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49847737 Rivkah Scharf Kluger O Significado Arquetipico de Gilgamesh

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Academic year: 2021

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Título srcinal

The Archetypal Significance of Gilgamesh, a modem ancient hero

©by Daimon Verlag, Elnsiedeln Switzerland Tradução Atílio Brunetta

Revisão

Pe. Zolferino Tonon

Coleção AMOR E PSIQUE dirigida por

Dr. Léon Bonaventure - Pe. Ivo Storniolo - Dra. Maria Elci S. Barbosa Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Kluger, Rivkah Schârf, 1907-1987.

O significado arquetípico de Gilgamesh, um moderno herói antigo / Rivkah Schârf Kluger; [tradução Atílio Brunetta]. — São Paulo : Paulus, 1999. — (Amor e Psique).

hero.

Título srcinal: The archetypal significance of Gilgamesh, a modern ancient Bibliografia.

ISBN 85-349-1522-9

1. Arquétipo (Psicologia) 2. Gilgamesh 3. Individuação 4. Jung, CarI Gustav, 1875-1961 5. Mito -Aspectos psicológicos I. Título. II. Série.

99-1954

CDD-150.1954

índices para catálogo sistemático:

1. Gilgamesh : Significado arquetípico : Psicologia analítica junguiana 150.1954 PAULUS-1999

Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (O—11)570-3627 Tel. (O--11) 5084-3066 http://www.paulus.org.br dir.editorial@paulus.org.br

ISBN 85-349-1522-9

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RIVKAH SCHÀRF KLUGER

O SIGNIFICADO

ARQUETÍPICO

DE GILGAMESH

Um moderno herói antigo

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Coleção AMOR E PSIQUE

•Uma busca interior em psicologia e religião, J. Hillman • A sombra e o mal nos contos de fada, Maríe-Louise von Franz • A individuação nos contos de fada, Marie-Louise von Franz • A psique como sacramento —C. G. Jung e P. Tillicfi,J. P. Dourley •Do inconsciente a Deus,Erna van de Winckel •Contos de fada vividos,H. Dieckmann •Caminho para a iniciação feminina,S. B. Perera •

Os mistérios da mulher antiga e contemporânea, M. E. Harding •Os parceiros invisíveis,J. A. Sanford •l\/lenopausa, tempo de renascimento,A. Mankowitz • A doença que somos nós,J. P. Dourley •Mal, o lado sombrio da realidade, J. A. Sanford •Meditações sobre os 22 arcanos maiores do Taro, Anônimo •Os sonhos e a cura da alma, J. A. Sanford •Bíblia e psique —Simbolismo da individuação no AT,E. F. Edinger • A prostituta sagrada,N. Q.-Corbett • A interpretação dos contos de fada, Marie-Louise von Franz •

As deusas e a mulher —Nova psicologia das mulheres,J. S. Boien •Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann •Meia-idade e vida,A. Brennan e J. Brewi •PuerAeternus — A luta do adulto contra o paraíso da infância, Marie-Louise von Franz • Oque conta o conto?,Jette Bonavenlure •Falo, a sagrada imagem do masculino,E. Monick •Castração e fúria masculina,E. Monick •Eros e pathos

—amor e sofrimento,A. Carotenuto •Sonhos de um paciente comAids, Robert Bosnak • A busca fálica —Príapo e a inflação masculina,J. Wyly • A tradição secreta da jardinagem —Padrões de relacionamentos masculinos, G. Jackson •Conhecendo a si mesmo — Oavesso do relacionamento,D. Sharp •Breve curso sobre sonhos,Robert Bosnak •Sonhos e gravidez,Marion R. Gallbach • A passagem do meio,James Hollis •Os mistérios da sala de estar,G. Jackson • Ovelho sábio —Cura através de imagens internas,

P. Middelkoop'A solidão,A. Storr •Deus, sonhos e revelação,Morton T. Kelsey • A velha sábia —Estudo sobre a imaginação ativa,

Rix Weaver •Sob a sombra de Saturno — A ferida e a cura dos homens,J. Hollis • Amar, trair —Quase uma apologia da traição, A. Carotenuto •Curando a alma masculina, Dwight H. Judy • Ansiedade cultural,Rafael López-Pedraza •Não sou mais a mulher com quem você se casou,Ago Bürki-Fillenz •Envelhecer —os anos de declínio e a transformação da última fase da vida, Jane R. Prétat • A jornada da alma —Um analista junguiano examina a reencarnação, John A. Sanford •Rastreando os deuses,J. Hollis •Psiquiatria junguiana,H. K. Fierz •Consciência solar, consciência lunar, Murray Stein • Odespertar de seu filho —Para um bebê ativo e calmo,

Chantal de Truchis • Ocaminho da transformação —Segundo C. G. Jung e a alquimia,Étienne Perrot •Hermes e seus filhos,Rafael López-Pedraza •Os pantanais da alma —Nova vida em lugares sombrios,James Hollis • Alimento e transformação —Imagens e

simbolismo da alimentação, Eve Jackson • A virgem grávida —Um processo de transformação psicológica, Marion Woodman •

Destino, amor e êxtase — A sabedoria das deusas gregas menos conhecidas, John A. Sanford •Incesto e amor humano — A traição da alma na psicoterapia,Robert Stein • Olivro do puer —Ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus,James Hillman •Psicoterapia,

Marie-Louise von Franz • Osignificado arquetípico de Gilgamesh, um moderno herói antigo, Rivkah Scharf Kluger

INTRODUÇÃO A COLEÇÃO AMOR E PSIQUE

Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se um lugar novo de experiência. Os viajantes destes caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicações, psicopatológicas às nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feridas e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e para a realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira.

Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a mão para a teologia.

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Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si mesma, à sua própria srcinalidade. Ela nasceu de reflexões durante a prática psicoterápica, e está começando a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensões diferentes de nossa existência para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à necessidade de inserir mais alma em todas as atividades huma-nas.

A finalidade da presente coleção é precisamente restituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem da alma", como C. G. Jung o desejava.

Léon Bonaventure

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AGRADECIMENTOS

O editor deseja expressar o seu reconhecimento e o seu agradecimento ao Dr. Aryeh Maidenbaum, Diretor Executivo do C. G. Jung Instituto de Nova York, pelos seus esforços benevolentes para prover as custas da publicação, bem como pela contribuição material e moral desta obra. Meus calorosos agradecimentos igualmente são dirigidos ao Dr. Maury Leibovitz pelo seu generoso apoio através da Fundação Maury Leibovitz. É uma satisfação especial testemunhar o reconhecimento à Fundação Erlo van Waveren pela sua valiosa contribuição, em razão do respeito mútuo que existia entre o autor e o falecido Sr. van Waveren. Meus agradecimentos e minha gratidão vão também para Judy Maidenbaum por sua participação generosa no financiamento do livro. Não menos importante, os agradecimentos são devidos ao editor Dr. Robert Hinshaw, cujo interesse e participação pessoal generosa no trabalho preparatório transcendeu em muito a costumeira conexão profissional, e cujo apoio e incentivo durante todos esses anos chegou ao ponto de se preocupar e se interessar pela autora e pelo editor (também através de sua esposa, que, assim, igualmente é merecedora do meu reconhecimento e dos meus agradecimentos).

HYK

Gilgamesh, da autoria de Rivkah Schãrf Kluger, é o resultado de um esforço conjunto da CG. Jung Foundation de Nova York e da Daimon Verlag da Suíça para a publicação de obras importantes

no campo da Psicologia Analítica.

PREÂMBULO

Quando Rivkah Schárf apresentou a sua tese de doutorado em 1948,*1 CG. Jung logo percebeu

que ela possuía talento para a pesquisa, juntamente com uma consciência inquebrantável. Assim, ele a incentivou a começar a trabalhar em torno de um tema do qual ele havia particularmente gostado desde a sua pesquisa anterior sobre mitologia:Gilgamesh. Ela, naturalmente, aceitou com muito prazer a sua sugestão, inconsciente da enormidade deste empreendimento e de que a tarefa de apresentar um comentário psicológico em torno da Epopéia de Gilgamesh iria envolvê-la para o resto da vida. Os conhecimentos que havia adquirido sobre a história comparativa da religião eram requisito valioso, e ela prosseguiu sem deixar nenhuma pedra que não fosse revolvida sobre o tema. Mas a interpretação do texto em termos de psicologia junguiana iria ser a sua única contribuição, uma vez que, na vasta literatura já existente sobre Gilgamesh, não havia quase nada a ser descoberto em relação à natureza psicológica. O leitor compreenderá, pois, que, em seu próprio texto, a autora cita apenas livros e artigos que fornecem bases arqueológicas e filológicas do texto em torno da epopéia.

