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A Racionalidade Moral

Nenhuma Filosofia Moral põe seriamente em causa que o valor moral do acto humano reside numa certa conformidade do mesmo a uma ordem ou racionalidade. As dificuldades surgem quando se procura estabelecer o tipo de racionalidade em jogo ou o exacto papel da Razão. De um ponto de vista essencial, porém, as várias figuras de Filosofia Moral orbitam à volta de dois tipos de Razão Prática: o que preside à elaboração da «ética antiga», nomeadamente da aristotélico-tomista, e a Razão Prática kantiana própria da «ética moderna» em geral - respectivamente chamadas, sem grande rigor,

moral teleológica e moral deontológica. Este breve apontamento não

visa sumariar sequer as grandes articulações destas duas figuras de racionalidade moral - de resto nem sempre opostas. Pretende-se tão-só esboçar, num primeiro momento, algu-mas linhas funda-mentais do percurso que vai da primeira à segunda modalidade de Filosofia Moral, para, numa segunda etapa, relevar os aspectos mais distintivos da racionalidade intrínseca de cada uma.

A progressiva afirmação da lei na Filosofia Moral: do séc. XIII ao séc. XVIII 1

1. Segundo Duns Escoto (1255/6-1308), a lei divina é um man-damento da livre vontade de Deus, que obriga a cumprir ou a omitir

1 Cf., entre outros, G. ABBÀ, Quale impostazione per la filosofia morale?, I (Roma:

LAS, 1996), pp. 74-102.

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certos tipos de acção em vista da salvação eterna. Nesta determi-nação definidora inflecte-se claramente da inteligência (em S. Tomás a lei é formalmente u m dictamen rationis) para a vontade, embora quer u m a quer outra 'faculdade' integrem necessariamente o con-ceito completo de lei. A esta inflexão a n d a m associados alguns factores históricos, como o crescimento progressivo do pensamento jurídico entre os séculos XIV e XVI e sobretudo a generalizada desconfiança frente ao avanço do intelectualismo aristotélico no séc. XIII, p a r a muitos pouco consentâneo com a salvaguarda da total omnipotência de Deus (basta recordar alguns motivos da inter-venção do Bispo de Paris Etienne Tempier 2, de tendência

agosti-niana, na «queima» de 1277).

Que fundamento filosófico e antropológico preside a esta nova concepção e ao crescente avanço da «teologia da lei»? Aristóteles dividia as «potências operativas da alma» em naturais e racionais (sendo estas últimas, na designação tradicional, o intelecto e a von-tade). Escoto, por seu lado, m a n t é m igualmente a divisão das potên-cias operativas em racionais e naturais; mas, enquanto a voluntas continua a ser considerada u m a potência racional, o intellectus é incluído nas potências naturais. Além disso, a vontade humana é considerada u m a faculdade equidistante dos opostos que lhe são exibidos (é ad opposita); consequentemente, só a vontade divina pode ser uma vontade p u r a (porque não é ad opposita).

As consequências desta 'tese moderna' são fáceis de ver. Em primeiro lugar, a vontade humana, enquanto faculdade ra-cional, torna-se poder de auto-detrerminação contraposto à natu-reza e ao intelecto, u m a vez que este último opera per modum

naturae. Um dos principais herdeiros deste primeiro corolário é

Descartes, apesar da sua ambiguidade na determinação da liber-dade (tida ora como liberliber-dade de indiferença, ora como liberliber-dade que se apresenta tanto mais liberdade quanto mais plenamente

determinada pelo verdadeiro).

Uma segunda consequência traduz-se n u m a nova concepção de conhecimento prático, cujo principal herdeiro vai ser Kant. A partir

2 Sobre as várias teses condenadas por Tempier e sobre a sua desconfiança

face ao aristotelismo tomista, cf. E . GILSON, La philosophie au Moyen Age: Des origines patristiques à la fin du XIVe siècle (Paris: Payot, 21986), pp. 386, 394, 427,

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de agora a práxis passa a ser considerada como o acto de u m a potência diversa do intelecto, acto naturalmente posterior ao

cimento e apto a conformar-se com um conhecimento recto. O

conhe-cimento precede naturalmente a práxis. Já não estamos perante um conhecimento que delibera e julga a acção em ordem a u m fim desejado, como na tradição aristotélico-tomista. O que está agora em jogo na acção não é já o fim desejado (recorde-se o quiasma aristotélico do «desejo deliberado» ou «juízo desejado», presente na noção de «verdade prática»), mas o objecto da acção, no qual já estão virtualmente contidos os princípios práticos e as conclusões práticas que o intelecto, potência natural, necessariamente deduz. Embora o horizonte de pensamento seja substancialmente diverso, dá-se aqui uma espécie de retorno à tradição intelectualista socrá-tico-platónica, segundo a qual o conhecimento verdadeiro, anterior à práxis, é suficiente p a r a despoletar e justificar a acção (tenha-se presente, a propósito, a diferenciação da frónesis aristotélica face à

sabedoria de Platão), explicando-se o mal moral como fruto da

igno-rância (embora não exclusivamente). Ora, este conhecimento prá-tico é insuficiente para guiar o homem em ordem ao seu fim último, à salvação. Por isso, terá de haver u m a livre notificação de Deus. Na verdade, viver segundo os ditames da filosofia moral não é sufi-ciente para viver rectamente coram Deo.

Daqui deriva - e esta é u m a terceira consequência - a preemi-nência do papel da vontade, porquanto a regra a observar retira a sua justeza fundamentalmente do facto de ser estatuída, o que só ocorre por um dictamen voluntatis.

Uma quarta e última consequência desta posição teórica é u m a nova concepção da prudência. Mais que recta ratio agibilium, ela passa a ser entendida como capacidade de aplicar preceitos gerais a casos particulares.

