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YURI SÓCRATES SALEH HICHMEH O CRISTIANISMO NO JAPÃO: DO PROSELITISMO JESUÍTA AOS CRIPTO CRISTÃOS

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YURI SÓCRATES SALEH HICHMEH

O CRISTIANISMO NO JAPÃO: DO PROSELITISMO JESUÍTA AOS CRIPTO CRISTÃOS

CURITIBA 2009

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YURI SÓCRATES SALEH HICHMEH

O CRISTIANISMO NO JAPÃO: DO PROSELITISMO JESUÍTA AOS CRIPTO CRISTÃOS

Monografia apresentada para conclusão do Curso de História da Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Andréa Carla Doré

CURITIBA 2009

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Dedico esta pesquisa ao meu avô, Taleb Saleh Hishmeh, cuja trajetória de vida inspirou-me a estudar a História.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à minha família, especialmente aos meus pais, Omar e Marcia, por todo apoio dado aos meus estudos. Não seria possível alcançar meus objetivos sem seus valiosos e sábios conselhos, motivadores de cada dia. Também ao meu irmão, Vinicius, sou grato, por toda bondade e boa vontade que sempre apresentou em me ajudar, desde nossa infância. À minha irmãzinha, Priscila, cujo carinho é inigualável.

Sou extremamente grato à professora Andréa Doré pela dedicação, conselhos (e paciência) que me orientou. A produção desta pesquisa foi possível pelo volume de leituras e pelas longas conversas com a professora.

À Rafaela, por toda compreensão, quanto aos encontros cancelados por conta da pesquisa e aos meus futuros planos de estudar no Oriente. Por seu apoio, frente aos meus “estudos japoneses”, que foi muito importante, motivando-me a ultrapassar as barreiras que surgiram. Por seu carinho.

Ao longo da trajetória de “estudos japoneses”, que vem ocorrendo desde 2007, conheci muitos nihonjin e nikkeijin que foram capazes de me aproximar ainda mais da rica e, para mim, inspiradora cultura oriental. Aos irmãos Arata, Paulo e Victor, pelas ricas, produtivas e divertidas aulas de nihongo; à Kaori, ao Diego, ao Henrique e ao Marcos pela valiosa amizade; às irmãs Watanabe, Chisato e Minori, pelos divertidos almoços, por tirarem minhas incessantes dúvidas de nihongo e pela grande amizade.

Agradeço também aos antigos colegas de estudo e grandes amigos, Felipe e Cláudio, pelo grupo de discussão de toda sexta-feira à noite, em que não apenas a história vem sendo discutida, mas também, e mais importante, o nosso papel na sociedade atual.

Evitando o prolongamento demasiado desta parte de agradecimentos, agradeço, de forma geral, a todos os demais familiares e amigos que colaboraram de alguma forma para o desenvolvimento desta, e de outras, pesquisas.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 6

RESUMO ... 11

1 DE YAMATO AO SENGOKU-JIDAI... 12

1.1 Do Império ao Bakufu... 13

2 OS PRIMEIROS CONTATOS ENTRE PORTUGAL E JAPÃO ... 20

2.1 O Teppo-ki ... 22

2.2 O Início da Missionação... 28

2.3 O início do atrito luso-nipônico ... 32

3 O ISOLACIONISMO TOKUGAWA E A MISSIONAÇÃO ... 36

3.1 Sekigahara: a unificação ... 36

3.2 William Adams: o braço direito do Shogun... 40

3.3 A Expulsão ... 46

CONCLUSÕES... 55

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INTRODUÇÃO

Desde pelo menos os relatos de Marco Pólo que a Europa teve algum conhecimento sobre o Japão, referido por Cipango 1 pelo viajante genovês.

Entretanto, apenas com o decorrer da expansão ultramarina, liderada em um primeiro momento pelos portugueses, que aquele território se tornou escala das grandes viagens comerciais e missionárias. As relações externas do Japão restringiram-se, durante séculos, aos reinos que ocupavam a península coreana e, principalmente, à China.

O objetivo desta pesquisa monográfica foi compreender como o se deu o processo de rejeição japonesa a ação missionária católica, levantando as principais razões que levaram os japoneses a expulsar missionários e mercadores lusos de suas terras, encerrando oficialmente, em 1640, as relações luso-nipônicas. Para tanto, buscou-se, primeiramente, remontar as características políticas, econômicas e sociais do arquipélago nipônico dos séculos XVI e XVII, retomando também a progressão portuguesa pela Ásia, o que levou ao desembarque em Tanegashima. A fim de satisfazer os objetivos propostos, foram utilizadas fontes japonesas e ocidentais acerca do tema. Dentre as fontes japonesas, destacam-se o Teppo-ki2 (manual de armas), escrito em 1603, pelo monge zen-budista Nampo Bunshi, a pedido de seu senhor, Tokitaka no Tanegashima. Este documento apresenta um relato, baseado numa tradição oral, da chegada dos portugueses ao Japão, em que se pode perceber a aparente paz entre os dois povos, através da troca de presentes e de uma admiração mútua, em aspectos diversos. Destaca-se a importância deste documento quanto às primeiras visões dos japoneses acerca dos povos ocidentais, o que, já na época de sua escrita havia mudado drasticamente. Outro documento destacado para este estudo foi a carta do daimyo Toyotomi Hideyoshi ao vice-rei das Índias, datada de 1597, em que se pode notar a crescente hostilidade japonesa à presença e atuação dos missionários jesuítas. Nesta carta, o daimyo mostra-se contrário ao trabalho de conversão realizado pelos jesuítas, por desrespeitar as crenças praticadas pelo Japão, disposto a tomar medidas drásticas contra os

1 VAUCHEZ, André; DOBSON, Richard; WALFORD, Adrian; LAPIDGE, Michael. Encyclopedia of the Middle Ages. Routledge, 2000, p. 334.

2 NAMPO, Bunshi. Teppo-ki. Apud TSUNODA, Ryusaku. BARY, Theodore de. KEENE, Donald. Sources of Japanese Tradition. Nova Iorque, Columbia University Press, 1958, p. 308-312.

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portugueses, caso a missionação não cessasse o quanto antes. Apesar de seu decreto contra a presença missionária, Hideyoshi não condenava o comércio com o ocidente, o que, de certa forma, levou ao não-cumprimento de seu édito.

Dentre os documentos ocidentais privilegiados, estão trechos da obra

Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, que descrevem o cenário inicial das

relações entre os dois povos em questão. Relatos de prisioneiros católicos apresentados por padres jesuítas, como João Rodrigues Tçuzzu e Matheo Del Cobo, foram utilizados no intuito de explicitar o apoio público dado às práticas de suplício imprimidas aos missionários e seus seguidores. Estes documentos nos trazem uma rica descrição do martírio de cristãos, o que foi confrontado com produções iconográficas do período, referentes também à resistência japonesa à religião ocidental.

Na primeira metade do século XVI, motivados por uma competitividade econômica e política com Castela, entraram em contato com o Japão, na esteira da expansão marítima que os levou a Ásia. Este primeiro contato, que se deu no sul do arquipélago, em Tanegashima, marcado pela amistosa troca de presentes e conhecimento (sendo, segundo fontes, a arma de fogo o mais importante dos artigos apresentados aos japoneses neste momento) consistiu na porta de entrada dos portugueses na sociedade japonesa. A partir daí, as trocas comerciais se intensificariam, sendo a prata um dos principais artigos fornecidos pelos japoneses aos mercadores europeus, que, em contrapartida levavam ao Japão a seda e a porcelana chinesas. Em 1549 a Igreja Católica estabeleceria seu primeiro contato direto com os japoneses, através do padre jesuíta Francisco Xavier, que já havia atuado pela costa ocidental da Índia.

A situação política encontrada pelos portugueses no Japão era semelhante à que se verificou na Europa Medieval, em que o poder encontrava-se descentralizado, sendo exercido por senhores locais, detentores também do poder militar, os daimyo. O poder imperial no Japão da Era Moderna (e até pelo menos a Restauração Meiji, de 1868) era meramente simbólico, sendo o Imperador reconhecido como um representante da linhagem divina, não exercendo o poder de fato sobre o território. Este período da história japonesa, em que se deu a chegada dos navegadores portugueses, é conhecido por Sengoku-Jidai (ou “Período dos Estados em Guerra”),

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em que os diversos clãs do território guerreavam entre si, numa disputa por terras e poder político.