1

* Esta dissertação foi publicada primeiro em alemão: "Die Gestalt des Satans im Alten Testament" (Rascher Verlag, Zurique, 1948) e posteriormente «m inglês: "Satan in the Old Testament" (Northwestern University Press, Evanston, 1967).

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Rivkah Kluger designa apropriadamente a Epopéia de Gilgamesh como sendo um mito. Quando se trata de interpretar mitos, contos de fadas e temas religiosos, nós já temos inúmeros exemplos, a partir do próprio Jung, que demonstram a aplicação de suas idéias na elaboração desses textos que são valorizados com o correr do tempo. É neste aspecto que o talento da autora é particularmente compensador, uma vez que ela leva em consideração meticulosamente o fato marcante de que está trabalhando com um mito: um mito venerável que chegou até nós após ter percorrido cerca de quatro mil anos. Isto requer percepção ininterrupta das condições culturais particulares sob as quais ele se srcinou, isto é, a estrutura mental peculiar àqueles povos em seu próprio período da história do mundo. Só então é que podemos avaliar o processo de individuação tal qual existiu naquele momento da história. Pois, como demonstrou o próprio Jung, todo mito verdadeiro descreve em essência o processo de individuação do seu herói. As ampliações apresentadas por Rivkah Kluger demonstram claramente o seu profundo respeito por esses processos, pelo que nós somos especialmente reconhecidos. Tendo tudo isso em mente, podemos considerar o Gilgamesh de Rivkah Klugler um estudo clássico de uma análise da individuação.

Entretanto, ao ler este livro, deveríamos estar cientes de que o mesmo teve que ser postumamente formulado, um grandioso trabalho de solicitude e de amor empreendido pelo marido de Rivkah, o Dr. Yehezkel Kluger, compilado a partir de muitosdisiecta membra, fitas gravadas, conferências e trabalhos de pesquisa, apresentados, tanto no antigo como no novo mundo, durante um período de muitos anos. Sejamos gratos também a ele por ter-nos tornado acessível esta obra magistral, e por ter assim erigido este magnífico monumento tanto para a autora como para a psicologia junguiana em geral.

Prof. Dr. CA. Meier

PREFACIO

O que se segue é uma publicação póstuma de importante trabalho empreendido pela autora, com o incentivo de CG. Jung, após ter ele incluído a monografia da autora "A figura de Satã no Antigo Testamento" em seu livro Symbolik des Geistes (Simbologia do Espírito), que apareceu em 1948. A autora havia proferido conferências em torno do tema no Clube Psicológico de Zurique quando Jung ainda era um participante ativo, como também, a partir de então, em diversas outras cidades. Um seminário de 1962 realizado no CG. Jung Institut-Zürich foi gravado, e este livro consiste da transcrição dessas fitas, acrescido das notas da própria autora feitas para as suas conferências.

A grande beleza e profundidade da Epopéia de Gilgamesh fazem da mesma instrumento singular para um estudo em. torno da alma humana. A pesquisa foi apresentada como parte do preparo analítico de candidatos e ilustra o significado dos mitos para o entendimento do crescimento da consciência e do desenvolvimento da religião, à luz dos processos do inconsciente. Da mesma forma, o

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material e o estilo da apresentação são focalizados de acordo com a sua pertinência em relação à nossa era atual. A sua aplicabilidade em satisfazer os interesses, as necessidades e os problemas do homem moderno é demonstrada por ilustrações a partir de sonhos e de situações concretas, bem como de recordações pessoais. Decidiu-se editar todo o material na forma em que a própria autora o apresentou, assim como acontece com as conferências de Jung, a fim de possibilitar que o leitor possa apreciar, à medida que a palavra escrita pode transmitir, a vivacidade e o entusiasmo com que a autora impregnou as suas conferências, enquanto, não obstante isso, ele possa aderir ao seu alto nível de precisão erudita. Uma versão sintetizada deste material foi publicada como "Einige psychologische Aspekte des Gilgamesch-Epos", na edição centenária de Jung, de 1975, de Analytische Psychologie, vol. 6, n. 3.

É de lamentar que a enfermidade e a morte da autora em dezembro de 1987 tenham impedido a sua participação na preparação final da sua obra para a publicação, mas o editor, que com freqüência havia revisado com a autora o material durante muitos anos, espera ter conseguido possibilitar que as próprias palavras da autora transmitam o seu conhecimento e a sua profundeza ao leitor.

H. Yehezkel Kluger Haifa, 4 de junho de 1989

INTRODUÇÃO

1. Os mitos são "assunto da alma"

A Epopéia de Gilgamesh, obra-prima da literatura mundial, é considerada uma das mais antigas epopéias do mundo. Ela é chamada epopéia, porém, como veremos, trata-se realmente de um mito. Para poder compreender um mito, a meu ver, é necessário ter um ponto de vistahistórico a partir de duas perspectivas, por assim dizer, uma perspectiva exterior e uma perspectiva interior. A perspectiva exterior diz respeito à necessidade de compreender a forma histórica em que aparecem os arquétipos, o fundo histórico ao qual está relacionado o mito — em nosso caso, a cultura e a religião babilônica. O aspecto interior se refere aos problemas essenciais do tempo, com os quais essa época específica se envolveu conscientemente, ou nos quais a mesma época estava inconscientemente envolvida. Embora esta seja tarefa principalmente científica, acredito que, não obstante isso, se trata de um assunto de necessidade imediata para podermos entender essesdocumentos humanos em relação à nossa própria vida, pois todas as épocas históricas vivem em nós, e nós não podemos realmente nos entender a não ser que conheçamos as nossas próprias raízes espirituais.

Que época particular e que conteúdos espirituais são evocados em nós pelo inconsciente é, até certo ponto, questão de destino individual. Uma vez que a cultura ocidental se baseia em grande parte no judaísmo e no cristianismo, a cultura babilônica como uma de suas raízes pode ser considerada um interesse psicológico imediato para todos nós. Os arquétipos residem em seu domínio, além do tempo e do espaço. Isto constrói a ponte do entendimento entre os homens de todas as eras, e torna possível

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perceber que nós mesmos, com nossos problemas essenciais, estamos ligados inseparavelmente à continuidade dos problemas eternos da humanidade, como os mesmos são visualizados nos mitos. Mas a forma em que aparecem os mitos, a sua roupagem, por assim dizer, depende das condições históricas: os símbolos em que aparecem se alteram. No ser humano, essas mudanças correspondem ao desenvolvimento da consciência humana. Assim, os mitos, a meu ver, representam não apenas os eventos arquetípicos perenes, mas certo nível do desenvolvimento da consciência humana. No desenvolvimento do meu trabalho em torno deste tema significativamente rico, esta conexão se projetou cada vez mais em minha mente, de modo que eu desejaria defini-la como a idéia fundamental, como o ponto de partida da minha tentativa de explicar este mito.

Foi somente em 1872 que os estudiosos pela primeira vez se conscientizaram deste mito, quando o assiriólogo inglês George Smith publicou "O relato caldeu do dilúvio", como ele intitulou a sua tradução da décima segunda tabuleta da epopéia. Escavações feitas em Kouyunjik, a antiga Nínive, desenterraram muitos fragmentos, que foram em seguida enviados para o Museu Britânico de Londres. Descobertas posteriores, naquela região e em outros lugares, chamaram a atenção dos estudiosos na Europa e na América. Gilgamesh, Rei de Uruk — a Erech bíblica — foi pela primeira vez identificado com o caçador Nimrod, a cujo domínio, segundo o Gênesis 10,10, pertencia Erech (Arac). Somente depois é que se tornou claro, através de descobertas de material sumério mais antigo, que não se tratava exatamente disso. Como demonstrou o sumeriólogo americano Samuel Noah Kramer, a epopéia contém e combina elementos de mitos sumérios anteriores, que integram o material anterior isolado num único bloco. Os fragmentos sumérios mais antigos, descobertos nas cidades da Mesopotãmia de Nippur, Kish e Ur, remontam ao quarto milênio a.C. O nome Gilgamesh mostrou ser sumério, e não semita. Os sumérios eram os mais antigos habitantes da Mesopotãmia que conhecemos. Até agora, a sua linguagem não foi vinculada a nenhuma outra. Eles foram os inventores da escrita cuneiforme (em forma de cunha), que foi assumida pelos seus sucessores, os babilônios e os assírios, juntamente com toda a cultura suméria. Mas esses dois povos imprimiram na cultura suméria a sua própria marca particular, e as concepções semitas típicas foram igualmente inseridas na Epopéia de Gilgamesh.

