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Cidade em jogo : uma proposta para o ensino de história local da cidade de Campinas

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Academic year: 2021

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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Lucas Rosa Pereira

Cidade em jogo:

uma proposta para o ensino de história local da cidade de Campinas

CAMPINAS

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Lucas Rosa Pereira

Cidade em jogo:

uma proposta para o ensino de história local da cidade de Campinas

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Ensino de História.

Orientadora: Profª. Drª. Josianne Francia Cerasoli

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO LUCAS ROSA PEREIRA, E ORIENTADA PELA PROFª. Drª. JOSIANNE FRANCIA CERASOLI.

CAMPINAS 2020

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Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Pereira, Lucas Rosa,

P414c PerCidade em jogo: uma proposta para o ensino de história local da cidade de Campinas / Lucas Rosa Pereira. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

PerOrientador: Josianne Francia Cerasoli.

PerDissertação (mestrado profissional) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Per1. Ensino de história. 2. Jogos. 3. História local. 4. Cidades e vilas – História. 5. Campinas (SP) - História. I. Cerasoli, Josianne Francia, 1972-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: City at stake: a boardgame proposal for Campinas city local history teaching

Palavras-chave em inglês: History teaching

Games Local history

Cities and towns - History Campinas (SP) - History

Área de concentração: Ensino de História Titulação: Mestre em Ensino de História Banca examinadora:

Josianne Francia Cerasoli [Orientador] Maria Silvia Duarte Hadler

Aline Vieira de Carvalho Data de defesa: 31-03-2020

Programa de Pós-Graduação: Ensino de História Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-3708-1062 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6436291464256277

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada à distância no dia 31 de março de 2020, considerou o candidato Lucas Rosa Pereira APROVADO.

Profa. Dra. Josianne Francia Cerasoli – Orientadora - IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Maria Silvia Duarte Hadler – REIT/UNICAMP

Profa. Dra. Aline Vieira de Carvalho – REIT/ UNICAMP

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

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A todos meus alunos, por darem sentido e inspiração à minha trajetória profissional.

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Primeiramente, agradeço à Profª Josianne Cerasoli pela orientação, sincera confiança e atenção dada aos questionamentos que trazia para sua apreciação. Seus conselhos e entusiasmo inabalável foram elementos imprescindíveis ao longo do grande desafio de produzir esse trabalho.

A Profª Maria Sílvia Duarte Hadler também merece um agradecimento especial, seja pelos apontamentos feitos em minha banca de qualificação, como também pelo convite para trabalhar com os alunos do “Ciência e Arte nas Férias”. Como se não bastasse, também aceitou o convite para participação em minha defesa.

Um destacado agradecimento também à Profª. Aline Vieira de Carvalho, pela atenciosa leitura em minha qualificação e por novamente aceitar meu convite de composição da mesa, agora em minha defesa.

Sempre muito solícita, a equipe do Centro de Memória da Unicamp também teve um importante papel na construção dessa dissertação. A todos que colaboraram durante minhas visitas, deixo meu grande obrigado.

Aos professores Marcelo Magalhães e Cristina Meneguello por prontamente aceitarem a tarefa de suplência em minha defesa.

Aos meus pais, Eliana e Claudemir, minha mais genuína gratidão pelo incansável apoio fornecido em todas etapas de minha vida. Durante o mestrado, não foi diferente. Levarei sempre comigo a experiência desse amor e carinho. Ao meu irmão Felippe, pelo apoio diuturno e por ser uma das grandes referências em minha vida. Agradeço também por nossas conversas quase diárias, que deixaram o cotidiano acadêmico mais aprazível. Aos meus avós Angelina e José (in memoriam), sobre os quais escrevo permeado pelos mais doces pensamentos, também deixo meu agradecimento. O afeto e cuidado com que sempre me receberam simplesmente formaram quem eu sou.

Não é fácil encontrar palavras para agradecer à Roberta, minha companheira. Seu acolhimento constante, especialmente nas horas mais decisivas, tornou possível a realização desse. Sou muito feliz por ter trilhado mais uma etapa de minha vida ao seu lado.

Os amigos Thiago, Felipe e Eduardo sempre deram total apoio e confiança ao meu projeto. Nossos momentos descontraídos foram fundamentais para superar os desafios

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também cabe uma menção de destaque. Sua escuta e apontamentos foram valiosíssimos. Agradeço também a todos os meus alunos(as) e ex-alunos(as). Talvez não saibam, mas vocês são fontes decisivas de inspiração e ensinamentos. Deixo um agradecimento especial ao Bruno, Guilherme (Shimamoto), Júlia e à Eduarda (Duda), que aceitaram participar com muita animação da oficina, mesmo fora do período escolar. Não satisfeitos, ainda trouxeram mais participantes para enriquecer a experiência.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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A presente dissertação propõe a criação de um jogo baseado na história da cidade de Campinas-SP e a partir dele contempla três objetivos complementares: desenvolver o jogo como ferramenta pedagógica para o ensino de história na educação básica; discutir os usos e transformações ocorridos na cidade; refletir sobre a vida urbana contemporânea, com especial atenção para esta localidade. O recorte temático compreende a implantação do Plano de Melhoramentos Urbanos, proposto pelo engenheiro-arquiteto Prestes Maia na década de 1930 e desenvolvido nas décadas seguintes. Almeja-se proporcionar de forma dinâmica a reflexão dos estudantes sobre as tensões e contradições na execução do projeto urbanístico em questão, identificando os diferentes interesses envolvidos e os impactos causados ao longo das intervenções previstas para a cidade. De forma complementar, busca-se a promoção, no ensino básico, de um trabalho de história referenciado localmente: uma maneira de romper com a tradicional reincidência de análises históricas macroanalíticas, generalizantes e pretensamente nacionais. Essa ferramenta pedagógica propõe uma variação de escalas tradicionais de análise no saber histórico escolar, colocando os espaços próximos à comunidade escolar como objetos centrais de estudos, favorecendo um conhecimento mais complexo, diverso e enriquecedor. Portanto, o produto didático proposto pretende, ao mesmo tempo, levantar os conhecimentos oriundos da investigação dos estudantes sobre as contradições existentes no Plano de Melhoramentos Urbanos e relacioná-los a uma reflexão a respeito da cidade, tal como existe hoje.

Palavras-chave: Ensino de história. Jogos. História local. Cidades e vilas-história. Campinas-história.

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This work seeks to create a game as a pedagogical tool for history teaching about Campinas-SP city. The thematic approach concerns the execution of the "Plano de Melhoramentos Urbanos" (Urban Improvements Plan), made in the 1930s and proposed by the engineer-architect Prestes Maia. It aims to propose, in a dynamic approach, reflections about the tensions that emerged as the plan interventions were implemented, identifying the different interests related to the Plan and the impacts caused on Campinas' city and inhabitants. Also, this game seeks to offer a tool for teaching local history in basic education, varying the traditional and macro analytical approaches constantly used in Brazilian schools. For this, we propose a variation on scales of analysis studied in history classes, involving locations familiar to the school community as objects of history studies, providing a more complex and diverse knowledge. Therefore, more than just analyzing the historical changes during the city intervention related to the Plan, this work also attempts to provide reflections about the contemporary Campinas city, which is also experiencing continuous transformations, contradictions, and conflict.

Keywords: History Teaching. Games. Local History. Cities and towns-history. Campinas-History.

