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“Oh pedaço de mim, oh metade amputada de mim…"

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Academic year: 2021

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Resumo

Este ar go foi produzido a par r da vivência de trabalhadores/pesquisadores junto a mulheres em situação de grande vulnerabilidade que, em nome uma suposta “proteção” à criança, tem do negado o direito de viver sua maternidade. São mães órfãs de seus próprios filhos, sequestrados, muitas vezes antes mesmo da primeira mamada, em maternidades de várias cidades do país. A condição da mulher, negra, e m s i t u a ç ã o d e r u a o u d e g r a n d e vulnerabilidade social, associada ao uso de álcool e/ou outras drogas, tem sido um marcador para a ação violenta e conjunta de ins tuições como as da Saúde, da Assistência Social e Judiciário. O texto busca refle r sobre a relação entre o ato de cuidar e a produção de tutela e autonomia, central nesta situação em que, tanto o sequestro de bebês como a defesa do direito das mães de terem seus filhos podem ser exercidos no âmbito do cuidar em saúde. O que está no cerne desse debate são os sen dos do ato de cuidar. Este ar go se propõe a apresentar e refle r sobre esta situação para ajudar a romper o silêncio, amplificar a denúncia e avançar na disputa por um cuidado que ajude a produzir mais vida.

Palavras-chave: Assistência integral à saúde; Pessoas em situação de rua; Violência contra a mulher; Vulnerabilidade social.

Abstract

This ar cle was produced based on the experience of working together with women living in huge vulnerability, whom had denied their right to motherhood in name of a supposed children "protec on". They are orphan mothers of their own Paula Monteiro de Siqueira

Psicóloga, Mestranda na Faculdade de Saúde Pública /USP

E-mail: paulasiqueira@usp.br Mariana Leite Hernandez

Psicóloga, Mestre pela Faculdade de Saúde Pública/USP, Prefeitura de São Paulo

E-mail: mleiteh@gmail.com Lumena Almeida Castro Furtado

Psicóloga, Doutora pela UFRJ, Prof. Adjunta da Faculdade de Medicina da UNIFESP

E-mail: lumenafurtado@gmail.com Laura Camargo Macruz Feuerwerker

Médica, Livre docente, Profa Associada na Faculdade de Saúde Pública/USP

E-mail: laura.macruz@gmail.com Harete Vianna Moreno

Fonoaudióloga, Mestre pela UNIFESP-BS, Prefeitura de São Paulo

E-mail: harete@uol.com.br Heloisa Elaine Santos

Psicóloga, Mestre pela Faculdade de Saúde Pública/USP

E-mail: heloisaes1103@gmail.com

DOI: h p://dx.doi.org/10.18310/2446-4813.2018v4n1suplemp51-59

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“Oh pedaço de mim, oh metade amputada de mim…”

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children, legally kidnapped, many mes even before the first breas eed, in hospitals of several brazilian ci es. Being woman, black, homeless or living in intense social vulnerability, associated with the use of alcohol and/or other drugs, have been considered enough to jus fy violent ac on from Health, Social Assistance and Judiciary altogether. This ar cle proposes a reflec on around the principles that guide ins tu onal ac ons that allow public authori es to kidnap their babies, denying

their right to keep their children custody, denying them opportuni es of rebuilding their lives even under straight support and supervision. This ar cle proposes to break the silence, amplify the denuncia on and advance in the dispute for a care that help to produce more life.

Keywords: Comprehensive health care; Social vulnerability; Homeless people; Violence against women.

Introdução

E ste a r g o fo i p ro d u z i d o a p a r r d o processamento cole vo da experiência de trabalhadores pesquisadores no contexto da rua da cidade de São Paulo, vivenciadas em inicia vas tais como o Programa de Braços Abertos (DBA), Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), Consultório na Rua (CnaRua). Dentre muitos casos problema zados estão os de mulheres, a quem, por viverem uma situação de vulnerabilidade e em nome de uma suposta “proteção” à criança, tem sido negado o direito de viver sua maternidade.