A epopéia como tal é criação dos babilônios semitas, o os seus primeiros fragmentos pertencem ao assim denominado período babilônico antigo, isto é, durante a dinastia de Hamurabi, na primeira metade do segundo milênio a.C. Mas esta primeira versão babilônica é muito fragmentária. Felizmente, cópias posteriores e elaborações ulteriores desses fragmentos foram encontradas nas escavações efetuadas em Nínive, na biblioteca de Assurbanipal, o último grande rei assírio, que reinou no 7" século a.C. A versão mais recente está escrita em doze tabuletas de argila e é o resultado de pelo menos 1.800 a 2.000 anos de trabalho sobre a epopéia. Fragmentos posteriores a partir de então vieram à luz, os quais encerram valiosas adições ao texto danificado e incompleto.

Entre os mesmos, encontram-se também translações para o idioma hitita e hurriano. Um fragmento acadiano datado em torno do 14° século a.C. foi também encontrado em Meggido, Canaã,

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conseqüentemente, anterior à colonização israelita nesta área. Essas descobertas mostram como estava difundida a Epopéia de Gilgamesh, desde o sul da Babilônia até a Ásia Menor, e em que alta estima a mesma era tida.

Podemos supor que, da mesma forma como outros mitos e lendas populares, a Epopéia de Gilgamesh foi srcinalmente transmitida aos povos por via oral, recitada por rápsodos, como está indicado pelo seu estilo e pelas suas freqüentes passagens repetitivas, que imprimiam a mensagem na alma dos diferentes povos, onde a mesma passou por desenvolvimento e por transformações posteriores.

Exatamente que fontes particulares foram coletadas, e de que forma, não me parece ser mera questão casual. O autor ou autores desta composição devem ter tido a sensação de que isto fazia sentido, como fizeram aqueles que a aceitaram dessa forma através de séculos. O fator combinante pode ser encontrado no inconsciente criativo daqueles que trouxeram os materiais diferentes em co-nexão uns com os outros. Assim, buscar uma interpretação psicológica desta epopéia antiga, tão plena de significado, parece ser empreendimento justificado. Os mitos são "assunto da alma", assim como os sonhos, e requerem interpretação simbólica e uma tradução.

A partir da descoberta de Jung do inconsciente coletivo e de seus conteúdos, os arquétipos (as formas típicas básicas do pensamento e dos sentimentos humanos e as reações subjacentes e determinantes da variedade ilimitada de experiências individuais), uma nova luz incidiu na essência dos mitos. Ao descobrir motivos mitológicos que emergem dos sonhos do homem moderno, Jung reconheceu que os mitos, da mesma forma que os sonhos, são manifestações do inconsciente. Tornou-se evidente, na prática, que apreTornou-sentar paralelismos mitológicos como uma amplificação de sonhos arquetípicos não só aprofunda o entendimento desses últimos, mas também leva a um entendimento psicológico mais profundo do mito. A sua obra que abriu caminho neste sentido, Symbols of Transformation (Símbolos de transformação), lançou os fundamentos para um campo mais vasto na pesquisa psicológica sobre os mitos e a sua relevância para o homem moderno.

2. Os mitos e o crescimento da consciência humana

Quanto à sua srcem, da mesma forma como os sonhos, os mitos são expressões espontâneas do inconsciente. Como demonstrou Jung, da mesma forma como os sonhos estão relacionados, numa forma compensatória, ao estado atual da consciência do indivíduo, assim também os mitos, podemos presumir, estão relacionados ao estado coletivo da consciência de determinada era da história. Poderíamos presumir que seja o ego coletivo da tribo ou daquele povo, isto é, as crenças e as atitudes sustentadas em comum, a consciência coletiva. Entretanto, istoleva a outra questão, que é importante para a interpretação de um mito assumido como sonho coletivo: não existe ego individual ao qual se possa apelar para associações que ajudem a estabelecer o contexto em que ocorre o sonho. Como podemos interpretar um mito sem o aspecto particular de referência que temos para sonhos individuais na pessoa daquele que sonha? Neste caso, o único contexto disponível é a cultura da época em que

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surgiu e foi avaliado o mito. Os mitos, por conseguinte, são como reflexões ou imagens de espelho de certas situações culturais da humanidade, e, assim como grandes sonhos arquetípicos individuais, eles contêm intuições e previsões profundas de desenvolvimentos posteriores, e, assim, eles podem ser consideradosmarcos miliários no desenvolvimento da consciência humana.

Quando interpretamos um sonho individual, podemos olhar para as figuras que nele ocorrem (além da figura do próprio indivíduo que sonha, que geralmente representa o seu ego) sob o aspecto do seu assim denominado significado objetivo ou subjetivo, este último referindo-se ao aspecto interior e em grande parte inconsciente da personalidade daquele que sonha. Quanto mais coletivo e arquetípico o sonho, tanto mais se insinua o nível subjetivo de interpretação. Isto vale ainda mais para o caso do sonho, no qual, para começar, não existe um ego individual de um sonhador ao qual se referir. Mas existem indivíduos, divinos e humanos, que aparecem e agem no mito, e os mesmos podem ser interpretados como aspectos da totalidade projetada da psique humana, seja ela individual ou transmitida pela comunidade, a coletiva. No caso do mito do herói, em particular, existe um caráter, o herói, que é o autor numa seqüência contínua de eventos. O herói pode, portanto, ser considerado a previsão de um desenvolvimento da consciência do ego, e a sua atuação no mito, uma indicação do processo de movimento rumo à totalidade que está implícita e inata na psique; no indivíduo, o processo de individuação. Esta é, aparentemente, a razão por que os sonhos arquetípicos ocorrem com freqüência em momentos cruciais de nossa vida, em estados de transição. Mitos antigos podem então tornar-se não apenas amplificações valiosas para tais sonhos, mas a própria chave para a sua interpretação. Pois nós, consciente ou inconscientemente, estamos vivendo ou sendo vividos por padrões arquetípicos, e são as imagens mitológicas as que geralmente estão por trás das experiências mais profundas designificado em nossa vida. Não parece ser mero acaso o fato de que, nos tempos modernos, tenham-se multiplicado publicações em torno da Epopéia de Gilgamesh, não só no campo da assiriologia, mas também nas obras poéticas, nas composições literárias e nas representações artísticas. É como se o nosso tempo tivesse que encontrar o seu próprio entendimento dessas afirmações da eterna consideração humana, a fim de buscar o significado ou o lugar específico da nossa própria era histórica, no processo de uma amplificação crescente da consciência, que é o sentido último e a meta última do mito. Como afirmou Jung em sua introdução à "Psicologia do arquétipo infantil" (part. 267):

"...nunca podemos legitimamente nos desligar dos nossos fundamentos arquetípicos, a não ser que estejamos preparados para pagar o preço de uma neurose, assim como não podemos nos desfazer do nosso corpo e dos seus órgãos sem cometer o suicídio. Se não podemos negar os arquétipos ou, de outra forma, neutralizá-los, nos defrontamos, em cada novo estágio de diferenciação da consciência à qual chega a civilização, com a tarefa de encontrar uma nova interpretação apropriada para esta etapa, a fim de conectar a vida do passado que ainda existe em nós com a vida do presente, que ameaça fugir da mesma. Se esta união não se realiza, surge uma espécie de consciência sem raízes, não mais orientada

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para o passado, consciência que sucumbe impotente a toda forma de sugestões e, na prática, é susceptível a uma epidemia psíquica".

Até que ponto "a vida do passado ainda existe em nós" iremos descobrir à medida que continuarmos a nossa investigação psicológica da Epopéia de Gilgamesh. Por causa do estado fracionado e danificado das tabuletas, o texto apresenta muitas lacunas, o que deixa muitas questões em aborto, cuja solução precisa aguardar a descoberta dos fragmentos adicionais da epopéia. Mas o fascínio exercido pela Epopéia de Gilgamesh, radicado em sua profundeza psicológica, supera todos esses obstáculos. Ele requer apenas a fantasia e a intuição para preencher essas lacunas, pois subsistiu um texto suficiente para imprimir sentido de continuidade significativa aos acontecimentos da história e da totalidade de um processo interior por trás do mito.

Ao trabalhar com o material, fiz uso de todas as traduções disponíveis em alemão, francês, holandês e, em inglês, da tradução poética em hexâmetro inglês de R. Campbell Thompson, da tradução de E.A. Speiser, em Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (textos antigos do Oriente Próximo relativos ao Antigo Testamento) eThe Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels (A Epopéia de Gilgamesh e paralelismos do Antigo Testamento), de Alexander Heidel. Este último é o texto que irei seguir em grande parte. Heidel apresenta boa e ampla introdução ao texto, e introduz na íntegra o paralelismo da Antiga Babilônia e os textos hititas, onde aparecem lacunas na versão padronizada. Não concordo com as suas idéias a respeito dos paralelismos do Antigo Testamento, e esta parte foi de modo geral criticada, porém, quanto ao texto e à sua publicação, ambos são considerados de boa qualidade, muito bem processados e confiáveis.