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Introdução ……….11

Capítulo 1: História local, escalas, jogos e ensino de história ………. 14

1.1: História referenciada localmente: aspectos pedagógicos e curriculares ……… 14

1.2: Histórias locais, histórias nacionais: um jogo de escalas …...……… 30

1.3: A cidade como objeto para o ensino de história …..………. 37

1.4: Jogos como meios para o ensino de história……….. 41

Capítulo 2: Modernização e Reforma Urbana em Campinas: o Plano de “Prestes Maia” 46 2.1: Os debates urbanísticos internacionais e nacionais ……… 46

2.2: Campinas e os debates urbanísticos nas décadas de 1920 e 1930 ……….. 53

2.3. O Plano de Melhoramentos Urbanos de 1938 e seus impactos ……….. 56

2.4. A cidade atual como fruto de reflexões ……….. 72

Capítulo 3: O jogo “Aconteceu na História: Campinas” e sua experiência de criação e aplicação………..……… 75

3.1: Cidade enquanto tema central dos jogos: uma breve análise das propostas disponíveis. 75 3.2: Desafios na criação de um jogo didático sobre Campinas ………,... 88

3.3: Regras do jogo “Aconteceu na História! Campinas”……….. 99

3.4: Experiências de apresentação e aplicação do jogo ……….….. 111

Considerações Finais ………..……… 122

Bibliografia ……….. 126

Anexo 1 – Conjunto de documentos iniciais para cada episódio………. 131

Anexo 2 – Levantamento de teses sobre Campinas defendidas entre 2008 e 2018………. 177

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Introdução

O presente trabalho de mestrado propõe a confecção de um jogo1, voltado para

alunos a partir do nono ano do ensino fundamental, com o intuito de permitir a reflexão no ensino básico sobre a história da cidade de Campinas, estimulando um olhar crítico dos alunos às transformações ocorridas na cidade durante a implantação do “Plano de Melhoramentos Urbanos”, de 1938. Tal proposta associa-se às possibilidades pedagógicas de um ensino referenciado localmente, que incentive uma sensibilização dos estudantes para a história da cidade em que residem.

O interesse por tal tema surgiu a partir de alguns incômodos experimentados em minha atuação como professor de história na rede estadual de ensino. O primeiro destes incômodos decorre da reincidência nas aulas e livros didáticos de um conhecimento resumido a análises estruturantes e macro-históricas, normalmente pautadas pelas problemáticas da história política e econômica. Tal recorrência acontece em detrimento de uma análise histórica da localidade, desperdiçando, com isto, suas valiosas possibilidades pedagógicas. Tal exclusão de propostas sobre uma história referenciada localmente no ensino é agravada tanto pela escassez de materiais voltados ao assunto, como pela falta de formação específica aos professores, ou, ainda, pelo caráter secundário dado à reflexão da história local nos currículos do ensino básico. Como um próprio reflexo deste exclusão da história local no ensino básico, notava um desconhecimento meu, de meus pares e dos alunos sobre aspectos da história de Campinas, ainda que residamos nesta cidade há vários anos. A partir destas constatações, busco criar uma proposta didática que trate da história de cidade de maneira dinâmica e que favoreça a sensibilização de um olhar crítico e histórico para com nossa cidade.

Como recorte cronológico e temático para esta proposta, optei pelo chamado “Plano de Melhoramentos Urbanos” de Campinas. O plano foi uma proposta de reforma e planejamento da cidade que passou por amplos debates e modificações, chegando em 1938 como “o primeiro plano de ordenamento urbano da cidade de Campinas de longo prazo” (RODRIGUES, 2011. p. 88). Desenvolvido pelo engenheiro-arquiteto Prestes Maia, o projeto anunciava almejar a superação das feições coloniais de Campinas e supostamente inseri-la na modernidade, buscando uma racionalização e renovação urbana e viária do centro, com 1 A versão digitalizada do jogo está disponível no link citado abaixo. Os arquivos e a proposta também podem ser obtidos através de solicitação para o autor através do e-mail fitther@gmail.com.

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alargamento de avenidas da cidade, abertura de parques, além de impor uma disciplina do uso e ocupação do solo.

Escolhi o presente tema com o intuito de compreender junto aos estudantes desta cidade que, para a buscada racionalização do espaço da cidade de Campinas, o projeto de Melhoramentos Urbanos foi resultado da complexa disputa de interesses, visões de mundo e experiências urbanas que convivem numa mesma cidade. São exemplos destes interesses em diálogo e disputa, a pressão da especulação imobiliária para abertura de loteamentos, as concepções existentes nos debates urbanísticos do início do século XX, os interesses das populações pobres nas áreas centrais da cidade, a preservação de espaços de memória, entre outras. Busco destacar também que tais transformações impactam de maneira diversa o cotidiano das pessoas, lembrando que a execução deste plano foi vinculada a uma série de desapropriações, demolições e reformas na área central da cidade, afetando a experiência daqueles que usufruíam e transitavam nestes espaços. Por fim, a temática escolhida permite refletir sobre a construção da memória coletiva local, muitas vezes idealizadas e divulgadas de forma simplista e pouco crítica.

Vale destacar que este não foi o primeiro recorte temático para este mestrado, sendo que, originalmente, intuía trabalhar com as epidemias de febre amarela em Campinas no final do século XIX. Contudo, ao se tratar da história local de Campinas, a epidemia de febre amarela é a temática mais abordada nos materiais de divulgação, relegando outros momentos fundamentais à formação do espaço urbano a um patamar secundário ou mesmo ao desconhecimento público. Desta forma, busquei propiciar a reflexão de outro assunto relevante na história local, e que tivesse um espaço ainda menor para sua divulgação e conhecimento, ainda que suscite importantes debates. Em complemento, há também uma grande idealização do episódio das epidemias na memória coletiva, reincidentemente descrita como o contexto determinante na formação da cidade de Campinas o que, indiretamente, silencia outros momentos de grande impacto para este processo, a exemplo da confecção e execução do Plano de Melhoramentos Urbanos.

A opção de criar um jogo a ser aplicado com os estudantes se dá pelo fato que os jogos têm uma linguagem dinâmica e acessível, e permitem a transmissão de diversos saberes ao longo de seu desenvolvimento. Os objetivos do jogo, seu cenário, acontecimentos e estratégia para vitória (individual ou cooperativa) são caminhos experimentados de maneira única pelos jogadores e que possibilitam a clara percepção de contradições e de interesses

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conflitantes em seus desdobramentos. Ademais, os conceitos históricos presentes no jogo são apreendidos de maneira diversa pelo aluno, tendo em vista que podem ser fundamentais para os objetivos do jogo e também para formular estratégias adequadas na partida. Como o jogo ocorre na cidade e tem como objeto central a própria cidade, busco estimular uma sensibilidade histórica e contemporânea dos estudantes para com o espaço de Campinas. Mais do que apenas conhecer ou lembrar uma série de eventos sobre a cidade, pretendo que construam uma visão crítica sobre as mudanças ocorridas e que continuam a ocorrer na área urbana, identificando e questionando as motivações e interesses envolvidos nestes processos.

Ou seja, a proposta do jogo que tenha a cidade como objeto central foi pensada para abordar tanto as reflexões sobre mudanças históricas no espaço da cidade, bem como nas perspectivas contemporâneas na vida urbana. O produto didático aqui pensado pretende ao mesmo tempo articular os conhecimentos oriundos da investigação dos estudantes sobre as contradições existentes no Plano de Melhoramentos Urbanos, como uma própria reflexão da cidade que existe hoje, esta também vivenciado contínuas transformações. Abordar um recorte temático e cronológico relegado a segundo plano – ou mesmo ao silenciamento – dentro de um contexto escolar, permite, em meu entendimento, um duplo aprendizado sobre este evento histórico de grande impacto para a formação da cidade, bem como favorece a própria complexificação da percepção dos alunos sobre os interesses existentes no espaço urbano.