M ã e s ó r f ã s d e s e u s p r ó p r i o s fi l h o s , sequestrados, antes da primeira mamada, nas maternidades de várias cidades do país. Cordão u m b i l i c a l a r r a n c a d o c o m v i o l ê n c i a , interrompendo compulsoriamente a relação mãe-filho(a), reduzindo-a à mãe-depositária, com quem o bebê só pode permanecer até o nascimento e, tão logo re rado de seu útero, entregue a equipamentos de “proteção”.

Em muitas situações, a ação conjunta da

saúde, assistência social e Conselhos Tutelares, tem o respaldo explícito do poder Judiciário. Entretanto, ações como as registradas neste texto não se restringem às maternidades de municípios em que há estas recomendações formais do Ministério Público ou do Judiciário, são prá cas recorrentes em muitos outros lugares.

Alguns buscam reves r tais ações violentas de certa legi midade ins tucional em nome da

proteção da criança, alegando prerroga vas a

par r do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA, que, em muitas situações, foi e é fundamental para defender e garan r o direito das crianças e viabilizar seus direitos sociais, aqui, tem sido apropriado por forças que o usam como disposi vo para negar o direito de m u l h e r e s à v i d a q u e e l a s p o d e r i a m produzir/construir como mães de seus novos filhos. Assim, dependendo da força que se apropria de um problema ou de um conceito - no caso o ECA - são diferentes os valores produzidos. Direitos de uns, supostamente

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contra direitos de outros, todos sem voz a va, assujeitados.

Em diversas oportunidades, diretrizes e fluxos visando a atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos(as) recém-nascidos foram reivindicados pelos movimentos sociais e discu dos por órgãos governamentais, como o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), sendo reconhecida a necessidade do protagonismo dos Sistemas Único de Saúde ( S U S ) e A s s i stê n c i a S o c i a l ( S UA S ) n o acompanhamento a este público devido à complexidade de suas necessidades. Foram desaconselhadas decisões imedia stas, tais como a re rada dos bebês das mães, pois violam os direitos das mulheres e das crianças, causando danos irreparáveis a ambos. Recomendou-se o acompanhamento integrado antes, durante e depois do nascimento, de modo que a avaliação das condutas fosse feita c a s o a c a s o , r e s p e i t a n d o a s s i m a s

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singularidades. No entanto, em função da complexidade das situações e das intensas disputas é co-polí cas em torno do tema, recomendações, por mais acertadas que sejam, n ã o s ã o s u fi c i e nte s p a ra p ro d u z i r o s enfrentamentos necessários para defesa dos direitos das mães e das crianças.

Está em questão um julgamento moral sobre quem tem e quem não tem direito de ser mãe, sendo autorizado o emprego da violência contra “uma vida que não vale a pena” em

nome de outra a ser protegida, sem muita reflexão sobre os efeitos dessa separação violenta tanto sobre a “vida que não vale a pena”, como sobre a vida que supostamente está sendo defendida. Existe um silêncio cúmplice em torno dessa violência! Este ar go se propõe a apresentar e refle r sobre esta situação para ajudar a romper o silêncio, amplificar a denúncia e avançar na disputa por um cuidado que ajude a produzir mais vida. Discussão e reflexão sobre os nossos encontros com as mães órfãs

“mas eu nem vi o rosto dele!” Foi com esta frase - e com o sofrimento da perda refle do nos olhos - que encontramos Helena, sentada e chorando dentro de uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Suas lágrimas eram mo vadas pela perda do bebê que vera, com o qual ela não pôde sair da maternidade. A jus fica va alegada para a separação mãe e filho era relacionada a alguma complicação de saúde do bebê. Helena voltou ao Centro de A c o l h i d a s e m o b e b ê . D e v i d o a s e u comprome mento psíquico e linguagem embotada, os profissionais do equipamento não puderam compreender o que havia acontecido, talvez nem ela mesma o soubesse. Voltando à maternidade, agora acompanhada por profissionais da Equipe do Consultório na Rua, não puderam ver o bebê, nem foram a t e n d i d a s p e l a a s s i s t e n t e s o c i a l d a maternidade, apenas receberam a no cia de que o bebê já não se encontrava ali. Seria

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preciso procurar a Vara da Infância e Juventude.

