to the reading of indigenous literature, in order to answer: how does the reception of indigenous literature occur through the Receptive Reading Method (MRL)? Thus, the objective was to present and validate a proposal for an organization to teach reading of indigenous literature. Thus, it starts from the contextualization of the object of study, problematization and relevance. The theoretical and methodological basis that guided the research is linked to the assumptions of reading indigenous literature by Thiél (2012) and Graúna (2013), to the MRL, by Bordini & Aguiar (1993) anchored in the Aesthetics of the Jauss Reception (1994, 2002). It was possible to observe that the literary modalities used in this study, gave voice to the indigenous author telling his own story, enabling the overcoming of some untruths, a legacy of the common sense of the last 500 years about indigenous peoples. The crossing through the workshops, through the MRL, of the aesthetic experience and of the content, with emphasis on the reflections of indigenous textualities, multimodality and plurality, promoted the expansion of the horizons of students' expectations, bringing them closer to the horizons of non-indigenous and indigenous authors, showing empathy through artistic-literary productions.

Keywords: Teaching; Indigenous literature; Receptional method; Teaching didactic sequence.

Resumen

La enseñanza de la lengua portuguesa debe incluir el estudio de la cultura indígena, de escuelas públicas y privadas, posibilitando la inclusión cultural y superación del silenciamiento e invisibilidad de la cultura indígena en el sistema educativo, a través de la lectura de textos literarios de autoría indígena y no indígena. En este estudio se desarrolla una

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secuencia didáctica, con un propósito pragmático, para promover actividades relacionadas con la lectura de literatura indígena, con el fin de responder: ¿cómo ocurre la recepción de literatura indígena a través del Método de Lectura Receptiva (MRL)? Así, el objetivo fue presentar y validar una propuesta de organización para la enseñanza de la lectura de literatura indígena. De esa forma, se parte de la contextualización del objeto de estudio, problematización y relevancia. La base teórica y metodológica que guió la investigación está vinculada a los supuestos de lectura de literatura indígena de Thiél (2012) y Graúna (2013), al MRL, de Bordini & Aguiar (1993) anclado en la Estética de la Recepción de Jauss (1994, 2002). Se pudo observar que las modalidades literarias empleadas en este estudio dieron voz al autor indígena contando su propia historia, posibilitando la superación de algunas falsedades, legado del sentido común de los últimos 500 años sobre los pueblos indígenas. Las actividades de los talleres, por medio del MRL, de la experiencia estética y del contenido, através de las textualidades indígenas, la multimodalidad y la pluralidad, promovió la ampliación de los horizontes de expectativas de los estudiantes, acercándolos a los horizontes de los autores no indígenas e indígenas, mostrando empatía reflejadas en las producciones artístico-literarias.

Palabras clave: Enseñanza; Literatura indígena; Método receptive; Secuencia didáctica de enseñanza.

1. Introdução

O ensino de Língua Portuguesa, como componente dos currículos da educação básica brasileira, deve incluir o estudo da cultura indígena, no ensino médio, de escolas públicas e privadas. Assim, o cumprimento da lei 11.645/2008 deve permitir a inclusão cultural e a superação do silenciamento e da invisibilidade da cultura indígena no sistema educativo, por meio da leitura de textos literários de autoria indígena e não indígena. Dessa forma o uso da literatura escrita por indígenas nas práticas docentes, implica, necessariamente, enquadrar essas atividades na perspectiva da ciência do humano.

Dessa forma, possibilitar, aos alunos, o contato com a literatura de autoria indígena é permitir o (re)conhecimento do protagonismo nas letras dos escritores indígenas, assim como, respeitar o lugar da enunciação da expressão indígena, como forma de reafirmação do caráter de resistência de vozes silenciadas nos últimos cinco séculos. Além disso, levando essa autoria à escola, permite-se a desconstrução dessas representações equivocadas sobre os

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saberes e tradições, enquanto dialogam e possibilitam a construção de uma relação com a sociedade não indígena (Dorrico, 2018).

Com esses antecedentes, surge o questionamento: como organizar o ensino da língua portuguesa considerando as demandas do estudo da literatura indígena?

Nesta pesquisa, optou-se pelo MRL, proposto por Bordini & Aguiar (1993), no qual, o tipo de abordagem para o desenvolvimento de atividades de leitura de textos literários indígenas percorre um percurso que prepara a recepção dessas textualidades, por meio de atividades atreladas ao método. Nesse viés, a recepção da literatura indígena pode ser desenvolvida por meio de uma sequência didática de ensino de leitura.

Neste estudo, atravessando a ponte entre a pesquisa dos centros de produção de conhecimento (universidade) e o ensino (sala de aula), desenvolveu-se uma sequência didática, com finalidade pragmática, para promover atividades vinculadas à leitura de literatura indígena, com o intuito de responder: como se dá a recepção da literatura indígena por meio do Método Recepcional de Leitura? Dessa forma, objetivou-se apresentar e validar uma proposta de organização de ensino da leitura de literatura de autoria indígena.

A organização deste trabalho começa pela contextualização do objeto de estudo, problematização e relevância. A base teórica e metodológica que nortearam a pesquisa vincula-se, fundamentalmente, ao Método Recepcional de leitura, de Bordini &Aguiar (1993) ancorado na Estética da Recepção de Jauss (1994, 2002), e com relação à literatura indígena, segue a visão de Thiél (2012) e Graúna (2013). Em seguida, é descrito o procedimento metodológico da pesquisa, assim como o relato das atividades organizadas, em forma de oficinas, numa sequência didática de leitura, apontando as principais observações realizadas durante o desenvolvimento. Finalmente, são sintetizadas algumas considerações.

2. Metodologia

2.1 Estética da recepção de leitura de textos literários

Segundo Lukács (1966, p. 11), a arte, inclui-se nela a literatura, é um “elemento de humanização”. Para esse autor, a cotidianidade2 é o começo e o fim de toda atividade humana

2 Nesse sentido, o termo não se refere ao senso comum dos homens mergulhados na “cotidianidade”, e, sim, ao relacionado à vida cotidiana: “Na visão ontológica de Lukács, a arte é uma atividade que parte da vida cotidiana para, em seguida, a ela retornar, produzindo nesse movimento reiterativo uma elevação na consciência sensível dos homens” (Frederico, 2000, p. 302).

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e, é nesse contexto, onde acontece o processo de recepção e produção da obra artística como realidade objetiva, influenciado por contradições, pelas múltiplas determinações, necessidades da vida social do homem, necessidades práticas e históricas.

A estética lukacsiana segue o método marxista do domínio intelectual da realidade pelo homem e dos preceitos da dialética materialista e histórica, que indicam o caminho para alcançar um objetivo, aprofundando-se na essência da realidade, com fidelidade, como unidade dialética de continuidade e descontinuidade, de tradição e revolução, de transições paulatinas e saltos. Nesse sentido, a obra de arte é um “peculiar modo de manifestar o reflexo da realidade”, ou seja, é o resultado da interação entre homem e mundo externo, reflexo de uma única e unitária realidade, mas não como uma cópia mecânica (Lukács, 1966, p. 17).

A obra de arte é produto do mais alto grau de desenvolvimento humano que ocorreu lenta e gradualmente até a sua especificidade. A sua origem ocorreu de modo imanente à prática social e atividade humana, estando a serviço das necessidades sociais. Pensamento cotidiano, ciência e arte refletem a mesma realidade objetiva, mas com especificidades concretas originadas na vida social cotidiana dos homens. Por meio das particularidades, pode-se compreender que uma obra caminha com a historicidade e desenvolvimento da humanidade em sua universalidade. A obra individual representa a totalidade que reflete a realidade social de um modo não-cotidiano (Lukács, 1966), sendo, nesse espaço da particularidade, a categoria onde se opera a mediação, por parte do professor, para a recepção da obra literária.