Para tal, o presente trabalho está dividido em três principais partes. O primeiro capítulo aborda as reflexões teóricas que nortearam a abordagem de uma história referenciada localmente, discutindo sobre as relações entre ensino de história e a história local, a importância da variação da escala de análise para a formação de um conhecimento histórico mais complexo. Aqui também debato o tema da cidade enquanto objeto de estudo histórico e, por fim, os jogos como ferramentas para o ensino. As transformações ocorridas em Campinas no recorte cronológico, bem como a análise do Plano de Melhoramentos Urbanos são tratadas no segundo capítulo deste texto, evidenciando seus variados aspectos, eventos e contradições. Por sua vez, no terceiro capítulo, apresento a experiência de criação da ferramenta aqui proposta, partindo de uma investigação sobre jogos já existentes que tenham a cidade como tema central, passando pelos dilemas encontrados ao longo do processo de criação e, finalmente, relatando a experiência de aplicação do jogo com uma turma de alunos.

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Capítulo 1. História local, escalas, jogos e ensino de história

1.1. História referenciada localmente: aspectos pedagógicos e curriculares Ao trabalhar os processos históricos abordados nos materiais didáticos, observava que a cidade em que eu e meus alunos vivemos passava completamente à revelia dos temas sugeridos. As temáticas analisadas nas aulas eram vagamente apresentadas como história do Brasil e, em geral, envolviam episódios de São Paulo, Rio de Janeiro ou, em menor escala, algumas localidades no Nordeste ou Minas Gerais.

Tal ausência se agravava, pois, eu, professor de história e residente em Campinas há cerca de dez anos, também pouco tinha estudado sobre a história da cidade em que vivo e atuo. Mais do que um problema exclusivo de minha formação, notava que tal desconhecimento era compartilhado no meio profissional que leciono, já que, ao conversar com colegas professores e funcionários sobre a história local, poucos alegavam ter informações sobre a história de nossa cidade. Nas breves investigações que realizei sobre o assunto, meus colegas afirmavam saber que a cidade era a terra do maestro Carlos Gomes; algumas informações sobre sua tradição cafeicultora e escravista; a importância de Barreto Leme para a fundação da cidade; ou, mais raramente, mencionavam o episódio da grave epidemia de febre amarela nos anos finais do século XIX. Ou seja, quando muito, apresentavam esparsas informações sobre episódios passados da cidade, ou memoravam nomes de célebres campineiros. Por fim, mais grave do que perceber o desconhecimento ou superficialidade no saber histórico sobre a localidade, avaliava com muito pesar que minhas aulas reforçavam involuntariamente esta situação, tendo em vista que reproduzia o silenciamento sobre qualquer reflexão a respeito da história de Campinas.

Buscando suprir essa lacuna em minhas aulas, parti com interesse sobre a leitura de materiais produzidos sobre a história local e de Campinas. Como ocorre para diversas outras localidades, ao buscar produções e referências sobre a “história de Campinas”, notei que o campo da história local continua usualmente ocupado pelos chamados historiadores “diletantes”, isto é, escritores que produzem obras sobre história sem a formação específica na área. Em geral, são jornalistas, advogados e outros profissionais liberais, muitas vezes guiados por erudição e pesquisa autodidata, que se dedicam por motivos diversos ao estudo e ao conhecimento de eventos passado da municipalidade ou região. Em sua maioria, estas obras são escritas sem qualquer contato com uma produção histórica acadêmica mais profunda, sem

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acesso aos debates e questões pertinentes sobre os métodos historiográficos ou mesmo sobre as discussões relativas ao ensino de história. Ao analisar essas obras, Flávia Caimi afirma:

Os estudos dos diletantes e entusiastas, em que pese sua relevância face ao vazio acadêmico, resumiam-se, não raras vezes, a relatos de memórias de pessoas da comunidade sem qualquer tratamento acadêmico ou, ainda, a listas de efemérides, biografias, descrições fisiográficas, enfim, consistia num repositório de informações em seus aspectos factuais e cronológicos, numa espécie de resgate da história local, razão pela qual se justifica plenamente a relevância social e acadêmica da pesquisa no âmbito local/regional. (CAIMI, 2010, p. 63).

Essa produção de conhecimento histórico sobre a cidade é normalmente marcada por uma listagem cronológica de efemérides e eventos envolvendo personagens célebres, tendo também frequentemente seu conteúdo reproduzido e divulgado em panfletos e materiais oficiais sobre a “história da cidade”. É o que se encontra ao pesquisar rapidamente sobre a história de Campinas na internet, a exemplo do portal da Prefeitura Municipal de Campinas, ou ainda no site “Campinas Virtual”2. Tais materiais também aparecem em marcos históricos

da cidade, guias e placas de praças, sendo basicamente informativos sobre eventos passados ocorridos ou personagens de “grande relevância” histórica.

Mesmo dentro de minha escola, esta tendência de resumir a história local a curiosidades e efemérides ocorridas na cidade também se sobressaiu. Durante a conversa sobre o tema com um colega professor, recebi emprestado um livro que versava sobre a tal “história de Campinas”, intitulado de “História pelas capas – Correio Popular 90 anos 3, que,

como diz o nome, apresentava algumas das “mais importantes” capas do jornal campineiro Correio Popular, desde sua fundação até os dias atuais. Ainda que apresentasse numerosos fatos passados e uma publicação muito bem produzida, aquele trabalho não se tratava de uma produção de história sobre Campinas, mas um conjunto de documentos que mostravam os episódios supostamente mais relevantes da cidade e do Brasil pela óptica do jornal em questão.

2 “História de Campinas” do site “Campinas Virtual”

http://campinasvirtual.com.br/campinas.html ou o próprio portal da Prefeitura Municipal de Campinas, disponível em http://www.campinas.sp.gov.br/sobre-campinas/campinas.php (acesso em 05/12/2018).

3 GONGRA, Guilherme; FERNANDES, Ricardo; LIMA, Jorge Alves de; BOSCOLO, Antônio João. “História Pelas Capas: Correio Popular 90 Anos”. Campinas, São Paulo: CSGO, 2017, 200 p.

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Portanto, no campo da história local das cidades, ainda é muito comum encontrarmos produções voltadas a um papel informativo sobre personagens e efemérides. No caso citado sobre as capas do Correio Popular, fica também explícita uma marcada confusão entre os campos e definições da memória, da história e a função dos documentos, marca, segundo François Hartog, de nossos tempos contemporâneos4. Afinal, os documentos por si

só não são história, ainda que sejam fundamentais para a construção deste campo do saber. A apresentação de um conjunto documental sem um adequado problema, sem uma análise minuciosa de seu conteúdo, sem uma pergunta a ser respondida, nada ilustra e nada explica sobre o processo histórico vivido pela cidade, e tampouco se transforma por si só num saber que me interessava para discussão e reflexão em sala de aula.

Contudo, tais conjuntos documentais e os trabalhos destes historiadores “diletantes” não esgotam a produção de uma história local sobre Campinas, pois há também uma forte produção acadêmica nos meios universitários. Num levantamento bibliográfico sobre tal produção envolvendo a cidade de Campinas realizado em meados de 2018, foram encontradas 48 teses defendidas entre 2008 e 20185. Ainda que não se proponha definitivo

sobre toda a bibliografia produzida, tal número revela que, academicamente, a produção sobre a história local é profícua e de relevante interesse. De forma mais específica, dentro desta lista, a cidade em si aparece consideravelmente como um objeto abordado dentro da história local, principalmente nas teses que tratam sobre patrimônio histórico. Mas, evidentemente, tais trabalhos acadêmicos por si só não são suficientes para sanar meu interesse em trazer a reflexão histórica sobre Campinas para sala de aula, pois o discurso, a linguagem e o objetivo destes materiais não têm como objetivo o uso direto na educação básica. Seria necessário, portanto, uma adaptação de suas produções para uma proposta didática válida e adequada à sala de aula.

