• Nenhum resultado encontrado

Pulsão de Morte e Temporalidade

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Pulsão de Morte e Temporalidade"

Copied!
5
0
0

Texto

(1)

Pulsão de Morte e Temporalidade

Marília Amaro da Silveira Modesto Santos

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

Fernando Pessoa.

Se o tempo pode ser definido como aquilo que passa, que se move, a vida enquanto vivida, Menezes (1996) ou como a própria vida, o futuro que vem a ser, o passado que produz o presente, o que a vida ainda não é, porque está sempre sendo o que ainda vai ser, Heidegger (1995), não é este o tempo que vemos no predomínio da pulsão de morte. O tempo na pulsão de morte é aquele que dá a sensação de tempo parado, tempo perdido, tempo congelado, tempo não vivido, tempo encolhido, o tempo onde não há saudades, porque só se pode sentir saudadesde um tempo que passou.

Mas como ficar atenta na clínica a essa pulsão tão silenciosa? Não é fácil escutar o silêncio. Chamou-me a atenção a frase de uma criança de dez anos, pronunciada em uma determinada sessão, enquanto ela desenhava super heróis: “Eu acho muito melhor os

super heróis que têm super velocidade do que os que têm a imortalidade, porque na imortalidade a pessoa pode ficar presa”. Essa frase me fez pensar na questão do

movimento psíquico e do tempo subjetivo: o quanto o sujeito fica preso e paralisado em um tempo próprio, num estado de imortalidade emocional em meio à vida orgânica, num descompasso entre o tempo cronológico e o tempo subjetivo. Pensei então, que podia ser através desse prisma, que se refere ao “não tempo”, que eu podia escutar a pulsão de morte na clínica.

Faimberg (2001) afirma que nas situações de pânico o tempo do sujeito desaparece, o sujeito fica aprisionado em um “para sempre”.

Pensando na sensação de imortalidade e paralisia do tempo subjetivo como consequência da compulsão à repetição, enquanto sintoma da pulsão de morte, eu associei essa relação ao caso do senhor A, do qual farei um breve relato.

Ele chegou contando os seus sonhos. Eram sonhos recorrentes, que me vinham por meio de um discurso recorrente, onde ele se encontrava em um cenário celestial sentado em uma grande mesa fazendo uma refeição com pessoas que já haviam morrido. Quando o Sr. A. terminava de contar o sonho me perguntava: Será que eu vou morrer?

(2)

Tratava-se de um senhor de 65 anos, aposentado, que procurou análise por se sentir muito deprimido. É originário de uma família de imigrantes japoneses com cinco filhos, que se estabeleceram em uma pequena cidade do interior. Eles passaram por sérias dificuldades financeiras. Seu pai era fotógrafo e sua mãe dona de casa. Um dos irmãos, um pouco mais novo do que ele, morreu ainda criança. Quando moço, o senhor A migrou para uma cidade grande, trabalhou, fez faculdade, conseguiu um bom emprego, casou e teve três filhos, podendo dar a eles uma vida confortável.

Quando chegou à análise, ele estava às vésperas de uma operação nos olhos devido a um glaucoma. Disse que enxergava muito pouco e que a operação poderia melhorar a sua visão, estacioná-la ou deixá-lo cego. Embora não corresse risco de vida, dizia que estava com muito medo não só de ficar cego, mas também de morrer.

Eu me perguntei o que seriam esses sonhos. Eu não “enxergava” neles uma repetição que tivesse a função de elaboração (Freud, 1920) e nem mesmo a realização de um desejo, mas talvez a expressão de um estado emocional que antecede o recalcamento, da ordem do irrepresentável. Eles vinham prontos, dissociados de sentimentos, marcavam uma desilusão e um desligamento com a realidade presente. O que eu escutava era um “discurso morto”. Sentia que o Sr. A. se preocupava mais em ser um bom menino para mim do que associar livremente. Era comum ele me perguntar desde as primeiras sessões o que eu achava dele. Eu escutava uma pequena criança me perguntando: Eu sou um bom menino? Você gosta de mim? Ele se queixava da velhice, da vida não vivida, do medo da morte.

