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William Adams (1564-1620), nascido em Gillimgham, na Inglaterra, foi, segundo a historiografia, o primeiro britânico a chegar ao Japão, estando a serviço da VOC (Vereenigde Oost-Indische Compagnie), ou Companhia das Índias Orientais Holandesa. Desde o século XIX, com a reabertura do Japão às potências ocidentais, com o fim da Era Edo e o início da Era Meiji, a figura de William Adams, segundo Derek Massarella, foi revalorizada, tornando-se um talismã das relações nipo-britânicas, recebendo o título de Miura Anjin.64 Desde então, a história de Adams inspirou o imaginário popular britânico, dando origem a obras literárias como

Shogun65, de James Clavell. Não apenas os britânicos, mas também os holandeses vêem no navegador de Gillimgham um nome a ser lembrado, uma vez que este homem foi um dos responsáveis pela integração do Japão à rota comercial neerlandesa.

Em Abril de 1600, de acordo com Coutinho, o Liefde chegou, bastante danificado, ao porto de Bungo, no sul do Japão, em que se deram os primeiros e difíceis contatos da VOC com o povo nipônico. Por conta das tormentas, grande parte da tripulação se encontrava ferida, enquanto alguns haviam morrido; os intérpretes destas relações eram os padres jesuítas que estavam no território, aos

64 Miura Anjin: Navegador de Miura, segundo a obra: FREDERIC, Louis. O Japão – Dicionário e

Civilização, São Paulo, Globo, 2008, p. 449.

65 O romance Shogun, de James Clavell, foi escrito em 1975, baseado na história de William Adams. O autor, ao ler sobre Adams no livro escolar de sua filha, despertou interesse sobre a cultura japonesa e, especialmente, sobre a história de Miura Anjin, segundo a obra SMITH, Henry. Learning

from Shogun, Japanese History and Western Fantasy. Santa Barbara, University of California

quais Adams refere-se posteriormente como “seus inimigos mortais” 66. Os próprios jesuítas, segundo o historiador português, mostravam-se contrários à presença dos navegadores protestantes, o que dificultou, em um primeiro momento, qualquer tentativa de negociações comerciais.

Assim os holandeses inseriram-se no Japão, de forma lenta e inteligente, uma vez que, aproveitando-se da casualidade de sua chegada ao arquipélago, Adams logo pronunciou a autoridades japoneses que o Liefde estava a caminho daquelas terras, com objetivos mercantis. Em carta do padre visitador Alexandre Valignano, citada por Coutinho, percebe-se a contrariedade deste à presença e postura tomada pelo Miura Anjin quanto às suas metas no Japão: “E ao princípio dizião que hião para Sunda e depois que forão a Miaco disserão que vinham dirigidos para o Japão fazer mercadoria”. 67 Os holandeses já tinham conhecimento do potencial mercantil das ilhas nipônicas, o que certamente incentivou a postura de Adams frente às autoridades do arquipélago.

Após a chegada do navegador britânico ao Japão, foram necessários ainda mais nove anos para que fosse concedida à VOC permissão para comercializar com os japoneses, que teriam, a partir daí, outra possibilidade de comércio exterior, não mais tendo que restringir seus contatos aos navegadores lusos e, conseqüentemente, não mais tendo que tolerar a presença de missionários católicos em suas terras.

Adams, por seu grande conhecimento militar, geográfico e estratégico, mostrou-se útil ao Shogun, uma vez que auxiliava na construção de navios e na melhoria da produção e da utilização de armamentos. Se antes da chegada do

Liefde à costa japonesa os jesuítas detinham uma posição privilegiada como

intérpretes, após este evento Adams assumiu, em poucos anos, a função de

66 We came in sight of the land being the 19th day of April… so we in safety let fall our anchor about a league from a place called Boningo… We had, when we came to an anchor in Boningo, sick and whole, 24 men of which the next day 3 died. The rest, for the most part, recovered, saving 3 which lay a long time sick and in the end also died. (…) Were our intepretes, which was not to our good, our deadly enemies being our truchmen. ADAMS, William. Letters received by the East India Company…, volume I. Hirado, p. 146-152. Apud COUTINHO, op. cit., p. 99.

