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DOSSIÊ CLrnCIZAÇÃO

CORE Metadata, citation and similar papers at core.ac.uk

(2)

SOBRE SENTIDOS E FORMAS DO

"DATIVO" NO PORTUGUÊS

Rosane de Andrade Berlinde*

Introdução

O

estatuto dos complementos verbais derivados, no português, do dativo atino não constitui ainda uma questão definitivamente resolvida nas descrições da língua. Para ilustrar essa controvérsia, basta considerarmos, por exemplo, a posição de Cunha e Cintra (1985), que incluem esses c o m -plementos e m u m conjunto mais amplo de com-plementos preposicionados sob o rótulo geral de "objeto indireto" e aquela de Mateus et al. (1983), que prefere distinguir o s complementos "dativos" dos demais complementos ligados indi-retamente ao verbo, c o m base e m suas características semânticas e formais particulares.

U m a classificação diferente aparece e m Perini ( 1989; 1995). Sua proposta de categorização das f u n ç õ e s sintáticas identifica quatro funções relevantes

("aquelas que são exigidas ou então recusadas por algum verbo") no âmbito

da transitividade: objeto direto, complemento de predicado, predicativo e

ad-junto circunstancial. O c o m p l e m e n t o "dativo" é incluído no grupo dos

"adjun-* Universidade Estadual Paulista - Araraquara.

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B E R L I N C K , R. D a t i v o ou locativo?..,

tos circunstanciais". D a s quatro funções mencionadas, essa talvez seja a mais problemática, pois inclui, ainda, outros complementos preposicionados ( c o m o

de Maria e m "Mané apanhou de Maria") e também advérbios (como muito e m

"Juracy bebe muito ").

E m todos e s s e s casos, o complemento "dativo" é visto c o m o um dos termos essenciais da oração ou aquele que realiza uma das funções sintáticas centrais na sentença ou ainda c o m o uma das funções relevantes do ponto de vista da transitividade. Essa não é, porém, uma opinião unânime.

Dillinger (1991), partindo da proposta de Perini (1989), questiona a pertinência de se definir o objeto indireto c o m o uma função sintática indepen-dente no português. Ele afirma que semánticamente o objeto indireto é interpre-tado c o m o uma "localização", uma "orientação" ou uma "direção no espaço". N o entanto, esse significado não está na relação estrutural; ele é definido pelas preposições que introduzem o complemento, assim c o m o são as preposições que definem o valor semântico de SPs c o m função adverbial. D e s s e modo, não haveria c o m o justificar uma categoria "objeto indireto" independente da cate-goria "adjunto adverbial". E conclui: "Se a relação estrutural f o s s e portadora de significado independentemente das preposições, seria possível identificar al-gum elemento de significado c o m u m a todos os casos da relação e que não estaria presente quando as preposições f o s s e m usadas no contexto de outras relações estruturais", o que não ocorre, segundo ele.

Tendo essas idéias c o m o pano de fundo, nossa proposta é discutir o estatuto do "objeto indireto" ou do "complemento dativo" e m português, a partir de uma reflexão sobre alguns dados da história da expressão desse c o m -plemento.

O dativo latino

N e s s a discussão, uma volta à fonte do "dativo" português - a língua latina - pode ser bastante reveladora. N e s s e retorno, duas questões vão-nos ocupar: primeiramente, quais o s sentidos veiculados pelo caso "dativo" e m latim. Em seguida, c o m o se deu a mudança na forma da expressão dos comple-mentos que eram originariamente marcados pelo "dativo". Basearemos essa discussão inicial e m Van Hoecke (1996).

Segundo Van Hoecke (1996, p. 6), a escolha do termo "dativo" (de dare) revela que para os gramáticos latinos o caso designado significava "atribuição",

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o u casus dandi. Ou seja, o dativo indicaria "a p e s s o a para q u e m a l g o é dado, dito, enviado, trazido".

