• Nenhum resultado encontrado

V GILGAMESH E ISHTAR

2. A recusa de Gilgamesh

A resposta de Gilgamesh à proposta de Ishtar é imediata e impiedosa. De forma retórica, ele pergunta à grande Ishtar o que ele deve lhe dar se a tomar em casamento, e observa devidamente que os presentes a serem dados incluem ungüentos e vestes para o seu corpo, bem como pão e outros alimentos; comida que seja adequada à divindade, bem como bebida apropriada para a realeza. Após interrupção de algumas linhas no texto, ele indaga qual seria oseu benefício de um casamento com ela, e, em seguida, continua descrevendo a ela em termos bem claros:

"Tu és apenas uma... que não... no frio; Uma porta dos fundos que não impede que entrem rajadas ou tempestades de vento; Um palácio que esmaga os heróis no seu interior; Um elefante que se livra do seu tapete; Piche que suja aquele quem o carrega:

Um odre de água que deixa ensopado quem o carrega; Um calçado que incomoda quem o usa".

(Tab. VI, linhas 33-41, Heidel, p. 50)

Após esta áspera, ainda que poeticamente pitoresca, série de acusações e de comparações denunciadoras, ele aborda os sentimentos pessoais dela — ou a falta dos mesmos:

"Que amante entre os teus amas para sempre? Que pastor entre os teus pode te agradar o tempo todo?

Vem, e te revelarei a história dos teus amantes. Pois Tamuz, o teu jovem esposo,

Tu decretaste lamentá-lo ano após ano". (Tab. VI, linhas 42-47, Heidel, pp. 50s)

O motivo é porque Tamuz foi assassinado. A observação "decretaste lamentá-lo" refere-se a um ritual antigo em que as mulheres choram a morte do esposo, e na primavera se alegram com a sua ressurreição. (A menção deste rito ocorre na Bíblia, em Ezequiel 8,14, onde o profeta, numa visão, é trazido da Babilônia para o templo de Jerusalém, "e aí estavam mulheres sentadas, chorando pelo deus Tamuz". Durante o seu exílio na Babilônia, os judeus designaram o quarto mês do seu calendário com o nome de Tamuz, que acontece principalmente no mês de julho.) Todos os anos as mulheres choram por ele quando é morto pelo calor destruidor, que é Ishtar no verão. Na primavera, Ishtar é a noiva coberta com véu. Ela tem esses dois aspectos. Tendo-se referido a ela por ter matado precocemente o seu jovem esposo, Gilgamesh fala dos animais que ela amou.

"Amaste o pombo que voluteia.

No entanto, o esmagaste e lhe partiste as asas. Agora ele está no bosque e clama 'Kappi!'

Amaste o leão, perfeito na força.

No entanto, cavaste para ele sete e mais sete covas. Amaste o cavalo, magnífico na batalha. No entanto, decretaste para ele o chicote,

a espora e o açoite.

Decretaste para ele uma corrida de sete horas duplas. Decretaste para ele que agitasse a água antes de bebê-la. Para a sua mãe Silili decretaste a lamentação". (Tab. VI, linhas 48-57, Heidel, p. 51)

Uma imagem especialmente interessante da natureza de Ishtar está em conexão com a ave que clama "Kappi, Kappi", minha asa, minha asa! Esta foi a amante de Ishtar cujas asas ela partiu. Psicologicamente falando, ela quebrou as asas espirituais do seu filho-amante. Recordo um sonho de uma mulher que, em razão de circunstâncias difíceis, teve que abandonar os estudos. Passados alguns anos, ela sonhou que tinha voltado para a universidade e apareceu uma figura deanimus — um jovem que fora seu colega de estudos. Agora ele está caminhando com ela e os seus braços estão entalados. Eles foram quebrados e agora estão se recuperando. Aquele sonho era um sinal para ela voltar aos estudos, o que ela fez mais tarde. Os pássaros se movimentam no ar, um ambiente espiritual, e assim eles são símbolo dos pensamentos ou intuições espirituais (vôos da fantasia), e uma asa quebrada, como podemos ver no sonho, significa a incapacidade de voar no reino do espírito. Agora a censura quebrou as suas asas, e isso também acontece com muita freqüência — que o impulso e o desejo espiritual são quebrados por um senso comum e por uma atitude muito prosaica da mãe. Certa ocasião, Jung disse que as mulheres não estão suficientemente conscientes do fato de que, pelo seu senso comum e pela sua atitude equilibrada, tão elogiados em outras circunstâncias, elas podem matar a fantasia dos homens ou os seus impulsos espirituais — ao colocarem sobre eles o pano úmido da sua "praticidade" de entendimento insuficiente. As mulheres deveriam conhecer o efeito que causam nos homens, da mesma forma como os homens, de outra forma, devem estar cônscios do efeito que causam nas mulhe- res. É muito importante que aprendamos a ter consciência de como nós afetamos os outros, e não apenas de como os outros nos afetam.