Avaliando a produção especificamente didática sobre história local, cabe resgatar o levantamento realizado por Flávia Caimi ainda em 2010 sobre a produção de livros 4 “Hoje, em certas situações, recorre-se à memória, não como complemento ou suplemento, mas como substituição mesmo da história. Ela é claramente uma alternativa a uma história que, estima-se, falhou, silenciou-se (…). Uma história enclausurada na nação, com historiadores a serviço de uma história, no fundo, “oficial”. E se recorreu, aqui e além, a uma memória que oferecia uma “alternativa terapêutica” a um discurso histórico que nunca teria sido, por fim, mais do que uma “opressiva ficção”. Ficção, já que faltaria o real e o opressivo, já que sempre confirmaria, mais ou menos, a ordem estabelecida”. (HARTOG, 2017, p. 42)

5 Para a execução de tal levantamento, foram consultadas as bases da CAPES, IBICT, o acervo online de teses da USP, Unicamp, Unesp e PUC, com assuntos diretamente relacionados à cidade de Campinas e sua história. A lista destas teses está entre os anexos do presente trabalho.

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didáticos e paradidáticos que abordem especificamente a história regional ou local (CAIMI, 2010, p. 65), que dialoga diretamente com a problemática aqui levantada. Neste estudo, segundo os dados de solicitação de livros locais ou regionais para fins didáticos, em 2010, houve 64 pedidos de aprovação de obras que versassem sobre história local. Deste número, apenas 36 pedidos foram atendidos e aprovados pela avaliação do PNLD. Quando se observa de forma mais particular a história dos municípios, são apenas três trabalhos mencionados, versando especificamente sobre as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Londrina. Ou seja, quando analisa a produção de obras didáticas e paradidáticas preocupadas diretamente com um ensino de história das cidades, a quantia de publicações se reduz a um percentual inferior a 10% dos - já acanhados – total de obras aprovados.

É nesta lacuna de uma proposta didática que incentive uma reflexão crítica sobre a cidade de Campinas e sua história que meu trabalho se insere. Entendo que a ausência desta temática desperdiça todo um potencial pedagógico de se pensar historicamente o espaço de vivência, afetos e atividades dos estudantes; e, para além das possibilidades pedagógicas, ao silenciar quase totalmente a cidade de Campinas das narrativas tratadas em aula, transmite-se uma ideia de que os processos históricos ocorridos na localidade são secundários ou desimportantes perante a “grande história” do Brasil e do mundo. Subjaz a esta postura uma ideia de que as relações sociais, o espaço e reflexões históricas locais são secundárias ou mesmo desimportantes perante a narrativa supostamente nacional, o que carrega também uma carga e impacto político ao se privilegiar assuntos distantes temporalmente e espacialmente dos alunos e professores nas escolas brasileiras.

Sobre o potencial pedagógico no trabalho com a história da cidade de Campinas, reitero que esta abordagem possibilita outra percepção das discussões históricas escolares aos estudantes, pois, primeiramente, estes conhecem pessoalmente – ou poderiam facilmente conhecer – e têm outro contato com os espaços e objetos tratados no estudo em questão. Mais do que isso, a prática permite ressaltar a historicidade do ambiente em que vivem, favorecendo uma transformação na relação do estudante com sua comunidade e sua cidade. Em suma, uma proposta de ensino de história preocupada com referências locais trata diretamente com lugares ligados à realidade e a vivência dos estudantes, sendo locais repletos de sentido e significado. Outro ponto fundamental no trabalho de história com a cidade de Campinas é que sua abordagem estimula a criticidade e a criatividade através de um olhar mais aguçado e atento aos espaços em que habitamos, numa contraposição à naturalização dos

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acontecimentos locais. Estimula-se, portanto, uma maior aproximação da comunidade escolar com o espaço a seu redor, refletindo e possivelmente atuando ativamente nas transformações que ali ocorrem.

A bibliografia especializada sobre ensino de história e as conexões com a história local destaca tal importância. Uma das autoras que avalia tal problemática é Maria Auxiliadora Schmidt, nas reflexões publicadas em “Ensino de História: sujeito, práticas, saberes” (SCHMIDT, 2007). Instigada a compreender a importância de um ensino de história local para a formação das identidades, a autora parte seu trabalho de um resgate histórico do espaço dado à história local no ensino de história, identificando desde o advento do iluminismo reflexões sobre a importância da temática. Ao desenvolver tal panorama, Schmidt perpassa por autores que igualmente refletem a importância de um ensino de história que tenha como objeto de análise a própria localidade. Dentre os trabalhos analisados, vale o diálogo que a autora trava com com Edgardo Ossana, para qual refletir o local seria:

… uma forma de abordar a aprendizagem, a construção e a compreensão do conhecimento histórico, a partir de proposições que tenham a ver com os interesses dos alunos, suas aproximações cognitivas e afetivas, suas vivências culturais; com as possibilidades de desenvolver atividades vinculadas diretamente com a vida cotidiana, entendida como expressão concreta de problemas mais amplos. Como estratégia de aprendizagem, o trabalho com a História Local pode garantir controles epistemológicos do conhecimento histórico, a partir de recortes selecionados e integrados ao conjunto do conhecimento (OSSANA apud SCHMIDT, op.cit., p. 190)

Schmidt e Ossana também pontuam como a abordagem local permite que o estudo histórico se particularize e atente às questões que usualmente não estão presentes nas análises históricas mais abrangentes, construindo uma história “mais plural, menos homogênea e que não silencie as especificidades” (OSSANA apud SCHMIDT, op.cit., p. 191). Tal aspecto é fundamental na identificação do estudante com o objeto e com o saber construído em sala de aula, devido ao significado concreto daquele objeto e daquele saber para a vivência e cotidiano do estudante.

Sobre tal ponto, o trabalho com uma história crítica da cidade a partir de suas disputas fornece aos estudantes ferramentas para refletir e questionar mesmo os discursos e memórias hegemônicas sobre estes espaços. Será que os panfletos, vídeos, sites de divulgação, placas e lugares de memória de Campinas contemplam e dialogam com a

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memória dos(as) estudantes? E se não, por quê? Quem estabeleceu os locais de memória e os prédios a serem tombados? Como tais escolhas foram debatidas e construídas na sociedade? E todos os outros locais que foram demolidos, as memórias ocultas, discursos desqualificados, quais razões permitiram este destino? O que fazer diante de tal disparidade e silenciamento? Estimular uma postura questionadora dos estudantes é fundamental para o desenvolvimento do pensamento histórico-crítico e de uma postura atuante enquanto cidadão. Isso demonstra que não é apenas através de um saber abrangente, macro-histórico ou espacialmente longínquo que se constrói reflexões complexas e aprofundadas sobre a história.

Uma postura investigativa e questionadora sobre o local responde a uma das preocupações existentes sobre essa abordagem histórica na sala de aula. Muitas vezes, devido aos seus usos anteriores, ou por ainda ser eventualmente limitada a uma narrativa puramente cronológica e factual, a história local pode “simplesmente reproduzir a história do poder local e das classes dominantes”, pois se limita “a fazer os alunos conhecerem nomes de personagens políticos de outras épocas” (BITTENCOURT, 2008, p. 169). Dialogando com essa preocupação, ao refletir e questionar-se sobre as permanências e os silenciamentos na memória e história “oficial” da cidade, a postura especulativa e indagadora sobre tais aspectos dificulta a mera reprodução de uma história elitizada e excludente, tornando o centro da reflexão a própria forma de construção da memória oficial da cidade.

Em consonância com tal leitura, outro ressaltado positivamente pela bibliografia sobre a problemática local no ensino de história é o incentivo ao conhecimento do patrimônio histórico-cultural da cidade, muitas vezes carente de significados e mesmo despercebido pela própria população. (STEFANIAK; BILEWICZ; LEWICKA, 2017.) Ao refletir sobre o espaço da cidade e suas transformações, a presente proposta didática envolve diretamente o patrimônio da cidade, seja tanto para reconhecê-lo como incentivar que os estudantes indaguem-no, permitindo uma maior reflexão sobre seu significado, contradições, limitações e identificação.