N o entanto, o autor t a m b é m chama a atenção para o fato de que e s s e c a s o era empregado e m u m grande número de construções que não v e i c u l a v a m propriamente e s s e significado. E s s e s outros sentidos incluíam as n o ç õ e s de "remoção", de "interesse", de "aproximação" e de "finalidade", c o m o ilustram, respectivamente, as sentenças e m ( l a - d ) , emprestadas de Van H o e c k e ( 1 9 9 6 , p.6-12):

(1) a. Caesar scutum militi detraxit

César-NOM e s c u d o - A C soldado-DAT tirou

"César tirou d o soldado o escudo" (Caesar, De Bello Gallico, 2 , 2 5 )

b. Fortuna favet fortibus

Sorte-NOM favorece bravos-DAT "A sorte f a v o r e c e o s bravos"

(provérbio, cf. Lavency 1985b, p. 161)

c. Puer adnatat delphino

Criança-NOM aproximou nadando golfinho-DAT "A criança nadou para o g o l f i n h o (até o g o l f i n h o ) " (Plinius, Epistulae, 9 - 3 3 )

d. Facundiam tuendis civibus exercebat.

eloqüência-AC proteger-DAT GER compatriotas-DAT praticava

"Ele praticava a e l o q ü ê n c i a para proteger seus compatriotas" (Tacitus, Annales, 15-48)

E s s a heterogeneidade semântica, nos diz o autor, é aparente, p o i s é pos-s í v e l identificar u m pos-sentido m a i pos-s geral pos-subjacente a e pos-s pos-s a pos-s realizaçõepos-s particula-res. Van H o e c k e designa e s s e sentido de "pólo de orientação". A idéia é d e que o c o m p l e m e n t o marcado p e l o c a s o dativo representa o p ó l o e m direção ao qual o p r o c e s s o e x p r e s s o na sentença é dirigido.

E s s e sentido geral englobaria até m e s m o construções sintaticamente diferenciadas c o m o o s dativos possessivus, sympathetica, auctoris, iundicantis e ethicus, e m que o c o m p l e m e n t o marcado p e l o dativo não representa u m

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mentó do verbo, c o m o ilustram, respectivamente, o s e x e m p l o s e m (2a-d), de Van Hoecke (1996, p. 13-17).

(2) a. Amplissimae tibi divitiae sunt. muito grandes-NOM te-DAT riquezas-NOM s ã o

"Muito grandes riquezas te estão à disposição"

(Cicero, In: M. Antonium orationes Philippicae, 1 0 , 4 )

b. Iam tibi istam scelestam linguam abscindam. Agora t e - D A T e s s a criminosa tíngua-AC cortar fora

"Agora te v o u cortar fora essa língua criminosa" (Plautus, Amphitruo, p. 5 5 6 )

c. Faciendum est mihi illud...quod illaec postulat. Fazer-NOM GER ser-3SG me-DAT que... o qual ela-NOM p e d e "Aquilo que ela p e d e d e v e ser feito por m i m "

(Plautus, Amphitruo, p. 8 9 1 )

d. Quintia formosa est multis. Quintia-NOM formosa-NOM é muitos-DAT "Para muitos Quintia é formosa"

(Catullus, 8 6 , 1 )

e. Alter tibi descendit de Palatio. 0 outro-NOM te-DAT d e s c e u d e Palatino-ABL (Cicero, Pro Sexto Roscio Amerino, p. 133)

Os e x e m p l o s apresentados e m (1) e (2) ilustram a expressão m o r f o l ó g i c a do "dativo" latino. S a b e m o s que e s s e recurso se perde aos p o u c o s na língua falada, e m associação c o m u m processo f o n é t i c o de redução de s e g m e n t o s fi-n a i s de p a l a v r a s (Tarallo, 1 9 9 0 ) e q u e i s s o e s t á fi-na b a s e da e x p a fi-n s ã o e gramaticalização d o u s o das preposições nas línguas románicas. A c o m p e t i ç ã o entre o c a s o m o r f o l ó g i c o e as preposições, porém, j á existe e m germe no pró-prio latim clássico. C o n s i d e r e m o s o u s o do verbo adducere ("conduzir") (3 a-c):1