Gilgamesh ainda não concluiu a sua lista do comportamento repreensível de Ishtar. Ele continua sua enumeração, referindo-se a seus amantes humanos:

"Amaste o pastor do rebanho, Que, sem cessar, te cumulava de bolos. E todos os dias te sacrificava cabritos.

No entanto, o destruíste e o transformaste num lobo. Os seus próprios filhos agora o expulsam,

Amaste Ishullanu, o jardineiro das palmeiras do teu pai. Que, sem cessar, te trazia cestos repletos de tâmaras E todos os dias abastecia a tua mesa.

Dirigiste o olhar a ele e foste com ele, dizendo: '

Meu querido Ishullanu, vem, vamos desfrutar a tua vitalidade. Estende a tua mão e toque o meu seio'.

Ishullanu disse para ti: 'O que pedes de mim? Minha mão não assa pão no forno?

Acaso eu não comi, Para ter que comer pão de coisas podres que cheiram mal? Os juncos oferecem proteção suficiente contra o frio?'

Quando ouviste isto, a sua fala,

Tu o destruíste e o transformaste numa toupeira. Fizeste com que ele habitasse no meio de... Ele não sobe a..., ele não desce...

E se me amares, tu me tratar ás como a eles". (Tab. VI, linhas 58-79, Heidel, pp. 51s)

Nesta descrição, como vemos, Ishtar aparece em sua luz plena.

O que Gilgamesh disse que ela fez com os seus amantes? O que ela fez? Ela os destruiu. Assassinou-os ou os transformou em animais, e os humilhou dessa forma. Ela aparece aqui como a mãe amante destruidora e devoradora. Gilgamesh lhe faz realmente um relato completo de todas as perversidades que ela praticou com os seus amantes. O que significa se eles foram transformados em animais? Um deles foi transformado em lobo, e o outro, numa toupeira, que cava debaixo da terra e que não vê a luz do dia. Pensemos na natureza animal do Enkidu, que ele tinha que superar. Aqui eles são transformados num destino pré-humano. É uma regressão para o nível sub-humano, por assim dizer. Suas vítimas são banidas para mera existência animal. Poderíamos dizer que elas regridem para um círculo ou ciclo da natureza, para o reino da existência animal na mãe, simplesmente como seres instintivos. Os animais muitas vezes podem aparecer como símbolos positivos, mas ser transformado em animal é regressão à existência pré-humana. Podemos ver que esses animais não estão tendo vida livre. O cavalo deve beber a água que antes ele sujou de lama, o pássaro tem uma asa quebrada. O simbolismo é negativo. Até mesmo como animais, eles sofrem humilhação ou restrição de uma existência natural livre.

Gressmann, em seu comentário sobre a epopéia, ao se referir a este motivo de transformação, cita (p. 125, n. 4) um exemplo interessante dado por Santo Agostinho, que fala de mulheres estalajadeiras na Itália, que serviam queijo aos seus hóspedes, os quais, por uma fórmula mágica, as transformavam em éguas. Isto é muito interessante, porque, aqui também, nós temos o simbolismo do cavalo. Mas a égua, como animal fêmea, tem relação forte com o aspecto negativo da deusa como a