Em suma, defendo que a história referenciada localmente incentiva um engajamento mais atento e reflexivo dos estudantes para com os diversos aspectos do espaço em que vivem, pensando e atuando na cidade em detrimento de apenas estar na cidade. Como trata com sua realidade direta e próxima, a história local facilita que os discentes notem seu direto envolvimento com elementos tratados na investigação sobre a cidade, destacando que suas ações interagem com e no seu espaço de convívio. É mais concreto a um jovem estudante

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identificar sua possibilidade de atuação nos processos urbanos/históricos ao discutir, por exemplo, o tombamento/demolição de um edifício que conhece pessoalmente, ou a preservação de uma área verde em sua cidade, do que dialogar com eventos ocorridos em tempos longínquos, como, por exemplo, os desdobramentos da Revolução Puritana do século XVII – tema do oitavo ano do ensino fundamental, segundo o currículo do estado de São Paulo. Ao trabalhar a história referenciada localmente, é possível sensibilizar aos alunos a historicidade de seu espaço de vivência, estimulando a própria percepção dos alunos(as) enquanto agentes históricos, dialogando com a necessidade de “formar um cidadão comum que necessita de ferramentas intelectuais variadas para situar-se na sociedade e compreender o mundo físico e social em que vive” (BITTENCOURT, op.cit., p. 47)

É claro que isso não significa que temas mais distantes espacial e/ou temporalmente dos estudantes tenham menor importância para a educação básica em história. A menção à Revolução Puritana, por exemplo, não é uma crítica particular a este tema específico. Tal episódio da história inglesa pode sim suscitar debates sobre a formação das concepções políticas ocidentais, abre espaço para o aluno relacionar as instituições políticas às transformações econômicas e sociais naquele determinado contexto histórico, introduz a discussão sobre a importância de objetos como a Constituição, e tantas outras possibilidades. No entanto, meu incômodo se refere à sistemática exclusão de propostas que tenha a localidade como objeto de estudo na sala de aula, seja devido ao escasso material didático disponível, seja sobre a ausência de uma formação competente na história referenciada localmente, ou, conforme demonstrarei adiante, também devido ao espaço marginal que a história local recebe em currículos do ensino básico.

Outro trabalho que se destaca sobre a análise dos métodos pertinentes à história local e seus ganhos ao saber histórico é o artigo de José D’Assunção Barros, no livro História Regional e Local: Discussões e Práticas. (BARROS, 2010). Em seu artigo, o autor defende a proposta de uma história “poli-adjetivada”, no qual os trabalhos historiográficos não pertencem a um único campo ou metodologia, mas sim se estabelecem na conexão entre diferentes dimensões, abordagens e domínios temáticos. Segundo a análise do autor, por exemplo, é possível que um trabalho de história oral seja também um trabalho de história social, tendo em vista que ambos os adjetivos podem estabelecer uma conexão enriquecedora em um trabalho historiográfico. O mesmo vale para conexões como história local e história

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econômica, ou ainda história cultural e história comparada. Ao avaliar a abordagem específica da história local e regional, o autor discorre:

Começaremos por dizer que, na "História Regional" ou na "História Local", a "região", o "local", o "espaço" são trazidos de fato para o centro da análise. O "lugar", na História Local (...) é trazido para um lugar importante no palco da análise historiográfica. Uma história será uma história local no momento em que o "local" torna-se central para a análise – não no sentido de que toda história deve fazer uma análise do local e do tempo em que contextualiza seus objetos, mas no sentido de que o local - uma cultura ou uma política local, uma singularidade regional, uma prática que só se encontra aqui ou que aqui adquire conotações especiais a serem examinadas em primeiro plano. Pode-se dar ainda que, na História Local, o "local" se mostre como o próprio objeto de análise, ou então que se tenha em vista algum fato à luz deste "local", desta "singularidade local". (BARROS, op.cit., p. 230)

Sobre tal aspecto, vale destacar que a finalidade da presente proposta didática não está em enaltecer uma singularidade de Campinas, ou ressaltar práticas específicas da cidade. Ao propor estudos sobre o local, não busco identificar uma cultura ou identidade especificamente de Campinas, ou valorizar práticas “campineiras” em contraste com outras identidades ou leituras disponíveis. Meu objetivo ao refletir historicamente as transformações da cidade se dá no intuito de usufruir das citadas potencialidades em tratar a cidade em que se vive como objeto de análise, buscando sensibilizar o estudante a um olhar crítico para o espaço de seu cotidiano, além de complexificar as recorrentes explicações generalizantes do saber histórico escolar. Por fim, almejo também estimular a atuação destes enquanto moradores e agentes históricos do espaço em que vivem, ressaltando sua condição de cidadãos, desnaturalizando as mudanças que ocorrem diariamente na cidade.

Apresentadas algumas questões pedagógicas sobre o uso de uma história local, cabe avaliar o espaço legado ao estudo da localidade nos currículos de ensino básico. Para tal, opto pela análise do recém-divulgado Currículo Paulista para os anos finais do ensino fundamental, publicado no ano de 2018. A escolha de tal documento atende três principais objetivos: sua atualidade, já que foi publicado no ano de 2018; sua abrangência, pois a rede estadual de ensino do estado de São Paulo atinge milhares de crianças e professores; e, por fim, por este ser o currículo com que trabalho cotidianamente na minha atuação profissional. Vale destacar que o Currículo Paulista já dialoga com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Fundamental, sendo que seus conteúdos, competências e habilidades

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estão versadas e referenciadas com as competências gerais e específicas apontadas na BNCC. Para o Ensino Médio, nem a BNCC ou o novo Currículo Paulista foram homologados até a confecção desta dissertação, permanecendo as orientações curriculares de 2010 na Rede Estadual paulista para esta etapa de ensino.

Antes de analisar o documento em si, vale a pena contextualizar seu surgimento ao longo dos debates sobre a BNCC. A Base Nacional Comum Curricular foi uma proposta de base comum nacional aos currículos municipais e estaduais existentes no Brasil, tendo sua discussão oficial iniciada em 2015, com a organização pelo Ministério da Educação de grupos compostos por diversos especialistas das diferentes áreas do conhecimento para sua confecção. A primeira versão - proposta ainda em 2015 - passou por muitas modificações, frutos de debates internos ao MEC e ao Conselho Nacional de Educação, além de consultas públicas e discussões conduzidas em seminários organizadas por órgãos como a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED). A BNCC voltada para os Ensinos Infantil e Fundamental foi aprovada em dezembro de 2017, servindo como base à elaboração do documento aqui analisado. Ao longo do processo de construção do documento, fragmentou-se a BNCC do Ensino Fundamental e a do Ensino Médio, esta última proposta e debatida num processo e documentação à parte.

Cabe lembrar que a BNCC foi um documento marcado por críticas de profissionais da educação básica e por especialistas de diferentes áreas do saber. Os principais questionamentos ao documento se referem à tendência centralizadora perante os diferentes currículos locais, restringindo a atuação das secretarias, escolas, comunidade escolar e, especialmente, de professores da rede básica na criação de um currículo que faça sentido à localidade e que seja construído contextualmente. Questiona-se nesta linha as limitações pedagógicas de uma mesma base curricular compartilhada entre todos os municípios como medida para solucionar os problemas educacionais brasileiros, tendo em vista que as escolas e suas comunidades são heterogêneas e compostas por sujeitos diferentes, que mobilizam diversificados saberes, não compartilham idênticas experiências de vidas, e tampouco constroem mesmos projetos de vida e de futuro. Neste ponto, a preocupação centralizadora de uma base curricular compartilhada às escolas reduz o próprio debate sobre o significado e sentido da educação básica, já que tais medidas associam as propostas educacionais

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principalmente a sua capacidade de ensinar determinados conhecimentos e transmitir conteúdos aptos a serem analisados através de exames nacionais de educação.