1 Os exemplos em (3) são de Van Hoecke (1996, p. 20).

(6)

(3) a. Hominem alicui adducere. P e s s o a - A C a l g u é m - D A T conduzir

"Conduzir uma p e s s o a a alguém" (Plautus, Mostellaria, p. 8 0 4 )

b. Adducere exercitum ad urbem. Conduzir exército-AC à c i d a d e - A C "Conduzir o exército à cidade"

(Cicero, In M. Antonium orationes Philippicae, 5 , 2 2 )

c. Adducere exercitum in fines. Conduzir exército-AC n o território-AC "Conduzir o exército para dentro d o território" (Caesar, De Bello Gallico, 5 , 4 6 , 3 )

O b s e r v a m o s e m (3) u m a distribuição complementar entre o u s o d o c a s o m o r f o l ó g i c o e as preposições: o primeiro s e restringe ao c o m p l e m e n t o que se r e f e r e a pessoa; a preposição, por sua v e z , é usada para indicar um lugar, c o m u m a variação entre A D e IN, s e g u n d o se quisesse indicar "destino, deslocamen-t o e m direção a a l g u m lugar, o u adeslocamen-té suas proximidades" (3b) ou se se jundeslocamen-tasse a e s s e s i g n i f i c a d o o de interioridade (3c). A presença d e s s a alternância j á e m t e x t o s c l á s s i c o s é reveladora. O uso de preposições c o m c o m p l e m e n t o s que n o r m a l m e n t e seriam marcados p e l o ablativo refletia u m a prática que deveria j á estar bastante avançada na fala.

U m outro fato observado na língua falada revela a extensão j á alcançada p e l a mudança na expressão d o Dativo: a tendência a substituir o c a s o dativo por u m a construção preposicionada c o m A D , mesmo quando os nomes se referiam

a uma pessoa ou a um nome abstrato sem conotação locativa (Van Hoecke, 1996,

p. 2 1 ) , c o m o v e m o s e m (4a-b).

(4) a. Hunc ad carnificem dabo E s s e - A C a o carrasco-AC entregarei "Entregarei e s s e h o m e m ao carrasco" (Plautus, Captivi, p. 1019)

b. Ad hostes exuvias dabit A o s inimigos-AC as peles-AC deixarei "Deixarei as p e l e s para o s i n i m i g o s "

(Plautus, Epidicus, p. 3 8 )

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Temos ainda que considerar o u s o preferencial da construção c o m A D junto ao verbo scribere, na fase clássica da língua, embora o dativo ainda fosse possível, c o m o assinala Van H o e c k e ( 1 9 9 6 , p. 21):

(5) a. Scribit Labieno veniat.

Escreve Labieno-DAT vir-3SG SUBJ "Ele escreve a Labieno para que venha" (Caesar, De Bello Galileo, 5 , 4 6 , 4 )

b. Scribes ad me.

Escrever-2SG FUT amim-AC "Escreverás para m i m "

(Cicero, Epistulae adAtticum, 5,4,2)

Finalmente, para a expressão da "origem", o latim usava uma construção preposicionada geralmente seguida de ablativo (6). E s s a possibilidade acaba se estendendo à expressão d o sentido de "remoção", que, antes marcado pelo dativo (7), passa a se realizar c o m o e m (8):

(6) A Caesare redire.

D e César-ABL voltar. "Voltar de César"

(7) Caesarscutum militi detraxit.

César escudo-AC soldado-DAT tirou

(8) Caesar scutum a milite detraxit.

César escudo-AC ao soldado tirou "César tirou d o soldado o escudo"

P o d e m o s concluir, a partir dos p r o c e s s o s de variação na expressão do valor "dativo" e m latim descritos acima, que h o u v e d e s d e c e d o uma interferên-cia entre os campos nocionais de dativo e de espaço. Essa interpenetração se explica e se justifica se assumirmos, juntamente c o m Van H o e c k e ( 1996), que o sentido geral do dativo era de um "pólo de orientação d o p r o c e s s o descrito". V e m o s que entendido d e s s e m o d o , o dativo se aproxima muito de um locativo-direcional. A s s i m , a escolha da preposição AD para marcar o dativo, num mo-mento e m que o sistema casual c o m e ç a a enfraquecer, é perfeitamente compre-ensível e previsível.