Em suma, o fim deixa de ser princípio prático, não entra nem no estabelecimento da lei nem no conhecimento prático do homem. Já muito antes de Kant fica pois estabelecido que a moral, se quer ser filosófica, não pode ser uma moral de fins. Dos resultados a longo prazo emergentes desta tradição de pensamento destacam-se quer a posição de Lutero quer sobretudo a secundarização das virtudes em toda a modernidade.

2. Guilherme de Ockham (1295/1300-cerca de 1350) retoma duas teses da tradição antiga. Em primeiro lugar, o conhecimento

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prático é mais vasto que o conhecimento moral (já em Aristóteles a ética é apenas u m a parte da filosofia prática). Em segundo lugar, o âmbito do conhecimento prático deixa-se constituir apenas pelas obras que estão em nosso poder (também a ética do Estagirita circunscreve os actos voluntários somente aos que dependem do homem, entendido como sujeito agente). Quer dizer, o conheci-mento prático só se torna moral quando as obras em poder do homem são actos da sua vontade (só estes é que constituem a prá-xis ou mos).

Além disso, a moral não é ostensiva, mas didactiva ou prescri-tiva. Garante-se ainda a distinção clássica entre conhecimento moral positivo e conhecimento moral não positivo. O primeiro tem por objecto as leis (humanas ou divinas), ao passo que o segundo dirige os nossos actos independentemente dos preceitos de um superior. No caso do conhecimento moral positivo, a destrinça entre o bom e o mau depende em última análise, como em Duns Escoto, do facto de a lei ser estatuída. A salvaguarda de um conhecimento moral não positivo garante a existência de uma disciplina moral não

positiva, de uma Filosofia Moral entendida como ciência

demons-trativa, onde a passagem do universal ao particular não é proble-mática (aliás, as dificuldades clássicas de articulação entre o parti-cular e o universal, ou entre o específico e o individual, já não fazem sentido no nominalismo).

Ao arrepio da tradição aristotélico-tomista e antecipando certas posições posteriores - como algumas teses de David Hume, por exemplo - , é afirmado o carácter natural das virtudes. Assim, o acto prudencial não se distingue substancialmente do acto de ver. (Tenha-se em conta que a virtude moral, em Aristóteles, embora evidentemente não seja anti-natural, também não é natural, mas é antes um hábito adquirido sobre um fundo de prévias disposições. Por isso as virtudes naturais, que não são negadas, são distintas das morais). Em todo o caso, os actos morais do homem, principal-mente os voluntários, são regulados por uma lei - natural ou posi-tiva - exterior a eles mesmos. A recta razão (ou consciência ou prudência) regula-os, subsumindo sem dificuldade de monta os casos individuais sob os preceitos universais.

A regra moral é pois exterior à vontade, sendo esta uma facul-dade em princípio indiferente aos ditames da razão. E como se relacionam entre si a vontade e a recta razão? No caso de Deus, a relação é mais de identidade que de consequência da primeira

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relativamente à segunda. Atente-se neste passo canónico: «É ver-dade que Deus nada pode contra a recta razão, mas a recta razão,

relativamente às coisas exteriores, é a sua vontade (...). Não se pode

dizer que, porque algo é recto ou justo, logo Deus o quer, mas o contrário: porque Deus quer, logo isso se torna justo e recto 3»

Em síntese: segundo este modelo de pensamento a atenção da Filosofia Moral vai deixando de incidir primariamente no sujeito

agente como autor virtuoso de acções que tipificam a vida feliz (ser

feliz e ser virtuoso recobrem-se - aporeticamente em Aristóteles, apodicticamente no Estoicismo), p a r a se centrar nas regras da recta

razão, nos preceitos da lei natural e divina, preceitos estes que o

sujeito deve observar. E claro que a partir dos séc. XIII e XIV o tema nuclear da Filosofia Moral passa a ser a lei.

3. E despropositado situar Francisco Suárez (1548-1617) 4 na

linha do assim chamado voluntarismo, como é descabido exagerar a oposição entre a sua teoria moral e a de S. Tomás de Aquino. Para ele a recta ratio é a um tempo praeceptiva e propositiva. E

prae-ceptiva na medida em que participa de ou aplica u m preceito de u m

superior (no vertente caso, de Deus). E propositiva, pois é a razão que propõe os objectos do acto e os julga segundo a sua natureza, prescindindo da lei de um superior.

O primeiro sentido de recta razão é essencial à noção de lei, mas supõe o segundo sentido, que é de si suficiente p a r a definir a moralidade do acto. Neste aspecto Suárez não pode ser conside-rado um extrinsecista em matéria de fundamentação da morali-dade, já que possibilita uma clara autonomia da ética filosófica face à Teologia Moral. Com efeito, o juízo sobre a conveniência ou conformidade do acto e do seu objecto à natureza h u m a n a é sufi-ciente para justificar a moralidade do mesmo, retomando-se assim

3 «Deus non potest contra rectam rationem, verum est, sed recta ratio

quantum ad exteriora est voluntas sua (...) Nec enim quia aliquid rectum est aut justum, ideo Deus vult, sed quia Deus vult, ideo justum et rectum. « (Collectorium

circa IV. Sent., I, d. 17, q. 1, a. 3, cor. 1, K ) . Cf. J . DE FINANCE, Éthique Générale

(Roma : PUG, 1 9 8 8 ) , p. 9 8 , nota 9 , onde se remete para o artigo »Nominalisme» de P. Vignaux no Dictionnaire de Théologie Catholique, col. 7 6 4 - 7 6 9 .