67 VALIGINANO, Alexandre. Carta de 20 de outubro de 1600. Japsin, 14 I, p. 27. Apud COUTINHO, op. cit., p. 102.

intérprete direto de Ieyasu, o que, de acordo com Coutinho e Massarella, aproximou ainda mais os navegadores neerlandeses do arquipélago nipônico.68

Não foi permitido pelo Shogun que o Miura Anjin retornasse à Europa, uma vez que este desempenhava sua função de maneira condizente com os interesses do bakufu. No intuito de “segurar” seu novo intérprete estrangeiro, Ieyasu proporcionou a Adams uma vida nobre, semelhante, nas palavras do próprio navegador à deu um lord inglês:

Agora, pelos serviços que já fiz e continuo a fazer diariamente, sendo empregado a serviço do Imperador [leia-se Shogun], este proporcionou-me uma vida, assim como a de um lord britânico, com 80 ou 90 homens para serem meus escravos ou servos, o que, ou semelhante, nunca foi dado antes a um estranho.69

Este excerto pode ser analisado à luz da metodologia proposta pela historiadora britânica Linda Colley na obra Captives, em que o Império Britânico, dos séculos XVII-XIX, é analisado com base em relatos de prisioneiros. Logo na introdução desta obra, a autora apresenta o contexto em que se passa seu livro, entretanto, este “pano de fundo”, que ainda viria a ser resgatado em diversas passagens do livro, de acordo com o momento e local estudado, é, desde o princípio, questionado à luz das fontes trabalhadas. A proposta de Colley não é produzir mais um manual sobre o avanço do poder imperial britânico pelo mundo, mas sim, contestar este discurso através da análise daquilo que chama de “cultura do cativeiro” 70, as produções daqueles mantidos prisioneiros ao longo do império. O estudo destas fontes permite compreender os cativos de acordo com as sociedades em que estão inseridos, levando em consideração o papel desempenhado por estes sujeitos. Nem sempre, para a autora, o prisioneiro seria sinômino de sofrimento e exploração, podendo, em muitos casos, adquirir riquezas e constituir famílias. Adams, por se mostrar útil ao Shogun, poderia ser visto, de acordo com a metodologia de Colley, como um caso em que o cativo ocupou uma posição central

68 Ver COUTINHO, op. cit., p. 31; MASSARELLA, Derek. William Adams and Early English

Enterprise in Japan. Tokyo, Chuo University, 2000, p. 7-15. 69 Apud COUTINHO, op. cit., p. 31.

70 COLLEY, Linda. Captives. Britain, Empire and the World, 1600-1850. New York, Anchor Books, 2002, p. 11.

na sociedade em que se inseriu, recebendo reconhecimento e privilégios, ao mesmo tempo que é mantido sob a vigilância de seu senhor.

Entre os anos 1614 e 1619, William Adams registrou seu cotidiano na forma de um diário, simplificadamente, resumindo cada dia a poucas linhas, cujos objetivos seriam memorar alguma tarefa importante ou evento marcante do dia. O Log Book of

William Adams, 1614-1619, organizado por C. J. Purnell em 1916, Londres, inicia-se

com uma breve explicação sobre “quem foi William Adams” e “qual sua importância”. Nesta introdução de Purnell são transcritos alguns trechos de cartas de jesuítas sobre a presença do navegador britânico no Japão, uma destas cartas, do jesuíta Francisco Pasio, diz:

Em Edo haviam sete ou oito heréticos, Ingleses e Holandeses, que chegaram há alguns anos numa embarcação retida pelo Shogun, mantendo os homens em Edo. O padre falou com o principal daqueles homens [William Adams] e ofereceu, a ele e a seus companheiros, uma condução segura se eles quisessem deixar o Japão. Isso [o padre] fez por medo de que eles infectassem os japoneses conversos, crentes na Fé Católica, com suas doutrinas perversas. Mas o inglês não aceitou a oferta, alegando que o Shogun, por várias razões, não lhe permitiria fazer isto. Ele [Adams] agradeceu ao padre, que tentou mostrar-lhe o erro de sua seita e a verdade da Religião Católica com argumentos retirados da Bíblia Sagrada, mas o padre apenas perdeu tempo com o herético obstinado, que era um homem de espírito bom e, sem ter sido um estudante, tentou provar seus erros através das mesmas Escrituras, erroneamente interpretadas, e ainda que obrigado a se submeter à força e à verdade da razão do jesuíta, ele persistiu em sua opinião obstinada.71

O documento de Pasio, escrito entre os anos 1603 e 1606, comprova claramente a rivalidade ideológica de católicos e protestantes no Japão. O próprio padre redator do documento admite a suposta “boa vontade” do jesuíta em oferecer a Adams e seus companheiros um meio seguro para deixar o Japão: o temor de que a doutrina protestante, representada pelo navegador britânico e os demais tripulantes do Liefde, se proliferasse entre os japoneses recém convertidos para o Catolicismo. Isto confirma o que Coutinho aponta acerca da dificuldade encontrada

71 PASIO, F. Lettres annals du Japon. 1603-6. Apud ADAMS, William. The Log Book of William

por Adams em estabelecer um contato minimamente sincero com os japoneses quando da sua chegada ao arquipélago.