Com a descentralização do poder e a busca por novas tecnologias de guerra, o Japão, cuja população, segundo relatos de portugueses, tinha grande estima entre os religiosos católicos, foi alvo da missionação, recebendo grande número de padres jesuítas, que tinham por objetivo converter o quanto pudessem da população, o que facilitaria a fixação de tratados comerciais entre portugueses e japoneses. Desta forma, os jesuítas ocuparam um importante papel na sociedade japonesa do século XVI, trabalhando como intérpretes entre as autoridades locais e os mercadores portugueses.

Este primeiro momento das relações luso-nipônicas foi marcado principalmente pelo monopólio português sobre as trocas comerciais com o Japão e por um gradual sucesso dos empreendimentos missionários, que ganharam muitos adeptos. Grande parte daqueles que se converteram o fez em nome de melhores oportunidades comerciais com os viajantes ocidentais, entretanto, pela hierarquia da sociedade japonesa da época, com a conversão de um daimyo, seus súditos seguiriam o mesmo caminho.

Os ventos mudariam para os portugueses com a gradual centralização do Japão, uma vez que seus líderes, como Toyotomi Hideyoshi, veriam no avanço do cristianismo um empecilho ao fortalecimento do poder central, uma vez que, “os padres jesuítas não respeitavam a identidade japonesa, marcada pela convivência pacífica do Xintoísmo, do Budismo e do Confucionismo” 3. A presença portuguesa,

especialmente dos missionários jesuítas, foi vista como uma ameaça à cultura e ao poder japonês. A situação, entretanto, tornar-se-ia mais delicada com a unificação oficial do Japão, após a batalha de Sekigahara4, em 1600, que faria com que o

imperador nomeasse o daimyo Tokugawa Ieyasu com o título de Shogun5. O Shogun Tokugawa, como primeira medida de governo, eliminou seus opositores,

3 TOYOTOMI, Hideyoshi. Letter to the Viceroy of the Indies. Apud TSUNODA, Ryusaku. BARY,

Theodore de. KEENE, Donald. Sources of Japanese Tradition. Nova Iorque, Columbia University Press, 1958, p. 316-318.

4 Ver: BRYANT, Anthony J. Sekigahara 1600: The final struggle for power. Nova Iorque, Osprey

Publishing, 2003.

5 Shogun, de acordo com W. Scott Morton, consistia no título militar mais alto do Japão,

“generalíssimo”, que veio, a partir do século XII a consistir do detentor do poder de fato na política japonesa, enquanto o Imperador detinha apenas um poder simbólico. MORTON, W. Scott. Japan Its

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unificando o território japonês sob seu comando, numa iniciativa distinta daquelas tomadas por reis europeus que visavam fortalecer seus poderes; ao invés de combater a organização “feudal”, congelou-a, transformando todos os daimyo e seus súditos em aliados e, aproximando-se do conceito europeu, “vassalos”.

O poder do clã Tokugawa logo ganhou força pelo território japonês, recebendo o reconhecimento da maioria dos daimyo do arquipélago. Entretanto, a população convertida recusava-se a reconhecer o Shogun como a autoridade máxima do poder, negando especialmente a tradicional origem divina do Imperador.

Se a época de chegada dos portugueses ao Japão coincidiu com um período de prosperidade da empresa navegadora portuguesa, seu período de expulsão do Japão (primeira metade do século XVII) foi marcado por um revés no poder e influência ao longo do império marítimo asiático, frente aos avanços holandeses pela região. O sucesso holandês no Japão deveu-se em grande medida à chegada do britânico William Adams (a serviço da Companhia Holandesa das Índias Orientais) ao arquipélago japonês, que, por seus conhecimentos náuticos e científicos, tornou-se um funcionário do shogun, influenciando diretamente na posição deste quanto à presença ocidental. Segundo Adams, os portugueses tinham como principais objetivos a expansão da fé cristã, fazendo o que fosse necessário para aumentar o número de católicos; os holandeses, em contrapartida, visavam o estabelecimento de relações estritamente comerciais com o Japão. O discurso de Adams logo refletiria na tomada de posição do shogun quanto à presença portuguesa em suas terras, confinando-a a poucos portos, inicialmente, e proibindo-a por completo num segundo momento.

Dito isto, o relato de William Adams sobre seu cativeiro no Japão, intitulado

The Log Book of William Adams6, também foi utilizado como fonte na discussão

proposta. Esta obra, contendo uma breve descrição de um longo período da vida do navegador britânico no Japão, é rica em aspectos culturais desta terra, apresentando situações cotidianas que realçam as características das relações nipo-ocidentais. Levando em conta a grande estima tida por Adams frente ao Shogun Tokugawa Ieyasu, podemos enquadrar o navegador numa espécie de prisioneiro com grande utilidade social, uma vez que, não sendo permitido seu retorno à

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Inglaterra, viveu no Japão como um aliado do shogun, sendo-lhe concedido esposa, servos e terras. Junto ao seu diário estão anexadas cartas de Adams para o exterior, para antigos companheiros da Companhia das Índias Orientais Holandesa e conterrâneos, e deste para Adams. Pretende-se, com base nas fontes apresentadas, esboçar uma análise macro-histórica do espaço-temporal recortado a partir de micro-histórias, seguindo as propostas expressas no texto de Jean-Claude Schmitt,

História dos Marginais7, e na obra Captives8, de Linda Colley. Para Schmitt, o estudo

das margens de uma sociedade pode trazer um rico conhecimento acerca destas e também do centro. Levando-se em conta os conceitos de marginalidade e centro expostos por Schmitt, podem-se enquadrar os missionários católicos, de acordo com o período estudado da Era Moderna do Japão, tanto em um quanto em outro, uma vez que, como fora apresentado, houve oscilações no interesse acerca dos missionários jesuítas, no tempo e no interior da sociedade japonesa. A obra de Colley, apesar de não problematizar o Japão e sim o Império Britânico e seus territórios coloniais, através de suas margens, traz uma importante metodologia de análise da produção, textual ou iconográfica, destes prisioneiros.

À luz de uma bibliografia de apoio sobre o tema, contanto com obras de Charles Boxer, Sanjay Subrahmanyam, Luís Filipe Thomaz, Valdemar Coutinho, Jurgis Elisonas e John Whitney Hall, principalmente, a análise dos documentos selecionados reforçou a idéia do trauma que a ação missionária significou para o Japão da Era Moderna. Percebeu-se a necessidade, a partir da reunificação do Japão, principalmente, em uma reafirmação das práticas tradicionais, que estavam ameaçadas pelo crescente número de conversos. A presença holandesa no arquipélago também se mostrou crucial na expulsão dos portugueses.

7 SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: GOFF, Jacques Le. A História Nova. São

Paulo, Martins Fontes, 2001.

8 COLLEY, Linda. Captives: Britain, Empire, and the World, 1600-1850. Nova Iorque, Anchor

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RESUMO

O presente estudo visou compreender as motivações sociais, políticas e econômicas que levaram à criação da política japonesa de expulsão dos portugueses e da Igreja Católica para fora do Japão. O espaço-temporal destacado é o Japão dos séculos XVI e XVII, que, durante um período de guerra civil, o

Sengoku-Jidai, entrou em contato com os navegadores portugueses, que vinham se

expandindo pela Ásia desde o século XV. Por uma série de razões que compuseram a conjuntura da expulsão (o proselitismo jesuíta frente a um povo com fortes tradições; a presença da Companhia das Índias Orientais Holandesas, marcada pelo navegador William Adams), os contatos luso-nipônicos passaram de amistosos a hostis. A fim de satisfazer os objetivos propostos, fez-se uma análise do evento destacado com base em fontes ocidentais e orientais, à luz de uma historiografia da expansão portuguesa e da história japonesa.

