• Nenhum resultado encontrado

CELIA SOARES DE SOUSA MÍSTICA CRISTÃ E POESIA NAS OBRAS DE MURILO MENDES

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "CELIA SOARES DE SOUSA MÍSTICA CRISTÃ E POESIA NAS OBRAS DE MURILO MENDES"

Copied!
122
0
0

Texto

(1)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

MESTRADO EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA

NÚCLEO DE DOGMA

CELIA SOARES DE SOUSA

MÍSTICA CRISTÃ E POESIA NAS OBRAS DE

MURILO MENDES

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

CELIA SOARES DE SOUSA

MÍSTICA CRISTÃ E POESIA NAS OBRAS DE

MURILO MENDES

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título de

Mestre em Teologia Sistemática na área de

concentração em dogma, sob orientação do Prof.

Dr. Antonio Manzatto.

(3)

SINOPSE

A presente dissertação tem como objetivo contribuir com a reflexão teológica a partir do diálogo já existente entre Teologia e Literatura. Buscou promover uma relação entre a poesia de Murilo Mendes e mística cristã, focando em uma leitura interpretativa da sua poesia onde se afirmam não apenas a qualidade da sua poesia, mas sua leitura do humano e do divino. A poesia de Murilo Mendes que abundantemente trata de Deus, da Palavra de Deus, da religiosidade, do cristianismo e da Pessoa de Jesus marcou a temática humana a partir da abordagem pelo universo literário. Constatamos a urgência da redescoberta da mística para uma vivência mais comprometida com o Reino de Deus para sair da inércia e mergulhar no mistério, tomar consciência que precisamos da presença amorosa do Cristo no nosso no cotidiano para enfrentar com ternura, porém, com firmeza, os desafios que a modernidade nos impõe.

(4)

SYNOPSIS:

The following dissertation has as an objective to contribute to the theological thinking on the already existing dialogue between Theology and Literature. It sought to promote a relation between Murilo Mendes’s poetry and Christian mystical, focusing in an interpretive reading

of his poetry, where are affirmed not just the quality of it, but also his reading of the human

and the divine. Murilo Mendes’s poetry, which abundantly talks about God, God’s words, religiosity, Christianity and about the Person of Jesus, marked the human theme from the approach through the literary universe. We found the urgency of the mystical rediscovery for an experience more compromised with the Reign of God, to come out of the inertia and dive into mystery, acknowledge that we need the loving presence of Christ in our days to face with tenderness, but also with firmness, the challenges that modernity imposes to us.

(5)

SINOSSI

L´obiettivo di questa tesi é um contributo alla riflessione teologica pensando nel dialogo che giá esiste tra la Teologia e a Letteratura. Há voluto sviluppare uma relazione tra la poesia di Murilo Mendes e la mística cristiana, attraverso uma lettura interpretativa della sua opera poética non solo a rispetto della qualitá della poesia stessa ma soprattutto della lettura del dato umano e divino.

La poesia di Murilo Mendes, che parla diffusamente di Dio, della Parola del Signore, di religiositá, di cristanismo e della persona di Gesú, sviluppó la temática umana com um approccio próprio dell´ universo letterario.

Troviamo nella sua poesia l´urgenza di riscoprire la mística come mezzo per vivere com impegno l´esperienza del Regno di Dio, per uscire dall´attivismo e immergersi nel mistero, per capire che abbiamo bisogno della presenza amorosa di Cristo nel quitidiano e per affrontare com tenerezza, e al tempo stesso com forza, le sfide che la modernitá ci impone.

(6)
(7)

Agradecimentos

Trago agradecimentos porque Deus tem sido sempre muito generoso comigo, guiando-me por caminhos sempre novos, para novas descobertas no campo da espiritualidade e da vivência no seguimento a Jesus, o que tem feito da minha pessoa uma mulher com uma certeza maior do Amor de Deus por mim e por Sua criação. Muitas pessoas participaram deste momento maravilhoso do qual tive oportunidade de vivenciar e faço aqui meus agradecimentos:

- Um agradecimento especial a Deus, pelo dom da minha vida e por tantas oportunidades. Com certeza Ele tem feito muito mais do que prometeu (Sl 134,2)

- Agradeço aos meus pais que me acolheram com amor e desde o seio materno me falavam de Deus.

- Agradeço aos meus familiares por todo interesse em me ajudar de alguma forma.

- Outro agradecimento especial ao meu esposo e aos meus filhos por acreditarem em mim, pela paciência e ânimo de cada dia.

- Agradeço ao Prof. Dr. Padre Manzatto que com sabedoria e docilidade me abriu caminhos nesta pesquisa e com todos os méritos de um excelente amigo e orientador.