Lamento dizer que meu estudo sobre a linguagem acadiana e sobre os escritos cuneiformes não tenha avançado o suficiente para me possibilitar basear minha pesquisa sobre o texto srcinal. Considero também que tenho passado por alto alguns fatos psicológicos que poderiam ter-se revelado apenas para alguém que possui conhecimento mais profundo sobre a linguagem. Devo, portanto, pedir a indulgência do leitor a esse respeito. Entretanto, o número relativamente elevado de traduções cientificamente valorizadas parece ter-me garantido a tentativa para uma explicação psicológica.

I - AS MURALHAS DE URUK

1. Gilgamesh, dois terços deus

Voltemos agora ao texto. (A fim de tornar a leitura mais suave, omitirei os vários tipos de colchetes usados para indicar textos prejudicados e restaurações, entretanto manterei as reticências que indicam as lacunas no texto.) A Tabuleta I contém uma introdução que exalta o herói, uma indicação de que a epopéia foi em princípio narrada por rápsodos, como foi mencionado anteriormente, que primeiramente anunciavam as qualidades do herói que iriam exaltar:

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Aquele que conhecia todas as nações, a ele irei exaltar. ...juntos...

...sabedoria, aquele que tudo...

Ele via as coisas secretas e adquiria o conhecimento das coisas ocultas.

Ele trazia as notícias dos dias anteriores ao dilúvio Empreendeu uma longa viagem, ficou exausto e abatido;

Gravou numa tabuleta de pedra toda a sua lida. (Tab. I, col. i, linhas 1-8, Heidel, p. 16)

Esta introdução antecipa realmente o fim. Ela apresenta aquilo que o herói Gilgamesh se tornou em virtude dos seus feitos e de suas experiências. Este breve período da caminhada do seu desenvolvimento traz à luz de forma esplêndida a qualidade do destino na sina do herói. Em seguida, a exaltação do herói dirige-se aos grandes feitos de sua juventude:

Ele ergueu as muralhas de Uruk, o recinto, A sagrada Eanna, o armazém sagrado. Olhai as suas muralhas exteriores, cujo brilho é igual ao do cobre!

Realmente, contemplai suas muralhas interiores, que nenhuma outra pode igualar! Reparai a sua entrada, que vem da Antigüidade! Aproximai-vos de Eanna, a mansão de Ishtar, A qual nenhum rei posterior, nenhum homem, pode igualar!

(linhas 9-15, Heidel, pp. 16s)

Uruk, a bíblica Erech, mencionada entre outras cidades mesopotâmicas em Gênesis 10,10, era a cidade-estado da qual Gilgamesh era o rei. Eanna era o templo do deus celeste Anu, senhor do panteão sumário, e o que é ainda mais importante, de sua filha Ishtar, a deusa poderosíssima que o eclipsou, da qual falaremos mais adiante. A qualidade sobre-humana de Gilgamesh é especialmente evidente na descrição do seu aspecto:

O valente deus... aperfeiçoou a sua forma... O Shamash celeste lhe concedeu boa aparência e atrativos; Adad lhe concedeu heroísmo...

A forma de Gilgamesh, os grandes deuses a tornaram extraordinária.

De onze côvados era a sua estatura; a largura do seu peito era de nove palmos. O comprimento do seu... era de três...

(linhas 4-9, versão hitita, Heidel, p. 17)Dois terços dele são deus e um terço dele é homem. A forma do seu corpo ninguém pode igualar

A investida de suas armas não tem igual. (Tab. I, col. ii, linhas 1-9, Heidel, p. 18)

Esta descrição apresenta Gilgamesh como um herói mitológico típico. O herói mitológico é virtualmente sempre em parte divino e em parte humano. Isto, a meu ver, aponta para o fato de que o herói é uma antecipação intuitiva do desenvolvimento para a consciência humana do divino no homem.

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A sua divindade é indicada pelas suas medidas e pelas suas qualidades sobre-humanas, e o alcance dos seus feitos e de sua sabedoria é uma medida do seu empreendimento na realização da tarefa cultural que o aguarda. O mito, assim, está sempre à frente do nível real da consciência do tempo, e dessa forma o herói é o símbolo ou o portador de um processo de mudança: para o homem moderno, o processo de individuação. As suas batalhas contra as forças ameaçadoras, nas quais é ajudado ou incentivado por contraforças positivas, resultam no estabelecimento de novo relacionamento entre o consciente e o inconsciente.

O herói típico, como nos mitos gregos mais conhecidos, é geralmente meio humano e meio divino (semideus). Quanto à razão por que Gilgamesh é dois terços divino e apenas um terço humano, sugeriria que, na era arcaica em que surgiu este mito, o nível da consciência desenvolvida era baixo, e dessa forma o herói, o representante da consciência crescente, estava mais do lado divino, isto é, na espera do inconsciente, do que o herói correspondente do mito grego mais recente. Algumas explicações históricas existem, porém, a meu ver, nenhuma delas é bastante satisfatória. Mesmo assim gostaria de mencionar uma delas, pois lança algumas luzes sobre o tema. Georges Contenau, o tradutor francês da Epopéia de Gilgamesh, menciona em seu comentário minucioso, e do ponto de vista histórico muito valioso, a conexão com a genealogia de Gilgamesh. Numa lista lendária de reis sumérios (que na maior parte reinaram durante milhares de anos) que separa as dinastias entre as anteriores e as posteriores ao dilúvio, Gilgamesh é citado como o quinto rei de Uruk após o dilúvio. Nesta lista é dito:

O divino Lugalhanda, um pastor, reinou 1.200 anos. O divino Dumuzi [=Tamuz], um pescador, que nasceu em Eridu, reinou 100 anos. Gilgamesh, cujo pai foi um Lil-la, um sacerdote de Kullab [=quartel de UrukJ, reinou 126 anos. Ur-Nungal, filho de Gilgamesh reinou 30 anos... etc.

(Contenau, pp. 205s)

Os períodos tornam-se mais breves depois de Gilgamesh, e Contenau observa que a dinastia de Uruk teve o seu lugar pouco antes de alcançar os fundamentos históricos. Este autor, ao lado de muitos outros, sustenta que Dumuzi (Tamuz) e Gilgamesh foram reis verdadeiros que depois foram deificados. Dentro da nossa lógica, isto é de segunda importância, pois as lendas, que surgem em torno de personagens históricas, e que contêm características mais ou menos mitológicas, sempre se srcinaram no inconsciente de períodos históricos posteriores, ou até mesmo durante o seu próprio tempo. A partir da descrição de Gilgamesh que acabamos de ler, não pode haver dúvida que se trata de uma figura verdadeiramente mítica, como será ainda mais evidente em toda a estrutura da epopéia.

2. Uma srcem obscura

Mas, do ponto de vista psicológico, esta lista é interessante por causa desteLil-la, filho de quem se diz que ele é. Pois, segundo Contenau, Lil-la significa "imbecil", "semidoido". Existe um poema traduzido para o francês por F. Thureau-Dangin, a respeito de um deusLillu, que tem este caráter, que remonta ao seu triste destino. Do seu lado humano paterno, Gilgamesh é aqui apresentado tendo uma herança obscura e imperfeita, que não seria sem sentido, em vista de seus descontroles emocionais

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freqüentes, que logo iremos verificar — no próprio início da epopéia. Além disso, o seu nome, que às vezes é escrito também comoGi-bil-agamesh, como também Gish-bíl-ga-mesh, contém o nome do deus sumério do fogo, Gibil. Contenau se refere ao Sansão bíblico, que tinha impulsos de descontrole emocional, e da mesma forma que o grego Heracles; e ele vê uma influência geral da Epopéia de Gilgamesh sobre as histórias desses dois heróis. Entretanto, ele não vai até onde chegou o seu ante-cedente Peter Jensen, que escreveu uma obra extensa sobre a Epopéia de Gilgamesh na literatura mundial, e ficou tão fascinado pela epopéia, a ponto de ver nela o padrão de todos os outros mitos e sagas, assim como Fausto, que vê Helena em todas as mulheres.