Ele dizia sentir que o tempo da vida, assim como o tempo da sessão, eram muito curtos, mas, paradoxalmente, ele não aproveitava nem o tempo da sua vida cotidiana – pois não saía com os seus filhos, com a sua esposa, ou com amigos, por mais que eles o convidassem –, nem aproveitava as sessões comigo, relaxando e se permitindo ter associações livres, genuínas, espontâneas ou mesmo mantendo um diálogo comigo. Ele não escutava as minhas intervenções, continuava com o seu “discurso morto”, repetitivo e monótono, como se eu nem estivesse lá. Ele contava que o seu desejo era voltar no tempo e fazer tudo diferente. Culpava a pobreza da infância, a morte do irmão, a velhice, pela sua infelicidade Eu ouvia uma narrativa de alguém preso em um calabouço sem possibilidade de saída. A sua visão piorava cada vez mais, mas ele se recusava a recorrer a treinos para cegos ou portadores de visão deficiente, o que melhoraria muito a sua qualidade de vida. Ao invés disso, ele ficava “sonhando” com métodos mágicos que iria fazê-lo enxergar bem, assim como com uma juventude eterna. Foram essas repetições

(3)

que ele proferia a respeito da rápida passagem do tempo, do sentimento de que a vida é curta, ao mesmo tempo em que não a aproveitava que me fez pensar no artigo do Kernberg, (2010) intitulado A destruição do tempo no narcisismo patológico quando ele relata: ... O uso inconsciente da destruição do tempo pode ser usado como triunfo sobre o

analista, enquanto expressão da fantasia de vida eterna (p.86). Kernberg nos chama a

atenção também para o fato que no momento em que o sujeito está passando por uma situação de pânico o tempo parece infindável; e, mais tarde, quando o tempo da situação traumática já passou, e o sujeito se vê preso nesta situação, a sensação do tempo se inverte; o que um dia foi infindável torna-se curto, quase estático, “estacionado”... Daí para frente a sensação é de que nada mais acontece, então o tempo passa rápido, porque não deu tempo de fazer mais nada: o tempo subjetivo parou no passado, o cronológico continuou andando. E é esse descompasso que dá a sensação de que o tempo passa muito rápido, pois não há mais um passado que produz um presente, nem um futuro que vem a ser, Heidegger (1995), e sim, um passado que é sentido como o próprio presente e um futuro que espelha o passado. É a desesperança.

No entanto, com o passar dos nossos encontros, fomos percebendo o quanto a vida dura e pobre da infância, a morte do irmão e o fato de ser estrangeiro que o fez sofrer bullying, o tinha traumatizado. Toda essa infância foi vivida por ele como um tempo extenso e intolerável, e o que veio depois disso foi a negação da passagem do tempo. Apesar de hoje o Sr. A. ter uma vida completamente diferente da vida da sua infância, é como se para ele o tempo tivesse parado, morrido, então, pensei que era com esse tempo morto que ele conversava em seus sonhos na grande mesa de refeição, no cenário celestial. Kernberg (2010) cita A.Greem (2007) quando aponta para a função da compulsão à repetição quando ela é usada como um modo de “matar o tempo” como expressão da pulsão de morte nas personalidades narcísicas.

Aos poucos a maneira de o Sr. A. estar comigo começou a mudar, e o sono e a morbidade que eu sentia no encontro com ele foram diminuindo, talvez, porque ele já pudesse estar me incluindo na sessão.Lembrei-me da citação de Green em seu artigo Pulsão de morte,

narcisismo negativo e função desobjetalizante (1988) quando ele realça a ligação e o

desligamento como os principais mecanismos da pulsão de vida e da pulsão de morte descritos por Freud e continua: ... A meta da pulsão de morte é de realizar ao máximo a

função desobjetalizante através do desligamento... Enquanto a meta da pulsão de vida é garantir uma função objetalizante... (p. 64-65.) Portanto, pensei que o sono que eu sentia,

(4)

desligamento. Conjeturei que, quando não é possível ligar o excesso da experiência traumática, a ligação com o objeto também fica prejudicada, predominando aí o narcisismo, “o si com o si mesmo”. Se a pulsão de vida é objetalizante, o objeto tem que estar lá para ela existir. E como explicou Green nesse mesmo texto, o objeto não cria a pulsão, mas é criado em parte por ela... É através desta existência que ele mesmo será

criado ainda que já estando lá... E ele lembra a ideia de Winnicott do encontrar-criar... (p. 64).

Uma vez, conversando sobre a pouca visão que ele tinha, descobrimos que o que mais o atormentava, não era enxergar tão pouco, mas ter se sentido tão pouco “enxergado”.