A arte, e a literatura, tem um caráter formativo e transformativo devido ao efeito catártico que ela promove em função da retirada da cotidianidade (dispersão, heterogeneidade, pragmatismo, imediatismo e superficialidade, não raro, fetichista) do entorno humano. Por um lado, a ciência universal tem uma tendência à desantropomorfização (pensamento científico), já que restringe a influência de aspectos subjetivos na compreensão dos fenômenos. Por outro lado, a arte carrega uma essência gerativa, criadora e humanizadora, posto que a realidade é revelada como fenômeno subjetivo produzido pelo ser humano, na esfera imagética do sujeito (Lukács, 1966).

Na catarse da estética de Lukács (1966), o processo de recepção da obra de arte, e da literatura, dá-se na relação da forma (vivência estética) com o conteúdo (vivência do conteúdo). Assim produz-se a ascensão acima do cotidiano superando o fetichismo (consciência confrontada com a realidade). Nesse processo de homogeneização (mediação no qual opera o horizonte de expectativas de Jauss), é necessária a reflexão e superação da prática da vida cotidiana.

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Segundo Jauss (1994, p. 27), “a história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete”. Dessa forma, segundo Sánchez-Vázquez (2005, p. 34), Jauss preocupa-se com a exigência do entendimento da função social da literatura, na tentativa de superar o enfoque dogmático das relações entre literatura e sociedade do marxismo alemão, não mais sob o olhar da recepção do autor e da obra literária, mas sim à luz da recepção do leitor. Para quem a experiência da leitura consegue libertá-lo de opressões e dilemas do seu cotidiano, na medida em que o obriga a uma percepção nova sobre a vida (Jauss, 1994, p. 50).

Os estudos de Jauss foram direcionados numa nova perspectiva de mudança de paradigma na teoria e na história da literatura3 (Sánchez-Vázquez, 2005, p. 35-44). Nessa abordagem, o leitor, no processo de recepção, deve cumprir sete teses fundamentais:

1) Experiência com a obra e intervenção do leitor, numa relação dialógica. A história da literatura pelo historiador-leitor é baseada na sucessão histórica de leituras.4;

2) A experiência do leitor é mediada pelos conhecimentos prévios que foram acumulados por outras leituras e por um sistema de referências que o leitor tem sobre cada obra, saberes prévios sobre o gênero, a forma, a temática, e contrastes entre linguagem poética e prática. Esses conhecimentos e saberes colocam o leitor num horizonte de expectativas já conhecido que transita para o conhecimento do horizonte de expectativas do autor;

3) A reação após a leitura de uma obra pode ser diversa entre os leitores. Se a obra é rejeitada, ela não se encaixa no horizonte de expectativas dominante, portanto, há uma distância estética em relação ao horizonte do leitor. Se a distância estética aumenta (ruptura com a cotidianidade) aumentará o valor estético da obra.5

4) Um horizonte de expectativas pode ser recriado em função do tempo de produção (passado) e recepção (atual), portanto, há uma diferença interpretativa entre a recepção do passado e da atual. Com isso, a obra literária é atemporal e disponível a múltiplas leituras com intervenção direta do intérprete-leitor.

3 “Y este nuevo paradigma en la historia de la literatura es para Jauss la Estética de la Recepción” (Sánchez-Vázquez, 2005, p. 34).

4 "El historiador —dice Jauss— debe convertirse siempre, y en primer lugar, en lector antes de comprender y clasificar una obra".

5 "En la medida en que esta distancia disminuye y en que la conciencia del receptor no le exige volverse hacia el horizonte de una experiencia no conocida, la obra se aproxima a la esfera del arte culinario o de entretenimiento".

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5) A estética da recepção exige localizar a obra numa série evolutiva literária (processo histórico) para conhecê-la dentro do contexto de experiências e acontecimentos literários. Essa evolução literária acontece de acordo com a transformação da recepção passiva em ativa com aspectos novos formais, ideológicos e morais.

6) No estudo da história da literatura, produção e recepção, devem ser combinados o método diacrônico (ordenação de autores/obras numa série temporal) e o sincrônico (sistema referencial em um tempo determinado), levando em consideração o horizonte de expectativas do leitor em um momento histórico determinado.

7) O estudo de uma história particular relacionada à história geral considera a literatura como uma imagem da realidade social que potencialmente pode possibilitar um efeito social. A função social da literatura é atingida quando a experiência literária, ou recepção do leitor, entra no horizonte da práxis e afeta as atividades cotidianas e seu comportamento social.

A partir dessas teses, Jauss (segundo Sánchez-Vázquez, 2005) destaca três aspectos: relação dialógica entre texto (produção que remete a um destinatário) e recepção (efeitos do texto no leitor); papel mediador dos horizontes de expectativas (do autor/passado, do receptor/presente, da fusão de ambos, extraliterário ou da prática vital); e função social da literatura (horizonte prático-vital).

Sobre o MRL, Bordini & Aguiar (1993, p. 81-6) apontam que esse método, nas escolas brasileiras, é pouco considerado devido à tradição de não considerar o ponto de vista do leitor. Durante o processo de produção e de recepção, existem espaços onde implicitamente há horizontes históricos, estéticos-ideológicos e conhecimentos prévios que, para estabelecer diálogo entre o texto e o leitor, esses horizontes devem ser atendidos. Assim, o texto literário constitui-se a arena onde os horizontes do produtor e do receptor podem identificar-se ou estranhar-se.

A técnica desse método de leitura de textos literários objetiva a compreensão e criticidade, percorrendo as cinco etapas de desenvolvimento dos Horizontes de Expectativas: Determinação, Atendimento, Ruptura, Questionamento e Ampliação (Figura 1). Em todas as etapas, a forma de semiotização das produções, ou seja, o gênero textual, deve ser escolhida pelo aluno.

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Figura 1 – Método Recepcional de leitura de textos literários e relação com as principais ações6.

Fonte: Esquematizado pelas autoras a partir de Bordini & Aguiar (1993).

Na Figura 1, podem ser observadas as cinco etapas do método. Nesse viés, na primeira etapa (Determinação do Horizonte de Expectativas), ou de diagnóstico, é o momento de observar a realidade dos alunos, estabelecer o perfil da turma e analisar o seu interesse, ao colocá-los em contato com gêneros e temas diversos e, dessa forma, prever estratégias de transformação (Bordini & Aguiar, 1993, p. 88),

Na segunda etapa (Atendimento do Horizonte de Expectativas), o professor oferece aos alunos textos literários familiares, do seu senso comum e cotidiano, com repertório linguístico próximo da sua realidade, crenças e estilo de vida, retirados da mesma literatura ou da televisão, quadrinhos, cartuns, folclore, letras musicais, vídeo etc.

Atendendo às expectativas, insumos linguísticos são escolhidos pensando neles como textos esperados ou do cotidiano. Segundo Bordini & Aguiar (1993, p. 88), essa etapa consiste em proporcionar experiências com textos que satisfaçam as suas necessidades. Além disso, segundo Lukács (1966, p. 11), o começo de toda atividade humana está na cotidianidade, e é nesse contexto que acontece o processo de recepção, influenciado pelas contradições e múltiplas determinações da vida social.