Se quisermos conferir algum peso a este paralelo mitológico estranho, antes de ser influência literária, nós o consideramos característica típica do destino do herói, que revela os perigos da alma da consciência primitiva, que está sempre em perigo de ser dominada por impulsos inconscientes. Entretanto, Contenau julga ser mais provável que o termoLil-la esteja vinculado ao termo Lil-lü, que é um demônio. A sua contrapartida feminina, Ardat-lil-li, é um súcubo, perigoso para os homens. Por sua vez,Lil-lü é um incubo, que teria se unido com a mãe de Gilgamesh, a deusa Nin-Sun, uma sacerdotisa do deus-sol Shamash, sem o conhecimento do seu esposo, o divino Lugalhanda. Assim, Gilgamesh seria filho de uma deusa e de um demônio. Existem outros exemplos semelhantes, como na lenda de Lilith, um demônio feminino que assassina crianças de noite. Até o final da Idade Média, entre os círculos judaicos havia ainda amuletos usados por mulheres que estavam para dar à luz, a fim de que Lilith não pudesse vir causar um mal aos seus filhos. Lilith aparece só uma vez no Antigo Testamento, em Isaías 34,14, entre os demônios do deserto. (A Lilith hebraica é interpretada de modo diferente nas diversas traduções inglesas: como coruja-das-torres, na versão do rei Jaime; como megera, na versão Padrão Revisada; e como monstro noturno, na versão da Sociedade Judaica de Publicação.) Na Babilônia, ela éLil-li-tü, um pesadelo, poder-se-ia dizer, voltado especialmente contra as crianças e as mães, mas também um súcubo nos sonhos e nas fantasias dos homens. Ela é realmente a mãe negativa, que mata os filhos. Existe uma lenda pós-bíblica em tomo de Lilith como primeira mulher de Adão, segundo a qual eles geraram demônios como filhos, e somente então é que Eva foi criada. Aqui a situação é invertida — Adão era o homem, e Lilith era o demônio feminino; entretanto, se aceitarmos o raciocínio de Contenau, Gilgamesh foi o filho de uma deusa e de um demônio masculino. O império demoníaco não pertence aos deuses; é algo entre os deuses e o homem.

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Gravura 1: Lilith

Da mesma forma, esta concepção do nome do pai de Gilgamesh apontaria psicologicamente para uma srcem obscura, o que deveríamos ter em mente. Mas a conclusão de Contenau segundo a qual isto explica a descrição de Gilgamesh como sendo dois terços divino e um terço humano não parece apta para explicar esta proporção específica, apesar de lançar luz significativa sobre a natureza dupla do herói.

Gostaria apenas de acrescentar uma tentativa de explicação de Gressmann. Em seu comentário sobre a tradução de Ungnad, ele sustenta que o profeta Elisha adquire dois terços do espírito de Elijah, que provavelmente remonta ao costume segundo o qual o filho primogênito, que era o filho predileto, adquiria dois terços da herança. Assim, poderia ser que o dois-terços-deus Gilgamesh fosse o predileto de Deus, o que se coaduna muito bem com o arquétipo de herói. Este costume do filho predileto que recebe dois terços da herança, entretanto, não foi comprovado no caso da Babilônia, embora isto não signifique que o mesmo não existisse lá, uma vez que os textos que foram encontrados até agora ainda representam uma coleção casual.

3. Seu impulso tirânico

Logo após esta descrição laudatória do herói em forma de hino, somos transportados para o próprio drama mítico. Gilgamesh é apresentado como rei que oprime o seu povo. Ele concentra toda a força do seu povo para construir as muralhas de Uruk e de Eanna, a mansão de Ishtar, seu empreendimento tão intensamente sonhado na introdução:

Os homens de Uruk se enfurecem em seus aposentos: "Gilgamesh não deixa nenhum filho para o seu pai; Dia e noite a sua violência continua irrefreada. Apesar disso, Gilgamesh é o pastor de Uruk, o recinto.

Ele é o nosso pastor, forte, magnânimo e sábio. Gilgamesh não deixa nenhuma virgem para o amante, A filha de um guerreiro, a escolhida de um nobre!" O lamento do povo os deuses ouviram constantemente.

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(Tab. I, col. ii, linhas 11-18, Heidel, p. 18)

Neste "sonho" mitológico, entendemos o herói como quem representa espécie de ego, como previsão intuitiva de um desenvolvimento posterior do ego como portador de uma consciência crescente. Tendo isto em mente, o que poderia representar o povo, e que situação psicológica é indicada nesta relação entre o rei e seu povo? O povo, como multidão indiscriminada, contra aquele que sobressai, o rei, simboliza o inconsciente, as forças instintivas, que são apresentadas aqui num estado deplorável de supressão por um ego possuído por tarefa ambiciosa que atribui a si próprio. Entretanto, esta imagem é muito unilateral, se não considerarmos a natureza desta tarefa: a construção das muralhas da cidade e do templo como o centro espiritual da cidade. Certamente, o povo é opri-mido, porém precisamos levar em consideração que isto acontece por causa de um empreendimento cultural. Assim, podemos vislumbrar uma verdade psicológica luzindo através desta imagem aterradora. Todo empreendimento cultural está ligado a algum sacrifício da natureza. Lembremos a idéia geral da alquimia, segundo a qual o trabalho de criar o ouro ou ocorpus incorruptibilis, o corpo incorruptível, é um opus contra naturam, uma obra contra a natureza. Isto não contradiz a idéia de que este mesmo espírito, que força o homem a suprimir a natureza para determinadas obras desenvolvimentistas, é também natureza. É isto o que está por trás dos ritos primitivos de iniciação, nos quais eles torturam a sua própria natureza, como esclarece Jung em sua obra Símbolos de transformação, que apresenta estudo magnífico em torno do desenvolvimento da consciência humana. Existe na natureza um impulso para superar-se a si mesma. Muitas vezes Jung cita Demócrito, que disse: "A natureza regozija-se na natureza, a natureza subjuga a natureza, a natureza domina a natureza". Justamente no caso do homem moderno não existe tarefa individual no processo de individuação que não esteja ligada a algum sa-crifício de uma atitude antiga, nenhum renascimento sem morte, por assim dizer, portanto, não existe tarefa cultural no desenvolvimento da consciência humana espelhado num mito que não exija sacrifício da natureza. Mas, se isto vai tão longe, como parece ser este caso, a natureza se rebela. As forças instintivas não mais colaboram de modo útil na tarefa cultural, mas se opõem à mesma. Gilgamesh e o seu povo, neste caso, tornam-se símbolo de uma situação psíquica em que ocorre ruptura entre a atitude consciente e as forças instintivas.

O próximo passo é o lamento do povo oprimido, pois a tirania foi longe demais. O texto diz que Gilgamesh não deixou nenhum filho para seu pai, e nenhuma virgem para o seu amante.2* Ele se

intrometeu na vida do seu povo usando-o para a sua própria tarefa de forma tirânica. Isso apresenta uma imagem de um ego tão dominado por um objetivo particular, que oprime a natureza instintiva. O

2

* Nota do editor: Esta última frase é uma reconstrução de um texto danificado, e Speiser conjectura que seja "a donzela para a suamãe", assim como o faz também Tigay. Alguns comentaristas vêem aqui uma referência ao jus primae noctis, o direito antigo do rei ou do lorde feudal de ter a noiva para a primeira noite após as núpcias; e vencer os jovens num combate individual ou numa disputa atlética. Algum apoio para esta visão é aduzido de outros textos antigos, porém; a epopéia não deixa isto muito claro. Se assim fosse, iria simplesmente acrescentar à imagem de Gilgamesh a qualidade de alguém possuído por impulsos irresistíveis. Mas o consenso é de que ele os obrigou a trabalhar na construção das muralhas, cuja glória é parte proeminente do elogio introdutório pelos seus empreendimentos.

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indivíduo pode fazer isto de forma bastante individual consigo mesmo, com um ataque cardíaco consequente, ou com uma das doenças psicossomáticas bem conhecidas. Sendo forçado, o indivíduo exagera nas coisas não apenas psicologicamente, mas também fisicamente. Geralmente é o corpo, o nosso remanescente instintivo antiqüíssimo, que nos faz lembrar se não estamos mais sintonizados com ele. Em nossa história, o povo clama aos deuses, uma imagem, como foi observado, de ruptura entre o ego e as forças instintivas.