- Agradeço ao corpo docente desta Instituição, especialmente Prof. Dr. Pe. Valeriano Costa;

Prof. Dr. Matthias Grensler, Profa. Dra. Ir. Maria Freire, Prof. Dr. Pe Marcial Maçaneiro.

- Agradeço à equipe de secretaria e biblioteca que de forma muito prestativa contribuiu para soluções administrativas.

- Agradeço aos padres da Diocese de Guarulhos por todo o apoio, incentivo e ajuda financeira.

- Agradeço aos alunos da Escola de Ministérios Pe. Fernando de Brito – Diocese de Guarulhos que, me fazem redescobrir a importância da Teologia na minha vida e na vida da Igreja.

- Agradeço aos amigos da Comunidade Santa Edwiges (Guarulhos) pelo companheirismo e por me ensinarem a viver na pequena comunidade.

- Agradeço à Pastoral da Juventude, ao Movimento dos Focolares, e à Equipe da Lectio Divina que me despertaram para uma espiritualidade encarnada, favorecendo uma formação humana integral.

(8)

SIGLAS

Cat. – Catecismo da Igreja Católica

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CL – Christifideles Laici

Dap – Documento de Aparecida

DV – Dei Verbum

FR – Fides et Ratio

GS – Gaudim et Spes

MC – Marialis Cultus

NMI - Novo millenio ineunte

(9)

SUMÁRIO

Introdução 11

CAPÍTULO I: TEOLOGIA E LITERATURA

Introdução 14

1. Teologia 16

1.1 Teologia moderna 17

1.2 Teologia na América Latina 17

1.3 Desafios atuais para a Teologia 20

2. Literatura 21

2.1 Relações entre Teologia e Literatura 23

2.2 Teologia e Literatura no mesmo percurso de busca 24

3. Teologia, poesia e mística 27

3.1 Compreensões da mística 27

3.2 Mística do seguimento de Jesus 32

3.3 Teologia da mística 34

3.4 Mística e teopoética 40

3.5 Poesia: o sagrado toque da alma 42

Conclusão 44

CAPÍTULO II: Uma vida na arte

Introdução 46

1. Biobibliografia sintética de Murilo Mendes 47

1.2 Murilo Mendes e a linguagem religiosa 54

2. Em Murilo Mendes e poesia caminham juntas 57

2.1 Questões de fé na arte 59

2.2 Mística em comunhão com a vida 61

3. A religiosidade na arte de Murilo Mendes 64

(10)

CAPÍTULO III: Uma mística na arte

Introdução 74

1. Jesus como companheiro de jornada 78

1.1 Pai Nosso e Meu Pai 80

1.2 Palavra de Deus 85

2. A teologia que se depreende dos poemas e da mística 88

2.1 Comunhão com Deus 89

2.2 Comunhão com os irmãos 91

3. Contribuições específicas para a Teologia na América Latina 92

3.1 Missão dos leigos, sonho do poeta 99

Conclusão 101

Conclusão Final 104

Anexos 108

(11)

11

Introdução

A Teologia, enquanto ciência, se vê desafiada a apresentar ao mundo a Revelação de Deus, que se tornou Palavra e veio morar no meio de nós. Quando em diálogo com outros saberes, além de enriquecer-se, ela terá um descortinar-se de possibilidades para deixar Deus mais próximo da realidade humana. A literatura fala do humano e tem se revelado, portanto, uma aliada da Teologia na sua tentativa de responder aos anseios do homem. Assim, a abordagem desta dissertação se faz a partir do interesse de diversos pesquisadores em apontar as contribuições advindas desse diálogo entre Literatura e Teologia, ambas se enriquecendo mutuamente.

Particularmente nos deteremos em aprofundar a mística cristã como meio de viver o cristianismo em plenitude e, para tanto, usaremos a beleza ‘mística’ da poesia de Murilo

Mendes. Acreditamos que uma reflexão teológica a partir dos escritos desse poeta mineiro é capaz de oferecer um diálogo que não fere a identidade e o objetivo de cada uma das áreas do conhecimento. Pelo contrário, a arte de Murilo Mendes vem comprovar que a Comunhão com Deus é indissociável da comunhão com as pessoas, e que o trabalho do poeta e teólogo, quando em mutualidade, tende a ser mais profícuo no enfrentamento das realidades que desafiam o homem no seu encontro com Deus, com o outro e consigo próprio. Entrelaçadas,

sem sobreposição ou amarras, a Poesia ‘poderá sinalizar o invisível’, e a Teologia terá mais

subsídios para responder ao seu desafio de dar sentido à caminhada de fé.