Bordini & Aguiar (1993) indicam que, na terceira etapa (Ruptura do Horizonte de

Expectativas), deverão ser abaladas as certezas dos alunos, ao serem instigados com textos

literários novos, distantes em espaço e tempo, mais complexos, para promover a discussão aprofundada sobre temas que ainda se encontram no senso comum, desautorizando as versões

6 Horizontes de Expectativas (HE) é a expressão utilizada por Jauss (Bordini & Aguiar, 1993) para indicar o modo de o leitor apreender e interpretar o mundo, a partir de um ponto de vista particular.

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pré-determinadas. Nessa etapa, estratégias de leitura compreensivas, receptivas e críticas devem considerar atividades desafiadoras para os alunos.

De acordo com a segunda tese fundamental de Jauss (Sánchez-Vázquez, 2005, p. 38), os conhecimentos prévios acumulados nas leituras anteriores (horizonte de expectativa conhecido pelo aluno) entram em ruptura ao transitar para o conhecimento do horizonte de expectativas dos autores a serem apresentados. Dessa forma, os próximos textos precisam abalar as certezas e costumes e provocar uma ruptura implicando distanciamento do leitor para realizar uma leitura crítica, problematizadora, e preparar o caminho para o alargamento desses horizontes (Bordini & Aguiar, 1993, p. 85-9).

Dessa forma, por meio de atividades orientadas de leitura, é possível auxiliar o processo de ruptura do “automatismo da percepção do cotidiano” (Jauss, 1994, p. 50). Nesse sentido, os dispositivos transversais mobilizados, além de questões inerentes ao contexto de produção, devem estar relacionados com o “questionamento sobre o sentido geral do texto e sobre os significados das diferentes partes” e o vocabulário novo presente no texto deve ser esclarecido (Dolz & Abouzaid, 2015, p. 19).

Na quarta etapa (Questionamento do Horizonte de Expectativas), segundo Bordini & Aguiar (1993, p. 90-91), o aluno passa por um processo de análise e comparação entre as duas etapas anteriores e, através da reflexão e autoavaliação, é capaz de perceber que a compreensão de outros textos lhe acrescenta conhecimento.

Na etapa final, que corresponde à Ampliação do Horizonte de Expectativas, o aluno realiza leitura e produção de textos relacionados às etapas anteriores, de forma consciente e reflexiva, a partir de seu próprio olhar, mudando, assim, a visão de mundo ao sair do senso comum.

Segundo a sexta tese fundamental de Jauss (Sánchez-Vázquez, 2005, p. 42), o estudo da literatura deve vir acompanhado pela produção e recepção. O leitor, nessa fase, desenvolve a consciência das alterações e aquisições obtidas por meio de textos literários anteriores. Portanto, sentem-se habilitados para decifrar as novidades em outros textos (Bordini & Aguiar, 1993, p. 90).

3. Estatuto da Literatura Indígena

Na última década do século XX, a literatura indígena brasileira, secularmente de tradição oral, começa a superar o hiato do esquecimento por meio da escrita de textos em

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língua portuguesa. Essas obras são escritas por autores que representam uma parte da sociedade historicamente silenciada, marginalizada e invisibilizada (Graúna, 2013).

A escolha de uma literatura de autoria indígena, como instrumento para o desenvolvimento de atividades pedagógicas de leitura, requer o conhecimento do tipo de abordagem sob a qual pairam esses textos. Nesse sentido, para Graúna (2013), autores e obras da literatura indígena7 podem ser classificados como contemporâneos ou clássicos. No

entanto, segundo Souza (2018), não é possível falar sobre uma literatura indígena única, devido à complexidade da produção literária em função da diversidade étnica, interétnica e intercultural. Mas, nesta pesquisa, o significado da palavra “indígena” (literatura indígena) é associado à literatura escrita por autores indígenas brasileiros, independentemente do povo indígena ao qual pertencem.

Segundo Dorrico (2018), a literatura indígena contemporânea abrange o grupo de obras escritas por autores da contemporaneidade com acentuada pertença étnica, que passaram a publicar suas poéticas na última década do século XX. Além disso, cada “poética indígena implica simultaneamente gestos, vozes, pausas, ou seja, uma performance complexa e expressiva, imputável a uma época, a um lugar e a um narrador muito concreto, que não podemos mais fingir que não existe” (Medeiros, 2018, p. 163).

Na literatura indígena escrita ecoam as vozes da ancestralidade, que carregam uma história de vida, identidade e espiritualidade de um povo, perpetuadas por meio da oralidade, como instrumento de transmissão da tradição das culturas dos povos indígenas. A palavra indígena, nessas textualidades, “está impregnada de simbologias e referências coletadas durante anos de convivência com os velhos, tidos como sábios e guardiões de saberes e repassados aos seus pela oralidade” (Kambeba, 2018, p. 40).

Antes de falar sobre textos da esfera literária, são necessários alguns questionamentos sobre a literatura indígena: por que literatura de autoria indígena e não, apenas, brasileira? Literatura indígena, literatura indianista e/ou literatura indigenista? Qual é a relevância da leitura de literatura de autoria indígena na escola?

Em relação à emergência autoral indígena (forte sentido de pertencimento), e às vozes (ancestralidade) dessas textualidades reconhecidas como literatura indígena, Dorrico (2018, p. 228) aponta:

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A emergência dessas vozes indígenas na literatura brasileira, realizadas de si mesmas, desde o seu lugar de fala, leva-nos à investigação da autoria indígena, nas diferentes formas que têm se manifestado desde a década de 1990. Com efeito, a autoria indígena revela uma potência narrativa que protagoniza o sujeito na literatura e em outros segmentos, como nas artes plásticas, na música, na crítica literária etc.

Assim, essa autoria reconhecida constitui uma forma de emancipação do indígena enquanto sujeito, num contexto histórico que colocou a cultura dos povos indígenas num papel marginal. Dessa forma, essa escrita possui a “capacidade de transformar a memória em identidade” (Munduruku, 2018, p. 83).

A tradição oral da literatura indígena, secularmente compartilhada em “rodas de conversa ao pé de uma árvore e sempre ao cair da noite” (Kambeba, 2018), passa a registrar memórias e saberes, de forma escrita, sem perder o “contorno de oralidade, com ritos de grafismos e sons de floresta, que tem em suas entrelinhas um sentido de ancestralidade” (Hakiy, 2018, p. 38). Dessa forma, percebe-se que, nessas textualidades, “há um fio muito tênue entre oralidade e escrita”, consequentemente, “a escrita indígena é a afirmação da oralidade” (Munduruku, 2018, p. 83).

A ocidentalização da literatura indígena mostra utilidade para os povos indígenas, pois a ferramenta de escrita passa a ser um instrumento de libertação da dominação e controle sobre a sua cultura, narrativas, mitos e identidade. O que poderá possibilitar o acesso e permanência aos diversos setores da literatura brasileira. Para prosseguir nessa mesma abordagem, surge a necessidade de diferenciar a literatura indígena, da literatura indianista e da literatura indigenista (Thiél, 2012).

Com relação às expressões literatura indígena, literatura indianista e/ou literatura indigenista, sabe-se que as obras de literatura indígena estão atreladas à atuação direta dos escritores/autores, como sujeitos indígenas (Eliane Potiguara e Daniel Munduruku, por exemplo), que reivindicam, cada vez mais, protagonismo para articular a sua autoexpressão e autovalorização de suas ancestralidades e costumes.8 A expressão literatura indianista é utilizada para denominar uma das características do Romantismo no Brasil, cujos autores (José de Alencar e Gonçalves Dias, por exemplo) não tinham a pretensão de serem porta-vozes da cultura indígena, mas que os representaram de acordo com os pressupostos da matriz ocidental que justificavam a colonização. No que tange à expressão literatura indigenista, relacionam-se obras escritas ou traduzidas por não indígenas, cuja temática procura compreender os povos indígenas, produzida numa perspectiva não indígena, a partir de vozes

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indígenas, como sujeitos informantes (Darcy Ribeiro e João Ubaldo, por exemplo) (Dorrico, 2018).