ABSTRACT

This study intended to understand the social, political and economic motivations that created the japanese expelling policy towards the portuguese and the Catholic Church away from Japan. The time and space selected is the 16th and 17th centuries Japan, which, during a civil-war period, the Sengoku-Jidai, established contacts with portuguese sailors, which were, since 15th century, expanding its domains along Asia. For many reasons that composed the conjecture of the expelling (the jesuit proselytism towards a strong culture; the Dutch East India Company presence in Japan, marked by the sailor William Adams), the japanese-portuguese relations went from friendly to hostile. Intending to satisfy the proposed objectives, the research was based on western and eastern sources, which were studied under historiographical works regarding the portuguese expansion and the japanese history.

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1 DE YAMATO AO SENGOKU-JIDAI

Segundo fontes japonesas e portuguesas, o primeiro contato luso-nipônico se deu no ano de 1543, na ilha de Tanegashima, ao sul do Japão.9 Neste momento, os

portugueses, que haviam vivido um processo de centralização do poder no século precedente, adquirindo um cenário favorável à expansão marítima, encontraram nas ilhas de Cipango10 um povo em estado de guerra civil, apesar de todo esplendor cultural, militar e urbanístico. Neste momento, no Japão, a figura imperial desfrutava de reconhecimento apenas no nível religioso, sendo considerado, pelas tradições

Shinto, como um representando vivo da linhagem divina responsável pelo

surgimento do arquipélago e do povo japonês; o poder de facto deveria ser exercido pelo Shogun11, que representava o poder militar do território japonês, entretanto sua imagem se encontrava desgastada desde princípios do século XV, quando além de uma grande fome assolar a população, o poder central dedicou grandes parcelas da arrecadação de impostos à construção e manutenção de castelos e jardins.12

Com o enfraquecimento da imagem do shogun, senhores de terras ao longo do território, tendo suas próprias milícias, buscaram a expansão de seus domínios e zonas de influência, o que, cedo ou tarde, entraria em conflito com as possessões shogunais. Estes senhores, os daimyo13, passaram a disputar o poder militar e econômico ao longo do território japonês, investindo pesado no desenvolvimento de suas milícias, marcadas pela figura do samurai14.

No momento da chegada dos portugueses ao Japão, como dito anteriormente, o poder se encontrava descentralizado e as diversas províncias, ou estados,

9 TSUNODA, Ryusaku. BARY, Theodore de. KEENE, Donald. Sources of Japanese Tradition. Nova

Iorque, Columbia University Press, 1958, p. 308-312.

10 VAUCHEZ, André; DOBSON, Richard; WALFORD, Adrian; LAPIDGE, Michael. Encyclopedia of the Middle Ages. Routledge, 2000, p. 334.

11 Abreviação do título Seii-Tai Shogun, que pode ser traduzido como “generalíssimo que subjuga os

bárbaros”. Este título deriva de qualificações militares antigas em que o indivíduo lideraria campanhas contra tribos periféricas do arquipélago japonês. O título de Shogun, concedido pelo Imperador, foi ressuscitado após a Guerra Genpei, tornando-se os Shogun líderes militares do Japão, exercendo o poder de fato sobre o território. YAMAMURA, Kozo. The Cambridge History of Japan, volume 3, Cambridge University Press, 1999, p. 697.

12 MORTON, William Scott. Japan Its History and Culture, 3ª edição, McGraw-Hill, 1994, p. 89-95. 13 Senhores militares regionais com domínios territoriais. YAMAMURA, op. cit., p. 688.

14 Aristocracia militar ou ainda, estado guerreiro da sociedade japonesa. Também conhecido por

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guerreavam entre si, daí vindo o nome dado por historiadores a este período:

Sengoku-Jidai, ou Período dos Estados em Guerra.

É importante, entretanto, lembrar que o Japão, muito antes de 1543, fora unificado sob um único líder, respeitado pelos diversos daimyo do território, numa coesão capaz de sustentar a população, desenvolvendo as artes e as religiões componentes do povo japonês. Assim, torna-se necessário explicar como surgiu e o quê foi o regime do Bakufu15, ou shogunato, que marcou, por mais de sete séculos,

de forma única, a política japonesa. 1.1 Do Império ao Bakufu

A historiografia japonesa é unânime em afirmar que os primeiros registros escritos da História do Japão datam de fins do século III d.C., de autoria chinesa. Desde os primeiros registros, como aponta a historiadora Célia Sakurai, pode-se notar a organização do povo japonês sob a liderança de uma única pessoa, um Imperador, que detinha o poder de facto sobre a população além de ser considerado um representante vivo das divindades Shinto.16 O poder imperial no Japão intensificou-se entre os séculos III e VIII, sob a influência do grande vizinho a oeste, o Império Chinês, cuja coesão política marcou grande parte da história chinesa até às conquistas mongol.

Os historiadores Delmer M. Brown e Inoue Mitsusada, na obra The

Cambridge History of Japan, volume 1, apresentam o grande papel do Império

Chinês na centralização do poder japonês, uma vez que os diversos mecanismos utilizados na legitimação do poder seriam “emprestados” da China, como, por exemplo, o Budismo, que foi introduzido no Japão em meados do século VI, sendo praticado, paralelamente às crenças Shinto, principalmente pela família imperial.17

Esta nova religião foi levada por monges chineses que se instalaram nas cortes japonesas, transmitindo, além dos ensinamentos budistas, a escrita de ideogramas,

15 O Governo da classes guerreira, liderado pelo Shogun. YAMAMURA, op. cit., p. 687.

16 O Shinto é a religião natural do Japão, caracterizada pelo culto à natureza e aos ancestrais e pelo

politeísmo. Os deuses, Kami, remetem às forças da natureza e aos mitos de criação do arquipélago e do povo japonês. Este conjunto de crenças e práticas religiosas não constituiu uma instituição religiosa até à entrada do Budismo e do Confucionismo na corte japonesa (a partir do século VI).

17 BROWN, Delmer M. The Cambridge History of Japan, volume 1. Cambridge University Press,

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os kanji18, o que possibilitaria a produção dos primeiros documentos de autoria japonesa. Em princípios do século VII são produzidos os primeiros documentos em língua japonesa, que consistem, segundo Célia Sakurai, na regulamentação do governo Imperial, defendendo a centralização do poder nas mãos de um único Imperador.19 Mais tarde, entre os séculos VII e VIII, foi produzido o Kojiki, livro que

narra os mitos Shinto acerca da criação do arquipélago e do povo japonês, apresentando, também, as origens da família imperial.

O que se pode notar, após esta breve exposição da formação de um Império Japonês, é que a família imperial detivera forte poder sobre seu território, controlando, Sakurai, a política, o militarismo, as terras e o comércio, interno e externo. É importante destacar a questão de como, com a má administração da economia, o poder imperial perdeu, entre os séculos IX e XI, o carisma da população e, principalmente, de grandes líderes militares, detentores também de grandes províncias do arquipélago.

O historiador William Scott Morton, em sua obra Japan: Its History and Culture, apresenta um paralelo entre a situação que ocorria no Japão do século IX e a Europa Medieval, uma vez que, segundo o autor, o poder político tendeu em ambas as regiões a se descentralizar, concentrando-se nas mãos de proprietários de terras dotados de milícias próprias, o que permitiria a expansão de domínios. 20 Historiadores falam, inclusive, em “feudalismo japonês”, em alusão à situação verificada na Europa Medieval, uma vez que se evidencia um aumento no número de propriedades privadas pelo arquipélago, o que contraria as primeiras normas impostas pelo regime imperial que colocava todo o território como posse da família do Imperador.21

Esta situação, também em concordância com a evidenciada na Idade Média européia, propiciou um maior desenvolvimento militar, o que, com o tempo, traria uma melhoria na vida social, através de avanços na agricultura, na urbanização, nas artes, nas estradas, dentre outros aspectos.

18 A palavra kanji é a versão japonesa da palavra chinesa hànzi, que significa “caracteres Han”, em

referência à Dinastia Han, que governou a China entre 206 a.C. e 220 d.C. Os japoneses assimilaram estes caracteres ao seu idioma silábico, desenvolvendo então seu sistema de escrita.