Foram contundentes também as críticas a respeito da forma verticalizada de confecção do documento, centrada mais nas discussões conduzidas por especialistas e órgãos oficiais, o que reduziu o espaço dado às contribuições das diferentes comunidades escolares. Mesmo quando aberta às consultas públicas e envios de destaques e sugestões, tais medidas foram organizadas num processo individualizado e fragmentado, carecendo de maiores debates e leituras coletivas sobre suas proposições. Questiona-se também a celeridade dada aos debates finais voltados à finalização e aprovação da documentação entre novembro e dezembro de 2017, que precarizou a possibilidade de reflexão e de destaques propostos por membros do Conselho Nacional de Educação. (AGUIAR, M. in AGUIAR & DOURADO, 2018) Finalmente, uma última crítica ao projeto indaga a marcada ausência de marcos de referências educacionais construídas de forma coletiva para sua elaboração, ficando pouco claro qual a proposta de sociedade nos referenciais associados à confecção da BNCC.

Em diálogo com tais questionamentos, vale destacar que a própria experiência de confecção do Currículo Paulista adaptado à BNCC, bem como a forma que este documento chegou às escolas da Rede Estadual de Ensino do Estado de São Paulo merecem ser questionadas, já que o currículo foi apresentado de forma inesperada em fevereiro de 2019, logo nos primeiros dias letivos, carecendo de qualquer discussão com a comunidade escolar ou mesmo inviabilizando uma possibilidade de seu estudo pelos professores. Portanto, a aplicação deste documento gerou constrangimento e confusão no primeiro semestre letivo deste ano, tendo em vista que não foram realizadas orientações técnicas a muitos docentes sobre as mudanças curriculares, e mesmo as informações oriundas da Secretaria de Educação eram contraditórias e pouco aberta às dúvidas ou esclarecimentos. Como agravante, os materiais didáticos voltados aos alunos e fornecidos pelo Governo do Estado para a aplicação de tal currículo chegaram apenas em agosto de 2019, provocando uma ruptura com os materiais usados até então e com o desenvolvimento de saberes construídos no primeiro semestre daquele ano6.

Assim, tanto a criação e aplicação da BNCC como o do Currículo Paulista foram marcadas por questionamentos sobre sua centralização curricular, falta de diálogo com a base e outras polêmicas constantes. E, diante deste quadro, cabe avaliar especificamente o espaço

6 Tais informações foram experimentadas tanto na escola em que atuou como outras da Diretoria de Ensino Campinas Leste, em diálogo com gestores e outros colegas professores.

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legado aos debates locais de história no Currículo Paulista, conforme proposto neste capítulo. Para analisarmos essa problemática, parto do próprio preâmbulo fornecido no documento, na qual apresenta as motivações e interesses envolvidos na produção da proposta curricular. Dentre os objetivos explícitos no documento, destaca-se que o currículo buscou atender uma “sequência que visa o melhor entendimento, contextualização e progressão dos conhecimentos históricos” (CURRÍCULO PAULISTA, 2018, p. 205. Grifo meu).

Feita essa introdução, o documento discorre de forma mais clara sobre sua concepção de “progressão” entre o ensino de história adequado a partir da educação infantil até a educação dos adolescentes. Faço a citação abaixo que, apesar de longa, é de valiosa discussão para os objetivos deste mestrado:

Nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, do 1º ao 5º ano, a escala de observação movimenta-se do particular para o geral. Assim, no ciclo de alfabetização (1º e 2º ano), propõe-se o estudo do contexto do estudante: o conhecimento de si, do outro, da família, da escola e da comunidade, em continuidade aos saberes desenvolvidos na Educação Infantil, por meio do campo de experiência “O eu, o outro, o nós”. No 3º ano, amplia-se o objetivo para a trajetória do município e dos

grupos que o formaram. No 4º e 5º ano há uma alteração

significativa tendo em vista o que tradicionalmente é aprendido nesta fase, em que se desprende da história do particular e da localidade

de onde se vive para percorrer tempos e espaços mais longínquos.

Tal mudança apresenta-se como possibilidade de melhorar a articulação com os anos finais do Ensino Fundamental, diminuindo o descompasso entre as duas etapas da escolarização. Assim, alguns temas geralmente trabalhados no 6º ano migraram para o 4º e 5º, como o surgimento dos seres humanos e o nomadismo, tendo como ponto de partida o tempo presente marcado por intensos e sucessivos movimentos migratórios. Outros objetos de conhecimento - dentre eles o aparecimento da escrita, da agricultura e de outras tecnologias -também podem garantir esta progressão. (CURRÍCULO OFICIAL PAULISTA, op.cit., p. 205. Grifos meus)

Ao afirmar que a estrutura curricular proposta almeja garantir uma adequada “progressão” no ensino de história, o documento segue duas lógicas: em primeiro lugar, busca a preservação a partir do sexto ano de uma lógica fundamentalmente cronológica que, ao partir de temas relativos à antiguidade, tende a seguir os estudos até atingir os dias atuais da história do Brasil e do mundo. Mas, mais do que uma progressão cronológica, o documento também segue uma progressão espacial e de escala de análise, respeitando a capacidade de

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abstração do estudante. Primeiramente, propõe às crianças mais jovens uma análise histórica reservada aos fatos próximos de sua realidade imediata, como sua família e comunidade. Em seguida, ao se desenvolverem e chegarem nos quartos e quintos anos, parte-se para uma reflexão histórica ligeiramente mais abrangente, como as cidades e sua região. Finalmente, a partir do sexto ano, os estudantes atingem a maturidade e capacidade de abstração necessária para estudar nos anos finais do ensino fundamental a história de “tempos e espaços mais longínquos”. Ou seja, o currículo se estrutura fundamentalmente numa ideia de que o estudante deve partir do local ao global, conforme adquire a capacidade de análise adequada para tal.

Tal lógica não é uma novidade e tampouco está restrito ao Estado de São Paulo, sendo associada a uma tradição já existente desde os Parâmetros Curriculares Nacionais7.

Nesta tradição curricular, sugere-se à história local um espaço apenas para as crianças dos anos iniciais, sendo que o Ensino Fundamental II e Médio é basicamente dedicado a uma história “longínqua” espacialmente. De forma análoga ao Currículo Paulista, esta configuração também parte de um pressuposto de que, como ainda são muito pequenos para uma discussão história mais “abstrata”, é importante que se inicie um estudo com algo próximo e concreto do estudante. O mesmo sentido de progressão é utilizado para tal documento.

Cabe uma maior reflexão sobre a lógica proposta nessas estruturas curriculares. De fato, o trabalho com o local pode ser uma importante ferramenta de estudo com os alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, tendo em vista que é possível a tais estudantes trabalharem com uma noção de história vinculada à sua família, aos documentos pessoais, as narrativas de parentes e conhecidos mais idosos, sendo muito tangível ao estudante em sua iniciação escolar. Contudo, ao longo da suposta progressão, o aluno apenas vai se distanciando dessa realidade próxima e local, como se este objeto de estudo não fosse em si sofisticado ou objeto válido para abstrações e raciocínios complexos, permanecendo secundário perante uma história pretensamente do Brasil e do mundo. Em outras palavras, o que é possível apreender dessa lógica estruturante do Currículo Paulista é que as sínteses

7 “Na tradição curricular da história escolar, histórias local e regional (…) constam como temas de estudo na 3ª série/4º ano e na 4ª série/5º ano, respectivamente. Nestas séries/anos, as crianças encontram-se numa faixa etária entre 8 – 11 anos, em condições limitadas para compreenderem a complexidade das abordagens político-econômicas e socioculturais. Eventualmente, temas da história local/regional aparecem nas séries finais do ensino fundamental, isso quando são expressivos no contexto da história nacional, como por exemplo, Canudos, Contestado, Guerra dos Farrapos, Inconfidência Mineira, Conjuração Baiana, dentre outros” (CAIMI, op.cit. p. 70)

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históricas nacionais seriam mais sofisticadas, complexas e mesmo importantes que os problemas da história local, lógica qual discordo e busco romper neste trabalho.