As textualidades de autoria indígena revelam sua complexidade e seu caráter híbrido e, ao dialogarem com outras textualidades, permitem a condução à releitura do que o cânone ocidental costuma considerar como texto literário (Thiél, 2012, p. 36).

Em relação à literatura de autoria indígena, Thiél (2013) afirma que essas textualidades são produzidas por eles mesmos, com suas especificidades estéticas, multimodalidades e grafismos. Narrativas de autoria indígena ancestral, comunitária ou individual, transitam entre a oralidade e a escrita, e refletem a cosmovisão nativa pelo uso da própria língua e a cultura brasileira através da língua portuguesa. Nessas narrativas há uma forte relação entre o homem, cultura e a natureza.

Os gêneros textuais e literários vinculados à tradição oral foram agrupados por Thiél (2012, p. 80), em função de sua finalidade: cerimonial e popular (preces, cartas etc.), relato mítico (contos, fábulas e mitos), relato ensaístico e testemunho ensaístico ou gênero memorialístico (autobiografias, memórias e contramemória)9. Mas, segundo a autora, “há, na verdade, um imbricamento de vozes e gêneros nos textos indígenas” (p. 94).

Quanto à periodização da literatura indígena, Graúna (2013, p. 74) aponta o momento da tradição oral e coletiva do período clássico e o da tradição escrita individual e coletiva, com narrativas míticas e entrelaçamento com a história desde o olhar indígena. A propriedade intelectual indígena contemporânea no Brasil, segundo a mesma autora, começa no final do século XX. Exemplo disso é o poema Identidade indígena, de Eliane Potiguara.

Para reconhecer as diferentes formas de expressão literária, Thiél (2013) discute sobre aspectos estético-literários indígenas e instiga a reflexão sobre a formação de leitores multiculturais, evidenciando a relevância da leitura da literatura indígena. Em função disso, o primeiro grande desafio para levar à escola essa literatura é superar o desconhecimento que os professores têm sobre autoria indígena e as informações estereotipadas, pois, quando eles conhecem algumas obras, as julgam pelos critérios canônicos ocidentais de literariedade (Thiél, 2013, p. 1177).

Zancán (2015), investigando a memória e história cultural indígena por meio da literatura, com alunos da escola pública, verificou a importância da vivência dos textos literários indígenas na construção da percepção do reconhecimento da alteridade. Já

9 “A contramemória inclui versões que apresentam uma re-visão do passado e da história do outro em um passado narrado (Thiél, 2012, p. 85).

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Fumagalli & Hoffmann (2017) versaram sobre o potencial da literatura indígena de provocar reflexões sobre a presença indígena na história, utilizando-se, para essa finalidade, da obra

Ajuda do Saci – Kamba’i, de Olívio Jecupé. No mesmo viés, Péres (2018) explanou sobre a

contribuição da literatura indígena na literatura brasileira e sobre a expressão estética, vozes ancestrais, oralidade, memória, tradição, poesia, crítica e resistência. Esse autor mapeou os principais autores indígenas das últimas três décadas; elencando Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Olívio Jecupé, Yamã, Kaká Werá e Márcia Kambeba.

Santos (2018) expõe o caminho dos cânones do romance indianista até os textos de autoria indígena que ainda não são totalmente reconhecidos. E Brito et al. (2018) descrevem a trajetória da invisibilização indígena, as políticas públicas de resgate dos direitos indígenas e a presença da literatura indígena nas escolas.

Graúna (2013, p. 53) cita como autores de literatura de sobrevivência indígena Renê Kithãulu, além dos mencionados acima por Péres (2018). Santos (2018, p. 112) acrescenta, ainda, Ailton Krenak e menciona o grupo de rap Brô Mc’s. Dorrico (2018) aporta com os nomes de Cristino Wapichana, Tiago Hakiy, Yaguarê Yamã, etc., como autores indígenas que publicaram suas obras literárias com uma assinatura individual.

O estudo da cultura indígena no ensino médio das escolas públicas e privadas, garantida pela lei 11.645/2008, deve permitir a inclusão cultural e superação do silenciamento e invisibilidade da cultura indígena no sistema educativo, através da leitura de textos literários de autoria indígena e não indígena. Por outro lado, levando em consideração o desenvolvimento da capacidade de leitura, diferentes métodos e concepções têm sido ensaiados. Nesse sentido, o MRL de textos literários é uma alternativa “eminentemente social ao pensar o sujeito em constante interação” (Thiél, 2012, p. 76), que possibilita colocar o aluno frente a um repertório de modalidades discursivas indígenas variadas referenciando a sua cultura.

O texto da Base Nacional Comum Curricular referente ao Ensino Médio aponta que o ensino de Língua Portuguesa deve contemplar a prática da leitura dialógica de textos literários, resgatando a sua historicidade, produção, circulação e recepção, em confronto permanente com a “manutenção da tradição e da ruptura” e considerando “suas tensões entre códigos estéticos e seus modos de apreensão da realidade das obras” (Brasil, 2018, p. 523). Para isso, propõe que a escola possibilite o convívio com a literatura, posto que é por meio desse instrumento cultural que a visão de mundo será enriquecida e ampliada. Dessa forma, os textos literários de autoria indígena devem ser estudados na escola junto a outros clássicos da

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literatura brasileira. E, para essa finalidade, o Método Recepcional de Leitura pode ser uma possibilidade didática.

4. Metodologia

Sob o ponto de vista do problema, este relato de experiência está baseado numa pesquisa, de base empírica e abordagem, de natureza qualitativa, visto que a interpretação do pesquisador sobre o assunto estudado é essencial (Pereira, et al., 2018, p. 67). Para esses autores, a pesquisa qualitativa pode-se tornar quantitativa quando se utilizam de questionários com perguntas fechadas, que não é o caso deste estudo.

O delineamento do estudo seguiu os princípios da pesquisa-ação para os procedimentos de obtenção dos dados, pois o pesquisador (professor) e os sujeitos da pesquisa (alunos do Ensino Médio) vivenciaram um problema de ordem prática (falta de práticas de leitura da literatura indígena). Com base num plano de ação transformador (intervenção didática por meio de sequências didáticas de oficinas), baseando-se no estudo sistemático de leitura, à luz do Método Recepcional de Leitura, buscaram soluções (superar obstáculos relacionados ao desconhecimento de textualidades indígenas), passando pelo planejamento, ação (atividades escolares), análise, desenvolvimento (oficinas) e avaliação do processo (Thiollent, 2011, p. 79).

Em relação à abordagem teórico-metodológica da leitura, considerando uma sala de aula da escola convencional, assume-se o conceito de aluno-leitor que, de acordo com Bordini & Aguiar (1993, p. 85), é um ser social; um sujeito cuja transformação, por meio da leitura, implique a alteração do seu comportamento; que compreenda, interprete e analise o que lê; que relacione textos, construa sentidos, confronte visões e contextualize conhecimentos. Além disso, que participe da (re)construção da memória cultural indígena, utilizando-se, para isso, de textos literários de autoria indígena apresentados ao longo das etapas do Método Recepcional de Leitura, à luz das teorias da Estética lukacsiana e da Recepção de Jauss.