19 SAKURAI, Célia. Os Japoneses. São Paulo, Contexto, 2007, p. 70-74. 20 MORTON, William Scott, op. cit., p. 49-64.

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O crescimento do poder nas mãos de famílias guerreiras, como os Taira e os Minamoto, marcou a mudança na política japonesa, uma vez que o poder militar de ambas superava o exército imperial. Sucederam, entre os séculos X e XII, disputas pelo poder político entre as duas famílias. Esta série de disputas entre os clãs desembocou na Guerra Genpei (1180-1185), em que as forças militares dos Taira e dos Minamoto foram testadas, cabendo aos últimos a vitória. Este evento, para a historiografia, demonstra a ascensão de poderes locais no cenário político japonês, uma vez que Minamoto Yoritomo, líder do clã Minamoto, recebera do Imperador, cuja imagem encontrava-se desgastada, o título de Seii-Tai Shogun, que o colocava como principal líder militar do território.22

O ano de 1192 marca o reconhecimento oficial da família Imperial sobre a liderança do governo sob o clã Minamoto. Este regime que se instaurava marca a ascensão do poder militar na sociedade japonesa por mais de sete séculos. O

Bakufu, como este regime foi chamado, possuiria dois líderes: o Imperador, como

líder espiritual; e o Shogun, como líder de facto, controlando, dentre outros aspectos, a economia e o exército. O poder do Bakufu, ao contrário do que se esperaria, não acabou com as características “feudais” do Japão do século XII, utilizando-se da descentralização de outrora para consolidar o poder do Shogun, através da submissão dos demais senhores (daimyo) do território. As terras, shoen, seriam divididas entre os daimyo, cabendo aos mais poderosos e próximos do Shogun as melhores e maiores porções; todos os daimyo deveriam contribuir com homens e tributos ao poder central.

O shogunato, apesar de deter o poder de fato, fora instituído em respeito ao Imperador, de forma que o Shogun deveria receber este título por parte do representante da casa imperial; outra “regra” para que o indivíduo se tornasse

Shogun é que deveria ter ancestralidade com o primeiro homem a liderar sob este

título, Minamoto Yoritomo, o que previa a manutenção do poder nas mãos de uma única linhagem, o quê de fato ocorreu, por mais que o Shogun Tokugawa Ieyasu, que assume oficialmente a liderança do Japão em 1603, tenha, segundo a historiografia, forjado sua ancestralidade.23

22 MASS, Jeffrey P. The Kamakura Bakufu. In.: YAMAMURA, op. cit., p. 59-87. 23 TSUNODA, op. cit., p. 322-326.

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O Bakufu foi um regime político unicamente japonês, visando balancear a liderança entre duas esferas distintas, sem confundi-las: o Imperador e o Shogun. Entre os séculos VII e VIII o Império Japonês baseara-se fortemente na cultura e política chinesas, construindo suas capitais sob os moldes da cidade de Xian, capital da dinastia T’ang, da China. Também as artes e a vestimenta sofreram forte influência chinesa. Para Morton, a tentativa da família imperial japonesa em copiar o estilo de vida chinês representa uma busca pela mesma coesão política identificável no Império T’ang.24 O estabelecimento do Bakufu, de acordo com Jeffrey Mass e

Morton, representou não apenas uma ruptura na política japonesa, mas também uma ruptura com os padrões políticos, urbanísticos, militares e artísticos chineses.

Ao Bakufu iniciado em 1192, por Minamoto Yoritomo, e que vai até princípios do século XIV, dá-se o nome de Kamakura, em referência ao local em que se estabeleceu a capital do Japão.25 Em finais do século XIII e princípios do XIV, aumenta o descontentamento geral da população com o governo de Kamakura, uma vez que este não teria sido capaz de repelir os ataques mongóis que se sucederam nos anos 1274 e 1283. A “vitória” japonesa neste confronto deu-se, em ambas as ocasiões, por fortes tempestades que obrigaram os invasores a recuar. Mesmo sendo um regime militar, o shogunato de Kamakura não estava preparado para repelir ataques tão ferozes como teriam sido aqueles liderados pelo mongol Kublai Khan. As tropas mobilizadas pelos japoneses, segundo Morton e Sakurai, não dispunham de equipamentos e organização adequados; fora isso, aqueles que se apresentaram ao campo de batalha não foram recompensados, o que causou grande descontentamento por parte da camada guerreira do Japão.

Em princípios do século XIV foi estabelecido o segundo Bakufu, nomeado Ashikaga, por ter sido instaurado pelo daimyo Ashikaga Takeuji. Este Bakufu foi quase inteiramente marcado por guerras, motivadas por fatores diversos. De acordo com a historiografia, este foi um dos momentos de maior indolência por parte dos governantes japoneses, uma vez que a arrecadação de impostos alcançou altos níveis, não havendo, entretanto, um retorno substancial deste valor aos habitantes; templos e castelos foram erguidos pelo governo central, que buscava homenagear através de construções as diversas divindades Shinto; devido a períodos severos de

24 BROWN, op. cit., p. 184-209. 25 YAMAMURA, op. cit., p. 46-80.

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fome, a população se rebelou contra as autoridades centrais, em guerras civis, ao longo do século XIV; também a camada guerreira da sociedade, que, inspirada pelas práticas Zen-Budistas26, dedicava-se ao desapego da vida material e da ostentação

de grandes palácios, passou a contestar a irresponsabilidade do governo para com a administração. Os daimyo descontentes passaram a se dedicar cada vez mais na formação e organização de milícias particulares, visando expandir suas áreas de influência, através da conquista de territórios vizinhos. Em meados do século XV o descontentamento com os Ashikaga era geral, como mostra Morton, de forma que a autoridade do Shogun tornou-se quase tão simbólica quanto à do Imperador, cujo prestígio também havia sido abalado. O cenário caminhava gradualmente para a deposição do Shogun, uma vez que famílias, como a Oda e a Toyotomi, conquistavam mais territórios, ampliando seus exércitos.

O período Ashikaga, entretanto, apesar de politicamente instável, é tido pela historiografia como o período de esplendor das artes, do desenvolvimento urbano, dos meios de transporte (tanto marítimos quanto terrestres) e do comércio. Com o crescimento dos exércitos, motivado pelo quadro de guerra civil, a movimentação pelo território tornou-se mais eficaz, uma vez que estradas e portos foram melhorados, assim como seus meios de transporte correspondentes, a fim de um encurtamento entre as regiões. O militarismo dos daimyo favoreceu também a um desenvolvimento de técnicas e arsenais de guerra; armas, como a tradicional espada japonesa (Katana) e a lança (Naginata), receberam melhorias, tanto em relação à produção quanto ao seu manejo; as armaduras também se tornaram mais eficazes e ornamentadas, carregando consigo figuras de animais, chifres e até mesmo máscaras com rostos “diabólicos”, que deveriam representar o espírito do guerreiro no campo de batalha. A guerra se tornava cada vez mais regulamentada: os samurai, guerreiros de elite que se destacavam desde, pelo menos, a Guerra

Genpei, comandavam as tropas, usufruindo de equipamentos mais variados e

eficazes, como armaduras para todo o corpo, arco e flechas, espadas e lança, do que aqueles utilizados pelos escalões mais baixos, os ashigaru.

No intuito de demonstrar suas forças e de ocupar regiões recém-ocupadas, os

daimyo ergueram diversos castelos ao longo do território japonês, muitos dos quais

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se mantêm erguidos ainda hoje. Ao redor destes castelos plantações e cidades se desenvolveram o que, segundo Morton, junto ao melhoramento dos transportes, propiciou o florescimento do comércio entre regiões diversas do território japonês; alguns daimyo possuíram inclusive contatos com a China, mantendo um intercâmbio de artigos de luxo, como a seda e a porcelana em troca de artigos como espadas e lanças.27

As artes, durante o Bakufu Ashikaga, tiveram seu esplendor. Deste período datam as principais pinturas de byoubu cujas características apresentam a formação de uma identidade japonesa nas artes, desvinculando-se das artes chinesas.

O cenário politicamente instável do Sengoku-Jidai propiciou, como se viu, ao desenvolvimento de outros aspectos da vida japonesa. Seriam estes os dois lados de uma mesma moeda, que levariam, ao final do século XVI, à completa derrubada do poder dos Ashikaga e, poucos anos mais tarde, à ascensão do clã Tokugawa ao

Bakufu.

