O NOTÁVEL JURISTA *
Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza Prof. da Faculdade de Direito Milton Campos,
Assessor Jurídico do TJMG Diretor-Adjunto da Escola Nacional da M agistratura
ex-aluno e colaborador de Amílcar de Castro
H onrado, em ocionado e agradecido com o convite que me foi feito pelo ilustre P rofessor José A lfredo de O liveira Baracho, D iretor desta Faculda-de, para falar nesta sessão m agna de celebração do 100° aniversário de nasci-mento do D esem bargador e Professor A m ílcar Augusto de Castro, solenida-de integrante do C entenário da própria Faculdasolenida-de solenida-de D ireito, aqui me apre-sento com o ex-colaborador e sem pre aluno do saudoso M estre, para dizer um a palavra pouca sobre a vida m uita desse m agistrado, professor e hom em . D evo ser breve, a fim de que os presentes possam ouvir C elso Barbi e O ziris R ocha, aos quais, nesta noite im portante, cabe analisar, ainda que tam bém sucintam ente, o processualista e o internacionalista que se m esclam no in-com parável cientista A m ílcar de Castro. M uito ou tudo que vou dizer aqui, já escrevera antes, em jo rn ais e revistas. A prim eira vez que publiquei um artigo sobre A m ílcar de Castro, no jornal “Estado de M inas” , foi em 1972, quando ele com pletava seus 80 anos, em plena atividade científica. N a m anhã m esm a d a publicação, telefonou-m e o M estre e me disse: “M uito obrigado, mas você exagerou...”
* Palavras proferidas em reunião so len e da C ongregação da Faculdade de D ireito da UFMG, em 20.08.1992.
R icardo A rnaldo M a lh eiro s Fiuza
O resum o que agora trago a esta selecionada audiência é m ais um a ho-m enageho-m e destina-se aos registros desta querida C asa de A fonso Pena, tão vetusta em seus cem anos e tão jovem em sua constante atualização.
H á exatam ente cem anos atrás, no dia 20 de agosto de 1892, na tradi-cional B arbacena, n ascia A m flcar A ugusto de C astro, que viria a ser o grande P residente do Tribunal de Ju stiça do E stado de M inas G erais e o em érito Professor da Faculdade de D ireito da U niversidade Federal de M inas G erais. A o falecer, em 25 de ju n h o de 1978, com 85 am bos de idade, A m flcar de C astro já era reconhecido pelos entendidos com o um dos maiores juristas brasileiros de todos os tempos.
Sendo ele um a das m aiores e mais autorizadas figuras nacionais no do-m ínio do D ireito Internacional Privado e do Processo C ivil, citado por todos os grandes autores e possuidor de títulos e honrarias, A m flcar de C astro era, no entanto, um hom em modesto, quase tímido, avesso a hom enagens e inim i-go do vedetism o e da “self-prom otion” . Suas atitudes de retraim ento natural m uitas vezes foram mal com preendidas por aqueles que não o conheciam bem.
M as o nom e do ju iz A m flcar e do m estre A m flcar transpunha frontei-ras sem que ele próprio o quisesse e prom ovesse. O m esm o nom e que, até aquela m anhã fria e triste do últim o dom ingo de ju n h o de 1978, era a única legenda viva a ornar o Salão N obre do Palácio da Justiça, ao lado de Rui, C lóvis, T ito Fulgêncio, Pedro Lessa, Lafayette, Saraiva, O rozim bo N onato, N elson H ungria, M endes Pim entel, Lopes da Costa, H erm enegildo de Barros, A rtur R ibeiro, E dm undo Lins e Rafael M agalhães. O m esm o nom e que em abril de 1978, j á o sabendo doente aqui em Belo H orizonte, eu vira, com or-gulho e em oção, nas relações bibliográficas de fam osas livrarias jurídicas da E spanha e de Portugal, com o a “Ponz”, de M adrid e a “Petrony” de Lisboa.
Aqui e agora, quando se com em ora o seu centenário de nascim ento, contrariando a m odéstia do hom em , louvar-se-á o professor e o m agistrado, cujas lições ainda se fazem e se farão ouvir enquanto se estudar o D ireito e se aplicar a Justiça.