Na metodologia de leitura das textualidades indígenas proposta por Thiél (2012), o professor, como mediador da leitura, possibilita essas ligações pela necessidade de conhecer a literatura indígena a partir da própria voz indígena, e em contraponto com obras literárias de cânones consagrados pela academia literária. Dessa forma, o professor, além do desafio permanente de conhecer literatura indígena, preencheu uma lacuna com vozes, até então apagadas, levando a promover o desenvolvimento de consciência, análise das especificidades

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dos textos e a criticidade, ao propor ao aluno a conexão entre os saberes e questionamento das informações vinculadas às diferentes fontes literárias (Thiél, 2013, p. 1176).

A pesquisa foi desenvolvida no segundo semestre de 2018, com trinta e oito alunos (entre 17 e 18 anos), da terceira série de Ensino Técnico Integrado ao Médio, de uma escola pública do interior paulista. A professora-pesquisadora lecionava a disciplina Língua Portuguesa e havia acompanhado a turma durante as três séries do Ensino Médio. Salienta-se que esta pesquisa foi autorizada pela direção da unidade escolar, e todos os procedimentos foram aprovados pelo Conselho de Ética da UNESP.

A escolha do repertório textual de literatura indígena e não indígena foi realizada prevendo a atitude receptiva dos alunos e projetando as aproximações com o contexto histórico, social e cultural que envolvia cada um dos textos e as suas relações intertextuais (Bordini & Aguiar, 1993, p. 84).

Com a finalidade de sistematizar o conteúdo temático (literatura de autoria indígena), foram selecionados alguns insumos linguísticos de temática indígena, de autoria indígena e não indígena com propostas de atividades. Essas textualidades foram: vídeo musical Brincar

de Índio, interpretado por Xuxa Meneghel; videoclipe Eju Orendive, do grupo de Rap

Indígena Bro Mc’s; charge Salve o Dia do Índio, de Sinovaldo; vídeo da TV Escola Índios do

Brasil: quem são eles? e Índio Kayapó explicando o que é ser indígena no século 21; conto Meu vô Apolinário, de Daniel Munduruku; poema Solilóquio de Índio, de Thiago de Mello;

trecho do poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias; narrativa Karaíba, de Daniel Munduruku; conto Meu tio Iauaretê, de Guimarães Rosa; trecho do romance Iracema, de José de Alencar; poema Brasil, de Eliane Potiguara (Eliane Lima dos Santos) e contos Kurumi

Guaré no coração da Amazônia de, Yaguarê Yamã. Assim, a seleção de insumos linguísticos

considerou desde a relação com o cotidiano dos alunos até textos literários dos autores indígenas em diálogo com os de autores não indígenas.

5. Sequência Didática de Oficinas de Leitura: relato da experiência

A sequência didática de leitura foi organizada seguindo as etapas do MRL:

Determinação, Atendimento, Ruptura, Questionamento e Ruptura dos Horizontes de Expectativas, começando com a apresentação da situação inicial e do projeto de dizer, que

consistiu na explicação de todas as etapas do projeto de leitura que seriam desenvolvidas em 10 horas-aula. Cada oficina correspondeu a uma das etapas do MRL. No Quadro 1, apresentam-se resumidamente as atividades que foram desenvolvidas em todas as oficinas.

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Em todas as oficinas foram utilizadas as tecnologias de comunicação como suporte pedagógico: computador, televisão e a sala de aula virtual,10 na qual foi disponibilizado, aos

alunos, todo o material necessário para o desenvolvimento das atividades propostas.

Quadro 1 – Sinopse das oficinas e etapas do Método Recepcional de leitura de textos literários em sala de aula.

Oficin

a Etapas Objetivos Atividades Material

1 1h-aula D e te r mi n a ç ão d o H

E conhecimentos sobre Avaliar os a temática indígena.

Apresentação do projeto. Enquete: saberes sobre a temática indígena.

Folhas das enquetes contendo perguntas para respostas abertas e fechadas. Observar os alunos durante o diagnóstico sobre o conhecimento da cultura indígena.

Reflexões: quem são os indígenas? Definindo alguns termos (identidade, alteridade etc.).

Slides com imagens que

contextualizam a temática indígena.

2 1h-aula A te n d ime n to d o HE Reconhecer, em textos diversos, a presença da temática indígena. Reflexões sobre o significado do Dia do Índio, utilizando-se de: vídeos e charges. Estatuto da literatura de autoria e identidade indígena: aula expositiva e dialógica.

Vídeo “Brincar de índio”, Xuxa Meneghel. Videoclipe Eju Orendive, Rap Brô Mc’s. Charge Salve o dia do

Índio, Sinovaldo. Vídeo Índios do Brasil: quem são eles?e Índio Kayapó explicando o que é ser indígena no século 21. 3 2h-aula R u p tu r a d o H E Conhecer e ampliar o conhecimento da literatura indígena, percorrendo a caminho até os considerados cânones.

Posso ser qualquer coisa sem deixar de ser o que eu sou.

Diálogos entre a literatura indígena e os cânones.

Narrativa Meu vô Apolinário, D. Munduruku. Poema Solilóquio do

Índio, T. de Mello. Trecho do poema I-Juca Pirama, G. Dias. Trecho do

livro Karaíba, D. Munduruku. Conto

Meu tio Iauaretê, G. Rosa.

4 2h-aula Q u e sti on a me n to d o H E Comparar o velho e o novo olhar sobre a

cultura indígena.

Questionamentos sobre a visão da mulher

indígena: um novo olhar.

Trecho de Iracema, José de Alencar; Poema Brasil, Eliane Potiguara;

5 2h-aula A mp li a ç ão d o H E Fruir da leitura de literatura indígena Produzir textos vinculados à temática indígena. Momento de leitura e roda de conversa: elementos da literatura indígena. Paródia temática indígena

Contos Kurumi Guaré no coração da

Amazônia, Yaguarê Yamã.

2h-aula Produzir um artesanato indígena. Construção de Pau de chuva

Canudos de papelão, pinturas, pedrinhas, pregos, martelo, pincéis, fita.

Fonte: Elaboração das autoras.

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Informações relacionadas aos objetivos, atividades principais a serem desenvolvidas nas oficinas modulares, assim como o material necessário, estão organizadas por oficina modular, especificando a carga horária para cada etapa do Método Recepcional de leitura, conforme apresentado no Quadro 1.

Em todas as oficinas modulares, os alunos formaram grupos de quatro, isto é, a maior parte das participações e produções foi feita coletivamente. Além das leituras (em voz alta ou em silêncio, coletiva ou individualmente), foram propostas comparações entre os textos em função da historicidade e estética, debates, rodas de conversa e materialização do processo por meio de sínteses de leituras e artística artesanal.

5.1 Determinação do Horizonte de Expectativas (O f i c in a 1 )

Na avaliação diagnóstica, foram mobilizadas algumas estratégias para determinar o horizonte de expectativa dos alunos: enquete e questionamento retórico sobre a temática indígena, com o intuito de observar a realidade do aluno e estabelecer o perfil da turma (Bordini & Aguiar, 1993, p. 88). A enquete continha perguntas fechadas (com alternativas) e abertas (dissertativas), foi fundamental, visando à obtenção de um panorama geral sobre o conhecimento que os alunos tinham em relação à existência de indígenas no Brasil, aldeamentos, escrita indígena, música, cultura e literatura escrita por e sobre indígenas, reivindicações indígenas, percepção da cultura indígena no currículo escolar e sobre o conhecimento, ou não, da Lei 11.465/08, que inclui, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.