(8)

O Dativo no português

A t é que ponto o quadro descrito para o latim permaneceu e m português? Seria possível e pertinente falarmos e m uma categoria "Dativo" nessa língua? O u seja, podemos identificar para os complementos verbais que eram marcados p e l o caso "dativo" e m latim u m sentido geral que justifique definir o "Dativo" c o m o uma relação estrutural distinta das demais no português, ao contrário do q u e defende Dillinger (1991)?

Para discutir essas questões propomos considerar a variação e a mudan-ç a no uso da preposimudan-ção e m complementos c o m uma interpretamudan-ção de "meta" no português brasileiro, do século X I X até hoje.

A preposição de complementos com valor "meta" no PB

Vamos encontrar o valor "meta" e m português tanto e m complementos oblíquos c o m valor locativo-direcional, quanto e m alguns daqueles que estamos chamando de dativos. A análise da realização dessa noção semântica mostra-se, portanto, particularmente interessante para a discussão do sentido veiculado p e l o s "dativos" e dos limites que existem (se realmente existem) entre as noções "Dativo" e "Locativo" e m português.

A análise de dados oriundos de anúncios de jornais paulistas2 e de peças

teatrais do século X I X revela que a "meta" podia ser marcada variavelmente por diversas preposições naquele momento. Os e x e m p l o s e m (9-11) ilustram essas alternâncias:

(9) a. Quem quizer comprar um armazém de molhados, dirija-se NA RUA DO ROZÁRIO Casa n. 33, onde achara c o m quem tractar o negócio.

b. Pede a quem souber onde ella existe, dirija-se À RUA DO ROSÁRIO na casa n. 29, que sendo viridica a noticia receberá boas alviçaras.

(Farol Paulistano, 1829)

(10) a. Meus senhores, só vejo um m o d o de conciliar esta contenda, que é darem o s senhores este leitão de presente A ALGUMA PESSOA.

(O Juiz de Paz na Roça, M. Pena, 1833)

2 Os anúncios que serviram de fonte para esses dados fazem parte do primeiro

(9)

B E R L I N C K , R. D a t i v o ou locativo?..,

b. A quem o apprehender e entregar NA FAZENDA DO ABAIXO ASSINADO

dar-se-ha 400S000. (O Correio Paulistano, 27/7/1879)

( 1 1 ) " - Sinhozinho! Mimoso! Diga A MAMÃE que eu estou aqui... - P R A M A M Ã E eu digo; mas PRA TITIA não digo, não!"

(A Viúva Pitorra, S. Lopes, 1896)

Três tipos de predicadores, diferentes em sua natureza semântica, se destacam nesses exemplos. Vamos chamá-los, respectivamente, de verbos de

movimento (9), verbos de transferência material ( 10) e verbos de transferência verbal/perceptual (11) (cf. Berlinck, 1996a). Nossa análise mostra que as

prepo-sições introdutoras de complementos não variam do m e s m o modo segundo tenhamos um ou outro verbo.

A figura 1 traz os resultados obtidos para os verbos de movimento.3 D o i s

fatos chamam imediatamente a atenção: primeiramente a presença das três pre-posições, embora em proporções bastante diversas; em segundo lugar, um con-traste bem marcado entre os dados oriundos das comédias e aqueles colhidos nos anúncios de jornais.

P r e p o s i ç õ e s e m S P s " m e t a " c o m v e r b o s d e m o v i m e n t o

F i g u r a 1

volume do corpus do projeto "Para a história do português brasileiro" (Guedes e Berlinck,

2 0 0 0 ) .

3 Apenas os verbos que apresentaram variação na composição de seus complemen-tos forma incluídos na análise. Assim, as ocorrências de entrar, fugir, partir e seguir n ã o foram computadas, já que o primeiro aparece sempre c o m a preposição em e os demais só o c o r r e m c o m para.