O JUIZ
D epois de form ado pela fam osa Faculdade de D ireito do Largo de São Francisco, de São Paulo, em 1916, Am flcar de C astro retom ou a M inas e m ontou escritório de advocacia em C ristina, onde ficou p or dois anos. Ele própria diria, m ais tarde, em discurso proferido ao se despedir da C om arca de Juiz de Fora: “Tentei advogar na C om arca de C ristina nos anos de 1917 e
1918, mas com o havia estudado com o fito de ser juiz, em abril de 1919 aceitei o cargo de Juiz M unicipal de Caracol” .
De fato, no dia 25 de abril de 1919, em possose no cargo de Juiz M u-nicipal de A ndradas, no sul de M inas, cidade que, àquela época, cham ava-se C aracol, com o a sugerir a espiral ascendente em que se constituiria a bela carreira de A m ílcar de C astro na m agistratura de M inas Gerais.
De 1920 a 1928, foi Juiz M unicipal em Paraisópolis e Jacutinga. D es-ta últim a cidade, seu nom e, pela prim eira vez, iria projees-tar-se no cenário ju rí-dico do E stado. E que lá, em m eio a seus trabalhos forenses de rotina, ele escreveu a tese “Das E xecuções de Sentença no Estado de M inas G erais” , com a qual obteve a M edalha de Ouro da “Fundação Pedro L essa” . Sua vitó-ria, naquele concurso, repercutiu na Capital e o Presidente A ntônio C arlos o nom eou Juiz de D ireito da C om arca de Ipanema, no dia 24 de julho de 1928. C om 35 anos de idade, enfrentou na agitada com arca da Zona do Rio Doce um dos períodos m ais difíceis de sua carreira. Em sua prim eira pauta no Júri, foram julgados nada m enos do que 28 réus.
Em fevereiro de 1931, foi prom ovido para Pitangui, cujas ladeiras his-tóricas assistiram ao funeral de M aria Nazaré, sua esposa dedicada e nunca esquecida. C om ele ficaram os filhos Amílcar, M aria Felicíssim a, Indiana, C ordélia e A ntônio C arlos, aos quais se dedicaria por toda a vida com cari-nho redobrado.
Em 1934, foi prom ovido para Juiz de Fora e, em 1936, aos 43 anos de idade, era alçado, por m erecim ento, ao posto de D esem bargador da então C o rte de A p e la ç ã o do E sta d o de M in as G erais, sem te r p a ssa d o p e la C om arca de B elo H orizonte ou pelo cargo de Juiz Substituto da Segunda Instância.
R eferindo-se à sua própria carreira de magistrado quando prom ovido ao T rib u n a l, ele p ro fe riu as seg u in tes p alav ras, m u ito p ró p ria s p a ra o breviário de um juiz: “Essa, meus amigos, a minha carreira: e, para fazê-la em tão pouco tem po a m inha atuação em linhas gerais foi esta: — sem pre me considerei abaixo dos cargos que exerci, e por isso m esm o sem pre procurei desem penhar os meus deveres, por mais modestos que fossem, com a m áxim a exatidão, para que me pudesse sentir digno das atribuições a m im com etidas. N u n c a m e e n v o lv i em q u e s tõ e s p o lític a s ; e foi se m p re c o m o m a io r desassom bro, com m uita energia, pronta decisão e inteira independência que atuei nos postos que me foram confiados. É tam bém certo que m inha ju stiça nunca foi dem orada; e nunca me perturbou a ilusão de agradar a todos” .
Em 1954, atingiu a V ice-P residência do T ribunal de Ju stiç a e, em 1959, foi eleito pelos seus pares à Presidência do Tribunal de Justiça, institu-indo o saudável rodízio que hoje caracteriza o m andato bienal de presidente
R icardo A rnaldo M alheiros Fiuza
daquela Casa. Em 1962, a com pulsória por im plem ento de idade o atingia em plena capacidade intelectüal.
Em artigo publicado na “Revista da Faculdade de D ireito” (U FM G ), o ilustre professor Celso Barbi diz de seu mestre: “A m ílcar de C astro, com o m agistrado foi completo, porque tinha as qualidades indispensáveis ao bom juiz: honestidade, coragem, dedicação ao trabalho, conhecim ento profundo do Direito, atenção para as questões de fato e senso ju ríd ico para aplicar a nor-m a ao fato” .
Hoje, seus votos continuam a ser citados com o fonte segura de ju ris -prudência e manancial inesgotável de doutrina.