Nesta etapa, os alunos verbalizaram suas próprias dificuldades e expectativas. Assim, foi possível incentivar o espírito de cooperação ideando situações de comunicação coletiva, tanto oral quanto escrita. Falou-se brevemente sobre os conteúdos que seriam trabalhados e da extrema importância do conhecimento da linguagem e do conteúdo temático para falar com propriedade. Essa atividade foi individual, observando os alunos durante a demarcação da

zona de desenvolvimento real11 em relação ao conhecimento da temática indígena.

Sabia-se, a priori, que no decorrer da Educação Básica, os alunos haviam tido contato com diferentes narrativas, desde o ponto de vista eurocêntrico, daí a necessidade de verificar o que sabiam sobre a temática indígena. Os resultados apontaram que os alunos tinham

11 Desenvolvimento real ou efetivo, segundo Vigotski (2018), corresponde ao desenvolvimento produzido e superado por meio de conhecimentos mobilizados pela criança para resolver um desafio, problema, teste, avaliação, etc.

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conhecimentos sobre a sua existência, mas não souberam dizer se os indígenas sabiam escrever (65%). Quando questionados sobre o conhecimento da literatura indígena (escrita

por indígenas e escrita sobre os indígenas), nove de cada dez alunos declararam conhecer

obras que remetem aos indígenas. Porém, houve um desconhecimento completo sobre obras escritas por indígenas. Resultado condizente com as apreciações de Thiél (2012, p. 15) e Santos (2018), em relação ao desconhecimento da literatura produzida por indígenas. Por outro lado, quando questionados se tinham o conhecimento de músicas de autoria indígena, quatro de cada dez alunos afirmaram conhecer.

A maioria dos alunos desconhecia a Lei 11.465/08 que contempla a inserção do estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena, nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados. A escrita indígena e o conhecimento da sua cultura livre de estereótipos são recentes e, atualmente, embora ainda de forma muito discreta, a sua inserção na escola começa a ganhar espaço, graças a essa lei.

Em relação ao conhecimento sobre a forma de vida dos indígenas brasileiros, a maioria dos alunos (57%) pensava que eles viviam em aldeamentos, e 29% reconheceram a forma de vida do indígena nas cidades, demonstrando desconhecimento em relação a essa situação, já que, segundo Santos (2018, p. 115), o índio urbano está presente em 80% dos municípios brasileiros. Por outro lado, dois alunos (3%) apontaram que os indígenas tinham sido exterminados durante a colonização, mesmo havendo declarado anteriormente a existência deles em terras brasileiras. Um grupo de alunos (11%) preferiu declarar não saber responder sobre os indígenas brasileiros.

Quanto à percepção sobre a cultura indígena no currículo escolar, a maioria (60%) acreditou que foi pouco abordada, em oposição ao zero por cento da declaração “não houve abordagem”, posto que todos reconheceram a presença de elementos culturais indígenas em alguns momentos da Educação Básica. Ainda houve alunos (32%) que registraram a percepção de “morte”, “apagamento”, esquecimento” e “invisibilidade” da cultura indígena no currículo escolar.

Com relação às obras, de temática indígena, conhecidas, 32% das respostas dos alunos foram “não lembro”, enquanto 36% das respostas corresponderam à obra Iracema, de José de Alencar, seguida da obra modernista Macunaíma, de Mário de Andrade (15%). Outras respostas registradas foram: o romance indianista I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias (9%) e

Ubirajara, de José de Alencar (6%). O Guarani, de José de Alencar e Caramuru de Santa

Rita Durão foram mencionados 2% cada. Ainda foram citadas: Tainá, devido ao filme brasileiro dirigido por Sérgio Bloch e Tânia Lamarca, lançado em 2001, e “Moema”, que é

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um personagem da obra Caramuru. Vale salientar que as obras mencionadas, exceto o filme Tainá, foram abordadas no estudo da literatura, ao longo do Ensino Médio.

Esses resultados indicaram que ainda prevalece a narrativa do colonizador sobre as demais e demonstraram o predomínio da leitura do índio pelos olhos do colonizador europeu. Portanto, o imaginário do aluno estava preenchido pela representação etnocêntrica do índio, não sendo possível, de acordo com Graúna (2013, p. 20), livrar-se do prisma exclusivo eurocêntrico. Ao mesmo tempo, foi possível constatar que, entre os alunos, as narrativas dos indígenas estavam silenciadas ou apagadas (Thiél, 2012, p.15-33). Dessa forma, era iminente a necessidade de possibilitar a vez de fala dos autores indígenas através da literatura, para, entre tantas outras vantagens, estimular a percepção do reconhecimento da alteridade, como fora estudado por Zancán (2015) com alunos da escola pública.

Ainda na etapa da Determinação do Horizonte de Expectativas, de forma dialógica, realizaram-se perguntas retóricas: “Quem são os indígenas?”, apoiando-se de imagens que remetiam aos povos indígenas, projetadas na televisão da sala de aula, auxiliando-se de outras perguntas: “Como o indígena é visto na história?” “Quais textos literários fazem referência ao indígena?” (projetaram-se exemplos de obras indianistas conhecidas pelos alunos); “Quantos povos indígenas existem?” (projetou-se o mapa sobre a distribuição dos povos indígenas na atualidade); “O que um indígena poderia narrar sobre a história do Brasil?” (frase projetada: Índios do Brasil: outra história).

Durante essa etapa de diagnóstico e com as respostas da enquete, foi possível observar os valores, as crenças, preconceitos e constatar que os alunos possuíam conhecimentos ligados ao senso comum, evidenciados nos termos “pelados”, “quase extintos”, “pele amarela”, “primitivos”, “vivem em tribos”, “analfabetos” “tem muita cultura”, “oprimidos” e “marginalizados”. Em relação a essa situação, Jecupé (2001, p. 95) afirma que a sociedade brasileira associa a imagem do índio a um ser bárbaro (“primitivo”), ou miserável, e o qualifica por meio da sua aparência (“pele amarela”, “pelados”) devido ao legado histórico registrado pela sociedade ocidental.

Essa etapa foi concluída provocando oralmente, em forma de brainstorming, o esclarecimento dos termos: identidade, cultura, alteridade, ancestralidade, resistência,

utopia, mito, memória e mãe-terra, com o intuito de atualizar o repertório linguístico que

seria utilizado nas próximas atividades. Percebeu-se que os alunos não tinham se apropriado do termo alteridade no sentido do reconhecimento da identidade do outro.

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5.2 Atendimento do Horizonte de Expectativas (O f i c i n a 2)

Com o intuito de promover o reconhecimento da presença indígena em diferentes tipos de textos do senso comum (Dia do Índio) utilizaram-se textos multissemióticos representantes do senso comum e do cotidiano do aluno, como vídeos, charges e folhas impressas com o roteiro de análise dos textos, para, assim, atender às expectativas dos alunos. Dessa forma, desenvolveu-se a oficina com a temática do Dia do Índio, no Brasil, remetendo à mesma abordagem tradicional, na qual “o ensino fundamental e médio continua a dar a seus alunos uma impressão dos nossos povos indígenas centrada no instituído Dia do Índio, ainda baseada nos estereótipos coloniais de pessoas nuas, com adereços de penas coloridas, em meio à natureza” (Santos, 2018, p. 115).

Para essa atividade, como indicam Bordini & Aguiar (1993, p. 85-88), foram provocadas situações para refletissem sobre seus próprios horizontes, disponibilizando textos destacados de diferentes meios de expressão, como televisão, quadrinhos e canais de Internet. Observou-se que os alunos identificaram elementos indígenas no vídeo Brincar de Índio, de Xuxa, no videoclipe Eju Orendive, de Brô Mc’s, na charge Salve o Dia do Índio, de Sinovaldo (Mario Arthur Junges) e nos vídeos Índios do Brasil: quem são eles? (TV Escola) e

Índio Kayapó explicando o que é ser indígena no século 21.