(10)

Uma volta aos dados revelou que essa disparidade poderia ser explicada, em parte, pelo fato de que metade dos casos de verbo de movimento encontra-dos nos anúncios corresponde a ocorrências de um único verbo - DIRIGIR-SE.

Este aparece em mais de 80% das vezes c o m a preposição "a", como no exemplo abaixo:

(12) "Acabam de chegar da Allemanha e desejam empregar-se, aqui ou em outra qualquer parte, 2 Padeiros 2 Caixeiros 1 Serrador 7 Minei-ros os quais não duvidam aceitar outro qualquer que lhe ofereça. Quem do seu préstimo quizer utilizar-se DIRIJA-SE AO C O N S U L A D O ,

Rua de S. B e n t o n . 53"

(iCorreio Paulistano, 27/7/1879)

Os demais anúncios em que a referida construção foi observada seguem basicamente o padrão desse em (12), o que nos leva a pensar cm uma estrutura relativamente cristalizada, uma fórmula própria desse tipo de texto.

Também c o m os verbos de transferência material há grande variação entre preposições, c o m o mostra a figura 2. Aqui, porém, cada sub-corpus apre-senta uma distribuição diferente das preposições.

P r e p o s i ç õ e s e m S P s " m e t a " c o m v e r b o s d e t r a n s f e r ê n c i a material

Em contraste c o m essas duas classes, os verbos de transferência

ver-bal/perceptual apresentam um quadro quase isento de variação (figura 3).

(11)

B E R L I N C K , R. Dativo ou locativo?..,

P r e p o s i ç õ e s e m S P s " m e t a " c o m v e r b o s d e t r a n s f e r ê n c i a v e r b a l / p e r c e p t u a l

Pena (1840) Lopes (1895) Anúncios (1880) Figura 3

Que c o n c l u s ã o tirar das diferenças observadas entre o s três tipos de verbos? S e considerarmos que a preposição que o português herdou d o latim para a expressão d o dativo foi o "a", o uso d e s s a preposição f a c e a outras alternativas indica uma e s c o l h a mais conservadora, c a s o verificado c o m o s ver-bos de transferência verbal/perceptual. Por outro lado, a o p ç ã o por "para", especialmente, denotaria uma tendência inovadora.

A distribuição variável de p r e p o s i ç õ e s e, principalmente, a presença sig-nificativa das p r e p o s i ç õ e s "para" e "em", constatadas junto aos v e r b o s de

movimento e aos verbos dc transferência material desde o s textos do início do

século X I X revela um c a m i n h o de mudança bastante definido. E s s e s verbos denotam, e m sua s i g n i f i c a ç ã o básica, um m o v i m e n t o concreto, f í s i c o . Já o s ver-bos de transferência verbal/perceptual se referem a um m o v i m e n t o metafórico, abstrato. O que e s t a m o s observando então é o m e s m o tipo de percurso obser-vado e m latim: um marcador originalmente usado para indicar um d e s l o c a m e n t o concreto tem seu u s o expandido, atingindo c o n t e x t o s e m que passa a denotar um "deslocamento abstrato".

U m indício d e s s a expansão nos dados do s é c u l o X I X está nas ocorrên-cias de "para" c o m verbos de transferência verbal/perceptual nas c o m é d i a s de S i m õ e s Lopes, que datam do fim do s é c u l o X I X . S e levarmos e m conta que, no PB moderno, "para" é a preposição predominante na expressão da "Meta" c o m e s s e s verbos (cf. Berlinck, 1997, 1998), o s dados de L o p e s estariam indicando um p r o c e s s o talvez e m estágio inicial na fala. N e s s e sentido, é interessante observar que e s s a s ocorrências se dão pela v o z de uma criança, contrastando claramente c o m a fala do adulto, c o m o se v ê abaixo:

(12)

( 1 3 ) - Sinhozinho! M i m o s o ! D i g a a m a m ã e que e u estou aqui... - PRA MAMÃE eu digo; m a s PRA TITIA n ã o d i g o , não!