O jesuíta Tçuzzu, que fora por longo tempo intérprete e agente oficial do comércio com os portugueses, foi demitido de suas funções por conta do destaque do navegador britânico que, além do conhecimento científico militar que detinha, servia como intérprete desvinculado das crenças católicas.

Derek Massarella e Valdemar Coutinho entram em concordância no ponto de que os holandeses apenas conseguiram se estabelecer no Japão devido à atuação de William Adams, que visava não apenas a prosperidade da VOC e de seu povo (foi concedida à Inglaterra liberdade para comercializar no Japão), mas também a decadência da campanha portuguesa e da Fé Católica pelas ilhas nipônicas. Assim como os portugueses ocupavam a região de Nagasaki, os holandeses instalaram-se, inicialmente, em Hirado, noroeste da ilha de Kyushu. Sua estratégia de inserção e fixação em terras japonesas se deu através de uma aproximação do poder militar central, o Shogun, paralelamente a um distanciamento dos opositores desta autoridade; a exemplo disto temos a postura tomada pelos mercadores protestantes quanto à autoridade de Hideyori, filho do falecido daimyo Hideyoshi: Hideyori, que vivia no castelo de Osaka, correspondia à frente da oposição ao poder dos Tokugawa, ao qual muitos jesuítas aliaram-se, tendo nunca sido visitado ou reverenciado pelos holandeses.72

Desde o édito de 1614 e da batalha de Osaka, em 1615, sobre o que falaremos adiante, que os dias dos missionários católicos e dos demais praticantes desta religião residentes no Japão estavam contados. Isto é visível através de uma passagem na carta escrita por Adams a um mercador britânico chamado Jacob Specx. Este documento, escrito em 1616, trata em sua maior parte de um resumo geral da situação do Japão desde a chegada de Adams à cidade de Edo (atual Tóquio).

Você deve saber que então chegamos a Edo em 25 de agosto e, 5 dias depois, estávamos diante de Siongosama [Tokugawa Hidetada, filho de Ieyasu] com os presentes, depois de mais dois dias, tendo estabelecido contato com os bonjos [ou bonzos, sacerdotes] o capitão me enviou ao castelo para pedir a Siongosama o que esperávamos há tempos, que

renovasse os privilégios que seu pai, o velho imperador [Shogun] Gossosama [Tokugawa Ieyasu] havia nos dado. [...] Quando viajando de volta para Meaco, chegou um veloz mensageiro com carta do Imperador, [dizendo] que foi proibido o comércio em Meaco, Osaka e Sakai para qualquer estrangeiro, exceto em Firando [Hirado] e Nasagaki. Ao ouvir esta notícia estranha o capitão pediu a um intérprete que lesse a notícia, descobrindo que estávamos permitidos a comercializar apenas em Nagasaki. [...]

Aqui, como você sabe, nada tem sucedido, então escrevo a você nada de mais, apenas sobre todo este problema que os padres portugueses estão levantando, já que o Imperador não permite aos estrangeiros comercializar na parte superior do país, por medo de que as pessoas sejam convertidas ao cristianismo.73

Não fica claro no documento o momento a que cada trecho se refere, entretanto podemos ter um panorama geral da visão de Adams e daquilo que, implicitamente, ele nos transmite acerca da política externa dos Tokugawa. Pode-se propor, com base na fonte, que o governo Tokugawa se mostrava bastante cuidadoso com a concessão de qualquer liberdade para estrangeiros que vivessem no Japão. A restrição do comércio a poucos portos, como Firando (Hirado) e Nagasaki, podia estar ligado à tentativa em controlar o avanço dos padres católicos pelo arquipélago, lembrando que, durante o Sengoku-Jidai, apesar de os portugueses terem Nagasaki como principal entreposto comercial, outras regiões, como domínios de daimyo cristãos ou apenas tolerantes quanto à missionação tornavam-se pontos de entrada de portugueses. O estrito controle desta entrada, entretanto, deu-se num momento em que o cristianismo já estava bastante difuso pelo arquipélago.

Para o nosso estudo, que visa compreender as razões do fracasso da missionação católica no Japão e, conseqüentemente, do comércio português neste território, compreender a trajetória do navegador britânico William Adams no Japão é de suma importância, pois, como se viu, a influência deste homem sobre a postura do bakufu frente aos mercadores e missionários lusos teve grande peso, o que se deveu à tática holandesa, de que, através da lealdade se conquistaria a confiança do Shogun. Esta fidelidade de Adams a Ieyasu e a seu filho, Hidetada, foi expressa também pelo feitor britânico Richard Cocks. Pela morte de Adams, em 1620, Cocks

escreveu: “Não posso fazer nada além de lamentar a perda de um homem como o Capitão William Adams foi, sendo leal a dois Imperadores do Japão [leia-se Shogun] como nunca antes fora nenhum cristão nestas partes do mundo”.

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