Após esta introdução acerca da trajetória política, econômica e social do Japão, podemos afirmar que os portugueses, ao chegarem neste território, não se depararam com uma sociedade estática, politicamente estável e comercialmente fraca; ao contrário, os portugueses foram os primeiros representantes do ocidente no comércio japonês, o que não significaria dizer que os japoneses não mantinham relações comerciais com outros povos, como os chineses, por exemplo. A sociedade japonesa mostrou-se, ao longo de sua trajetória, bastante aberta a novas religiões, praticando, em seu cotidiano, ao menos três: o Shinto, o Budismo e o Confucionismo. O dinamismo do Japão no século XVI evidencia-se nos mais diversos aspectos, especialmente políticos e militares. Num período em que a guerra não seria uma opção, mas talvez a única saída para muitos daimyo, melhores equipamentos fariam toda a diferença, por isso a busca, por parte dos samurai em buscar o conhecimento da guerra através do raciocínio e da meditação, aos moldes Zen-Budistas. Novas técnicas seriam assimiladas às tradicionais: as armas de fogo, levadas ao Japão pelos ocidentais, aliar-se-iam às espadas, lanças e arcos e flechas utilizados no

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campo de batalha, fazendo toda a diferença em diversas campanhas militares travadas ao longo do arquipélago japonês.

Assim como os japoneses buscaram aprender com os chineses em seu passado distante (e continuavam a trocar conhecimento no século XVI), buscaram assimilar também o conhecimento transmitido por Portugueses, Holandeses e Britânicos que estabeleceram contatos. Conhecimentos náuticos, geográficos, astronômicos e bélicos, principalmente, atraíram enormemente a atenção dos japoneses que fizeram parte do cenário das Grandes Navegações; manuais que trouxessem tais conhecimentos eram bastante valorizados na sociedade japonesa, especialmente por daimyo que buscavam estar sempre um passo à frente de seus rivais em termos tecnológicos.

A situação política do Japão no século XVI, a descentralização do poder, foi aproveitada amplamente por portugueses, que comercializavam diretamente com os

daimyo, sem a intervenção do que deveria ser um governo central, o que permitia a

entrada maciça de artigos europeus nas terras nipônicas em troca, dentre outros artigos, principalmente de prata, bastante valorizada pela Europa. Muitos daimyo favoreceram a entrada de europeus na sociedade japonesa, pois viam nestes, além de fornecedores de artigos novos e raros, potenciais aliados para futuras guerras. Esta liberdade de entrada possibilitou ainda a inserção de uma nova religião na sociedade japonesa: o Cristianismo, que se propagaria amplamente entre diversas camadas da sociedade em um espaço de tempo relativamente curto. O que não se esperava no primeiro momento deste processo de cristianização, os primeiros 40 anos após a chegada do missionário jesuíta Francisco Xavier (1549), era a gradual repulsa dos principais líderes do Japão àquela religião européia, o que refletiria num episódio traumático para ambos os sujeitos envolvidos no processo de expulsão dos portugueses e, especialmente, da Igreja Católica.

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2 OS PRIMEIROS CONTATOS ENTRE PORTUGAL E JAPÃO

A expansão portuguesa rumo ao Oriente se deu por razões diversas, tais como o ideal cruzadístico de propagação da Fé Cristã na luta contra o bloco islâmico, a situação geográfica do Reino Português, a rivalidade com Castela, motivada pelo posicionamento oposto de ambos durante a Guerra dos Cem Anos, pelo Cisma do Ocidente e pelas disputas econômicas que se verificariam ao longo do processo expansionista. Por seu posicionamento geográfico, voltado ao Atlântico e cercado, por outro lado, por Castela, Portugal se lançaria ao reconhecimento de arquipélagos situados no oceano, visando suprir sua crise conjuntural e estrutural, condicionadas por más colheitas e pela Peste Negra.28

Desde a baixa Idade Média, especiarias, ouro, prata, porcelana, tecidos e outros artigos de luxo, cujo comércio era lucrativo, circulavam pela Europa, alcançando-a por via terrestre, através da Rota da Seda, passando por vários povos até chegar às mãos dos mercadores genovezes e italianos, responsáveis pela sua redistribuição ao longo do mediterrâneo. Neste cenário, de monopólio das conhecidas vias comerciais por parte dos povos muçulmanos e dos italianos, o empreendimento marítimo, ao longo do Atlântico, significaria, para Portugal, uma alternativa econômica para sanar as crises de finais do medievo e uma afirmação política frente a Castela.29

Contornando a costa africana, os navegadores portugueses adaptaram, ao longo do tempo, suas embarcações, no intuito de sobreviverem às novas condições climáticas e marítimas encontradas. A cartografia encontraria, a partir desde período, um avanço significativo, buscando um mapeamento das rotas marítimas e da região costeira do continente africano. Em 1488, com a passagem do cabo da Boa Esperança por Bartolomeu Dias, a rota marítima para a Índia tornou-se possível, com Vasco da Gama, que estabeleceu os primeiros contatos diretos entre Portugal e Ásia.

A Coroa teve importante papel na direção, estímulo e execução dos empreendimentos marítimos portugueses, entretanto, a ação privada foi de grande peso no desenvolvimento da carreira da Índia, que estimulou o entrelaçamento de

28 THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa, Difel, 1994, p. 52. 29 Idem, p. 44-51.

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uma ampla malha de relações comerciais com diversas regiões asiáticas. O islamismo, presente em vários territórios do Índico, seria um dos principais obstáculos aos mercadores portugueses, o que Rui Loureiro, embasado em relatos destes navegadores, diz ter culminado com cenas cruéis de enforcamentos, decapitações e outras práticas de assassinatos que são narradas com uma naturalidade que reflete o ideário anti-islã da época. Enquanto os portugueses buscaram uma maior aproximação com os povos japoneses, por exemplo, aos islâmicos o tratamento dado foi bastante severo, partindo, em muitos casos, como na tomada de Goa, diretamente para a execução dos muçulmanos, sem a tentativa de convertê-los. Este cenário de confronto direto com o islamisto exemplifica a pluralidade da ação portuguesa pelo Oriente, encontrando, além de especiarias, um forte estado de guerra.30

Desde a viagem de Pedro Álvares Cabral, de acordo com João Paulo Oliveira e Costa, em seu estudo sobre os contatos luso-nipônicos na Era Moderna, que os portugueses teriam notícias mais concretas acerca dos povos do Extremo Oriente, o que teria motivado um maior conhecimento das variações antropológicas da região.31

As expedições a Malaca viam neste território um ponto estratégico para a administração das colônias portuguesas orientais, sendo considerada uma porta de acesso a regiões remotas e artigos altamente lucrativos. A ordem do rei Manuel previa o conhecimento acerca do comércio e da situação política dos territórios a sudeste, o que desembocou numa série de tentativas frustradas de se estabelecer laços com o poder (muçulmano) de Malaca, sendo possível aos navegadores portugueses estabelecer seu poder sobre a região após um ataque, em 1511, por Afonso de Albuquerque.

De acordo com Oliveira e Costa, foi através das campanhas de reconhecimento e conquista de Malaca que se deu o contato direto entre portugueses e chineses. Pouco se sabia sobre deste povo, que constituía um grande império do Oriente Extremo, o que motivaria o recolhimento de informações acerca

30 LOUREIRO, Rui. O encontro de Portugal com a Ásia no século XVI. In.: ALBUQUERQUE, Luís

de. FERRONHA, Antonio Luís; HORTA, José da Silva e LOUREIRO, Rui. O confronto do olhar. O

encontro dos povos na época das navegações portuguesas. Lisboa, Caminho, 1991, p. 164. 31 COSTA, João Paulo A. Oliveira e. A Descoberta da Civilização Japonesa pelos Portugueses.