Em outra cena, Marlene e Débora, moradoras do Hotel do DBA, que durante toda a gestação es veram nas frentes de trabalho do Programa, usando seus salários para preparar a chegada de seus bebês, após o parto foram sentenciadas pela equipe do hospital a não saírem da maternidade com seus filhos. Os bebês seriam entregues a um abrigo. Foi necessária uma ação intensa da equipe do C o n s u l t ó r i o n a R u a ( C n a R u a ) , q u e acompanhava os casos, para “legi mar” junto à equipe do hospital a fala das mães de que poderiam cuidar de seus filhos. Só foi possível saírem com seus bebês após a negociação de um arranjo de cuidados por parte da equipe do CnaRua com pessoas de suas famílias ampliadas. Estas seriam responsáveis pelos bebês, e as mães teriam que passar um tempo na casa das avós para receber ajuda nos cuidados aos bebês. Durante a gestação demonstraram alegria e orgulho, buscaram novos modos de cuidar da vida junto de seus filhos. Isso não foi reconhecido pelo hospital, que tentou pregá-las no lugar de não-capazes de cuidar de seus filhos, de se responsabilizar pelos seus bebês.

No caso de Marta, também moradora de um hotel do DBA, o hospital deu alta para a mãe e manteve o bebê internado, mesmo ele estando saudável. Marta não teve dúvidas, fez uma ação de “resgate” e no dia de sua alta saiu com seu bebê, mesmo sem autorização, e voltou para o

hotel em que morava com apoio da equipe. A mãe-heroína agiu na clandes nidade para garan r um direito.

“Helenas”, “Martas”, “Marlenes”, “Déboras” têm se mul plicado no co diano de São Paulo e de outros municípios. São gestantes, em situação de vulnerabilidade social que por vezes experimentam novas possibilidades de se conectar com o mundo a par r da experiência singular de se cons tuir enquanto mãe. Depois da gestação estas mulheres têm seus bebês “sequestrados” e levados para abrigos contra sua vontade.

Estas cenas nos fazem refle r sobre quais vidas valem a pena em uma sociedade marcada pela naturalização da desigualdade e legi mação do exercício do biopoder sobre a vida. A condição da mulher, negra, em situação de rua ou de grande vulnerabilidade social, associada ao uso de álcool e/ou outras drogas tem sido um marcador para a ação violenta e conjunta de ins tuições como as da Saúde, da Assistência Social e do Judiciário.

A atuação dessas forças suscita o debate sobre a tensão entre autonomia e tutela que permeia o âmbito do cuidado, tensão que também atravessa os processos de cuidados dos loucos, dos usuários que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. Tal disputa é também uma disputa de narra vas, ou seja, a quem é dada a possibilidade e o direito de falar sobre si, sobre seu corpo e afetos. E mais do que isso, a possibilidade de construir seus caminhos.

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Tanto o sequestro de bebês como a defesa do direito das mães ficarem com seus filhos são exercidos no âmbito das ações em saúde. A tutela - outorgada ou conquistada - pode estar relacionada a um agir castrador ou libertador e o cerne do debate é: quais os sen dos do ato de cuidar? Ele pode se conectar com as necessidades do usuário na sua singularidade ou ser dirigido pelos pré-conceitos que universalizam a ação do profissional e legi mam ações castradoras sob o manto do

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cuidado. Citando Merhy:

Neste percurso torna- se um impera vo a compreensão da concretude que o ato cuidador adquire, a par r de suas caracterís cas de composição intrínseca, e no qual iden fico a presença tensa da relação tutelar e liberadora, comprome das com agires de um sujeito sobre o outro, de modo comprome do e “amarrado” a possibilidade de se agenciar processos de ganhos de autonomia, por este outro que busca uma tutela outorgada, do ato cuidador. O ato cuidador é centralmente um ato de tutela outorgada, que poderá conforme o modelo de intervenção ser ou

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não castradora.

