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II OS SONHOS ENIGMÁTICOS DE GILGAMESH

3. As estrelas e a hoste celeste

Assim, se tivermos dois sonhos que dizem a mesma coisa, com apenas uma diferença, que conclusão poderemos tirar? Adiferença deve ter um significado especial. Poderíamos perguntar: por que dois símbolos? Assim, procuraremos encontrar a razão para alguma necessidade interior, para o inconsciente produzir um segundo sonho, quase o mesmo, porém com símbolo diferente. Não devemos tirar conclusões, mas podemos presumir que deve haver dois aspectos diferentes da mesma coisa, que são importantes, compensatoriamente, para a situação vital do indivíduo que teve o sonho. No primeiro sonho, ficamos sabendo que algo parecido com "a hoste celeste" desceu do céu. É pesado, não pode ser removido facilmente, e as pessoas lhe beijam os pés. Pode-se ter imagem disso? Pode-se vê-lo? Penso que não se pode. É um símbolo complexo extraordinário. Ele vem dos astros, mesmo assim tem forma humana, como podemos deduzir, pois as pessoas lhe beijam os pés, e é tão pesado como rocha. Assim, não podemos encaixá-lo com muita facilidade numa categoria de objeto. Este, naturalmente, é o privilégio do sonho — contrapor-nos às aparências que não podemos comparar com algo visto antes. E especialmente complexo, e, partindo do ângulo simbólico, podemos procurar entender o que poderia significar. Comecemos com a primeira característica. Ele procede das estrelas e é semelhante à hoste celeste. Esta hoste celestial toca um sino? Pensemos na escola dominical.

OBSERVAÇÃO: A história do Natal.

Sim, mas muito antes. O Antigo Testamento. O que é esta hoste celestial? OBSERVAÇÃO: Anjos.

Anjos? Eles sãoos Benai HaElohim, os filhos de Deus, no Antigo Testamento. E temos também a grande visão de Isaias, no capítulo 6, onde ele vê os serafins em torno da divindade, que clamavam: "Santo, santo, santo é Javé dos exércitos; a sua glória enche toda a terra". O exército celeste é a idéia dos anjos, mas por que exército? Um dos nomes de Deus no Antigo Testamento éYahweh Zeva, oth, Yahweh (o Senhor) do exército. Zeva é o exército. Assim, existe uma categoria de anjos que têm caráter guerreiro. Eles são divindades estelares, divindades estelares antigas, que, na nova religião, se tornam

hierarquia de seres divinos. Por exemplo, os Benai HaElohim são realmente seres-deuses, se é que entendemos a palavra Ben de uma nova forma, que é igualmente aceita na literatura. Este "exército celeste" ocorre somente em conexão com osBenai HaElohim, e nunca com o Malach Yahweh, o anjo do Senhor, que é mais o aspecto mensageiro. Se o leitor estiver interessado neste problema especial do exército celeste, posso indicar-lhe o meu livroSatan in the Old Testament (Satã no Antigo Testamento), onde tratei com mais profundidade das diferentes categorias dos anjos no Antigo Testamento. Eles muito provavelmente eram divindades estelares politeístas que adquiriram nova conotação no novo monoteísmo hebraico. A passagem principal da Bíblia onde podemos ver este exército celeste em ação é em Juízes 5,20, onde asestrelas lutam contra Sísara. Esses são os deuses estelares. Essas modificações não são raras. Podemos constatar isso no nome do Deus hebraico Elohim, que é uma forma pluralizada, e sugere pluralidade de deuses que eram condensados num único Deus, na evolução do politeísmo para o monoteísmo. Mais adiante, em nossa epopéia, teremos alguns lances bastante interessantes deste processo. Uma estrela caindo do céu. Não só estrelas cadentes. Qual é o significado simbólico de estrela? Existe mais outra amplificação importante possível. A que estão freqüentemente associadas as estrelas?

OBSERVAÇÃO: Uma luz especial. Esperança. Destino.

Esperança? Também, mas também destino. Esta conotação é muito bem conhecida. Pensemos na antiga disciplina de astrologia, à qual está relacionado todo o destino do homem, quando não, determinado pelas estrelas. "Nascido sob o influxo de uma estrela da sorte." O nosso destino está nas estrelas, o que naturalmente significa que o que acontece ao homem, e na forma em que acontece, está relacionado a algo "superior". E assim as estrelas se tornam símbolo mais famoso. Onde apareceu uma estrela que anunciou alguma coisa importante? Sim, justamente, com o nascimento de Jesus. Nele aparece a estrela. E temos também sonhos relacionados com as estrelas, como no caso de José, e também atualmente. Gostaria de contar uma história interessante da minha própria experiência: tenho um sobrinho, que agora já é adolescente, que no seu 4° aniversário disse, com toda a espontaneidade: "Mãe, não existe também uma estrela que tem o seu 4- aniversário?" Ninguém se recordava de ter jamais lhe contado tal coisa. Foi idéia arquetípica espontânea, segundo a qual uma estrela nasceu conosco. A minha estrela nasceu comigo, e agora está tendo também o seu 4- aniversário. As crianças dizem as coisas mais espantosas — idéias arquetípicas diretamente da fonte — e eu sempre digo para as mães que se esmerem em anotar essas coisas!

