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“Nossa terra é de Deuses e Deus é a mente. Tudo na natureza existe por causa da mente. Sem Deus não pode haver espiritualidade. Sem Deus não há caminho. Deus comanda em tempos de prosperidade e em tempos de declínio. Deus é positivo e negativo e incomensurável. Ainda, Deus é a raiz e a fonte de toda existência. Este Deus é tido pelo Budismo na Índia, Confucionismo na China e Shinto no Japão. Conhecer o Shinto é conhecer o Budismo assim como o Confucionismo.” 50

Neste trecho da Carta para o Vice-rei das Índias, escrita pelo daimyo Toyotomi Hideyoshi, em 1591, há uma tentativa de esclarecimento do que seria Deus para o daimyo, que deixa clara a visão japonesa sobre a questão. É evidente a harmonia com que as três religiões eram praticadas no Japão da época, sendo que, para os habitantes, uma religião se assemelhava à outra, completando-a. Em seguida, Hideyoshi escreve:

“Enquanto o homem viver neste mundo, Humanidade será um princípio básico. Não fosse por Humanidade e por Justiça, o soberano não seria um soberano, nem um ministro de estado um ministro. É através da prática da Humanidade e da Justiça que as fundações de nossas relações entre soberano e ministro, pais e filhos, marido e mulher são estabelecidas. Se você estiver interessado na profunda filosofia de Deus e Buda, peça uma explicação e lhe será dada. Na sua terra uma doutrina é ensinada em detrimento das outras e você desconhece a filosofia [confuciana] da Humanidade e da Justiça. [...] Há alguns anos os chamados padres vieram ao meu país buscando enfeitiçar nossos homens e mulheres, tanto leigos como clérigos. Naquela época, punição foi aplicada a eles e isso se repetirá caso retornem aos nossos domínios para propagar sua fé. Não importará qual a seita ou denominação – eles serão destruídos. Será tarde demais para se arrepender. Se você tem algum desejo em estabelecer amizade com esta

50 TOYOTOMI, Hideyoshi. Hideyoshi to Uma no Kami (Terumoto), 1591, apud TSUNODA, op. cit., p. 317.

terra, os mares foram livrados da ameaça pirata e os mercadores estão livres para ir e vir. Lembre-se disso.” 51

Em finais do século XVI aqueles “nada suspeitos” navegadores haviam se tornado uma ameaça aos japoneses, principalmente por sua difusão religiosa. Com base no documento, não há uma negociação formal entre japoneses e portugueses quanto à entrada de missionários católicos no arquipélago. A ordem é clara: o comércio está livre, entretanto, aqueles que tiverem a intenção de propagar a Fé Cristã serão mortos. Ainda na década de 1580, Hideyoshi formalizou um édito de proibição da entrada de jesuítas no Japão. Entretanto, devido à dificuldade de controle, esta norma viria a ser ainda muito ignorada.

N a virada entre os séculos XVI e XVII, o Japão estava concluindo seu longo processo de unificação, que culminaria com a batalha de Sekigahara, em 1600. Hideyoshi era, neste momento, o mais forte daimyo do território japonês, mas, não recebeu o título de Shogun do Imperador, uma vez que não possuía ancestralidade com a família Minamoto (fundadora do regime de shogunato). A situação política de Hideyoshi, entretanto, devia muito ao contato luso-nipônico, já que, ao lado de Oda Nobunaga, conseguiu a unificação de diversos territórios graças à assimilação, difusão e eficaz organização das armas de fogo, juntamente com o arsenal tradicional, de espadas e lanças.

A presença portuguesa se intensificou neste período, tanto em questões comerciais quanto em termos religiosos. Muitos daimyo, principalmente aqueles leais a Hideyoshi, proibiram a presença de praticantes e de templos cristãos em suas terras, exigindo o retorno às práticas religiosas tradicionais.

Os relatos portugueses, como os do padre jesuíta Luís Fróis, acerca da perseguição apontam para uma intolerância dos japoneses quanto ao cristianismo. Confrontando este discurso com o que foi apresentado sobre a intolerância religiosa dos padres jesuítas, podemos colocar que os japoneses reagiram à difusão da Fé Católica numa tentativa de proteger suas crenças e práticas tradicionais. A ameaça cristã ao Japão vinha crescendo em fins do século XVI, de forma que, segundo Elisonas, autoridades, como os daimyo, viam nisso um obstáculo à unificação, uma

vez que muitos cristãos tomariam partido contrário aos seus senhores, encontrando na Fé Católica a unidade.52

Fróis apresenta o considerável aumento das conversões para o catolicismo em menos de um ano, entre 1584 e 1585, todavia, afirma não terem os jesuítas a intenção de forçar ninguém a seguir sua fé. O daimyo de Bungo, por exemplo, ainda segundo Fróis, temia que o encorajamento à conversão o impedisse de fazer novas conquistas, já que não mais teria o apoio de uma grande soma de habitantes.53