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dos Ming, sua política, seu exército, seu comércio, sua religião e poderio militar. Os primeiros contatos sino-portugueses foram, de acordo com o autor, pacíficos e amistosos, sendo que, para os navegadores lusos, o povo chinês teria logo um aspecto positivo frente a outros habitantes da Ásia já conhecidos: não serem muçulmanos.32

O comércio e o envio de embaixadas portuguesas ao Império Ming acentuou o dinamismo português no mar da China, o que levou os portugueses a estabelecerem feitorias e armadas próximas à costa. A grande diferença entre as diversas campanhas de estabelecimento de laços político-comerciais com os povos asiáticos se deu no reconhecimento de governos fortes e centralizados, como no caso dos Ming, o que exigiria uma abordagem mais diplomática por parte dos portugueses, ou de povoados politicamente instáveis, o que possibilitaria a entrada direta (por vezes à força) dos mercadores lusos nestas regiões.

O Japão apareceria no horizonte dos descobrimentos portugueses apenas em 1543, após uma longa e difícil fixação dos mercadores portugueses pela costa do Índico. A cidade de Macau seria a ponte que ligaria o Celeste Império ao Japão, o que reativou uma rota comercial há muito enfraquecida por estes dois impérios orientais. A presença portuguesa em Macau, segundo Antônio Martins do Vale, se deu por empreendimento dos próprios navegadores e comerciantes interessados na região, uma vez que as negociações formais da coroa com a administração da cidade resultaram em sucessivos fracassos.33 Com a criação da cidade de Macau, a

presença portuguesa no mar da China se consolidaria.

Para Oliveira e Costa, a chegada dos portugueses ao Japão teria sido motivada pelo mesmo empreendedorismo que resultou na fixação portuguesa em Macau, uma vez que não se tinha ordens régias de reconhecimento e estabelecimento de laços com o arquipélago nipônico.

2.1 O Teppo-ki

Ao sul da província de Osumi a 18 ri da costa, há uma ilha chamada Tanegashima. Meus antepassados viveram lá por gerações. De acordo com

32 Idem, Ibidem, p. 92.

33 Ver: VALE, Antônio M. Martins do, Macau Uma “República” de Mercadores. In.: Os espaços de um império. Estudos, Lisboa, CNCDP, p. 203-211.

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uma antiga lenda, o nome Tane deriva do fato de a ilha ser pequena, mas sua população continua a crescer e prosperar, como a semente na estação do plantio. Durante a era Temmon [1532 – 1554], no dia 25 do oitavo mês do ano da Água e da Lebre [1543], surgiu um grande navio em nossa costa oeste. Ninguém sabia de onde havia vindo. Carregava uma tripulação de mais de cem homens que tinham características físicas distintas das nossas, e de fala incompreensível, de modo que todos que os viram os julgaram suspeitos.34

Assim começa o Teppo-ki, ou “jornal de armas”, escrito em 1606 pelo monge zen budista Nampo Bunshi cujo objetivo seria manter viva a lembrança sobre o processo de introdução das armas de fogo no Japão. O primeiro ponto que se pode destacar é a “suspeita” dos japoneses quanto àqueles estrangeiros que haviam chegado, uma vez que o Japão passava, naquele momento, por um período de guerra civil, o Sengoku-Jidai, tendo suas relações comerciais exteriores limitadas a alguns portos chineses, desconhecendo povos e regiões longínquas do globo. Líderes como Oda Nobunaga viriam, em pouco tempo, a se destacar como fortes ícones do processo de unificação do shogunato. A seguir, no documento, o monge relata:

Havia entre eles um magistrado chinês, de sobrenome incerto, chamado Goho. Naquele tempo vivia um homem chamado Oribe, chefe de uma vila da costa oeste, conhecedor do Chinês. Então, após conhecer Goho, conversaram por meio de palavras chinesas escritas na areia. Ele escreceu: “Aqueles passageiros do navio – de que país são? Por que parecem tão diferentes?” Goho escreveu em resposta: “Eles são comerciantes entre os bárbaros do sudoeste. Sabem um pouco a respeito da etiqueta dos monarcas e ministros, todavia não sabem que as atitudes educadas são parte da etiqueta. Portanto, quando bebem não brindam. Usam suas mãos para comer e não palitinhos [hashi]. Sabem satisfazer seus apetites, contudo não manifestam seus pensamentos pela escrita. Esses mercadores visitam os mesmos lugares na esperança de trocar o que têm pelo que não têm. Não há nada suspeito sobre eles.35

“Não há nada suspeito sobre eles [os portugueses]”, segundo o magistrado chinês. Não se sabe há quanto tempo Goho conhecia os portugueses

34 BUNSHI, Nampo. Teppo-ki, apud TSUNODA, op. cit., p. 308. Esta obra, de dois volumes, consiste

em uma coetânea de fontes acerca da História do Japão; os documentos trazidos e comentados pelos organizadores abrangem o Japão desde o século III até o período contemporâneo do Japão pós-Segunda Guerra Mundial. Tradução livre do autor a partir do inglês.

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consequentemente, não se pode julgar a veracidade das informações transmitidas pelo chinês, por razões diversas: primeiro, o documento em questão, como dito, foi produzido ao menos sessenta anos após o evento narrado; segundo, acredita-se que a comunicação estabelecida entre Goho e Oribe pode ter sofrido distorções de sentido, uma vez que os idiomas japonês e chinês possuem ideogramas em comum, que muitas vezes podem apresentar significados diferentes. Um segundo ponto a ser analisado seria o fim do excerto destacado acima, onde se percebe logo a intenção, segundo Goho, daqueles “bárbaros do sudoeste”: o comércio. Esta característica fica ainda mais clara quando, a seguir, o autor da fonte descreve os primeiros contatos diretos estabelecidos entre os mercadores portugueses e uma autoridade japonesa.

Então Oribe escreveu: “À 13 ri daqui existe um porto chamado Akaogi, onde a família que eu devo obediência vive por gerações. Vivem no porto algumas dezenas de milhares de famílias. O povo é rico e próspero, mercadores do sul e comerciantes do norte vêm e vão continuamente. Agora o barco está ancorado aqui, mas lá é muito melhor onde o porto é calmo e profundo.” [...] [Goho relatou]: “Existem dois líderes entre os comerciantes, um chamado Murashusa e outro Cristiano Mota. Carregavam em suas mãos algo de dois ou três pés, reto com uma passagem interna, e feito de material pesado. A passagem interna percorre toda a sua extensão e é fechado ao final. Ao lado há um orifício que é caminho para o fogo. Não se parece com nada que eu conheça.”

O senhor Tokitaka pensou que isso era a maravilha das maravilhas. Não sabia o seu nome nem os detalhes do seu uso. [...]

Em uma bela manhã se encheu a arma com pólvora e bolinhas de chumbo, foi colocado um alvo a mais de cem passos e fogo foi aplicado à arma. Inicialmente o povo ficou paralisado; depois ficaram assustados. Entretanto no final todos disseram juntos: “Queremos aprender!” Apesar do alto preço, Tokitaka comprou duas armas dos estrangeiros, para o tesouro de sua família. Ele deixou seu servo, Shinokawa Shöshiro, aprender a arte de preparo da pólvora. Tokitaka ocupou manhãs e noites, sem descanso, no manuseio das armas. Como resultado disso, conseguiu converter seus erros iniciais em tiros certeiros – cem acertos em cem tentativas...

De tão interessado que estava Tokitaka, na arma de fogo, que possuía um número de ferreiros examinando-a e estudando-a por meses, de estação a estação na tentativa de construir alguma. [...] O interesse de Tokitaka não se prendia à coronha ou ao ornamento, mas ao seu uso na guerra.36

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Os primeiros contatos luso-nipônicos, como se pode notar através da fonte e como a historiografia apresenta, foram bastante amigáveis, sendo rentável às duas partes e se intensificando durante as décadas seguintes. Para os portugueses, o Japão poderia oferecer, dentre outras mercadorias, a prata, em grande quantidade; para os japoneses o lucro transcendia a esfera material, uma vez que conhecimentos náuticos, militares e científicos ocidentais foram introduzidos em sua sociedade. Fica claro, no documento apresentado, o entusiasmo do senhor Tokitaka com a arma de fogo, a “maravilha das maravilhas”. Lembremo-nos então da situação política do Japão do século XVI, descrita no capítulo anterior: a guerra civil imperava, de maneira que os diversos daimyo disputavam territórios, na maior parte das vezes, à base da guerra. Deter o conhecimento e a produção de armamentos mais eficazes poderia significar a vitória para os generais japoneses Sendo assim, pode-se imaginar o grande interesse de diversos daimyo em recepcionar os estrangeiros europeus, a fim de aprender com eles e tê-los como possíveis aliados. Pode-se destacar também a dedicação do senhor Tokitaka e de seus servos não apenas em conhecer a tecnologia levada pelos estrangeiros, mas em dominá-la, atingindo a perfeição: “cem acertos em cem tentativas”.