4 Sobre a função da lei no pensamento de Suárez, cf. J.-F. COURTINE, Nature et empire de la loi: Etudes suaréziennes (Paris : Vrin, 1 9 9 9 ) , sobretudo pp. 9 1 - 1 1 4

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o axioma tardo-medieval, mais tarde recuperado por Grócio e pelo Iluminismo, que defende a bondade moral de certos actos em si e por si, ou seja, etsi Deus non daretur... O juízo da razão é verdadeiro e a razão é recta quando convém à ou se conforma à natureza do acto e do seu objecto.

Esta é uma posição clássica e literalmente tomista. A diferença fundamental, todavia, situa-se a outro nível: o acto de que se fala é o acto exterior e o seu objecto é o seu objecto físico. A razão não tem autoridade sobre a constituição do objecto moral do acto. Não sendo constitutiva da moralidade do mesmo, o seu papel é somente apreensivo e propositivo, isto é, limita-se a apreender o objecto moral do acto e a propô-lo à vontade. Trata-se então de uma razão que aprende u m a ordem da natureza a ela anterior e a propõe ao agente voluntário. Retoma-se deste modo a tese atrás aludida, segundo a qual a razão procede por lógica natural, aplicando sem dificuldades de maior os preceitos universais aos casos parti-culares. E esta a função da consciência, definida como regula

pró-xima dos actos humanos, sendo a lex aeterna (no caso, Deus) a regula prima dos mesmos.

E certo que a norma moral reside na natureza humana ou na natureza racional como tal, segundo o antigo axioma: «é bem para u m ser o que convém à sua natureza». Todavia, esta conveniência à ou conformidade à natureza não diz respeito ao juízo da razão, mas à natureza secundum se. Assim sendo, a razão apenas aplica e pro-põe o que convém à natureza e o seu juízo é recto quando o que é suposto convir à natureza convém efectivamente. Além disso, a natureza aqui considerada não é a natureza abstracta, mas a natu-reza tomada adequadamente. Esta posição suareziana, pela influên-cia que teve até aos nossos dias e sobretudo pela sua dignidade teórica, será retomada criticamente na parte final destas reflexões. 4. E m Hugo Grócio (1583-1645) a questão que mais premen-temente se põe, devido às guerras religiosas na Europa, é esta: como encontrar e justificar u m modo de convivência pacífica? A lei

natural - de origem antiquíssima, mas celebrada de um modo

emi-nente pelo Estoicismo e transmitida ao Ocidente latino pelo magis-tério de Cícero - vai substituir o papel fundamentador que Deus tivera em algumas posições teológicas extrinsecistas.

Segundo Grócio, que neste ponto segue Suárez, o conteúdo da lei natural é apreendido pela razão. Diversamente de Suárez,

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porém, o carácter prescritivo da lei não depende já de u m a vontade divina. Ainda com Suárez, o efeito da vontade divina não é a

deter-minação do bem e do mal, mas a obrigação de cumprir o bem e

evitar o mal. O carácter ético do acto não depende pois da vontade divina, mas do conteúdo ou objecto do acto em causa. Para a funda-mentação da moralidade basta então u m correcto entendimento da natureza humana. Diversamente da tradição suareziana, porém, Grócio só inclui na natureza h u m a n a o appetitus societatis a título de princípio da lei natural, prescindindo da inclinação p a r a Deus como seu último fim. Além disso, a lei divina só diz respeito ao bem temporal do próximo, à paz e justiça na sociedade política. (Está-se perante o usus politicus da lei divina, de raiz luterana; além deste, Lutero distingue ainda, na lei divina, u m usus elenchicus ou refuta-tivo, acrescentando-lhe Calvino u m usus didactivus ou instrutivo).

5. Descartes (1596-1650) segue, quanto ao tema da progressiva afirmação da vontade e da lei na Filosofia Moral, a tese de Gui-lherme de Ockham. No fundo, porém, as posições cartesianas visam salvaguardar a total omnipotência e independência de Deus, não suportando que Ele se submeta ao Destino. O núcleo da sua moral encontra-se em dois passos célebres: na III.a Parte do Discurso do

Método e na Carta à Princesa Elisabeth 5, de 4 de Agosto de 1643.

O ponto essencial em que as célebres regras da «moral provi-sória» divergem das regras formuladas na carta de 1643 é o papel mais claro dado à razão neste último texto. Com efeito, Descartes nunca pôs em dúvida que o bem moral reside na conformidade com a razão; só que a ordre des raisons depende, em última análise, de um livre decreto divino. De resto, a articulação entre o intelecto e a vontade, no homem como em Deus, deixa o próprio filósofo com alguns embaraços: por exemplo, como conciliar plenamente a tese segundo a qual não há bem nem mal antes de u m livre decreto de Deus com a afirmação da veracidade divina? 6

5 Cf. A.-T., t. IV, pp. 265-266. Uma apresentação clássica e cuidada da moral

cartesiana pode ver-se em J. LAPORTE, Le rationalisme de Descartes (Paris: PUF, 1950),

pp. 420-468 (sobretudo pp. 424-457: «Les principes de la vie morale»).

6 Semelhante embaraço transparece nas Cartas a Mersenne da Primavera de

1630 (A.-T., t. I, pp. 145, 149, 151 e segs.), na Carta ao P. Mesland (A.-T., t. IV, p. 118-1 118-19), etc. Sobre a articulação do intelecto (finito) com a vontade (infinita), cf.

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6. O verdadeiro pensamento de Thomas Hobbes (1588-1674), no que ao papel da lei na Filosofia Moral diz respeito, não é fácil de determinar. Por u m lado são conhecidas as suas afirmações sobre o carácter fundador do pacto, como estas: «Antes dos pactos e das leis não havia justiça nem injustiça e a natureza do bem e do mal

não era mais comum entre os homens do que entre os animais» 7.