deusa-mãe. Simbolicamente, elas foram transformadas no poder instintivo delas mesmas, elas se tornam um pedaço delas mesmas. Santo Agostinho descreve como os estalajadeiros usavam as mulheres que haviam transformado em éguas para que trabalhassem para eles. É isto que pode fazer um complexo materno, como emDer Tote Tag, de Barlach, onde o filho se torna uma função da mãe. Ela diz para ele: "Não posso viver sem você, e se você quer ir embora, eu matarei você", o que ela fez, matando o cavalo que o pai lhe dera, e que devia carregá-lo para o mundo. Este é o Dia dos Mortos — o luto em que este ato abominável é cometido, por incitação desse Steissbarth, o familiarís animus que deixou o filho demente. Este é um exemplo do acontecimento típico quando a deusa-mãe tem o poder sobre esses filhos-amantes, para transformá-los em servos para ela mesma.

Mais do que sonhamos, este cruel padrão arquetípico está oculto por trás de relacionamentos mais evidentes entre mães e filhos. Um exemplo atual é o de uma mãe viúva de idade avançada ("bruxa"), que manteve o filho, o seu "grande tesouro", como ela o chamava, como o seu criado solteiro, até os sessenta anos de idade, quando ela acabou morrendo. Após o que, como ele disse confidencialmente, ele se "sentia como um órfão"! Além das suas qualidades maternais positivas, sendo compassiva e protetora no parto etc, Ishtar possui também este aspecto de devorar os seus filhos. Este exemplo de Santo Agostinho é especialmente ilustrativo pelo fato da própria Ishtar ser também uma estalajadeira, como veremos. Nós a encontraremos na forma de Siduri, a "garçonete", como diz a tradução de Heidel, a quem Gilgamesh encontra mais tarde, em suas viagens.

A transformação das pessoas em animais é um conto de fada muito freqüente e um tema mítico, e o mais recente é a célebre história de Circe, que transformou em porcos os marinheiros de Ulisses — que mantêm sempre a cabeça rente ao chão, e o nariz na lama. E justamente este exemplo de Ulisses é que nos dá uma visão extraordinariamente interessante do desenvolvimento dos mitos como documentos da evolução da consciência humana. A Odisséia é um mito recente. Em sua forma escrita, ela é datada em torno do ano 1000 a.C, enquanto as raízes sumérias da Epopéia de Gilgamesh remontam a cerca de 4000 a.C. Poderíamos dizer que o encontro com a mulher, ou com aanima, em termos psicológicos, tem caráter completamente diferente. Isto torna o fato também fascinante, além da beleza dos mitos, para compará-los, porque podemos notar conjuntos diferentes do mesmo padrão arquetípico. Circe é também uma figura feminina sedutora muito poderosa, e ela transforma o homem que não pode enfrentá-la num porco. Mas, obviamente, Ulisses está numa posição diferente daquela de Gilgamesh. Ele pode, por assim dizer, aceitar o galanteio de Circe, sob certas condições de precaução. Ele simplesmente não lhe dá uma recusa horrível, como fez Gilgamesh, que, além da sua censura de que Ishtar transforma os seu amantes em animais, diz: "O que tenho para te dar, se eu me casar contigo? Tu não és confiável". Voltemos ao texto:

"Qual será a minha vantagem se eu te aceitar em casamento? Tu és apenas... o que não... no frio;

Um palácio que esmaga os heróis no seu interior;

Um elefante que se desfaz do seu tapete; Piche que suja aquele que o carrega"; etc. (Tab. VI, linhas 32-37, Heidel, p. 50)

Ele faz todas essas acusações horríveis, e a deixa simplesmente arrasada. O herói Ulisses, numa posição diferente, como foi dito, aceita o convite de Circe; mas tem a ajuda divina de Hermes, que lhe deu a erva milagrosa Moly para reforçar os seus remédios caseiros, e que o instrui para que encarregasse sua espada quando ela tentasse enfeitiçá-lo. O que quer dizer que ele estava com sua espada? A espada é símbolo de discriminação. Assim, ele tem certa consciência da situação. A espada é naturalmente também uma arma com a qual ele pode se defender, o que significa que certa visão do herói é necessá- ria a fim de poder defender-se contra as suas forças sedutoras. O fato dele ter consigo a espada simboliza a força do homem de discriminação e de intuição, a sua capacidade de ser consciente daquilo que está acontecendo. Então ele pode prosseguir.