O M ESTRE
Ao lado da notável carreira judicante, desenvolveram -se tam bém suas atividades de mestre. Em 1940, com a tese “Das Execuções de Sentenças E s-trangeiras no Brasil”, A m ílcar de Castro conquistou, por concurso, a cátedra de D ireito Internacional Privado da Faculdade de D ireito da U FM G, cadeira que pertencera a Pádua Rezende, Camilo de Brito, Virgílio de M ello Franco, Raul Soares, Augusto de Lima e Tito Fulgêncio.
Logo após assum ir a cátedra, foi representante da Faculdade, do T ri-bunal e do Governo de M inas no Congresso Jurídico N acional, realizado no Rio de Janeiro, em 1943. Em 1945 e 1946 ocupou, em substituição, a cad ei-ra de D ireito Judiciário Civil. Na qualidade de professor universitário, foi convidado para integrar o quadro internacional de sócios da “A ssociação Ita-liana de Estudiosos do Processo Civil” e do “Instituto H ispano-Luso-A m eri- cano de D ireito Internacional” . Participou de bancas exam inadoras de vários concursos para catedrático em Minas, na Bahia e em São Paulo. Entre seus exam inadores, destacam-se A lfredo Buzaid, J. J. Calm on de Passos, S ebasti-ão de Souza, José O lím pio de Castro Filho, C elso A grícola Barbi e O siris Rocha,
Suas aulas de D ireito Internacional Privado, m inistradas na quinta sé-rie do curso de bacharelado, cada uma valendo por uma conferência, funcio-navam para nós, alunos quase bacharéis, como autêntico curso de pós-gradu-ação.
Propedeuta e herm eneuta, o professor A m ílcar reexam inava conosco as noções elem entares de todos os ramos jurídicos básicos para o ensino de sua cadeira e possivelm ente “mal diferidas” nos prim eiros anos do curso aca-dêmico. Aliás, seu livro de D ireito Internacional Privado, que deve figurar na biblioteca de todo estudioso da ciência jurídica, tem o m esmo mérito de suas
aulas. Nele, o autor, colocando cada palavra no lugar exato e na significação precisa, na verdade oferece ao leitor um m agnífico compêndio de todos os ra-mos do Direito.
Com o professor de Teoria Geral do Estado, que sou, sem pre estou a recorrer às suas definições m agistrais como, por exemplo, aquelas de “poder público” e “poder soberano” . Para o m estre “poder público é a com petência de governar, a com petência de dar ordens”, enquanto que “poder soberano é a com petência de estabelecer as competências” .
Segundo o professor O siris Rocha, que teve a honra e a responsabili-dade de suceder o M estre na cadeira de D ireito Internacional Privado na U FM G, “a A m ílcar de Castro coube um a posição ím par no D ireito Internaci-onal Privado e que, sem dúvida, haverá de reservar-lhe lugar especial em todo estudo que, agora e sempre, se venha a fazer dessa disciplina” .
Por tudo isso, em abril de 1987, através do “Estado de M inas”, saudei com entusiasm o a E ditora Forense e a Fundação “ 18 de M arço” , pelo lança-mento da 4a edição deste inigualável clássico da literatura jurídica, o “D ireito Internacional Privado”, enriquecido pelas “respeitosas” e oportunas notas de atualização do professor Osiris Rocha.
O ESCRITO R
A m ílcar de C astro deixou cinco livros publicados: “Das Execuções de Sentenças no Estado de Minas G erais” )1928); “Das Execuções de Sentenças E strangeiras no B rasil” (1939); “C om entários ao C ódigo de Processo Civil de 1939” (1941 e 1963); “C om entários ao C ódigo de P rocesso C ivil de 1973” (1974 e 1977); “D ireito Internacional Privado” (1956, 1968, 1977 e 1987). De 1960 a 1977, tive a honra de ajudá-lo na revisão de todas as suas obras publicadas.
A lém d essas cin co p recio sas o bras, em que o p ro c e s su a lista e o intem acionalista se rivalizam em profundidade e estilo, o mestre A m ílcar dei-xou inúm eros e m agníficos artigos publicados em várias revistas jurídicas do p a ís , em a lg u n s d o s q u a is a b o rd a , c o m a m e s m a p r o f ic iê n c ia do processualista e do intem acionalista, tem as relativos à Filosofia do D ireito e à Teoria G eral do Estado.