As regras do bem e do mal, do justo e do injusto são leis civis; assim, o que o legislador prescreve deve ser tido por bem; o que proíbe, por m a l8. Por outro lado, porém, é clara a prioridade concedida

ao papel da lei natural no estabelecimento dos pactos, necessários p a r a se sair, embora por intervenção extrínseca, do «estado de natu-reza», de meer Nature.

7. Um dos pensadores que mais veementemente radicalizam a função da lei é Samuel von Pufendorf (1632-1694), mais jurista que filósofo 9. E u m dos que mais desenvolveu a teoria do

volunta-rismo divino. Herdeiro da prevalecente concepção moderna de razão, defende coerentemente que a ordem racional, por si, não é moral; só se eleva à moralidade com a introdução da lei. Como, porém, não há lei sem o conhecimento do legislador, a ordem moral, p a r a se garantir, deverá supor em derradeira instância o conhecimento de Deus.

8. Estão assim lançadas as bases daquela Filosofia Moral que precede de perto a filosofia kantiana, nomeadamente a do raciona-lismo inglês, dos filósofos escoceses do séc. XVIII e dos teólogos anglicanos da mesma centúria. Este tipo de filosofia deixa-se carac-terizar pelas seguintes notas.

Antes de mais, é u m a filosofia secularizada. Esta secularização tem u m momento fundador na laicização protestante da caridade

verdades eternas, cf, J . - L . MARION, Sur la théologie blanche de Descartes (Paris : PUF,

1981), capítulo inicial.

7 De Homine, c. 10.

8 Hobbes considera como doutrina sediciosa a seguinte: «That every private man is Judge of Good and Evill actions». E comenta: «This is true in the condition of

meer Nature, where there are no Civill Lawes; (...) But otherwise, it is manifest, that the measure of Good and Evill actions, is the Civill Law; and the Judge the Legislator, who is always Representative of the Common-wealth.» (Leviathan [1651], Part II, Chap. 29 = Leviathan [London: Penguin Books, 1976], p. 365).

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cristã (o que conta, na ordem mundana, são sobretudo as relações de benevolência n u m a sociedade justa, sendo a vida moral de si indiferente para a justificação coram Deo), na forte emergência e nova coloração que se dá à lei natural (neste domínio Hobbes é talvez o maior epígono l0), na procura da Razão como p a t a m a r

comum ao entendimento entre todos os homens, independente-mente dos seus credos filosóficos ou religiosos.

Uma segunda nota deste tipo de pensamento é a exigência de fundar a Filosofia Moral em poucos princípios absolutamente

evi-dentes. Esta característica epistemológica do racionalismo moderno

terá um dos seus maiores frutos quer em D. Hume, quer, mais tarde, no utilitarismo de J. Bentham e S. Mill.

Por consequência - e esta é uma terceira característica - , a Filosofia Moral vai-se transformando na d e m a n d a filosófica de uma convivência social pacífica, justa e bem ordenada. Estamos já longe da vida moral concebida como «ordem de vida» (ética antiga) ou como ordo amoris (S.to Agostinho).

Por fim, estas morais exibem uma propriedade comum: são todas anti-aristotélicas.

9. Contra o utilitarismo iluminista Kant (1724-1804) deu-se conta de que não se pode, sobre a racionalidade instrumental pró-pria do sujeito utilitário, f u n d a r uma lei moral objectiva e univer-salmente válida. Contudo, não abandonou integralmente a concep-ção do sujeito utilitário: manteve-a e contrabalançou-a, introdu-zindo o dualismo no sujeito agente - o sujeito racional utilitário e o sujeito racional autónomo. Na verdade, a acção h u m a n a é consi-derada de um duplo ponto de vista: no homem fenoménico ela é um efeito deterministicamente causado pelas inclinações sensíveis. E esta acção que cai sob a prudência, isto é, sob o egoísmo racional, conatural ao sujeito empírico mas estranho à moral. De facto, é pela minha estrutura sensível que sou um eu individual que procura afirmar-se em detrimento da universalidade da razão. No homem

inteligível ou homo noumenon a acção, por sua vez, é, segundo o

seu carácter inteligível, efeito da soberana, livre e autónoma inicia-tiva da Razão Prática, que é também vontade livre de todas as deter-minações provenientes da natureza sensível. Enquanto racionais

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somos universais... Por isso, se a Razão Prática dependesse da expe-riência e, através desta, da sensibilidade, pactuaria com motivos egoístas e interesseiros. Uma moral fundada sobre a experiência, além de contraditória, seria imoral 11. Assim entendida, a acção cai

sob a lei moral e torna-se a área material de que se ocupa a Metafí-sica dos Costumes (a versão kantiana da Filosofia Moral).

O ponto de vista segundo o qual a Metafísica dos Costumes considera a acção no seu carácter inteligível é simultaneamente o do sujeito agente e legislador. Esta hegemonia do sujeito agente/ legislador, porém, permanece extrínseca ao sujeito utilitário da racionalidade moderna, na medida em que não lhe transforma nem as motivações nem os critérios de juízo, limitando-se tão-só a impor à sua procura natural da felicidade subjectiva os limites requeridos pela lei moral. A relação entre estes dois aspectos não é, portanto, de tipo prático, mas poiético: o sujeito inteligível impõe uma forma

externa ao sujeito utilitário. Neste horizonte de pensamento é pois

impossível falar de práxis ou de racionalidade prática. Por outro lado, o sujeito racional autónomo é privado de uma natureza, apre-sentando-se antes como u m caso individual da Razão, entendida como capacidade puramente formal, ou seja, como faculdade que pensa de forma universalizável e não transcendentalmente contra-ditória, como se comprova no «teste» que a máxima deve supe-r a supe-r p a supe-r a sesupe-r esupe-rigida de algum modo ao estatuto de lei ou natusupe-reza (veja-se a lógica que preside às várias fórmulas do imperativo cate-górico). Estamos longe do sujeito agente autor e compositor das próprias escolhas e acções virtuosas.