Agora, se pensarmos no simbolismo do destino das estrelas, que eu julgo ser relevante em nossa conexão, precisamos pensar também em algo mais: que este ser estelar cai docéu. E o que indicaria isto? De que forma geralmente o destino bate à nossa porta? Algumas vezes justamente com isto, como um repente. Caindo do céu, que, simbolicamente, significaria cair no consciente vindo do inconsciente. Poderíamos dizer que Enkidu é este ser parecido com uma estrela que vem caindo sobre Gilgamesh, por assim dizer, e então poder-se-ia dizer que o sonho está indicando que alguma coisa de importância

fatal vem ao encontro dele. Mas poderíamos dizer: Bem, esta é apenas uma intuição — como se pode provar isso? Como se pode provar isso? Temos a estrutura de toda a epopéia, a partir da qual pode-se ver que, com Enkidu, nova fase do destino entrou na vida de Gilgamesh. Ele veio com Enkidu num encontro heróico, e estando com ele, e, em seguida, deixando-o, o trouxe em sua caminhada para o encontro da imortalidade. Assim, Enkidu é realmente um destino que entrou na vida de Gilgamesh, e podemos ver quão verdadeiro isto é. Poderíamos dizer que ele se tornou ponto decisivo no destino de Gilgamesh.

Existem outros aspectos em relação a este ser, isto é, o seu peso, a impossibilidade de ser removido — o que me faz pensar numa enorme rocha. A propósito, na maioria dos comentários ele é comparado a um meteoro. Não sei até que ponto isto possa ajudar. Mas a imagem se presta: ele pode ser considerado como um meteoro. Mas por que ele o traz para a sua mãe Ninsun para ser aceito? Por que seria ele um marco decisivo em seu destino? Não podemos estar satisfeitos simplesmente com a descoberta de similitude com um objeto exterior, mas somente se este objeto revelasse o significado do símbolo. Aí sim. Temos que considerar todas essas possibilidades. O que significaria se ele fosse um meteoro? Eu não acho que isto nos levaria muito longe. Mas ele tem característica parecida com a da pedra: é pesado. Meramente de forma simbólica, o que isto indicaria? É um ônus, pesado para ser carregado. Mas diria também que colocar a ênfase na qualidade parecida com a da pedra deste objeto que vem do céu traz à tona outra amplificação. Qual é, freqüentemente, o simbolismo da pedra? Este objeto parecido com uma estrela, quando desce do alto, se transforma em pedra.

OBSERVAÇÃO: Transformação.

Transformação também. Eu estava pensando na pedra da alquimia. Esta, naturalmente, é muito posterior, porém não precisamos hesitar em inquirir também em conexões posteriores no simbolismo, que podem lançar alguma luz sobre o tema. Sabemos que a alquimia tem raízes muito remotas, por exemplo, no antigo Egito. Todos os símbolos do ego já aparecem muito cedo, e o lápis-lazúli ou a pedra dos alquimistas éa prima matéria, a matéria primeira, destinada a ser mudada, a ser transformada nolápis philosophorum, a pedra filosofal. Isto é, o produto final de se tornar firme, de se tornar estável, de se tornar incorruptível. Mesmo quando somente como reflexo secundário, eu acho que temos o direito de ver e de acrescentar como amplificação o caráter da pedra filosofal deste objeto que tem todas as características de algo terrivelmente importante para Gilgamesh, ser colocado a seus pés, ter que ser carregado, e, como mostra o curso e o desfecho da epopéia, que foi realmente o fato da transformação de Gilgamesh. Outra coisa: nós já tratamos da criação de Enkidu. Tendo isso em mente, o próprio fato deste objeto ter caído do céu traz à tona algo que nós já aprendemos a respeito dele, a respeito da sua criação, que estava na imagem de Anu, o deus celeste. Nós então mencionamos o que isto implica. Como já vimos, ele é uma criatura meio homem e meio animal, quando foi encontrado. Mas ele é criado para lutar com Gilgamesh, para tirar a sua libido do povo oprimido. O fato de ser criado à imagem de Anu lhe confere característica divina, que lhe dá uma série muito ampla de opostos, entre o

animal-homem e a criatura divina. Como mencionei na ocasião, poderíamos quase presumir que ele tem uma espécie de qualidade luciferina potencial — Lúcifer, que também caiu do céu. Num sonho posterior, ele se revelará com maior clareza. Assim, nós podemos justamente guardar isso na mente, também. Tudo isso tem um significado em nossa conexão nesta própria imagem complexa e não muito visualizável, no contexto do nosso material. O contexto é muito importante, pois o perigo é sempre grande, justamente de intuir essas coisas. Precisamos ser capazes de basear as nossas intuições no material. Os principiantes às vezes cometem este erro, e então tudo é tudo. Naturalmente, dessa forma, não se chega a lugar algum. Nossas intuições são como as luzes que brilham no escuro, mas devemos então olhar para ver se aquilo que elas iluminam é realmente aquilo que nós presumíamos que fosse. Eu acho que este objeto parecido com uma estrela, que tem aspecto de destino, que cai do céu — que se encaixa na história da criação de Enkidu, o seu peso, a sua qualidade pétrea, sugerem um conteúdo constelar do inconsciente que irrompe na vida de Gilgamesh num determinado momento crucial com o maior dos impactos, que o coloca em princípio numa situação de não ser capaz de competir com ele. Nessa altura, acontece algo. O que é que o ajuda a competir com ele? Pensemos no sonho. Ele não consegue transportá-lo; então, o que acontece? O povo se concentra ao redor dele. A concentração do povo em torno deste ser que caiu do céu, comportando-se como quem está adorando, em reverência, é tudo isto que o ajuda a transportá-lo. A ajuda do povo é representada mais diretamente na versão da antiga Babilônia, onde a descrição do sonho de Gilgamesh diz o seguinte:

"Eu tentei removê-lo, mas não consegui. A nação de Uruk estava reunida ao seu redor, Enquanto os heróis lhe beijavam os pés.

Coloquei a minha fronte firmemente contra ele, E eles me ajudaram.

Eu o ergui e o levei à tua presença".

(Tab. II, col. i, linhas 9-14, Heidel, p. 26)