Avaliando especificamente as habilidades propostas no currículo, desde o sexto até o nono ano, há apenas dois momentos em que o documento sugere explicitamente habilidades vinculadas a uma reflexão sobre a localidade. Tais habilidades são ambas sugeridas no nono ano, sendo elas: "Identificar os processos de urbanização e modernização da sociedade brasileira e avaliar suas contradições e impactos na região em que vive (EF09HI058)” e “caracterizar e compreender os ciclos da história republicana, identificando

particularidades da história local e regional até 1954. (EF09HI02)”. Vale ressaltar que o nono ano é também o momento em que mais habilidades e conteúdos são desenvolvidos com os estudantes, o que resulta num tempo menor de dedicação a cada habilidade. (CURRÍCULO PAULISTA, 2018, P. 295).

O documento, contudo, faz uma ressalva, reiterando “a liberdade para adaptar o currículo de história de acordo com cada realidade escolar, a cultura local, a partir do cotidiano dos estudantes e das suas vivências” (CURRÍCULO PAULISTA, op.cit., p. 206). No entanto, ainda com essa ressalva, destaca-se o caráter optativo e secundário dado à reflexão histórica da localidade, relegando-a a uma mera possibilidade dentro de um currículo fixo e supostamente mais importante. Ao relegar as questões sobre o espaço cotidiano dos estudantes a uma mera possibilidade dos professores, a já precária produção de materiais didáticos sobre essa história referenciada localmente é mais uma vez desestimulada, tendo em vista que os autores e editoras se debruçarão a atender as competências “oficiais” do currículo paulista, na qual a demanda será garantida e superior.

O caráter secundário dado às temáticas locais no Currículo Paulista não é uma novidade introduzida agora na Rede Estadual de São Paulo, já que, mesmo antes de sua criação, tal característica estava presente no antigo “Currículo de Ciências Humanas e suas Tecnologias” do Estado de São Paulo - vigente até o ano de 2018. Neste documento, ainda que em suas apresentações e diretrizes teóricas este documento faça observações muito pontuais sobre a importância da articulação dos saberes para a compreensão da realidade que cerca os estudantes (CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2010. p. 9, 21), não há

8 A BNCC dispõe de um código alfanumérico que elenca os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento de cada unidade temática das diferentes áreas do conhecimento. Tal abordagem também gerou questionamentos por parte de especialistas, tendo em vista que esses códigos são sinais, inequívocos de uma tendência centralizadora do currículo nacional e indica uma facilidade de sua associação com ferramentas de avaliação externas às escolares.

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diretrizes ou clara alusão para a construção do saber histórico a partir da análise do local. Neste caso, ainda mais grave que o Currículo Paulista atual, não há sequer uma explícita sugestão ao docente adotar essa abordagem em suas aulas. Ou seja, desde o currículo anterior já existia uma tradição de legar as reflexões sobre a cidade e sobre o local a outras disciplinas ou ao ensino infantil, tradição esta mantida com a nova proposta curricular implementada para 2019.

Voltando ao currículo atual, vale analisar mais aprofundadamente as habilidades a serem desenvolvidas que explicitamente se vinculam à reflexão histórica sobre a localidade. Neste caso, a primeira – que propõe um questionamento sobre a urbanização e modernização da sociedade brasileira – desenvolve a proposta com sugestões de trabalho a partir do tema da reforma urbana proposta por Pereira Passos no Rio de Janeiro e da eclosão da Revolta da Vacina, em 1903. Após lecionar sobre esses assuntos, o currículo sugere ao professor que realize uma associação deste processo com “as políticas contemporâneas de manejo da população de rua, conforme a valorização imobiliária e financeira da região.” (CURRÍCULO PAULISTA, op.cit., p 300). Aqui, ainda que a sugestão de tal relação seja interessante, destaca-se novamente o caráter acessório ao estudo do local. Neste exemplo, a localidade é tratado como acessória, como um complemento a ser comparado ao caso que representaria a “história do Brasil” sendo que, mais uma vez, para tal representação nacional, recorreu-se à análise específica de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Não há um espaço explícito nesta habilidade para que estudantes pensem sua própria cidade e as próprias transformações ali ocorridas por si, com sugestões explícitas de, por exemplo, visitar arquivos, buscar relatos, ou mesmo uma avaliação da arquitetura e do urbanismo local. Pretende-se apenas a complementação do estudo de um evento histórico supostamente “brasileiro” comparando, se desejado pelo professor, com o caso mais específico da cidade em que a escola se situa.

Outro ponto a se avaliar na proposta didática para esta competência é a exigência de que cada professor desenvolva por si sua atividade, sem nenhuma orientação mais específica que possa auxiliar nesta importante tarefa. Reitero a fundamental importância da liberdade de criação dos planos de aula e das propostas didáticas pelos próprios docentes do ensino básico, já que esta liberdade permite a contextualização do saber e a criação de estratégias que dialoguem com significados específicos de cada comunidade escolar. Contudo, o que aqui aponto é a reincidência do caráter secundário e optativo dado aos componentes curriculares voltados ao local, que, além de suscitar uma prioridade ao estudo

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daquilo que seria supostamente “nacional”, acaba mesmo dificultando a desejada livre atuação do professor. Ora, o docente da rede básica normalmente tem uma rotina de trabalho intensa e dividida entre várias salas, séries e escolas, e, em meio a tal jornada de trabalho, precisa dedicar o pouco tempo de preparo das aulas para as temáticas “obrigatórias” que predominam o currículo e as sugestões secundárias. Portanto, pela falta de tempo e incentivo, muito provavelmente essas sugestões de complementação com o estudo do local não serão desenvolvida nos cursos. Agrava-se tal quadro se considerarmos a falta de formação específica aos professores, que normalmente acarreta em desconhecimento sobre arquivos e documentos históricos locais que possam ser analisados em aula. Em suma, o caráter optativo e secundário, diante da rotina intensa, da falta de formação e materiais didáticos que tratem do assunto, possivelmente faz com que os professores, ao tratar desta competência, resuma seu trabalho ao exemplo do Rio de Janeiro.

Por sua vez, a habilidade “EF09HI02”, tem as seguintes indicações didáticas: Professor, lembre-se que é importante sempre relacionar os eventos nacionais ao contexto internacional. Nessa habilidade o estudante deve conseguir compreender que a República brasileira passou por diferentes momentos, com características muito particulares em cada um deles. (...)

De cada período se pode enfatizar os aspectos da política econômica e social, as revoltas e o predomínio de alguns setores nas decisões políticas de todo o país. A partir da análise geral é importante

pesquisar aspectos locais, cujos desdobramentos aconteceram nesse período, sempre relacionando o local com o nacional.

De modo geral, em São Paulo podemos destacar os seguintes eventos e fenômenos históricos que aconteceram do final do século XIX até 1954: a Convenção de Itu e o Partido Republicano Brasileiro; predomínio de presidentes paulistas e a política do café com leite; desenvolvimento industrial; ferrovias e energia elétrica; urbanização; movimentos sociais, em especial as greves operárias; a Revolta Paulista de 1924; a Revolução Constitucionalista de 1932; os desdobramentos das comemorações do Primeiro Centenário da Independência do Brasil e do IV Centenário de São Paulo; além do aspecto cultural já citado nas habilidades anteriores.