A combinação destes dois sujeitos não pode dar origem às virtudes da ética aristotélica e tomista. A boa vontade kantiana não se define n e m pelas virtudes - a virtude (Gesinnung) restringe-se ao campo dos deveres imperfeitos nem pelos bens, mas apenas pela

forma da lei moral. O telos da vida moral é apenas o «reino dos

fins», reino este que não transcende o de uma sociedade de sujeitos utilitários dentro dos limites impostos pela lei moral. Também aqui estamos longe do telos aristotélico (na dupla acepção de fim e de limite) que, na ética, se identifica com a vida boa do sujeito agente na comunidade política.

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10. Sobre a racionalidade moral em Kant parece oportuno fazer um comentário ao famigerado tópico da moralidade como «facto da Razão» l2. Não haverá u m a contradição no sistema, ao

introduzir algo (um «facto») que não se compagina com as exigên-cias formais da racionalidade prática pura? Quando aspiramos a algo que é bom «por natureza», isso só se pode dever a u m motivo: porque a nossa razão reconhece como bem aquilo a que se aspira -e s-egundo a lógica dos juízos práticos do tipo «p é bom». Logo, estamos perante o bem da razão (e não o bem dos sentidos). Os bens naturais/sensíveis também podem ser desejados pela vontade (esta é «aspiração da razão» ou «faculdade superior de desejar») e, portanto, também pertence à ordem da razão (são «bens para a razão»). Ora, um aspirar que se dirige p a r a aquilo que a razão reco-nhece naturalmente como bom é necessariamente também recto. A questão da justeza coincide com a questão da razoabilidade/racio-nalidade. Por conseguinte, uma liberdade que reconhecesse tal aspirar apenas como um facto, para o examinar vez por vez quanto à sua justeza, suprimir-se-ia como liberdade guiada pela razão: com efeito, questionaria se o racional é racional... Bem e mal, recto e errado - no agir - são pois determinados segundo a razão. Se por-tanto a razão compreende estruturalmente algo como bem ou mal, a correspondente aspiração a este bem ou a fuga deste mal são, por definição, rectos. E recto o que é conforme à razão - e não o

contrá-rio. Perguntar se é recto aquele aspirar que se aplica àquilo que, por

natureza, compreendemos como bom, significa querer examinar novamente a razoabilidade em base a critérios de razoabilidade (e esta é uma questão vazia). Ora, não faz sentido querer ouvir razões para nos dispormos a obedecer a razões...

É precisamente neste ponto-limite que surge u m a semelhança com a tese kantiana da moralidade como Faktum der Vernunft. Com efeito, este é indeduzível, mesmo da «consciência da liberdade», estando pelo contrário na sua base. Só que em Kant este facto não é um facto de uma racionalidade originária que tem por objecto o bem (recorde-se o paralelismo tomista entre os primeiros princípios imediatamente conhecidos do intelecto especulativo ou teórico e

12 Cf. M . RHONHEIMER, La prospettiva delia morale: Fondamenti delVetica filo-sófica (Roma : Armando, 1994), pp. 223 e segs.

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os do intelecto prático 13, paralelismo que transparece no

entrecru-zamento do bem e do verdadeiro no quiasma da verdade e do bem, da verdade como «bem da inteligência» e do bem como «verdade da acção»). Este «facto da razão» é antes a pura datidade da cons-ciência de uma vontade que tem necessidade da auto-Iegislação da razão - o único tipo de determinabilidade fora das condições empíricas. Esta consciência é, aliás, descrita em termos voluntarisatas

-sic volo, -sic iubeo. Por outras palavras, a autonomia da vontade é

anterior a toda a racionalidade. A razão é legitimada não pelo seu papel de orientar a vontade para o bem, mas pelo papel de conservar a liberdade e a autonomia da vontade. Dá-se aqui uma inversão na relação entre inteligência e vontade. A ética kantiana é pois mais uma ética da autonomia da vontade que da autonomia da razão 14. Também sob este aspecto Kant pode ser lido como o

«último ockhameano».

A racionalidade moral: a sua estrutura essencial

11. Para determinar o que, por natureza, é racional Aristóteles não fornece uma teoria consistente, mas sim S. Tomás de Aquino, com a sua teoria da lex naturalis 15. Este conceito, porém, é

insi-dioso, proveniente da tradição romana dos juristas (Ulpiano...) e da «teologia da lei» derivada quer da Bíblia quer da doutrina agosti-niana da lex aeterna. Trata-se de uma racionalidade prática que, por natureza, existe no homem; não é um decreto positivo (humano ou divino), nem sequer uma natureza ou uma «legalidade da natu-reza». É algo que, por natureza, possui o carácter de uma lei, isto é, uma ordinatio da razão para o bem. E aquela ordem que a Razão Prática do sujeito da acção produz por natureza nas inclinações e acções humanas.

Do ponto de vista puramente filosófico, porém, o termo «lei» é supérfluo neste contexto. A categoria lex naturalis ou lex naturae

13 «Praecepta legis naturae hoc modo se habent ad rationem pructicam, sicut

principia prima demonstrationum se habent ad rationem speculativam\ utraque enim sunt quaedam principia per se nota.» (S. Th.ae, I-II.ae, q. 94, a. 2, onde se remete para Ibid., q. 91, a. 3).