(A Viúva Pitorra, S. L o p e s , 1 8 9 6 )

Para refinar e s s a primeira constatação, analisamos o s dados s e g u n d o o caráter [±concreto] do m o v i m e n t o significado. E s s a interpretação d e p e n d e n ã o apenas do tipo de verbo presente, mas, p e l o m e n o s , t a m b é m da natureza do N . S e a presença da preposição "a" seguiu, de fato, o m e s m o percurso de e x p a n s ã o d e u s o e significados o b s e r v a d o na história das p r e p o s i ç õ e s (do mais concreto para o abstrato), d e v e r í a m o s esperar que ela e s t i v e s s e relativamente mais pre-s e n t e napre-s conpre-struçõepre-s e m que o m o v i m e n t o pre-s i g n i f i c a d o f o pre-s pre-s e [-concreto], meta-f ó r i c o , e vice-versa. E s s a hipótese, emeta-fetivamente, meta-f o i c o m p r o v a d a p e l o s dados.

C o m verbos de transferência verbal/perceptual a n o ç ã o d e m o v i m e n t o é s e m p r e metafórica. O predomínio da preposição "a" n e s s e c a s o p o d e então ser v i s t o c o m o u m a decorrência da natureza do m o v i m e n t o s i g n i f i c a d o , e m c o n s o -n â -n c i a c o m a hipótese exami-nada.

O s resultados obtidos para as d e m a i s c l a s s e s de verbos vieram reforçar e s s e primeiro: s ó foi registrada variação entre as p r e p o s i ç õ e s quando o m o v i -m e n t o s i g n i f i c a d o era concreto, f í s i c o (14); quando se tratava de u-m -m o v i -m e n t o abstrato, metafórico, apenas a p r e p o s i ç ã o "a" apareceu (15).

( 1 4 ) a. (...) c h e g a n d o À LOJA não esqueça, não v á m e deixar e m falta;

(A Viúva Pitorra, S. L o p e s , 1 8 9 6 )

b. V i m para aqui c o n v i c t a d e que vinha PARA A CASA DELE, n o s s a casa.

(Por causa das bichas, S. L o p e s , 1 8 9 6 )

c. A m a m ã e foi NA MODISTA. A titia j á v e m .

(A Viúva Pitorra, S. L o p e s , 1 8 9 6 )

( 1 5 ) a. D e s g r a ç a d a m e n t e ainda não p a g a m o s s u f i c i e n t e tributo AOS PRE-CONCEITOS DA SOCIEDADE! ( N o s s o s Filhos, S. L o p e s , 1 8 9 6 )

b. A s s i m não estranhará quando chegar À IDADE DE ENTRAR NO CON-VENTO; será frade feliz. {O Noviço, M . Pena, 1 8 3 3 )

Para representar a e x t e n s ã o d e s s e contraste, a figura 4 apresenta e m c o n j u n t o os resultados da análise d e verbos de transferência material, s e g u n -d o e s s a o p o s i ç ã o .

(13)

B E R L I N C K , R. Dativo ou locativo?.., V a r i a ç ã o d e p r e p o s i ç õ e s s e g u n d o o c a r á t e r [ + - c o n c r e t o ] d o m o v i m e n t o • A UPARA SEM [+concreto] [-concreto] Figura 4

A análise d o s dados oitocentistas revela ainda outros pontos de contato c o m os processos descritos para o latim na seção "O dativo latino". A o avaliar-m o s uavaliar-ma possível correlação entre o caráter [± aniavaliar-mado] do N que c o avaliar-m p õ e o c o m p l e m e n t o e a variação da preposição que o encabeça, o b s e r v a m o s o s e g u i n -te quadro: por um lado, u m a for-te associação entre o traço [humano] e a prepo-sição "a "; por outro, uma grande variação de p r e p o s i ç õ e s quando o N era [não-animado].4

O quadro abaixo sintetiza os resultados obtidos na análise dos d a d o s d o século X I X . movimento [- concreto] movimento [+ concret] N humano N não-animado N humano N não-animado preposição A preposições A. PARA ou EM