Esta é a única habilidade do Currículo Paulista para o Ensino Fundamental II que de fato se preocupa explicitamente com a abordagem de uma temática local em diálogo com as análises macropolíticas. A habilidade é muito abrangente, permitindo ao docente responsável abordar inúmeros aspectos do contexto citado. Portanto, desde os anos iniciais,

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esta é o único espaço dado de forma explícita e objetiva pelo currículo paulista a uma reflexão da história local pelos quatro anos letivos dos anos finais do ensino fundamental.

Em uma análise numérica, mesmo considerando as duas citadas habilidades citadas como vinculadas explícita e diretamente à história local, é possível afirmar que apenas 2 das 35 atividades associadas às habilidades da BNCC no nono ano do ensino fundamental incentivam abertamente o uso e a reflexão da história da localidade. Isto significa em termos percentuais uma dedicação curricular de 6% ao longo do último ano dos anos finais. Caso levemos em conta todo o ciclo do Ensino Fundamental II, o número se torna ainda mais diminuto, tendo em vista que continuam apenas duas propostas didáticas num universo total de 105 desde o sexto ano, representando apenas cerca de 2% do currículo.

Reconheço que a formação de um currículo escolar seja tarefa de difícil síntese entre múltiplos interesses e correntes historiográficas, sendo que certas predominâncias metodológicas e conceituais acabam por ocorrer. Neste sentido, dialogo com o diagnóstico de Circe Bittencourt, que aponta a dificuldade de selecionar conteúdos, que é uma “tarefa complexa, permeada de contradições tanto por parte dos elaboradores das propostas curriculares quanto pela atuação dos professores, desejosos de mudanças e, ao mesmo tempo, resistentes a esse processo” (BITTENCOURT, op.cit., p. 138). Contudo, a opção de progressão adotada pelo currículo Paulista perpassa uma natureza reduzida do saber historiográfico, hierarquizando o geral – supostamente mais avançado e sofisticado - em detrimento do local. Defendo que a história se volte ao estudo da localidade em momentos diversificados da vida escolar do aluno, coexistindo e dialogando com modalidades abrangente e formadora de sínteses, complexificando as leituras e a natureza do saber histórico. Afinal, mesmo ao tratar temas “distantes”, muitos materiais didáticos e aulas ministradas podem propor reflexões extremamente superficiais, limitando-se a uma memorização monótona de nomes, eventos históricos, fatos passados, guerras, números e grandes personagens. Por outro lado, a história local pode ser muito rica e complexa, com trabalho direto de estudantes em arquivos e documentos históricos, com questões relativas às potencialidades e limites da memória e da história oral, com um questionamento da transformação da paisagem urbana, debatendo acerca da construção da memória local, e várias outras problemáticas que não são adequadamente tratadas apenas nos anos iniciais da educação básica.

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Outro questionamento inerente à lógica existente no Currículo Paulista de História é competir o trabalho com a localidade por profissionais outros que não historiadores. Os anos iniciais do ensino fundamental recaem em profissionais que não têm uma formação específica na área de história, sendo normalmente pedagogos ou outros profissionais da educação. Tais profissionais têm objetivos e questões específicas de sua área, diferentes das reflexões e proposições geralmente debatidas em um pensamento acadêmico caro à história. Portanto, uma consequência direta desta estrutura curricular, é que a história da localidade se torne objeto de trabalho por profissionais menos – ou não – habituados à lógica da construção do saber histórico, agravando o caráter secundário ao objeto local para análises mais especializadas da história.

A mesma observação é válida ao fato de o currículo alocar diversas temáticas relativas à reflexão sobre a localidade no campo da geografia. Da mesma forma que os professores da educação básica, os especialistas em geografia têm interesses, problemáticas e métodos outros e alheios aos específicos dos historiadores. Não se trata de hierarquizar ou considerar se são menos ou mais importantes que as perguntas e interesses da história, mas apenas de reconhecer que tratamento dado à questão e à temática será muito diverso do que a inserção da temática na proposta curricular de história. Em suma, sobre a historicidade da localidade, o currículo dificulta seu trabalho por aqueles profissionais formados e dedicados diretamente aos métodos históricos.

Novamente, reitero que sempre é um desafio a formação de um currículo, fruto de diversificados interesses, desejos e concepções pedagógicas em disputa. Contudo, reconhecendo uma escassa formação profissional e produção didática crítica sobre a história local, a opção do curricular do Estado de São Paulo de destacar espaço apenas aos anos iniciais ou como temas optativos desperdiça uma riqueza de possibilidades formativas, reiteradas pela bibliografia voltada ao ensino de história, e que busco apontar ao longo do capítulo.

1.2: Histórias locais, histórias nacionais: um jogo de escalas

Conforme mencionado anteriormente, um dos meus incômodos ao longo de minha prática docente com o silenciamento da história local foi involuntariamente reproduzir uma hierarquização da história “nacional” como mais importante que a da localidade. Ao excluirmos as reflexões históricas e as narrativas locais das aulas de história, reforça-se uma

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imprecisa ideia de que apenas as sínteses históricas nacionais são dignas de estudos escolares, enquanto a história local seria anedótica e relegada a um status inferior, a meros panfletos de divulgação ou memória dos mais idosos, inválidas ao espaço escolar.

A predominância das chamadas “sínteses nacionais” e macroanalíticas nos materiais didáticos não ocorre por mero acaso, sendo um desdobramento do processo de consolidação da história enquanto componente curricular. A história surge como disciplina escolar na virada do século XIX para o século XX, e estava intimamente ligada ao ideário nacionalista e à preocupação do período na construção de um passado supostamente compartilhado por todos os cidadãos de um país9. Através das aulas de história, buscava-se

forjar uma identidade nacional, exaltando os “heróis” do país, os símbolos pátrios e elencando uma série de datas e marcos importantes na formação do cidadão da nação. Neste sentido, privilegiou-se na “História do Brasil” uma abrangente síntese política pretensamente nacional, que apresenta determinados exemplos regionais como paradigmáticos para todo o Brasil10.

A função desta história era bem esclarecida e determinada, e estava associada à ideia de que a apresentação histórica dos fatos políticos relevantes do país, bem como a evolução das estruturas nacionais facilitariam aos cidadãos a sua formação e a consciência política. Para Antoine Prost, mais do que apenas consolidar uma ancestralidade comum, a história política enquanto disciplina buscava incentivá-los ao engajamento político:

Esse projeto era cívico e republicano. Se, pelo repertório nacional de lendas, assim como pela saga dos reis da França e pela epopeia revolucionária e imperial, a história era fator de coesão, ela visava simultaneamente uma função crítica. O saber é uma arma e a história – ao explicar o modo como se foi constituindo a nação – fornecia aos cidadãos os meios para que os próprios formassem sua opinião sobre a evolução social no decorrer do tempo. (PROST, p. 263-264)

9 A Análise de Alessandra Pedro sobre o material didático produzido no início do século XX é reveladora sobre a historicidade do ensino de história. PEDRO, A. “A educação como ideal: a obra histórica e didática de Rocha Pombo (1900 – 1933). Campinas: IFCH/Unicamp (Tese de Doutorado). p. 175.

10 Um exemplo desse fenômeno são os capítulos sobre economia e sociedade no Brasil do século XIX. Nesta temática, diversos livros apresentam a cafeicultura enquanto característica econômica e a transição da mão-de-obra escrava para a imigrante no quadro dos trabalhadores. Apesar de ser uma realidade mais específica de São Paulo e do Rio de Janeiro, tal temática é apresentada como explicativa da “História do Brasil”, omitindo que outras regiões tinham características sociais e econômicas bastante distintas.

Referências

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