Durante o vídeo musical do programa da cantora brasileira Xuxa (Maria da Graça Xuxa Meneghel), a primeira reação dos alunos foi cantarolar e dar risadas, até gargalhadas. Nesse momento, de acordo com Lukács (1966), estavam sendo transportados à cotidianidade da própria infância e vivenciando em forma de lembranças a fetichização da relação entre a própria existência e a realidade do cotidiano. A reação dos alunos mudou no momento que apareceu, no palco, um grupo de indígenas, crianças e adultos, visivelmente constrangidos, enquanto a intérprete cantava a música Brincar de Índio (composição: Michael Sullivan e Paulo Massadas).

Ao observar os alunos, foi possível constatar que essa música, do mundo do senso comum, reforçou os estereótipos sobre os povos indígenas: dia do índio é para brincar de índio; índio é só na tribo, não na cidade; índio é aquele que se pinta; índio não fala, faz barulho; índio não existe, foi um dia dono das terras, mas não é mais. Ao final dessa projeção, foi deixada, em aberto, a questão da responsabilidade do sujeito social sobre a sua fala oral e corporal, posto que todo ato comunicativo tem uma “intencionalidade discursiva” (Bakhtin, 2011, p. 281).

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Nesse momento, estabeleceu-se a situação ideal para apresentar o videoclipe Eju

Orendive, de um grupo de jovens indígenas, chamado Brô Mc’s, com vestimentas do mundo

dos jovens não indígenas, bermudas, camisetas, bonés e tênis de marcas não nacionais reconhecidas. Com isso, pretendeu-se chamar a atenção sobre a permanência da indianidade, mesmo sob a presença de elementos modernos (vestimenta), acesso aos meios de comunicação contemporâneos que são incompatíveis com a comunidade indígena no olhar do não indígena. A intenção era deixar no imaginário dos alunos a mensagem: “porque o índio /a índia, onde quer que vá, leva dentro de si a aldeia” (Graúna, 2013, p. 59).

Esse grupo de rap não era conhecido pelos alunos, porém, o ritmo rap acionou o elo entre os jovens alunos e os rappers, com o conteúdo e a forma da música; inclusive, pediram para escutá-la novamente. Os alunos perceberam que a letra apontava elementos não indígenas como os relacionados a questões religiosas (“Deus”, “Jesus”) e outras (“boy”, “levada”). Mas também identificaram termos da cultura indígena (“guarani”, “kaiowa”) e de contestação (“nós te chamamos pra revolucionar”, “estou aqui pra defender meu povo”). A partir das diferentes expressões foi possível criar um espaço para abordar a questão de identidade e alteridade: a quem se refere a frase “você não consegue me olhar e se me olha não consegue me ver”, “aldeia unida mostra a cara” e “vamos mostrar para os brancos que não há diferença e podemos ser iguais”.

Para conduzir os alunos a se posicionarem sobre a sua concepção de Dia do Índio, foi planejada uma atividade com essa abordagem. O “Dia do Índio” foi oficializado através do decreto-lei nº 5.54012, em 02 de junho de 1943, para comemorar a cultura indígena, reforçar a identidade e reconhecimento dos povos indígenas. Sobre essa temática foi projetada a imagem da charge Salve o Dia do Índio! (Sinovaldo)13 para dar início a reflexões sobre qual era a

concepção que eles possuíam sobre esse dia. Na charge, há uma mensagem (Salve O Dia Do Índio!) entre duas árvores; uma das árvores está sendo cortada enquanto um indígena, acompanhado por uma criança e um cachorro, aponta o dedo para a mensagem; o homem que está cortando a árvore responde (Isso Foi Ontem!!!). A charge é um gênero textual que promove a criticidade sobre o tema representado, por isso desencadeou uma série de reflexões entre os alunos. Segundo Jauss (1994, p. 21), o estranhamento produzido pelo texto, ao frear o

12 https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5540-2-junho-1943-415603-publicacaooriginal-1-pe.html

13 https://www.jornalvs.com.br/_conteudo/2016/04/noticias/regiao/315693-dia-do-ndio-e-brasilia-nas-charges-dos-jornais-desta-quarta.html

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automatismo da percepção do cotidiano, tira o leitor de um estado de fruição ingênuo, pois demanda dos conhecimentos prévios para entendê-lo.

Com o intuito de preparar a turma para a próxima etapa e finalizar a determinação do horizonte de expectativa do aluno, foi apresentada, pela própria voz indígena, outra visão sobre o lugar e a forma de convivência dos povos indígenas, seus estudos, a sua escrita, língua e trabalho, e sobre como a mídia os retratava. Para essa finalidade, foi utilizado o vídeo da TV Escola, do ano 1999, Índios do Brasil – quem são eles?14, e o vídeo Índio Kayapó explicando o que é ser indígena no século 2115. No primeiro, as vozes, que apresentaram o ponto de vista

sobre como a sociedade os tratavam, foram assumidas pelos próprios membros de diferentes povos indígenas do Brasil. No segundo, o professor de história, Edson Kayapó, provocou o interlocutor com a definição do termo “índio”. Nessa atividade, deu-se a voz ao próprio indígena para abordar a questão da percepção indígena sobre: “o índio não deixa de ser ele mesmo em contato com o outro (o não índio), ainda que o(a) indígena more numa cidade grande, use relógio e jeans, ou se comunique por um celular” (Graúna, 2013, p. 59).

O desenvolvimento das atividades anteriores permitiu momentos de reflexão sobre a questão identitária espelhada em textos não indígenas (música Brincar de Índio, charge Salve

o Dia do Índio) e indígenas (música Eju Orendive, vídeo Índios do Brasil: quem são eles?,

vídeo Índio Kayapó explicando o que é ser indígena no século 21). De acordo com Graúna (2013, p.55), essa é uma questão muito delicada e debatida entre os escritores indígenas. Dessa forma, o espaço estava pronto para a próxima etapa.

Finalmente, houve um momento de síntese, e para tal efeito desenvolveu-se uma breve explanação sobre o censo de 2010, que revelara que 896 mil pessoas se declararam indígenas, sendo que 63,8 % deles viviam, exclusivamente, na área rural, e 57,5 % moravam em terras indígenas oficialmente reconhecidas16. Retomaram-se brevemente exemplos de textos da

tradição curricular e conhecidos pelos alunos (Carta de Caminha, Hans Staden, Caramuru, O

Uraguai, poesia e prosa indianista e modernista) para levá-los ao confronto com as falas que

eles tinham escutado anteriormente no vídeo Índios do Brasil – quem são eles?

14 Disponível em https://api.tvescola.org.br/tve/video/indios-no-brasil-quem-sao-eles. Acesso em 08 jul. 2018. 15 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WGGEz0Ux4wc. Acesso em 08 jul. 2018.

16 Disponível em http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/o-brasil-indigena-ibge. Acesso em 08 jul. 2018.