14 Para estas observações, cf. M . RHONHEIMER, op. cit. 15 Cf. S. Th.ae, I-II.ae, q. 94.

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nada acrescenta à teoria da razão como medida. Em S. Tomás ela remete para a Razão Prática l6, para a teoria das acções humanas,

para a determinação do bem por parte da razão, p a r a a antropo-logia da razão, da vontade e da aspiração sensível, p a r a a teoria da virtude moral. A lex naturalis consubstancia-se naqueles princípios da Razão Prática em base aos quais a aspiração intencional da virtude moral é guiada cognitivamente. Parece pois oportuno evitar a terminologia da lei natural e falar dos princípios práticos (ou naturais) da virtude moral.

Convém, na ética, não oferecer o flanco ao naturalismo. Os «fins naturais» não são finalidades da natureza que a razão primeiro reconhece e, depois, aplica. São antes u m naturaliter cognitum, algo que a razão reconhece de um modo natural. A própria razão é

natu-reza ou estrutura, algo que ela não pôs nem muito menos inventou

(recorde-se a clássica distinção da «voluntas/ratio ut natura» e da «voluntas/ratio ut voluntas»). A ratio naturalis, assim entendida, coincide com aquele acto próprio do intelecto que compreende os primeiros princípios práticos. Se não houvesse u m a raciona-lidade estrutural, então não existiria n e n h u m a racionaraciona-lidade, mas somente aspiração cega, condicionamento afectivo, convenções sociais, constrangimentos progressivamente interiorizados, direito do mais forte. Sem racionalidade natural, toda a autoridade seria, por si, ameaça à liberdade. Não haveria lugar p a r a n e n h u m a «ver-dade prática».

12. Os actos da Razão Prática deverão ter então o seu próprio ponto de partida, isto é, não são deduções ou aplicações de juízos teóricos sobre «que coisa é o homem». Segundo uma boa corrente de pensamento este eventual círculo entre uma ontologia do ho-mem prévia e um filosofia ética seria um círculo vicioso. Por este

16 «Pour saint Thomas, tout a été suffisamment et solidement traité, en ce qui

concerne la moralité de l'acte, de la vertu et du péché, sans autre recours qu'à la règle

propre de la moralité qui est la raison humaine. (...) La considération de la raison

comme règle adéquate, propre et immédiatement applicable, suffit aux yeux de saint Thomas, qui n'éprouve pas le besoin de pousser sa recherche en moraliste soucieux de fonder une morale, même théologique, sur des bases qui lui soient propres, en remontant jusqu'à la loi éternelle si c'est nécessaire.» (J. TONNEAU, Absolu et obliga-tion en morale [Montréal/Paris : Institut d'Études Médiévales/Vrin, 1965], pp. 89-90;

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motivo defendem alguns o primado da ética sobre a antropologia filosófica l7, na medida em que o próprio do homem só pode ser

dado por via moral. Kant tem razão: um facto natural como tal - a não ser que seja u m «facto da Razão» (na acepção acima esboçada) - não pode, em princípio, ser critério para o bem moral. Só um juízo da razão do tipo «p é bom» a propósito desse facto é capaz de constituir «o que é bom» p a r a o homem. Toda a tentativa de uma dedução originária do dever-ser a partir do ser 1 8- ou do Ideal a

partir de u m facto - conduz a um beco sem saída, aliás denunciado como falácia naturalista, nomeadamente pela filosofia moral anglo-saxónica (Moore, etc.). Se a compreensão originária das aspirações h u m a n a s como boas não for u m a contribuição específica da Razão Prática, é impossível evitar os paralogismos naturalistas.

O juízo prático do tipo «p é bom» é u m juízo no contexto de um desejo ou aspiração. Ora, como a Razão Prática é uma razão inse-rida no aspirar, ela deve ter um ponto de partida próprio, não dedu-zível de n e n h u m outro juízo. Convém manter a diferença entre juízos teóricos (do tipo «a é b») e juízos práticos. Como nunca se age

em base a princípios formulados no âmbito da estrutura do ser, a Razão Prática deverá possuir u m ponto de partida próprio, baseado não na estrutura do ser, mas na estrutura do bom, na ratio boni,

17 Cf., por exemplo, M. J. C. FERREIRA, «Ética e Antropologia», in Questão Ética e Fé Cristã, I (Lisboa: Verbo, 1988), pp. 65-82.

18 A diferença kantiana entre o plano do que é (próprio da Razão no seu uso

teórico) e o do que deve ser (próprio da Razão no seu uso prático) tem as suas origens no célebre Hume's Fork, isto é, na distinção que David Hume estabelece entre is e

ought. Esta distinção, porém, não é tão nítida no filósofo escocês como a maioria dos

intérpretes julga. O texto canónico diz: «...I am surpriz'd to find, that instead of the usual copulations of propositions, is, and is not, I meet with no proposition that is not connected with an ought, or an ought not. This change is imperceptible, but is, however, of the last consequence. For as this ought, or ought not, expresses some new relation or affirmation, 'tis necessary that it shou'd be observ'd and explain'd; and at the same time that a reason should be given for what seems altogether inconceivable, how this new relation can be a deduction from others which are entirely different from it. But as authors do not commonly use this precaution, I shall presume to recommend it to the readers and am persuades, that this small attention cou'd subvert all the vulgar systems of morality (...).» (Treatise... Ill, 1.1.) A. Maclntyre, no comentário a este passo, adverte: «(...) perhaps it is of this ought [isto é, daquele

ought que nunca pode ser deduzido de nenhum is] that Hume is speaking. But a

careful reading of the passage leaves it ambiguous (...).» (A Short History of Ethics [London: Routledge, 21998], p. 173).