Essas mulheres, que têm suas existências marcadas pelo estereó po de incapazes, interditadas, sob a égide do “ato cuidador”, seguem sendo des tuídas de sua dignidade quando da re rada dos seus bebês e da possível maternidade. Maternidade, que em muitos dos

casos, até o momento do parto nha sido uma

escolha delas.

É então necessário refle r sobre as prá cas de liberdade, sobre a ação do Estado na conformação dos corpos e da vida. Lobo,

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Nascimento e Coimbra argumentam tratar-se

d e : “ [ . . . ] s u b j e v i d a d e s s e r i a l i za d a s , homogeneizadas, determinando o modo correto de viver e um controle aberto sobre os

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comportamentos.” Homogeneização que é um disposi vo de controle social biopolí co da p o p u l a ç ã o , e x e r c i d o m a i s i n t e n s a e violentamente sobre a população em situação de maior vulnerabilidade.

O preconceito naturalizado em relação a algumas vidas faz com que a ação do profissional de saúde e da assistência social aconteça sem culpa, reves da de uma noção moral de proteção. Estes profissionais ficam certos de terem “salvado” uma vida (a da criança), sem perceber o tamanho da violência que perpetraram a vamente. Sobre tais

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prá cas, Mendes afirma que se configuram corroborando com certos sensos comuns cimentados e repe damente reafirmados no contexto social. Neste mesmo texto, em seu diálogo com Foucault, tal autor nos convida a pensar a prá ca de liberdade como prá ca de resistência, indicando a possibilidade de criação de outros mundos junto com o outro:

Fica claro para mim, Foucault, que não é possível pra car a liberdade sem que o outro par cipe desse momento no qual, “a entrada em cena das forças” produz a tensão da resistência. Como disse acima, é um momento que nos leva a sair do conforto; na emergência de algo pelo inters cio, as prá cas de liberdade são as que nos levam a ter 'a tudes visíveis e invisíveis que criam outros

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mundos.

Cuidar de modo conectado com a produção da v i d a , n a s c e n a s a c i m a , c o l o c a c o m o

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necessidade fundamental a criação de uma rede de apoio para poder enfrentar estas situações violentas. Para isso é preciso problema zar os sen dos do cuidado na saúde, pois muitas vezes pautamos a gestão do cuidado no território de forma protocolar, b a s e a d a e m p a d r õ e s n o r m a v o s d e comportamentos. Sem levar em conta que, para além dos padrões, há uma vida produzida pelo usuário, que dificilmente consegue ser considerada nas ações dos trabalhadores de

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saúde. Silva et al. argumentam que isso acontece porque “se exigiria pensar numa mul plicidade de formas de organizar a p ro d u çã o d o c u i d a d o p a ra ate n d e r à singularidade dos usuários, não suportada pelo modo tradicional, estruturado e formal p e l a q u a l a s r e d e s t e m á c a s e s t ã o

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desenhadas.”

Algumas falas de profissionais em serviços em q u e s e re a l i za o p ré - n ata l ex p r i m e m fortemente este preconceito: “a concepção este grupo está fazendo muito bem”, “não vai fazer controle, vai perder as medicações, etc.” Falas que fazem um juízo moral da situação da g r a v i d e z e c o l o c a m n a m u l h e r a responsabilidade por “aderir ou não” ao que é programado para seu acompanhamento, sem p r e o c u p a ç ã o e m c o n s t r u i r d e m o d o compar lhado um plano de cuidado conforme suas necessidades / possibilidades.