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5.3 Ruptura do Horizonte de Expectativas (O f ic i n a 3 )

A Ruptura do Horizonte de Expectativas foi organizada em três momentos, considerando que a continuidade da etapa anterior foi mantida por um aspecto: a temática indígena. Esses momentos foram: contação de histórias; da literatura indigenista e indianista à indígena; e diálogo entre o texto literário não indígena e indígena.

a) Contação de história

Para fazer a travessia que levaria os alunos aos textos literários considerados cânones pelas academias literárias, foi feita a proposta de análise de alguns textos e trechos de obras literárias de temática indígena, de autoria indígena e não indígena. Essa atividade começou com a contação de história do Meu vô Apolinário (Munduruku, 2001), considerado, pelo mesmo autor, como memórias da sua infância e adolescência. Essa narrativa foi escolhida pela proximidade do cotidiano e como porta para adentrar-se no universo das sociedades indígenas do Brasil. Usou-se a estratégia discursiva da contação de história (Thiél, 2013, p. 1181-9), possibilitando diferentes tipos de leituras, por considerar-se a literatura indígena, e especificamente Meu vô Apolinário, uma obra da tradição oral.

Os alunos perceberam nas ilustrações do livro Meu vô Apolinário, realizadas por Rogério Borges, imagens de pedaços de plantas, folhas secas e verdes, frutos secos, penas, lascas de tronco, restos de cerâmica e um peixe tribal, centralizado junto ao título da obra, relacionado ao subtítulo do livro: Um mergulho no rio da (minha) memória.

Essa atividade pretendia levar o aluno a confrontar seus paradigmas com os conflitos internos pelos quais passava um indígena adolescente, na sua condição de oprimido. O jovem personagem supera a negação de uma ancestralidade indígena por estar contaminado do olhar preconceituoso da sociedade, passando a reconhecer e defender a sua etnia. Pois, com o desfecho (morte do avô), Apolinário deixa um grande legado a seu neto: o orgulho de se reconhecer indígena e a certeza de que poderia chegar aonde ele quisesse. Segundo Thiél (2013, p. 1182), as narrativas míticas anunciam a consciência da continuidade ou permanência de um saber ancestral e sinalizam a atemporalidade da história.

O elo do neto de Apolinário com o leitor aconteceu quando o aluno vivenciou a estética e o conteúdo da história e apontou relações com as suas próprias negações. Dessa forma, a contação dessa história promoveu a catarse no sentido da “elevação acima do fetichismo da cotidianidade” (Ferreira, 2012, p. 108), cotidiano carregado de crenças não questionadas. Frente a esses confrontos, acredita-se que a literatura tem um caráter formativo

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e transformativo promovido pelo efeito catártico (Lukács, 1966) que retira o aluno do conforto dos seus próprios paradigmas.

b) Da literatura indigenista e indianista à indígena

Ainda na ruptura do horizonte de expectativa dos alunos e, com o intuito de conduzir o aluno-leitor à “desfetichização, à desnaturalização da realidade e ao questionamento de visões cristalizadas” (Ferreira, 2012, p. 109) sobre os indígenas, foram selecionados os textos literários: o poema Solilóquio do índio, de Thiago de Mello, e um trecho da obra I-Juca

Pirama, do poeta Gonçalves Dias.

Para essa finalidade, foi necessário, primeiramente, localizar os autores no processo histórico literário, pois, segundo a quinta tese fundamental da Estética da Recepção, de Jauss, as obras devem ser pensadas no contexto dos acontecimentos literários, dos aspectos formais, ideológicos e morais de produção (Sánchez-Vázquez, 2005, p. 42). Inicialmente, o poema

Solilóquio do índio desafiou a compreensão dos alunos por exigir um esforço de interação

com sua textualidade. Por outro lado, os alunos tinham conhecimento prévio do trecho do poema I-Juca Pirama, o que facilitou a sua compreensão.

O título do poema Solilóquio do índio (Mello, 2005) sugere que o eu lírico é a voz de um índio. Os alunos apresentaram, inicialmente, um estranhamento, ou distanciamento estético, com o conteúdo do poema Solilóquio do índio, mas não tiveram nenhum problema quanto à identificação do eu lírico no título. Foi necessária a intervenção do professor mediador para romper com a cotidianidade e aproximar o aluno-leitor do texto, levando-o a perceber, no poema, a presença de um indígena refletindo sobre a sua identidade (“não sei ser mais o que fui e nunca poderei deixar de ser”). Segundo Jauss (citado por Sánchez-Vázquez, 2005, p. 39), na terceira tese fundamental na Estética da Recepção, a rejeição inicial do público (ou não compreensão) de uma obra indica a existência de um distanciamento estético em relação ao horizonte do leitor, sendo essa uma das características que marca o valor estético dessa obra.

No processo de comparação entre a literatura indigenista (Solilóquio do índio) e a indianista (I-Juca Pirama) promoveu-se o confronto do olhar sobre o indígena a partir de vozes sociais diferentes e não indígenas, já que, nem Thiago de Melo, nem Gonçalves Dias são indígenas. Nessa experiência estética, por meio da análise desses textos, foi possível promover a percepção das relações de historicidade (épocas de produção diferentes) e contexto social (Modernismo e Romantismo) das obras que, no momento da escrita, representavam uma realidade peculiar e diferente ao momento da recepção, ou seja,

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objetivações resultantes da interação histórica entre o homem e o mundo externo (Jauss, 1994).

c) Diálogo entre o texto literário não indígena e indígena

Na cadeia de recepção, segundo Jauss (1994, p. 22), a análise das divergências entre o aspecto estético de uma obra e o processo histórico da sua produção pode marcar o elo entre as obras artísticas. Nesse sentido, a ponte foi construída entre a sinopse da obra Karaíba, uma

história do Pré-Brasil, de Daniel Munduruku (Munduruku, 2010), e o trecho final do conto Meu tio Iauaretê,17 de Guimarães Rosa, focalizando a percepção dos elementos linguísticos e

marcas fônicas ligadas ao Tupi-guarani (aspectos estéticos), em Meu tio Iauaretê, e à cultura indígena, além da reflexão sobre a forma como foram descritos os portugueses em Karaíba (processo histórico). Nessa travessia, os alunos saíram da sua cotidianidade imediata para manusear a linguagem utilizada esteticamente, percebendo os recursos conotativos de ambos os textos (Ferreira, 2012, p. 107).

A análise foi complementada com a comparação entre os textos, de Munduruku e Rosa, considerando a sua historicidade, pressuposições culturais extraliterárias (autor indígena e não indígena) que conduzem a tipos de compreensão e valoração específico (Bordini & Aguiar, 1993, p. 84). Nessa etapa, deu-se destaque à oralidade presente nos textos, posto que, segundo Graúna (2013), a oralidade, na narrativa indígena de Munduruku (Karaíba), é uma das principais características, e quando comparada ao texto de Guimarães Rosa, percebe-se o emaranhado de vozes num “jogo dialógico de intenções verbais que se encontram e se encadeiam nele” (Bakhtin, 2002, p. 86).

O leitor de Guimarães Rosa, na perspectiva da recepção crítica, provoca a desconstrução e reconstrução do texto, pois ele se depara com as metáforas rosianas, uma das principais características estilísticas no discurso narrativo, junto aos neologismos (Tinoco, 2010, p. 78-81). Essa qualidade estética poderia representar uma recepção mais difícil para os alunos em relação à recepção de Karaíba, uma história Pré-Brasil, mesmo que, na narrativa de Munduruku, haja também presença de comparações subjetivas. Daí a necessidade de promover, no aluno, o desenvolvimento das capacidades de análise, criticidade e avaliação da associação de imagens produzidas pelos elementos comparados (Tinoco, 2010, p. 82).

Por um lado, no processo narrativo da tradição oral, os agentes da construção textual, narrador e o leitor, são fundamentais, pois as culturas de tradição oral são construídas por receptores (ouvintes) que são os retransmissores dos saberes e da cultura (Thiél, 2012, p. 40).

Referências

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