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A RACIONALIDADE MORAL 461

programaticamente apresentada no início da Ética a Nicómaco de Aristóteles: «o bem é aquilo p a r a que todas as coisas tendem». A primeira coisa que a Razão Prática conhece, enquanto prática, é pois algo «a que se aspira», sendo por ela concretizado como «um bem», correctamente entendido como o correlato intencional do aspirar (como o ser é o correlato intencional do inteligir).

13. Retorna, contudo, a objecção - kantiana e não só: o bem, correlato de um aspirar, não será então u m simples facto natural, como são naturais as inclinações humanas? O que é que nos garante a sua justeza ou rectitude? Não se trata de uma confiança ingénua e porventura irracional? Não. Como acima ficou dito, tem de se supor sempre u m juízo da razão que reconheça o acordo entre essas «inclinações naturais» (ou sensíveis, noutra terminologia) e as exigências da mesma razão. Por consequência, como se viu, a recta

ratio - regra próxima objectiva da moralidade (distinguindo-se

assim da regra próxima subjectiva que é a consciência) e princípio

interno do acto h u m a n o (distinguindo-se assim do princípio externo

ou lei) - não se pode definir a partir da lex naturalis; quando muito, é o contrário que ocorre. Convém ter em mente que a rectidão da razão nunca se pode definir e conhecer por comparação com u m a regra que lhe seja exterior, já que a sua regra está na própria razão. Razão recta é aquela que é fiel à sua essência. De certo modo a rectidão é uma redundância, pois 'razão' e 'razão recta' são a mesma coisa, como, na venerável tradição platónica, se coimplicam 'conhecimento' e 'conhecimento verdadeiro'. É recta aquela razão que é fiel à sua essência, ao seu ideal. Por isso a ética da razão - da razão aberta, porquanto a razão h u m a n a não é absolutamente

normativa, mas também normada - é um ética da liberdade. Logo,

o que não é moralmente bom não é plenamente racional.

14. E claro que a racionalidade do acto moral não advém do critério de eficácia próprio da razão calculadora específica das actividades técnicas, razão instrumental que modificou progressi-vamente a figura da ética filosófica da modernidade aos nossos dias. Com efeito, o consequencialismo hodierno - a forma porven-tura mais acabada de utilitarismo - tem mais a ver com este tipo de racionalidade que com uma genuína racionalidade prática. O con-junto de argumentações carreadas p a r a criticar quer o extrinse-cismo moral, quer mesmo o utilitarismo e a sua ponta avançada

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que leva o nome de consequencialismo (a produção do «melhor

estado de coisas»), deixa-se resumir, em última análise, a uma

espé-cie de petição de princípio ou de suposição implícita daquilo que está precisamente em jogo. Quer dizer, para se accionar qualquer racionalidade técnica ou tecnológica - cujo núcleo central é a antiga «deliberação sobre os meios» em ordem a um fim - deverá supor-se o para quê ou o porquê dos objectivos a alcançar, o que relança obrigatoriamente o debate em torno da racionalidade verdadeiramente prática, do tipo «p é bom» para o homem 19.

15. A racionalidade moral tem valor por si mesma: quaisquer que sejam os resultados da acção no plano hedónico e eudemónico (economia, etc.), u m acto contrário à razão é mau por natureza. A reiteração do primado do objecto entre os outros «factores» ou «fontes» da moralidade do acto h u m a n o não visa desprestigiar o papel da intenção ou do finis operantis, mas pretende somente evidenciar que a «conformidade à razão recta» reside primeira-mente no objecto ou estrutura do acto e, depois, no próprio acto, embora, como é lógico, a avaliação moral se refira principalmente ao acto e se aplique analogamente ao objecto. Por conseguinte, o debate teórico em torno da racionalidade moral não vive apenas da sua contraposição à racionalidade técnico-instrumental, mas sobre-tudo da sua relação aporética com a racionalidade teórica. Referiu-se atrás, e por diversas vezes, que a vida moral não pode Referiu-ser Referiu-sem mais u m a aplicação pura e simples aos casos particulares de prin-cípios universais que a razão teórica previamente reconhece e esta-belece - o que, ao limite, faria do homem um «autómato espiritual» e da vida prática u m «automatismo espiritual». Disse-se igualmente que o plano ideal da Razão Prática (o «dever-ser») não é deduzível do plano real da Razão Teórica (o «ser»). No entanto, que tipo de relação há entre a «ordem objectiva» e a Razão Prática?

16. É útil lembrar a relação de quiasma entre os transcenden-tais, no caso vertente entre o bom e o verdadeiro - a verdade ou ratio

19 Além de na citada obra de M. Rhonheimer, uma boa discriminação entre

racionalidade técnica e racionalidade prática, sobretudo na análise crítica do

conse-quencialismo, encontra-se em R. SPAEMANN, Glück und Wohlwollen: Versuch über