4. A criação de Enkidu

Mas não chega a ser ruptura fatal. O fato é que os mitos, na maioria dos casos, indicam uma possibilidade positiva para a solução de um conflito, isto é, a possibilidade de integração, e não a possibilidade negativa de desintegração. Isto pode ser constatado em nosso mito pelo fato de que, quando o povo clama aos deuses, estes respondem ao seu pedido. Em nossa tentativa para entender o mito, assim como um sonho, no nível subjetivo, poderíamos dizer que os deuses correspondem ao Si- mesmo, que, embora incluindo a ambos, é a totalidade superordenada ao ego e ao instinto. Os deuses respondem ao clamor do povo com uma idéia engenhosa, como se poderia esperar dos deuses: criar um ser, Enkidu, para ser o companheiro de Gilgamesh. Naturalmente, não precisamos entender a idéia como uma consideração racionalmente consciente, mas como conhecimento imediato apropriado à situação psicológica, isto é, criar alguém cujo ímpeto é suficientemente forte para livrá-lo da possessão desta empresa de construir a muralha. Deve ser algo que tem atração igual ou maior para realmente livrar alguém desta possessão. Mais adiante veremos por que Enkidu teve realmente esta qualidade, que ele era um complemento de Gilgamesh, que pertencia a ele. O deus celeste Anu ordena a Aruru, a deusa-mãe, que crie "um igual" para Gilgamesh com o qual possa lutar, a fim de poder libertar a população de Uruk. É digno de nota, nesta conexão, o fato de Aruru aparecer em outros textos babilônicos como aparência de Ishtar, participando do mesmo epíteto: Belit-ile = amante dos deuses. O texto prossegue:

Quando Aruru ouviu isto, concebeu em seu coração uma imagem de Anu;

Aruru lavou as mãos, tomou um pouco de argila

e a colocou sobre a estepe: ...o valente Enkidu ela criou, a prole... de Ninurta [deus da guerra].Todo o corpo dele está coberto de pêlo, o cabelo de sua cabeça é como o de uma mulher; Os cachos do cabelo de sua cabeça crescem como grãos. Ele nada conhece sobre o povo ou a terra, ele é argila numa roupagem como Sumuqan

[deus do gado e das plantas].Com as gazelas ele come capim; Com os animais da selva ele avança para chegar até o bebedouro; Com os animais o seu coração se delicia junto à água. (col. ii, linhas 33-41, Heidel, pp. 18s)

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Assim é que foi criado Enkidu. Ele é descrito como o homem primitivo, o homem semelhante aos animais. É o correlativo divino ctoniano de Gilgamesh. Pode-se ter a tentação de ver em Enkidu simplesmente a imagem de Gilgamesh, mas, a meu ver, ele vai além da sombra, chegando até o animal divino. Entretanto, o que significa, quando este homem primitivo semelhante aos animais, que, em essência, é realmente mais primitivo do que Gilgamesh, é criadodepois dele? A meu ver, isto aponta para o fato de que um conteúdo do inconsciente que por muito tempo estava lá, ou até mesmo eternamente, agora, aparecendo na consciência pela primeira vez, é tido como se tivesse justamente chegado à existência. Enkidu 6nova imagem do homem primitivo que corresponde ao nível da consciência que é representada por Gilgamesh.

Com relação ao detalhe segundo o qual Aruru gera Enkidu a partir da argila: existem paralelismos do Antigo Testamento e egípcios, bem como exemplos da Grécia e de muitas culturas primitivas. Além da história muito conhecida da criação de Adão (Gn 2,7), citarei apenas Jó 10, 8s, onde ele, falando com Deus, diz: "Tuas mãos me formaram e modelaram o meu ser inteiro... Lembra-te que tu me fizeste do barro". E novamente, no capítulo 33,6, onde Eliú, um dos amigos de Jó, diz: "Também eu fui tirado do barro". Na mitologia egípcia, o deus Chnum cria o ser humano numa roda de oleiro.

Aruru cria Enkidu à imagem de Anu, o deus celeste. Aqui o caráter divino de Enkidu mais uma vez é aparente. Esta passagem pode ser o protótipo da concepção bíblica em Gênesis, segundo a qual Deus criou o homem à sua imagem. É de estranhar que este homem ctoniano primitivo fosse criado à imagem do deus celeste. Existe realmente grande lacuna entre este homem-animal e o deus celeste remoto, que, a meu ver, indica a grande extensão do desenvolvimento humano, que vai desde o animal até o deus. "Vós sois deuses", diz-se em Sl 82,6, "e todos vós sois filhos do Altíssimo". Mas isto mostra também uma qualidade luciferina oculta de Enkidu, que será confirmada em dois sonhos de Gilgamesh. Enkidu cai, por assim dizer, do céu como o ente sombrio, para se transformar novamente no ou com o ser humano, que é Gilgamesh, de volta à sua natureza "celeste" primitiva que traz a luz.

Enkidu, que vive com os animais nas estepes e se alimenta e bebe água com eles, é descoberto por um caçador, que, aterrorizado, se torna subitamente mudo quando vê esta figura parecida com Pá, o deus dos pastores.

Ele corre para casa e conta ao pai a experiência que teve, de ter encontrado aquela figura terrível, "a mais poderosa das estepes", que destrói as suas armadilhas e não lhe permite caçar os animais. O pai o aconselha a contar a sua história a Gilgamesh e a lhe pedir uma hieródula, isto é, uma meretriz do templo, uma sacerdotisa de Ishtar, para que o acompanhe e seduza Enkidu, e Gilgamesh atende o seu pedido. O caçador retorna do mundo de Gilgamesh. Sua tarefa é caçar animais na selva. Psicologicamente, isto poderia significar a função intuitiva, que descobre novo conteúdo no inconsciente, no deserto, um conteúdo que representa o ingresso no âmbito da consciência de Gilgamesh. Mas o caçador não consegue uni-los. Só consegue trazer a notícia da existência de Enkidu.

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Isto exige uma figura-anima como mediadora: a hieródula, uma cortesã, como a denomina Heidel, em sua tradução. O significado literal da palavra é servente sagrada, isto ó, de um deus ou de uma deusa, mais freqüentemente desta última.

5. Hieródula: prostituta ou sacerdotisa?

A fim de entender melhor o que se segue, darei algumas informações sobre o papel e a posição das hieródulas. Literalmente, hieródula significa "serva do deus". Existiam hieródulas não somente na Babilônia, porquanto o indício da presença delas foi encontrado também em Chipre, na Grécia, no norte da África e até mesmo na Sicília. Elas estavam relacionadas com o culto de uma divindade, e suas funções incluíam ritos sexuais. Tinham lugar de destaque nos templos da Babilônia e no antigo Oriente Próximo em geral. A atitude arcaica que criou esta prostituição sagrada é difícil de ser entendida por muitos povos modernos, particularmente se eles não estão conscientes de suas complexidades. A hieródula enviada junto com o caçador é denominadaharimtu, mulher que era herem, o que significa "sob a interdição do ser supremo", isto é, dedicada à divindade, em nosso caso, a Ishtar; daí o fato de ser ela denominada harimíu. A palavraherem existe igualmente em hebraico, linguagem relacionada ao idioma semita, se bem que com mudança drástica interessante de significado. Originalmente, como dissemos, ela significava consagrada a, dedicada a, conseqüentemente, pertencente à divindade, daí o fato de ter assumido, muito provavelmente, o significado de estar interditada a um mortal. Dessa forma, ela acabou significando uma interdição. Assim, a pessoa colocada emherem está sob interdição, com a qual não pode haver comunicação por parte de outros indivíduos. Com efeito, tal pessoa é excomungada, não mais um membro da comunidade, como aconteceu com Espinoza, por causa daquilo que se consideravam suas idéias heréticas.

Existem diversos nomes e classes diferentes de hieródulas, conforme deduzimos do Código de Hamurabi. Citarei alguns dos termos empregados, que são psicologicamente interessantes. (Alguns deles, como no caso de harimtu, são semitas, porém muitos deles são sumérios, pois o hierodulismo remonta aos tempos sumérios. Não somente isso, mas, quando a escrita cuneiforme foi adaptada à semítica, a linguagem suméria foi conservada durante tempo mais longo como linguagem legal e de cul-to.) Por exemplo, Nin-an, 'mulher do deus'; Sal-zikrum, 'mulher consagrada', ou, possivelmente 'homem-mulher', se considerarmos o termozikrum como procedente de outra raiz, isto é, zakarü = masculino. Sal-nu-gig, que é traduzido em textos bilíngües, isto é, sumério e acádio, como qdishtü, isto é, sagrado, aquele que é separado ou escolhido. Oqadishtü, em hebraico qedeshah, aparece em diversas passagens da Bíblia, por exemplo, em Gênesis 38,21, na história de Judá e de Tamar, embora nesta passagem, como em outras passagens da Bíblia, ele seja traduzido como "meretriz" e equiparado a zonah, "prostituta". Nos tempos proféticos, a instituição do qedishuth ou hierodulismo era severamente proibida. Outro nome interessante éSal-nu-bar, que é definido como Zer-mashitâ, que significa "purificador de esperma", ou "olvidador de esperma". Este nome pode estar ligado à crença, controvertida, de que as hieródulas, embora tivessem a permissão de se casar, eram proibidas de ter filhos. Quando se casavam, levavam

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consigo outra mulher para gerar filhos. Apesar disso, às vezes acontecia que elas tinham filhos, porém mantinham o caso em segredo e muitas vezes se desfaziam deles. Assim, conta-se que uma hieródula da alta linhagem, a mãe do rei Sargão de Acad, abandonou o seu filho numa cestinha — paralelo famoso o provavelmente o protótipo da história de Moisés —, mas uma jardineira o encontrou e o educou, e o mesmo se tornou rei e amante de Ishtar.