A intenção do autor do Teppo-ki é clara: creditar à família do senhor de Tanegashima a introdução da arma de fogo no Japão. Segundo os autores da obra que contém a fonte apresentada, Nampo Bunshi transcreveu o relato a pedido de um descendente do senhor Tokitaka, que supostamente protagonizou os eventos de 1543.

As armas de fogo viriam a ser, a partir da década de 1570 (mais especificamente após a batalha de Nagashino, 1575), decisivas no processo de unificação do Japão, em que três figuras se destacariam: Oda Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu, sobre os quais falaremos mais adiante.

Os japoneses, para os portugueses, valorizavam grandemente a honra e seus líderes, como podemos notar através do seguinte trecho de um documento produzido pelo capitão português Jorge Álvares, em 1547:

A gente deste Japão pela maior parte é de meãos corpos, refeitos e gente mui rija para trabalho. E gente branca, de boas feições. [...]

E gente pouco cobiçada e muito maviosa. Se ides a sua terra, os mais honrados vos convidam que vades comer e dormir a sua casa; parece que

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vos querem meter na alma. São muito desejosos de saberem de nossas terras e doutras cousas, se as ousarem. [...]

Esta gente tem muito acatamento ao seu rei, é deles muito estimado. [...] E gente que, em casa e comendo, sempre têm as espadas à cinta. 37

Os elogios feitos por Jorge Álvares quanto à postura dos japoneses frente aos europeus enfatizam a curiosidade e interesse daquele povo em conhecer seus hóspedes. O “acatamento” ao rei pode ser visto como um dos aspectos que provocou a estima dos portugueses pelo modo de vida japonês, uma vez que o rei, em Portugal, detinha grande respeito entre seus conterrâneos e súditos, entretanto não se pode saber ao certo a quem Jorge Álvares se refere ao falar em “rei” do Japão. A figura do Imperador, apesar de deter apenas um poder simbólico, ligado especialmente às crenças Shinto, ainda era respeitada durante o Sengoku-Jidai, no entanto carecia de poderes políticos e militares. O Shogun, neste período, havia perdido seu prestígio político e militar fazia décadas, o que possibilitou a ascensão dos daimyo, que de fato exerciam seus poderes por vastas regiões, detendo o respeito daqueles que viviam e trabalhavam em suas terras e que lutavam por eles. Creio que o mais coerente, com base no contexto em que Jorge Álvares escreveu o documento apresentado, seria alinhar o termo “rei” ao(s) daimyo com quem teve algum contato. Um dado como “sempre têm as espadas” reforça a concepção de devoção dos guerreiros japoneses em praticar o Bushido38 no dia-a-dia, buscando a perfeição das técnicas de luta.

Também o célebre navegador português Fernão Mendes Pinto relatou acerca de suas experiências no Japão, em sua obra Peregrinação. Destaque para o trecho a seguir, retirado da obra mencionada pelas similaridades com o Teppo-ki:

[...] Nós os três portugueses, como não tínhamos veniaga em que nos ocupássemos, gastávamos o tempo em pescar e caçar [na ilha de Tanixumá], e ver templos dos seus pagodes que eram de muita majestade e riqueza, nos quais os bonzos, que são os seus sacerdotes, nos faziam muito gasalhado,

37 Apud ALBUQUERQUE, Luís de; FERRONHA, Antonio Luís; HORTA, José Mello da Silva;

LOUREIRO, Rui. O encontro dos povos na época das navegações portuguesas. Lisboa, 1991, p. 198-200.

38 Tradicional código dos samurai, valorizando a honra, disciplina, auto-controle, obediência, coragem

e vida simples, segundo a obra: FREDERIC, Louis. O Japão – Dicionário e Civilização, São Paulo, Globo, 2008, p. 283.

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porque toda gente do Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversadora.

Os japões, vendo aquele novo modelo de tiros que nunca até então tinham visto, deram rebate disso ao nautaquim que neste tempo andava vendo correr uns cavalos que lhe tinham trazido de fora, o qual espantado desta novidade mandou logo chamar Zeimoto ao pau onde estava caçando, e quando o viu com a espingarda às costas, e dois chins carregados de caça, fez disto tamanho caso que em todas as coisas se lhe enxergava o gosto do que via, porque como até então naquela terra nunca se tinha visto tiro de fogo, não sabiam determinar o que aquilo era, nem entendiam o segredo da pólvora, e assentaram todos que era feitiçaria.

E entendendo então o Diogo Zeimoto que em nenhuma coisa podia melhor satisfazer ao nautaquim alguma parte destas honras que lhe fizera, e que nada lhe daria mais gosto que lhe dar a espingarda, lha ofereceu um dia que vinha da caça com muita soma de pombas e rolas, a qual ele aceitou por peça de muito preço e lhe afirmou que a estimava muito mais que todo o tesouro da China. No ano de 1556, me afirmaram os japões que naquela cidade de Fuchéu, que é a metrópole deste reino, havia mais de trinta mil [espingardas].39

Primeiramente, podemos nos deter quanto ao local em que se passa o episódio narrado pelo navegador português: Tanixumá, que corresponde à ilha de Tanegashima. O evento assemelha-se àquele narrado por Nampo Bunshi, cujo fascínio da população local e especialmente do senhor daquela terra ganha destaque. O presente dos portugueses ao nautaquim (o senhor local) foi justamente a arma de fogo, segundo o navegador, o que motivou a curiosidade dos japoneses. Também a técnica para se utilizar de maneira eficaz a arma foi ensinada por Zeimoto ao nautaquim. As semelhanças com o Teppo-ki são várias, como se pode notar, o que possibilita, além de supor que de fato tratam do mesmo evento e dos mesmos personagens, afirmar que os primeiros contatos luso-nipônicos abriram amistosamente as portas do Japão a Portugal. Assim como Jorge Álvares, Fernão Mendes Pinto também faz elogios aos habitantes da Terra do Sol Nascente, apontando a receptividade destes aos estrangeiros.

Em menos de uma década, os contatos entre japoneses e portugueses evoluíram consideravelmente. Os portugueses não se limitaram à ilha de Tanegashima, ao sul do arquipélago, visitando outras províncias e firmando relações com diversos daimyo, o que incentivou o comércio e a comunicação japonesa ainda

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mais do que o estado de guerra havia feito. Não tardou para que os portugueses avançassem as relações com aquele povo oriental através da missionação, inicialmente pela ação do missionário jesuíta Francisco Xavier, em 1549.

Jurgis Elisonas, na obra The Cambridge History of Japan, analisa o encontro luso-nipônico como o início daquilo que seria mais tarde chamado pela historiografia de “O século cristão do Japão”.40 A entrada das armas de fogo, segundo este autor,

na sociedade japonesa consistiu num dos principais atrativos aos habitantes do arquipélago japonês para o comércio com os estrangeiros europeus. Em diversos momentos anteriores ao evento descrito no Teppo-ki, chineses e japoneses mantiveram estreitas relações políticas, comerciais e culturais. Como se viu, as trocas de conhecimento, como a introdução do Budismo na corte japonesa, foram intensas e, mais ainda, decisivas na trajetória do Império do Sol Nascente. Os contatos formais sino-nipônicos se mantiveram desde o período Ashikaga, entretanto, diminuíram em escala, devido, dentre outros fatores, ao grande número de piratas japoneses no mar da China. Os mercadores portugueses, inseridos neste quadro de relações comerciais entre diversos povos, supririam novamente a grande demanda japonesa pela seda e outros artigos chineses, servindo de intermediários comerciais entre o Celeste Império e o Japão.41

2.2 O Início da Missionação

“Um povo tão prudente e talentoso, interessado por conhecimento, obediente à razão, com muitas outras qualidades, não pode falhar em render muitos frutos” 42.