O m estre A m ílcar destacou-se ainda no cam po da tradução de artigos de grandes juristas estrangeiros, sem pre valorizadas por anotações de rodapé. Exem plos marcantes dessa sua faceta de tradutor e anotador são os seguintes trabalhos: “Frederico II da Suábia e o N ascim ento do Estado M oderno”, de M anuel G arcia-Pelayo (RB EP, 1961); “As Relações entre o D ireito Interno
R icardo A rn ald o M alheiros Fiuza
e o D ireito Internacional”, de H ans H cnrich Triepel (RFD , U FM G, 1966); e o “Bonnus Iudex”, de Pietro Cogliolo (EJEF-TJM G, 1979).
C om o ju iz, com o professor, com o autor, com o tradutor, “em qualquer uma de suas facetas, foi ele grande, inigualável, insuperável”, segundo o Des. Costa Loures, em seu excelente discurso pronunciado na sessão solene do Tribunal de Justiça de 11.08.92 e publicado no “D iário do Judiciário” , de
18.08.92.
O H O M E M
Dirigindo-m e, agora, m ais diretam ente aos que não o conheceram de perto, gostaria de falar rápida e carinhosam ente do h o m e m Am ílcar. N in-guém pense que este m agistrado-cientista era um hom em árido, distante e voltado exclusivam ente para os seus altos e profundos estudos. N ão. Sem se preocupar com a im portância que tinha, já em vida, no cenário ju ríd ico naci-onal, A m ílcar de Castro era um hom em sim ples. D aquela sim plicidade pura que só os verdadeiram ente grandes possuem . Dono de um a prosa invejável, ele estava por dentro de todos os assuntos: política, literatura, cinem a, m úsi-ca e até novela de televisão.
A posentado, em 1962, no tribunal e na cátedra, p or m otivo de seus 70 anos, A m ílcar de C astro não se afastou do direito e m uito m enos perdeu sua "joi de vivre
Participava efetiva e intensam ente, com o verdadeiro chefe querido de um clã, das vitórias e dos problem as de seus filhos e filhas, genros e noras e de seus adorados netos.
C ontinuou estudando e pesquisando e passou a produzir m agníficos pareceres, que ele m esmo datilografava no acolhedor escritório de sua casa da Avenida G etúlio Vargas, vigiado de perto por seu gato de estim ação. M os-trando sua disposição em continuar na lida ju ríd ica, ei-lo a se inscrever na O AB-M G em 04.09.64, aos 72 anos de idade...
Sem analm ente ia ao Tribunal de Justiça para um cafezinho no G abine-te do D iretor Geral ou um a visita à B iblioabine-teca da C asa (que hoje justam enabine-te leva o seu nom e) onde fazia suas anotações. D ali, ele partia, a pé, pela A fon-so Pena e ia refon-solver os seus assuntos bancários, ver os últim os lançam entos das livrarias ou escolher um bom vinho na “delikatessen” .
A os 82 e aos 84 anos, para surpresa de m uitos, lançava, respectiva-mente, os “C om entários ao Novo Código de Processo C ivil” e a 3a edição do “D ireito Internacional Privado” devidam ente “aum entada e co rrig id a” pelo próprio autor
L igado a tudo que se referia à Justiça e ao D ireito, A m ílcar de C astro participou prazerosam ente, em 1974, com o convidado especial de seu am igo Des. M ello Júnior, das com em orações do C entenário do Tribunal de Justiça e, m 1977, aplaudiu entusiasticam ente a criação, pelo Des. Edésio Fernandes, da E scola Judicial, destinada à seleção, preparação e aperfeiçoam ento dos m agistrados mineiros.
N a m anhã fria de 25 de ju n h o de 1978, sem discursos e sem pom pas fúnebres, com o queria, mas cercado pelo carinho e o respeito de seus colegas do T ribunal e pela saudade j á evidente de seus filhos, netos e am igos, com o decerto esperava e sabia, A m ílcar A ugusto de Castro, o hom em , foi levado ao seu abrigo final neste mundo, do qual tam bém fazem os transitória parte. Porém outros mundos virão e„ neles, outras levas de cultores e aplicadores do D ireito, com eles e para eles, A m ílcar de C astro, o m estre, continuará presente, porque os veredeiros mestres se perpetuam em suas lições.