Os nomes diferentes designam classes diferentes de hieródulas: existia uma hierarquia entre elas. O Código de Hamurabi estipula que, em casos em que o pai não deixasse um testamento, a Sal-zikrú herdaria a mesma quantia dos seus irmãos, ao passo que aqadishtü e a Zerinashitü receberiam apenas um terço correspondente à do irmão, indicando com isso que elas pertenciam a uma classe inferior de hieródulas. Temos uma descrição das hieródulas em Heródoto:

"Os babilônios têm um costume muito vergonhoso. Toda mulher nascida no país deve uma vez em sua vida ir sentar-se no precinto de Vênus e lá consorciar-se com um estranho" (Ishtar, como a Vênus romana, era também uma deusa do amor. O "precinto de Vênus" do qual ele fala refere-se ao templo de Ishtar.) "Muitos pertencentes a uma classe rica, que têm muito orgulho de se misturarem com os outros, se dirigem em carruagens cobertas até o precinto, seguidos por cortejo vistoso de acompanhantes, e lá tomam o seu lugar. Mas o número maior senta-se no interior do recinto sagrado com grinaldas e fitas na cabeça — e lá sempre há grande multidão, uns entrando e outros saindo; cordas demarcam o caminho em todas as direções entre as mulheres, e os estranhos passam ao longo das mesmas para fazer a sua escolha. A mulher que tomou o seu assento não tem a permissão de voltar para casa até que um dos estranhos lance uma moeda de prata em seu regaço e a leve consigo para trás do recinto sagrado. Quando ele atira a moeda, profere as seguintes palavras: 'A deusa Mylitta te seja favorável' "(Mylitta é o nome assírio da deusa do amor.) "A moeda de prata pode ter qualquer tamanho. Não pode ser recusada, pois isto é proibido pela lei, já que, uma vez atirada, ela é sagrada". (Aqui podemos ver o aspecto do ritual da cena. O todo é um ritual.) "A mulher vai com o primeiro homem que lhe atira a moeda, e não rejeita nenhum deles. Quando ela foi com ele, e assim satisfaz a deusa, ela volta para casa, e a partir de então, por maior que seja o presente, não a induzirá. As mulheres altas e bonitas são logo soltas, mas as que são feias têm que permanecer durante longo tempo antes de poderem cumprir a lei. Algumas delas aguardam três ou quatro anos no precinto. Um costume muito parecido com este encontra-se também em certas partes da ilha de Chipre".

(Heródoto, Livro I, cap. 199)

Existo vasta literatura a respeito da confiabilidade desta fonte. Heródoto, que viveu no século V a.C, viajou bastante pela Babilônia e por outras regiões. De acordo com a sua descrição, além das prostitutas sagradas, ao que parece, havia o costume segundo o qual toda mulher, provavelmente antes de se casar, devia dormir uma noite com um estranho no templo. Meissner, um dos primeiros assiriólogos alemães de destaque, que escreveu extensivamente sobre a religião da Babilônia e da Assíria, e também outros estudiosos, acham que isto é um mal-entendido da parte de Heródoto e que o

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que ele realmente descreveu foram as hieródulas. Mas outros concordam com Heródoto. Iríamos longe demais se analisássemos todos os argumentos pró ou contra. De qualquer forma, Heródoto, como vimos, considerava esta instituição extremamente vergonhosa. E a maioria dos comentários modernos compartilha deste julgamento moral. Isto, em parte, provém de profundo equívoco, devido, como julgo que podemos dizer agora, a uma projeção de visões atuais a respeito dessa era muito arcaica. Nós simplesmente não podemos julgar outras religiões a partir da nossa mentalidade atual. Infelizmente, isto acontece com muita freqüência. Um estudioso sumério que apresentou uma palestra na Universidade de Zurique, e ao qual devo em grande parte o meu conhecimento concreto, foi um dos que considerou todo o problema hieródulo como questão nítida de prostituição. Ele costumava dizer: "Bem, havia os jovens que costumavam dizer para as suas garotas: 'Até hoje à noite, no templo'". Isto era tirar toda a numinosidade inerente a um ritual. Tenho ouvido palestras sobre o budismo onde o parâmetro de medida era o cristianismo, que pode levar a algumas conclusões, porém não certamente a um entendimento fenomenológico de algo que nos é estranho. Isto não quer dizer que não se pode fazer comparações, uma vez que se tenha captado a atmosfera de uma religião estranha. Naturalmente, pode-se fazer comparações. Mas, pode-se usarmos uma religião para compreender outra, tiramos desta última aquilo que pusemos nela, e simplesmente não fazemos justiça ao fenômeno em si. É claro que temos os nossos limites. Não podemos saltar fora da nossa própria pele. Temos os nossos preconceitos, e é melhor que tenhamos consciência dos mesmos, pois então poderemos evitar alguns deles. Porém, pelo menos como atitude ideal, o que devemos visar é a máxima objetividade possível — e teremos consciência de nossas reações emocionais. Não podemos evitá-las, nem devemos fazê-lo, mas devemos ter consciência delas, e não confundi-las com critérios científicos. Portanto, penso que certa projeção está em jogo aqui. Certamente, para um observador, este comportamento tem algo muito surpreendente, e talvez até repulsivo, porém, se formos um pouco mais a fundo, poderemos entender isso. Com a ajuda das camadas antigas da nossa própria alma, às quais chegamos mais próximos em nossa caminhada interior, poderemos compreender coisas que para nós são remotas no tempo e no sentimento. Os nossos próprios sonhos podem nos confrontar com rituais e acontecimentos muito arcaicos. Esta é a razão por que o próprio Jung se sentiu compelido a conhecer mais sobre a história religiosa — a fim de entender os sonhos modernos.

Como afirmei antes, um fator na má interpretação depreciativa poderia ser a projeção das visões conscientes ou inconscientes e dos gostos e antipatias emocionais. Mas as pessoas presas a essas visões perdem o aspecto do mistério sagrado nesse tipo de prostituição. Não devemos esquecer que as hieródulas eramsacerdotisas. Jung escreve nesta conexão, num tratado em inglês (Inverno, '31, pp. 257s):

"Para a mente primitiva, as coisas têm um valor totalmente diferente. O que nós designamos espiritual ou material, para eles não são coisas separadas... o corpo é a alma e a alma é corpo; não existe diferença. O que se faz com o corpo pode ser profundamente espiritual, e o que se faz com a mente pode ser profundamente material".

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Agora devo acrescentar algo que ajude a explicar esta visão negativa da hieródula. Não é somente a projeção, mas certa falta de clareza nos próprios fatos. A situação em si mesma não é tão nítida, por causa do caráter múltiplo, ambivalente e oscilante da própria Ishtar e, conseqüentemente, também em suas servas, as hieródulas. Não se pode fazer esta discriminação concisa entre prostitutas comuns e hieródulas, embora a pretensão procurasse estabelecer diferença muito clara. E, mais uma vez, Georges Contenau quem menciona alguns detalhes muito interessantes a respeito desta deusa e do seu culto em Uruk. Ishtar reside em Uruk, no seu templo Eanna (= a mansão celeste), assim como Gilgamesh reside em seu palácio real. Ela vive cercada pela sua corte de princesas, as hieródulas, que Heidel traduz como "cortesãs", Speiser, como "meretrizes", o que, de certa forma, deprecia e, ao mesmo tempo, valoriza, porém não no espírito do cargo que desempenham, e Thompson traduz como "moça cortesã, uma hetera". O termo é difícil de ser traduzido, a fim de diferenciá-lo da prostituta comum. Embora, na era assíria posterior, Ishtar fosse predominantemente deusa guerreira, aqui, no sul, em Uruk, ela é principalmente a deusa da fertilidade, bem como a deusa-mãe nutridora. Assim, ela se lembra do rei Assurbanipal, num sonho, que ela estava alimentando com seu leite. Os protocolos do 3° e do 2- milênio falam dos reis como os esposos de Ishtar, ou de uma deusa sinônimo dela.