Esta frase, de Francisco Xavier, datada de 1552, carrega consigo um dos principais aspectos motivadores do processo de cristianização no Japão, que seria a visão positiva, dos jesuítas, sobre os japoneses. Antes ainda da chegada dos primeiros jesuítas ao arquipélago japonês, documentos como a carta do capitão Jorge Álvares, citada anteriormente, carregavam características positivas acerca da população da Terra do Sol Nascente. Como nos mostra J. Elisonas, em seu texto acerca do

40 ELISONAS, Jurgis. In.: HALL, John Whitney. The Cambridge History of Japan, volume 4.

Cambridge University Press, 1994, p. 302.

41 Ver: ELISONAS, op. cit., p. 303.

42 Apud ELISONAS, Jurgis. The Jesuits, The Devil, and pollution in Japan. In.: Bulletin of Portuguese/Japanese Studies, volume I. http://redalyc.uaemex.mx, 2000, p 3.

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cristianismo no Japão, os jesuítas que se encarregaram de dar os primeiros passos em direção à difusão da Fé Católica naquelas terras iludiram seu julgamento acerca das práticas religiosas japonesas, que seriam o Budismo, o Confucionismo e o

Shinto, afirmando que estas estavam quase completamente em conformidade com o

catolicismo.43 As religiões vigentes no Japão foram gradativamente alvo de críticas

por parte dos missionários jesuítas, “que viam em Xaca e Ameda, e todo o resto, demônios”.44 Em 1556, o padre Cosme Torres apresentou ao padre Melchior Nunes Barreto o “Sumário dos erros em que os pagãos do Japão vivem e algumas de suas seitas”, contendo descrições de templos, cultos e práticas religiosas japonesas. Tanto o Budismo quanto o Shinto foram alvos do “Sumário”, sendo diretamente relacionados ao diabo, principalmente por práticas que envolviam o sacrifício de animais ou até de humanos. O problema do Japão, para os padres da Companhia de Jesus, residia em suas religiões, não em seus hábitos do cotidiano ou em suas organizações política e econômica; os japoneses, acreditavam os jesuítas, eram bons e aceitariam o Evangelho.

Pode-se destacar o importante papel ocupado que o jesuíta ocupara, como conhecedor e divulgador (ainda que tendenciosamente) das diversas culturas com as quais os portugueses entraram em contato durante a era das Grandes Navegações. A busca por conhecer as religiões japonesas fez com que o idioma falado e escrito pelo arquipélago fosse conhecido mais a fundo, possibilitando que o contato luso-nipônico se desse de maneira direta. O “Sumário” de Torres apresenta transcrições de obras budistas e Shinto, o que sugere o interesse do autor em conhecer aqueles com quem dialogava. Também o padre jesuíta João Rodrigues (1561-1633), foi creditado por seu amplo conhecimento acerca das artes, da literatura e, consequentemente, do idioma japonês, o que lhe conferiu, segundo Boxer, o título de Tçuzzu, ou “intérprete”.45

O interesse em conhecer os idiomas das regiões a serem convertidas tinha, obviamente, o objetivo de transmitir diretamente os ensinamentos católicos aos nativos. Através da linguagem falada e gestual, os missionários pregavam passagens bíblicas e aspectos do modo de vida católico. De acordo com Boxer,

43 Op. cit., p. 4. 44 Op. cit., p. 4.

45 BOXER, Charles Ralph. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica 1440-1770. São Paulo,

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dentre os artifícios utilizados pela Companhia de Jesus para ensinar o catolicismo, estava a produção teatral, através da qual recém-convertidos encenavam episódios católicos. Buscava-se, desta forma, a adequação da vida dos nativos à vida católica, inserindo, gradativamente, o calendário e s hábitos do cotidiano.

Para Elisonas, os japoneses viam nos jesuítas, inicialmente, figuras de confiança que se assemelhavam aos monges zen-budistas, detentores de conhecimento e sempre aptos a aprender, o que, sem dúvida, facilitou muito a entrada dos jesuítas na sociedade do Japão. Enquanto os comerciantes portugueses limitavam seus contatos aos principais portos, adentrando raramente no arquipélago, os padres missionários buscaram, desde a década de 50 do século XVI, levar as crenças católicas às diversas regiões.46

Neste primeiro momento da missionação, que se deu entre 1549 até 1590, aproximadamente, a Companhia de Jesus teve consideráveis avanços em seu processo de missionação do Japão, erguendo centenas de capelas e convertendo milhares de pessoas. Este sucesso da Igreja Católica se deu por diversas razões: primeiramente, devemos levar em conta a situação política do Japão do século XVI, a descentralização. O estado de guerra entre as diversas províncias motivou a busca por conhecimentos científicos e militares, o que aproximou muitos daimyo dos mercadores portugueses, levando tradições e hábitos portugueses à esfera da vida japonesa. De acordo com Morton, na busca de uma posição privilegiada no comércio com os navegadores namban, muitos daimyo se converteram ao cristianismo (muitas vezes nominalmente), levando consigo seus subordinados. Uma segunda razão para a conversão nipônica ao cristianismo, no século XVI, seria o descontentamento com certas seitas locais. Muitos sacerdotes budistas deste período se aproveitavam do poder que lhes era conferido, detendo um papel intocável frente às comunidades circundantes, o que motivou o alinhamento de grande número de pessoas a outras seitas, inclusive a católica, que, neste momento, ainda detinha credibilidade aos olhos da população nativa.47 O memorável Oda Nobunaga, tido como um dos principais atores do longo processo de reunificação do Japão, foi, segundo Morton, liberal quanto à presença de católicos em suas terras, inclusive porque se mostrava contrário ao grande poder detido por templos e

46 ELISONAS, op. cit., p. 304-321. 47 Ver: MORTON, op. cit., p. 107.

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representantes budistas48. Nobunaga não chegou a se converter, seguindo desde

jovem os preceitos zen-budistas. Uma terceira razão da conversão de japoneses para o catolicismo seria, simplesmente, a identificação de muitos com os preceitos transmitidos pelos jesuítas. Sem dúvida que a história de um homem crucificado em nome da humanidade, buscando a redenção dos pecados, teve no Japão, assim como em muitos outros lugares do mundo, grande impacto sobre a população. A idéia da santificação logo seria posta em prática pelos jesuítas e seus recém-convertidos católicos japoneses, o que incentivou ainda mais a tomada de posição de grandes parcelas da população japonesa a favor da cristianização.

Os japoneses praticavam, há séculos, três religiões; na maioria dos casos o

Shinto era sempre presente, cultuando os antepassados e revivendo os mitos de

criação do arquipélago e das pessoas; o Budismo e o Confucionismo eram praticados em harmonia um com o outro e com o Shinto. A Igreja Católica, entretanto, desde a sua chegada no Japão, mostrou-se decisivamente contrária às crenças locais, condenando-as de terem ligação com o demônio. Na ação missionária residia um dos males que causariam a completa repulsa, no século XVII, aos portugueses, seu comércio e sua religião, por parte dos japoneses.

Ao longo das quatro primeiras décadas de missionação, muitos templos católicos foram erguidos, entretanto, com o avanço desta religião, templos budistas e Shinto passariam a ser derrubados, o que seria, para as autoridades e mantenedores dos costumes japoneses, um grande insulto. O cristianismo vinha sendo pregado como a única religião verdadeira, em detrimento da tradição japonesa.

Boxer apresenta, como exemplo da grande difusão do catolicismo pelo Japão, a criação de seminários, em que os estudantes poderiam optar, segundo um relatório do seminário de Arima (cidade próxima a Kobe, na região centro-sul do Japão), datado de 1594, por cursos de “latim, escrito e falado, redação em japonês e latim, e canto e instrumentos musicais. Os alunos da primeira turma já sabem compor e declamar [...] Vinte estudantes deverão formar-se este ano. [...] Os pintores e os que fazem gravuras em cobre tornam-se a cada dia mais habilidosos, e seus trabalhos são quase tão bons quanto os que vêm de Roma.” 49 O trabalho dos

48 MORTON, op. cit., 110-111.

Referências

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