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A RACIONALIDADE MORAL 463

veri como «o bem da inteligência» e a bondade ou ratio boni como

«a verdade da vontade e da acção». É impossível que, pensando filosoficamente, não se estabeleça u m a correspondência da

morali-dade com a vermorali-dade -presente no filosofema aristotélico da «vermorali-dade

prática» e na tese da anterioridade do juízo da razão à decisão da

liberdade - , correspondência que, porém, salvaguarda a destrinça

do plano teórico e do prático, evitando-se com todo o rigor a sua

identificação, como a que sucede no assim chamado

«intelectua-lismo socrático-platónico» e em algumas teses do Idea«intelectua-lismo Trans-cendental alemão. Esta correspondência formula-se deste modo: a verdade diz-se formalmente em sentido lógico («reside» formal-mente no intelecto judicativo), mas é a «verdade da coisa» (ver-dade material) que causa a «ver(ver-dade do juízo» (ver(ver-dade formal ou lógica); paralelamente, a conformidade à razão recta reside primeiro no objecto e, depois, no acto, mas o valor moral diz-se primeiramente do acto e, por extensão, do objecto. Neste sentido, a ontologia ou a metafísica são, por si, incapazes de constituir a

ordem moral - e isto é dito visando especialmente Espinosa (que dá

à Ontologia o nome de Ética), aquele que, neste preciso ponto e melhor que todos, «repete» Platão e possibilita a sua inversão no Idealismo Transcendental de Kant (para quem a Filosofia Moral é a nova Metafísica). Como quer que seja, ainda não ficou determinado com precisão o tipo de relação entre a Razão e a «ordem objectiva». O que é que constitui, afinal, uma razão recta, uma ortologia? Esta interrogação - das maiores da Filosofia - deixa-se precisar nestou-tra: a rectidão da razão tem um fundamento puramente formal, só a ela imanente, ou real, a ela imanente e transcendente?

17. A conformidade à natureza h u m a n a implicada no valor moral diz respeito evidentemente à natureza h u m a n a como tal,

como humana, ou seja, enquanto esta não é somente natureza. Caso

contrário, seria impossível evitar os mencionados paralogismos naturalistas, uma vez que a conformidade a uma natureza qualquer, considerada apenas como natureza, só pode f u n d a r valores natu-rais. Esta querela é o mais das vezes prejudicada pelo uso de um sentido ambíguo de Razão, olvidando-se que esta tem u m sentido

inclusivo e outro exclusivo. Certas oposições lineares entre Razão e

Natureza - ou entre Ratio e Res ou, na ontologia fenomenológica de muitos, entre coisa («en soi») e consciência («pour-soi») - supõem que se esteja a usar a Razão apenas no seu sentido exclusivo. No seu

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sentido inclusivo, porém, a Razão é simultaneamente Razão e Natu-reza. Não basta portanto invocar apenas, para o estabelecimento da

ortologia, uma conveniência imanente, subjectiva ou puramente

formal (os casos porventura mais interessantes são fornecidos pelo formalismo kantiano da Razão e pelo formalismo sartreano da Liberdade 20), mas tem de se admitir de igual modo, e com a

prio-ridade atrás justificada, u m a conformidade objectiva, na medida em que a razão h u m a n a é, enquanto natureza ou estrutura, uma

ratio normata. Há u m a «ordem das coisas», u m a «hierarquia dos

seres», que traz a chancela de algo como uma Razão Criadora fora

do homem. Aliás, n e n h u m a pessoa de bom senso - e o filósofo é

suposto ser u m a pessoa de profundo bom senso, apesar de descon-fiado do senso comum... - aceita que o homem esteja totalmente na raiz da sua existência ou na raiz da constituição ontológica dos entes. Esta Razão Criadora e normante - cujos nomes são muitos (o Logos nos gregos e nos Estóicos, o Verbo de Deus no Cristia-nismo, a Natura Naturans no NeoplatoCristia-nismo, o Tao, etc.) - significa a ordem objectiva ou, noutra linguagem, o universo ontológico, uma ordem, porém, não opaca mas virtualmente inteligível (distinto do

inteligido em acto, já que é irrefragável a tese aristotélica que

iden-tifica este último com o intelecto). Quer dizer, não basta uma ordem

objectiva de tipo nouménico-kantiano para poder fundar o juízo moral, u m a ordem ontológica constituída pelos «seres-em-si»,

ideia quiçá reguladora e de limite, mas intrinsecamente opaca e incognoscível. Esta ordem objectiva, se quiser fundar (mais rigoro-samente, confundar) a judicação moral, terá de compreender e

incluir em si a natureza racional, por dois motivos de princípio:

em primeiro lugar, porque a natureza racional faz parte do ser21 e,

em segundo lugar, porque o objecto do juízo moral é um acto que se deve realizar ou evitar, logo inseparável do sujeito agente e da sua natureza, contidos na ordem objectiva. Se a «ordem da razão» é a «ordem do ser», também a natureza racional deve aparecer como fundamento da ordem ou racionalidade moral. Quer dizer, a razão

20 Cf. A. LÉONARD, op. cit., sobretudo pp. 1 9 6 - 2 0 0 .

21 A homologia do ser e do intelecto é um dos mais nobres tópicos da reflexão

filosófica. Um dos pensadores que a leva ao limite do rigor - em termos de homo-logia de ser e de espírito -, retirando daí consequências essenciais para a Ética, é

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A RACIONALIDADE MORAL 465

humana, quando recta, não tem por única função aplicar e propor as regras à conduta (recorde-se o carácter propositivo da Razão em Suárez), mas também é constitutiva da ordem moral 22. Se nos

quedássemos apenas na conformidade ou conveniência a uma

natu-reza, nunca ultrapassaríamos o domínio do bem natural. Por isso os

naturalismos morais (antigos e recentes) são u m a contradictio

in terminis, uma vez que nenhuma natureza pode fundar, sozinha,

a ordem moral. A convenientia cum natura (de S. Tomás, Suárez e da maioria dos Escolásticos) só se deixa converter em conformidade

moral se se manifestar como conveniência com a razão: se o valor

moral, por definição, é incondicional ou absoluto, e se só a Razão é absoluta, também a Razão Prática é constitutiva da moralidade do acto. E desta forma se tentou responder à questão do «constitutivo formal» da Ética.

J O A Q U I M D E S O U S A T E I X E I R A

22 Seguiu-se aqui, com alguma proximidade, a tese de J . DE FINANCE, op. cit.

Referências

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