6. Kalili

das janelas

Como veremos mais adiante, ela se tornara cada vez mais a figura central da deusa, integrando todos os aspectos femininos representados pelas deusas diferentes. Existem muitas deusas diferentes, e não existe nenhuma, incluindo as que aparecem na Epopéia de Gilgamesh, cujo nome não possa ser apresentado como sinônimo de Ishtar, com base em textos conhecidos. Ela é uma espécie de símbolo total dos aspectos femininos nesta era primitiva. Agora, entre as deusas que, por assim dizer, foram absorvidas nesta grande figura da divindade, existe uma que é muito particular, chamada Kalili Shaa apâti, isto é, "Kalili das janelas". Trata-se de uma Ishtar que está olhando da janela e chamando os homens e lhes trazendo a desgraça. Existe uma prece que diz:

Tu és Kalili, que se debruça na janela, que escuta as palavras proferidas pelos homens, Que é a causa para a jovem abandonar o seu leito.

Foste a causa da minha perdição. Puseste os pés sobre mim, ó grande Ishtar.

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Gravura 2: Uma senhorita em sua janela, talvez "Kalili das janelas"?

Isto mostra o outro aspecto de Ishtar. Ela é assim a instigadora das projeções da anima nos homens, levando-os para o caminho do jardim, bem como da possessão do animus nas mulheres, fazendo com que a jovem abandone o seu leito. Outro epíteto seu é Kalili Mu-shirtü, "Kalili que se debruça", "a rainha da janela", e Mu-shirtü tornou-se sinônimo de prostituta comum. Assim, ela era Ishtar, a protetora dos prostíbulos. Como parafraseia Contenau:"La patronne des lieux de plaisir et de celles qui le dispensent", a protetora dos locais de prazer e daquelas que o dispensam. O sinal cuneiforme para um dos seus epítetos é a imagem da cortina de bambus num prostíbulo. Havia distinção legal clara entre a prostituta comum e a hieródula, que era protegida contra a difamação pela mesma lei que protegia o bom nome das mulheres casadas. Já na figura da própria Ishtar, que envolve os dois aspectos, isto é, o aspecto sagrado dohieros gamos e da prostituição sagrada como símbolo do mesmo, por um lado, e a prática da prostituição vulgar, por outro lado, reside uma tentação de confundir a ambas, ou, digamos, uma dificuldade de sempre diferenciá-las com nitidez. Alguns dos termos até aqui mencionados parecem ter sido usados para ambas, e isto também é motivo de confusão. Harimtu é obviamente uma prostituta sagrada, mas, posteriormente, é encontrado também para designar prostituta comum. Contenau cita um provérbio babilônico que diz: "Nunca te cases com uma prostituta(Zer-mashitú é a palavra usada no texto, 'aquela que esquece os espermas'), aquela que se entrega a todo mundo; em tua desgraça ela não te apoiará; em teu processo ela caluniar-te-á; ela não tem nem respeito nem submissão. Com certeza, ela destrói um lar, etc. Aquele que se casar com ela não prosperará". E neste caso,Zer-mashitü é usado para uma prostituta comum. Mas até mesmo a lei proibia à hieródula abrir uma taverna sob pena de morte. Elas eram advertidas: "Lembrem-se de evitar as tavernas!" O simples fato da existência dessas leis e desses ditos indica que a linha entre as duas classes

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de prostitutas nem sempre era observada, e as hieródulas obviamente podiam ceder à tentação. Vistas de fora, as duas formas de prostituição nem sempre podiam ser facilmente diferenciadas. Mas o significado mais profundo da prostituição sagrada era como um símbolo dohieros gamos, a união sagrada do deus e da deusa. Podemos considerá-lo exemplo de magia solidária. Cumprir o mesmo ato era participar de sua realização na esfera divina.

Perguntaram-me se havia algum relato em relação àquilo que se referia à hieródula em sua evolução. Esta é uma questão que provoca projeções. Elas, as hieródulas, eram instrumentos. Estavam, ou deviam ter estado, numa participação mística com a deusa ou deus, e não podemos presumir o mesmo nível de percepção consciente que nós presumivelmente temos. Temos descrições dos sentimentos de Gilgamesh, de Enkidu, dos deuses, mas não da hieródula. Podemos apenas conjeturar a respeito do seu caráter a partir da maneira como ela age e daquilo que ela faz, quando aparece e quando desaparece. Na melhor das hipóteses, o que podemos fazer é penetrarmos um pouco mais no espírito de um tempo muito remoto — por um lado, muito afastado, mas, por outro lado, não tanto, uma vez que essas camadas arcaicas ainda subsistem em nossa própria psique. Assim, existe a possibilidade de podermos entender melhor os tempos anteriores, e de que esses tempos possam nos ajudar a nos entendermos melhor a nós mesmos. Encontraremos o motivo do hieros gamos mais adiante, em nossa epopéia, e trataremos dele com maior profundidade, nessa ocasião. Por enquanto, nos ocupamos ainda com a nossa hieródula, que deve ajudar a levar Enkidu até Uruk.

7. A sedução de Enkidu

Não pode haver nenhuma dúvida de que o seu papel era espiritual. O seu papel começa com a sedução que ela fazia ao homem para tirá-lo da sua total submersão no mundo animal. Este foi o intento com que Gilgamesh enviou a hieródula de volta para o caçador, dizendo:

"Vai, meu caçador, leva contigo uma cortesã, uma prostituta, E quando ele der de beber à sua caça, no bebedouro, Ela tirará as suas vestes, deixando despida

a sua maturidade.

Quando ele a contemplar, aproximar-se-á dela,

Mas então a sua caça, que se criou em sua estepe, mudará a sua atitude em relação a ele".

(col. iii, linhas 41-44, Heidel, p. 21, e Speiser)

Aqui Speiser sustenta que elas o rejeitam, mas, numa nota de rodapé, "rejeitar" literalmente significa "considerar como estranho, negar", o que logo discutiremos. E assim sucede. (Aqui usarei a tradução de Speiser, pois o que infelizmente é engraçado, Heidel, como afirma em seu prefácio, teve "as passagens mais censuráveis" traduzidas para o latim! Assim, por exemplo, acontece com a terceira linha na passagem supra, que é tirada de Speiser.) Quando Enkidu e os animais chegam junto ao bebedouro:

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Ela não se sentiu envergonhada, quando recebeu efusivamente o seu ardor. Ela se desfez das vestes e ele repousou sobre ela.

Ela o tratou, o selvagem, de acordo com o seu papel de mulher, Quando o seu amor se dirigiu para dentro dela.

Durante seis dias e sete noites, Enkidu aparece copulando com a jovem. Depois que se encheu dos seus encantos,

Ele dirige o rosto para os seus animais selvagens. Ao vê-lo, Enkidu, as gazelas saem correndo,

Os animais selvagens das estepes se afastam do seu corpo. (col. IV, linhas 16-25, Speiser, ANET, p. 75)

O fato de ter ele passado seis dias e sete noites com ela pode muito bem estar relacionado ao fato do sétimo dia ter um significado especial para os babilônios. O nosso sabath muito provavelmente é derivado do acadiano sabattu, embora tenha um significado totalmente inverso. Eles tinham um calendário lunar, e o mês era dividido em quartos. Em nossa época, os nossos almanaques registram os quartos da lua. Para os babilônios, o 7-, 14-, 21- e 28- dias eram dias azarados, quando não maus, volvendo um número de tabus, e eram oferecidos sacrifícios a diversos deuses nesses dias. O dia começava de noite, assim, seis dias e sete noites seriam um período completo, a ser seguido por um sacrifício, a cada semana, a deuses diferentes, incluindo Ishtar e Shamash, o deus-sol, entre outros. Podemos supor, a partir daquilo que se seguiu após a semana de Enkidu com a hieródula, que um sacrifício, por mais involuntário que fosse, era exigido dele, como fica muito claro no texto. Os animais o rejeitam, eles o consideram um estranho, como observamos acima. Ele perdeu, sacrificou, a sua identificação com eles, por mais involuntário que fosse este fato. Para ele, este é um choque terrível.

Enkidu tentou correr atrás deles, mas seu corpo estava como que preso.

Os joelhos o traíram, quando tentou correr atrás da caça. (linhas 26-27, Heidel, p. 22)

Esta fuga dos animais — como poderemos entender isto? Ele cai nas armadilhas de hieródula, então a trama funciona com perfeição, e então ele quer abandoná-la, para voltar, e os animais fogem dele.

OBSERVAÇÃO: Ele manteve relação sexual com um ser humano; portanto, do ponto de vista dos animais, ele não é mais um deles.

8. A participação mística interrompida

Sim, ele mudou. Nós simplesmente temos que definir um pouco mais isto: por que, e, também, como ele se dá conta disto? Isto é muito importante. Ele se dá conta disto não pela própria experiência, mas pela reação. E isto é psicologicamente muito interessante. Isto pode acontecer agora também conosco. A pessoa pode estar inconsciente de algo que está acontecendo com ela mesma até que tem

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