Pensando na história do senhor A, podemos supor a dificuldade de encontrar o objeto em meio a tantas perdas que se impuseram a ele, como a perda da terra de origem, a perda de um filho. E voltando a lembrar de Winnicott, aquilo que não faz sentido para o sujeito se mantém dissociado (1975) e acredito que o que é excesso para o sujeito está longe de fazer sentido.

Talvez, os nossos encontros tenham sido uma segunda chance. Hoje, quando o senhor A senta-se na poltrona da sala de análise, diz: Não sonhei nada. Eu penso: agora sim, ele vai poder começar a sonhar, e respondo a ele que podemos sonhar juntos, ali, na sessão. E ele contou que sonhou com namoros com moças muito mais jovens do que ele, e algumas vezes, que perdeu o trem em uma determinada estação. Um dia, ele chegou muito triste à sessão e lembrou-se de um filme onde um menino ficou preso nos próprios sonhos. Tratava-se de uma empresa que cobrava caro para dar às pessoas a oportunidade de passarem a vida sonhando com aquilo que mais queriam. Assim, o menino, seduzido por essa proposta tão tentadora, ficou congelado em seu sonho e, quando percebeu que nada mais aconteceria, ele quis sair desesperadamente do sonho e não conseguia apesar de muito lutar.

Percebi que o senhor A. começou a ficar deprimido. Ele estava se dando conta do tempo perdido, de um trem que não volta mais...

Em certa sessão, ele “sonhou” com a lembrança de uma música e me disse que foi a música que mais o emocionou até hoje: You rase me up e completou: essa é uma música

que me tira da depressão.

Pensei que, talvez agora, estejamos sincronizados em uma mesma canção proveniente de um contato vivo, onde um futuro possa ser vislumbrado, num campo de esperança, na vida real, como ela é, e não mais no campo celestial, fantástico, idealizado.

(5)

“Eu acho muito melhor os super heróis que têm super velocidade do que os que têm a

imortalidade, porque na imortalidade a pessoa pode ficar presa”.

Estamos juntos há um ano. Ainda temos tempo...

Referências

Faimberg, H. (2001). Transmissão da Vida Psíquica entre gerações, São Paulo, Casa do Psicólogo.

Freud, S. (1917 – 1920). Obras Completas. V. XIV, Além do Princípio de Prazer, Companhia das Letras, São Paulo.

Gay, P. (1988). Uma Vida Para o Nosso Tempo, São Paulo, Companhia das Letras. Heidegger, M. (1995). Ser e Tempo, Petrópolis, Vozes.

Katz, C. S.; Pelrbart, P. P.; Gondar Jr.; Menezes, P.; Arab, V.; Novello, M. (1996).

Temporalidade e Psicanálise, Petrópolis, Vozes,

Kernberg, O. F. (2010.) Livro Anual de Psicanálise tomo XXIV, São Paulo, Editora Escuta, Ltda.

Yorke, Rechardt, Segal, Widlöcher, Ikonen, Laplanche, Gree,(1988), A Pulsão de Morte, São Paulo, Escuta.

Winnicott, D.W. (1975). O Brincar e a Realidade, Rio de Janeiro, Imago. Pessoa, F.(1986). Obra Poética, Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar S. A.

Referências

Documentos relacionados

Nas medições do nível sonoro do ruído de fundo em período seco nas grutas de Santo António obtiveram-se resultados que demonstram o quão silenciosos são estes espaços

c) Se o juiz não tiver providenciado pela marcação mediante acordo prévio com os mandatários judiciais, nos termos do artigo 155.º, e faltar algum dos advogados; Muito embora

Outros problemas observados foram o do espaço físico das empresas serem muito restritos ao número de funcionários, a iluminação não atender às normas, o ruído em certas

Quando duas soluções de diferentes concentrações (como é o caso do LIC e do LEC) são separadas por uma membrana permeável à água, mas não aos solutos (portanto uma membrana

O presente trabalho tem por objetivo apresentar a microestrutura tridimensional de porção de amostras do aço inoxidável duplex UNS S31803, obtida através da

Este pequeno texto buscou trazer à tona discussões sobre os indígenas no Brasil atual. Vimos em Freire um enorme respeito a todos os povos e vários de seus livros

Assim sendo, na prática clínica, o diagnóstico de pancreatite deve ser feito através dos sinais clínicos e exame físico completo do paciente em conjunto com os

enzimático comercial Pectinex® Mash imobilizada em suporte gelatina- alginato...123 Tabela 12 - Matriz do Planejamento fatorial 2 3 (valores reais e codificados)