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Adichie, numa apresentação em julho de 2009 na TEDGLobal Conference, apresenta a ideia de que é um perigo olharmos para a vida, para

as pessoas, com uma única história a nos servir de lentes. Assimilar uma única história sobre o outro é, na maioria das vezes, reduzi-lo:

Todas essas histórias fazem-me quem eu sou. Mas insis r somente nessas histórias nega vas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que formaram-me. A única história cria estereó pos. E o problema com estereó pos não é que eles sejam men ras, mas que eles sejam incompletos. (...) A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento da

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nossa humanidade compar lhada di cil.

Quando é possível produzir uma relação que desnaturaliza a maternidade e aposta na construção compar lhada da maternagem, também nasce outro modo de vida. Um Hotel do DBA abrigava 8 mães com seus filhos, a maioria bebês. Havia uma troca constante entre mães, pais, alguns moradores e equipe técnica, sobre os cuidados com os bebês. Numa ocasião, estávamos em uma reunião e um morador, cuja mulher estava grávida de 8 meses, interrompeu, nervoso, a conversa para confirmar qual era mesmo a marca mais adequada de sabão em pó para lavar roupas de bebê, pois este item ainda faltava no conjunto de coisas que organizaram para esperar a criança. Tudo comprado com dinheiro que os dois economizavam todo mês, assim como as outras mães, para conseguir receber as crianças como gostariam. Um sonho sendo gestado, como para muitas outras mulheres e casais.

Di cil refle r sobre este contexto sem referir a brutal situação de violência que submete a mulher e, em par cular, a mulher em situação

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de rua. Ser mulher na rua é um desafio ainda mais intenso que para o homem. Muitas nos relatam não poder ficar sem um homem, pois sozinhas ficam mais vulneráveis às agressões masculinas. A escolha (ou aceitação) do parceiro pode ser uma decisão por segurança, antes de uma decisão afe va.

Violência escancarada pelos números oficiais. Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP- SP), divulgados pela Folha de SP

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em 23 de agosto de 2017: um caso de feminicídio acontece a cada 4 dias e uma tenta va de feminicídio a cada um dia e meio em São Paulo. Feminicídio: assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. No Brasil, 29% das mulheres afirmam ter sofrido algum po de agressão nos úl mos 12 meses e dois em cada três brasileiros testemunharam algum po de agressão contra a mulher, sendo que 61% dos agressores são conhecidos das ví mas.

Violência que atravessa a porta de entrada dos hotéis do DBA, dos Centros de Acolhida (CAs) e da vida nas ruas. Num dos hotéis, as moradoras criaram um grupo de mulheres, que se reunia periodicamente, para criar laços e conversar. Esse espaço possibilitava o fortalecimento das relações entre elas e, inclusive, autorizava-as a “meter a colher” na relação da outra com seu p a rc e i ro, e m m o m e nto s te n s o s , p a ra intermediar e evitar uma agressão. Produção delas com elas, afeto, vínculo, escuta fortalecendo cada uma e todas.

Violência que entra pela porta da frente dos diferentes serviços de saúde. Profissionais decidindo pelas mulheres sobre implantes an concep vos, se podem amamentar, se podem ter mais filhos, se podem ficar com seus filhos… Uma avó nos contava a respeito de sua neta de menos de dois anos, cuja guarda lhe foi negada. Ela havia conseguido a guarda do seu neto com au smo e falava pela primeira vez no grupo de família sobre essa criança mais nova. Indagada sobre o porquê do silêncio, disse que era uma história que não gostava de lembrar: “eles vieram pra levar ela pra doação, raram dos braços da mãe (usuária de drogas), todo mundo chorava. Hoje o K. (paciente au sta) pega um dvd de uma festa onde a irmãzinha aparece dançando e fica vendo e voltando a cena. Acho que é saudade, né?”

Considerações Finais

A violência de ter re rado um filho não tem paralelo! O que é re rar esse direito, direito ao filho, direito ao afeto, este que também é um ato polí co?

Além de todos os direitos que foram negados a essas mulheres na construção do lugar que ocupam hoje, configura-se a subtração de um direito central: o de ser mãe e viver a maternidade. Mesmo com o reconhecimento de que a condição socioeconômica não seja mo vo para re rada do pátrio-poder, para a mulher em situação de rua este tem sido um caminho sem volta.