O estudo revelou, confirmando a hipótese inicial, que o e s p a ç o da variação está circunscrito aos contextos e m que o m o v i m e n t o s i g n i f i c a d o é [+ c o n -creto], N e s s e s e g m e n t o , porém, as variantes não se alternam indistintamente. Embora p o s s a m - s e combinar tanto c o m N s humanos c o m o não-animados, ob-s e r v o u - ob-s e uma tendência à aob-sob-sociar a prepoob-sição "a" ao traço [humano], reob-ser-

reser-4 Aplicada aos complementos das três classes de verbos, a propriedade só se mostrou pertinente para os complementos de verbos de transferência material. Com os verbos de movimento, cerca de 95% dos Ns que compõem o complemento são fnão-anima-do]. Já com os verbos de transferência verbal/ perceptual, em 90% dos casos, o N é [humano], Uma tal polarização revela que as distinções não são relevantes para a variação que está sendo analisada.

(14)

v a n d o as outras duas para a expressão do traço [não-animado]. Estaríamos, e n t ã o , diante d e u m a tendência a distribuir c o m p l e m e n t a r m e n t e as variantes.

O b s e r v e m o s o s seguintes dados:

( 1 6 ) "quem o aprehender e entregar A SEU SENHOR, OU AOS SENHORES LENGRUBER METTRAN & COMPANHIA à rua d e S ã o Pedro número 1, no R i o de Janeiro, será gratificado c o m 2 0 0 $ 0 0 0 , e EM QUALQUER CADEIA o u dando s i g n a e s certos, c o m ÍOOSOOO"

(Correio Paulistano, 12/11/1879)

( 1 7 ) "Aqui está o recruta; queira levar PARA A CIDADE. D e i x e - o no quartel d o C a m p o de Santana e v á levar esta parte AO GENERAL."

(Juiz de Paz na Roça, M. Pena, 1 8 3 3 )

É p o s s í v e l identificar u m a e s p e c i a l i z a ç ã o da n o ç ã o de meta, e m três n u a n c e s associadas, preferencialmente, c o m u m a p r e p o s i ç ã o distinta:

meta-beneficiário > A S N meta-localização > E M S N m e t a - d e s t i n o = = = = > P A R A S N

C o m a c r e s c e n t e d i m i n u i ç ã o no u s o d o "a", constatada n o s e s t u d o s relativos ao PB moderno (cf. Pontes, 1992; Mollica, 1996; Malvar, 1996; Berlinck,

1 9 9 6 b , 1 9 9 7 , 1 9 9 8 ) , a situação d e variação d e v e ter s e r e s o l v i d o c o m a manu-t e n ç ã o d e "em" para indicar a memanu-ta-localização (e desmanu-tino) e o u s o cada v e z m a i s s i g n i f i c a t i v o d e "para", marcando a meta-beneficiário, c o m o ilustram o s d a d o s e m ( 1 8 ) e (19).

( 1 8 ) a. "A BBC l e v o u u m número muito grande de p e s s o a s NA PRAÇA" (locutor de rádio, 1 3 / 1 0 / 9 9 ) b. Por q u e que o j o v e m não p o d e trazer NO MOVIMENTO ESPÍRITA a

sexualidade d e l e ?

( h o m e m , 3 5 anos, nível superior, 1 9 8 7 )

c. " D e p o i s d e u m p a s s e i o aqui a g e n t e c o m e ç a a da(r) importân-c i a NA PRESERVAÇÃO DA NATUREZA"

( h o m e m , 3 0 anos, nível superior, 1 9 9 9 )

(15)

B E R L I N C K , R. Dativo ou locativo?..,

( 19) a. "A M ô n i c a está tão triste desde que o coelhinho dela sumiu ! Já sei!

Podemos levar bombons ou flores PRA ELA!"

(Cebolinha, 6 anos, historia e m quadrinhos infantil)

b. "porque nós demos uma imagem de santo PRO MEU PAI" (mulher, 25 anos, universitária, 1987)

Para a expressão do movimento [- concreto], porém, a preposição "a" ainda constitui uma opção possível, c o m o v e m o s e m (20).