OBSERVAÇÃO: Chamaríamos isso de força de vontade e de intenção?

Bem, não diria exatamente assim, embora tenha algo a ver com isso, pois pode-se ter a vontade de superar algo, e nem por isso ter a intenção necessária. Assim, podemos ver a diferença nas atitudes dos heróis dos dois mitos diferentes de épocas diferentes, na mesma situação, por assim dizer. Poderíamos dizer que o que seria morte certa para Gilgamesh, isto é, aceitar o convite de Ishtar, como vimos com base em todos os exemplos que ele citou, é, não obstante isso, possível para Ulisses. Uma vez que a espada é um símbolo do Logos nesta conexão, é óbvio que se trata de um nível superior de consciência que possibilita a Ulisses tolerar ou admitir um encontro para o qual Gilgamesh não estava preparado. Por outro lado, Gilgamesh era o primeiro de uma série extensa de filhos amantes a partir de então, que podia enfrentar o perigo a ponto de poder repelir e rejeitar, quando não, de fugir. Isto mostra até que ponto alguém precisa ser cuidadoso em situações semelhantes, por exemplo, com os analisados. Para alguém, pode ser uma necessidade vital fugir da situação, e para outro, pode ser uma necessidade vital enfrentar o perigo. Tudo depende do nível de consciência. Nunca podemos estabelecer normas. Naturalmente, para um homem moderno, pode-se dizer, bem, ele não pode fugir. Isso não resolve o problema da anima. Mas se ele se encontra num estado de Gilgamesh, tem que fugir.

Certa ocasião, numa palestra de Jung em torno do sonho infantil, tratamos de um sonho de um adolescente que antecipou o desenvolvimento posterior na fase da puberdade, no qual ele viu uma figura daanima morta na água, e teve um sentimento de dor da separação, mas foi se afastando do lugar. Jung então disse que, em certas situações, quando a figura daanima ou da mãe é muito forte, a única coisa que um homem pode fazer é evitá-la naquele momento e aguardar até que esteja em condições de competir com a mesma. Do contrário, estará fazendo o papel de bobo. Existem homens que acham que fizeram isso, e, apesar do seu desempenho, não se dão conta até que ponto estão presos à mãe. Mais adiante veremos na epopéia como Gilgamesh e Enkidu cumprem um ritual que é símbolo de uma rupturareal da mãe. Nesses exemplos, podemos vislumbrar a importância da interpretação do mito.

Mas devemos saber que todos esses mitos representam certos estágios de desenvolvimento, pois, na comparação dos mesmos com o material dos sonhos, devemos saber o que estamos comparando. Exis- te sempre correspondência em certos níveis de consciência, nos quais é dada uma atitude particular, o que não acontece em outros casos. Certa ocasião, Jung me disse que, se alguém estivesse acompanhando uma série de sessões analíticas, ficaria completamente estupefato ao ouvir o analista dizer a uma pessoa justamente o contrário daquilo que havia dito a outra pessoa uma hora antes. Isto é porque a vida é multifacetada e, entre as muitas verdades possíveis relativas à vida humana, depende daquilo que é a verdade naquele momento para aquela determinada pessoa. Na interpretação dos sonhos, temos que tomar muito cuidado para não aplicar alguma idéia a priori a um sonho, pois o referido sonho pode justamente ter uma visão completamente surpreendente de determinada situação, e não aquela visão esperada que estamos em perigo de conceber de forma errônea, identificando aquilo que está realmente em jogo naquela situação. Podemos ter convicções perfeitamente maravilhosas a respeito de determinada situação psicológica, que, no entanto, não se coadunam com aquela situação, pois podemos errar o alvo. Graças a Deus, os sonhos geralmente corrigem esta nossa falha. Aprender a discriminar no caso dos mitos pode nos ajudar a discriminar no caso dos sonhos.

OBSERVAÇÃO: Isto implicaria em que a individuação não pode ser realizada nesse tipo coletivo dessa determinada época?