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Qualquer menção a algum uso de droga já é considerada como incapacitante para a maternagem, mesmo que ela tenha diminuído dras camente ou parado de usar durante a gestação. Interdição na autonomia da mulher pobre, preta ou em situação de rua. Uma mulher de classe média pode fazer o mesmo uso de droga sem que nenhum profissional de saúde intervenha em sua vida. O poder de subordinação é usado de modos diferentes na mesma “situação obje va” dependendo de quem é a mulher que a protagoniza. Quase não se pode chamar essa ação violenta de cuidado, tão parcial e preconceituosa.

Em algumas situações, apenas a ação enérgica das equipes de saúde que cuidam daquelas mulheres têm tornado possível garan r que saiam com seus bebês no colo. Em outras, nem essa intermediação é suficiente e o sequestro se concre za! A cena de Helena chorando, enlouquecida pela dor, que introduz este texto, nos coloca a dimensão desse desafio de lutar pelo

direito de verem o rosto de seus bebês quando nascem e nos dias que se seguem a par r daí! Em muitos municípios crescem os cole vos que buscam rar essa violência do silêncio, gritar e denunciar o que vem sendo feito, buscando impedir a escalada dos sequestros, apostando na possibilidade de que mais mulheres possam romper este cerco e de que menos mulheres cantem: "Oh pedaço de mim, oh metade

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amputada de mim…”

Mas precisamos de mais. Mais visibilidade, mais mobilização, mais abertura para ampliar a potência de vidas já tão maltratadas, quase condenadas à morte por indiferença. Visibilidade para o que acontece na sequência da vida dos bebês e das mães. Ferramentas para desmontar micropoli camente a liberdade de cercear a vida do outro segundo juízos morais e para ampliar a solidariedade e a produção compar lhada com os usuários em todos os atos cuidadores da saúde e fora da saúde.

Nota I

Todos os nomes de mulheres u lizados aqui foram trocados.

Referências

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Holanda, CB. Pedaço de mim; letras.mus.br [internet] Rio de Janeiro: Polygram/Phillips; 1979. [citado 17 jan 2018]. Disponível em: h ps://www.letras.mus.br/chico-buarque/86030/

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Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (BR). Secretaria Nacional de Assistência Social. Nota técnica conjunta n° 001/2016, do Ministério da Saúde e o Ministério do Desenvolvimento Social, que estabelece Diretrizes, Fluxo e Fluxograma para a atenção integral às mulheres e adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de álcool e/ou crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos. Brasília; 2016.

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Merhy EE. O desafio da tutela e da autonomia: uma tensão permanente do ato cuidador. [Internet] [citado 07 out 2017]. Disponível em: h ps://www.nescon.medicina.ufmg.br/ biblioteca/registro/O_desafio_da_tutela_e_da_ autonomia__uma_tensao_permanente_do_ato_cuidador/47

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Lobo LF, Nascimento ML, Coimbra CM. Sociedade de segurança: algumas modulações na cidade do Rio de Janeiro. In: Fonseca TMG, Arantes, EM (Orgs). Cartas a Foucault. Porto Alegre: Sulina; 2014. p. 121-145.

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Mendes PPS. Polí cas de amizade: diante da fragilidade da clínica, uma oferta para fortalecer a produção dos cuidados em saúde [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: UFRJ; 2016.

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Silva KL, Magalhães RV, Lana V, Capistrano D. Sofia e tantas outras mulheres usuárias de crack e seus filhos: quando a (in)capacidade de gerir sua própria vida afeta a produção do cuidado. In: Feuerwerker LCM, Bertussi, DC, Merhy EE (orgs). Avaliação compar lhada do cuidado em saúde: surpreendendo o ins tuído nas redes. Rio de Janeiro : Hexis; 2016. P.292-307.

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Adichie C. O perigo de uma única história. [Internet] [citado 07 nov 2017. Disponível: h ps://www.ted.com/talks/ chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-b

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