(20) "Tenho de entregar o perdão AO POVO."

(agricultor de Sobral, Ceará, 5 6 anos, 16/4/2000)

Atando as pontas: existe um "Dativo" português?

O que podemos concluir dessa viagem pela expressão do dativo e m latim e em momentos recentes da história do português?

Vimos que a categoria dativo sofreu inúmeras mudanças na forma c o m o é expressa tanto e m latim, c o m o em português e que essas mudanças seguiram os m e s m o s princípios nas duas línguas. Tratou-se de uma passagem de uma marcação morfológica para uma sintática e de variações dentro dessa última estratégia. Esse caminho se fez num sentido bem definido, iniciando e m contex-tos em que o m o v i m e n t o significado é concreto e expandindo-se para aqueles e m que se significa um movimento abstrato.

Outro aspecto interessante nesse processo é o fato de a língua ter, de um modo geral, sempre garantido uma distinção entre N s "pessoa" e N s "não-pessoa", c o m o v e m o s resumidamente no quadro a seguir:5

5 As formas de expressão indicadas não esgotam as possibilidades de expressão do dativo nessas variedades. No latim falado, por exemplo, o uso de AD com pessoa era uma tendência em expansão, o que não eliminava a possibilidade de uso do caso morfológico. Também temos que considerar no português a possibilidade de expressar o dativo anafórico por meio de um pronome clítico, particularmente produtiva com referências de primeira e segunda pessoas até mesmo na variedade moderna.

(16)

Língua Forma de expressão Restrição semântica do N Latim clássico Latim falado PB - século XIX PB - século XX

Caso morfológico Pessoa Sprep com AD Não pessoa

Sprep com AD Pessoa

Sprep com AD/IN Não pessoa

Sprcb com A Pessoa

Sprcb com Para Não-pessoa (destino) Sprcb com EM Não-pessoa (localização) Sprcb com PARA Pessoa

Sprep com EM Não-pessoa (localização/destino)

Apesar das mudanças acentuadas na forma de expressão dessa catego-ria, percebemos, porém, que, c o m poucas exceções,6 os m e s m o s contextos

mar-cados com o caso dativo em latim são marmar-cados c o m suas variantes modernas no português. Podemos identificar nas construções portuguesas o m e s m o sen-tido geral apontado por Van Hoecke para o latim - o de um "pólo de orientação do processo descrito".

A o contrário de Dillinger ( 1991 ), então, podemos pensar em uma catego-ria "dativo" para o português, que, do nosso tempo de vista, estacatego-ria subordina-da a uma categoria mais ampla que também incluiria a categoria "locativo". O fato de o "dativo" se realizar no português atual por meio de SPreps introduzi-dos por preposições que também encabeçam complementos locativo-direcionais se explica, assim, por esse parentesco nocional entre as duas categorias. Foi justamente esse parentesco que, quando do processo de substituição de casos por preposições no latim falado, determinou a adoção de uma preposição locativa

- A D - para marcar o sentido do dativo. Quanto ao termo "objeto indireto", ele

aponta para uma das formas de expressão do dativo (e de outras categorias), e não para sua natureza semântica.

6 Pensamos aqui no dativus auctoris, que indicava um agente da passiva e no dativo de finalidade (v. seção "dativo latino").

(17)

B E R L I N C K , R. Dativo ou locativo?..,

RESUMO

Discute-se a pertinência de propor o dativo como uma categoria distinta em português. Comparando-se a expressão e os sentidos veiculados pelo dativo em latim e no português brasileiro, conclui-se que os mesmos princípios gerais regem seu uso em ambos os momentos, o que reforça a idéia de um dativo português.

Palavras-chave: Dativo, locativo, objeto indireto, caso, diacronia, língua portu-guesa.

ABSTRACT

This text discusses the status of dative in Portuguese. By comparing the expression and the meanings conveyed by it in Latin and in Portuguese, we conclude that the same general principles govern its use in both moments. This reinforces the idea of dative as a distinct category in Portuguese.

Key-words: Dative, indirect object, case, diachrony, Portuguese.

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(18)

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