Apesar das severas críticas feitas pelos jesuítas às religiões praticadas no Japão, buscando suprimi-las, muitas características culturais deste país foram preservadas e assimiladas pelos jesuítas. Em fins do século XVI, com a grande difusão do Cristianismo, muitos japoneses ingressavam em seminários jesuítas. A partir daí, os estudantes seriam orientados em direção à Fé Católica, sem, entretanto, abandonar os padrões de educação japoneses. O modo de vida japonês era, para Francisco Xavier, muito rico e complexo, assim como o Chinês, exigindo uma abordagem diferente da simples imposição da fé.54 Esta abordagem constituiria numa utilização dos próprios hábitos japoneses para aproximá-los do Cristianismo. De acordo com Sofia Diniz, erguer igrejas e outras construções católicas significaria a aceitação ou repulsa pública ao Catolicismo.55 Mapas datados do século XVII, como o mapa Terre de Iesso, de Alain Mallet, e Japonia Regnum, de Martino Martini, apesar de produzidos após a completa expulsão dos portugueses, representam um Japão marcado pela presença ocidental, com navios ao redor e inúmeros templos católicos espalhados pelo arquipélago, desde as maiores cidades portuárias ao interior.

A partir de 1600 a luta entre o Cristianismo e a tradição japonesa se intensifica por duas razões: primeiramente, a unificação do Japão, sob Tokugawa Ieyasu, que se tornaria o novo Shogun, inaugurando um período de relativa paz interna e um isolamento quase completo em relação aos demais países do mundo. A política de Ieyasu buscaria um congelamento das relações “feudais” do Japão, em

52 Ver: ELISONAS, The Cambridge..., p. 334.

53 FRÓIS, Luís. Historia de Japam, volume V. Lisboa, 1984, p. 339-342.

54 DINIZ, Sofia. Jesuit Building in China and Japan: A Comparative Study. In.: Bulletin of

Portuguese/Japanese Studies. http://redalyc.uaemex.mx, 2001, p. 109-110. 55 DINIZ, op. cit, p. 110.

que o Shogun seria o “senhor de todos os senhores”. Neste momento, muitos cristãos se negaram a reconhecer o poder do novo chefe militar japonês, o que contribuiu para a política de perseguição aos católicos. O segundo importante motivo para a intensificação da perseguição ao cristianismo foi o estabelecimento (e seguido sucesso) dos contatos entre japoneses e holandeses. Estes, representados pelo navegador britânico William Adams, a serviço da VOC, restringiram suas relações com o Japão a nível comercial, sem o intuito de propagar o ideário protestante.

3 O ISOLACIONISMO TOKUGAWA E A MISSIONAÇÃO

A Guerra Civil japonesa, o Sengoku-Jidai, havia se enfraquecido desde a década de 80 do século XVI. Oda Nobunaga foi o primeiro responsável pelo longo processo de unificação, subjugando as forças de clãs menores à sua autoridade, desafiando, em 1585, inclusive as forças do último Shogun Ashikaga, o que resultou na queda do bakufu e num período em que o poder retornou brevemente às mãos do Imperador. O legado e os objetivos de Nobunaga continuaram, após sua morte, com Toyotomi Hideyoshi, que, em finais do século XVI, logo antes de sua morte, fora o maior detentor de poder e terras pelo Japão. Lembrando que o arquipélago vivera, desde suas origens, à sombra do Império Celeste, a ousadia de Hideyoshi em promover campanhas militares cujos objetivos finais seriam conquistar a China dos Ming, apesar de malsucedida, conferiu ao daimyo grande prestígio. O clã Tokugawa, liderado desde fins do século XVI por Ieyasu, adquiriu, sob aliança com o clã Toyotomi, grande poder, ampliando seus domínios por toda a região central do Japão, o que incluía o kanto, região circundante da atual Tóquio.

Com a morte do mais poderoso daimyo, e principal candidato ao título de

Shogun, Hideyoshi, em 1597, o poder de seu clã passou a ser controlado por um

conselho de vários daimyo aliados até que seu filho, Hideyori, que na época tinha apenas cinco anos de idade, pudesse assumir. Dentre os daimyo que compunham a regência do poder dos Toyotomi estava Tokugawa Ieyasu que viu neste momento uma brecha para se desvincular daquele clã e tomar seu próprio rumo em direção à completa unificação e ao estabelecimento de um novo bakufu. O historiador Frank McLynn, em sua obra Heróis e Vilões, apresenta uma biografia de Tokugawa Ieyasu, em que são confrontadas as duas faces deste líder: o heroísmo por trás da unificação e pacificação interna do Japão, que resultaria em 250 anos de auto-suficiência do Japão; a crueldade, expressa pela perseguição aos opositores do

bakufu e aos cristãos.

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