O teólogo tem o dever de conhecer a Palavra de Deus e a realidade do mundo, essenciais para poder apresentar ao homem de hoje uma proposta que não é sua, mas de Deus. O campo de ação da Teologia é o mundo, pois todo o universo é criação de Deus. Neste sentido, enquanto ciência, nada mais natural que dialogue com as demais ciências que

habitam essa “casa comum”. De modo particular, a Teologia presta um serviço à Igreja e

(12)

12 Essa visão de conjunto só começou a ser vislumbrada com algum interesse por parte

da Igreja a partir do advento das ciências humanas e com a chegada do século XX. A “virada antropológica”, que trataremos no capítulo primeiro, foi um dos elementos fundamentais para a teologia a partir do século XX, especialmente para a teologia latino-americana, carente ainda hoje de uma urgente prática evangélica. Neste percurso, a Antropologia terá uma importância significativa para o diálogo convergente entre Teologia e Literatura, na busca de compreender Deus a partir do humano e compreender o humano a partir de Deus. A Teologia, a partir do Concílio Vaticano II, se permitiu dialogar com as ciências e com a cultura, e retomou igualmente o interesse pela espiritualidade e mística, ainda que desde os tempos mais remotos do cristianismo a experiência mística já estivera presente.

Ao reconhecer a mística enquanto entrega de si mesmo, aquele que tem Jesus como exemplo é capaz de perceber sinais de vida onde não há mais esperança. Para que a reflexão teológica seja capaz de manifestar no povo brasileiro e latino-americano o desejo de agir com justiça, viver a solidariedade e a fraternidade e não se conformar com nenhum tipo de exclusão, esta pesquisa propõe que a mística cristã seja pautada nos diversos ambientes eclesiais e sociais. É urgente que haja um despertar em cada pessoa e em cada um desses ambientes, para que se possa (re)descobrir a alegria de ver Jesus como companheiro de jornada; de viver em comunhão com Deus e com os irmãos. Esse é o desejo de Jesus, e é o sonho do poeta.

O poeta mineiro comunicou por meio de seus poemas a reviravolta que o encontro com Cristo provocou em sua vida. A poesia muriliana é resultado do encontro do universo literário com uma mística cristã encarnada, que foi capaz de subverter o modo de o poeta comunicar sua arte, considerando que o que se esperava dele era uma arte literária mais voltada aos problemas de seu tempo - o início do século XX. E Murilo Mendes fez da poesia uma arte dinâmica, soube expressar em seus poemas tanto a memória da sua infância como o momento atual que vivia à luz do Evangelho. Essa dinâmica é fundamental para que a Teologia não perca sua identidade: rever o passado para preservar a memória dos acontecimentos da história do povo de Deus, olhar o presente à luz do Evangelho e motivar a Igreja para promover ações necessárias para que o Reino de Deus aconteça já.

(13)

13 temática da mística cristã, perpassando pelos exemplos de místicos desde o início do cristianismo. Por entender que é urgente a retomada da experiência mística, faremos isso dialogando com a poesia, que igualmente provoca no humano uma transcendência.

A partir da biobibliografia de Murilo Mendes, na segunda parte, a pesquisa procura fazer uma leitura interpretativa da sua poesia de onde se afirmam não apenas a qualidade de sua poesia, mas sua leitura do humano e do divino: como ele apresenta o ser humano, Deus e a relação entre eles enquanto constitutivo do ser humano, aplicando esses critérios para verificar de que forma a leitura do poeta pode proporcionar uma mística.

(14)

14

CAPITULO I

TEOLOGIA E LITERATURA

Introdução

É perceptível em todo o mundo um renovado interesse pela espiritualidade e suas expressões religiosas. O homem de hoje carece de entender a ação de Deus na alma humana, necessidade talvez provocada pela rapidez e intensidade das mudanças culturais, que têm levado a uma crise da racionalidade e à necessidade de respostas imediatas. A mística, compreendida como uma experiência profunda de Deus revelada a partir da experiência humana, pode levar a pessoa a olhar para esse outro rosto de Deus que se faz presente em uma realidade desumanizadora, de injustiças, opressão e sofrimento. Um místico, na sua concepção, tende a assumir como sua a missão de Jesus de apresentar um Deus amoroso e acolhedor à pessoa que sofre e, assim, vivenciar na prática uma espiritualidade encarnada a partir de Jesus Cristo.

Esse renovado interesse pela espiritualidade e suas expressões religiosas é entendido

por muitos como uma “revanche do sagrado”. A mística cristã, que por um longo período na

vida da Igreja foi desprezada e elitizada, vem adquirindo desde o início do milênio um caráter dialogal, atraindo mais e mais cientistas da religião e estudiosos de disciplinas afins, provocando uma significativa e salutar abordagem interdisciplinar também e principalmente no meio acadêmico.

(15)

15 Da Teologia, destacaremos a mística; e da Literatura, a poesia, mais propriamente a poesia de Murilo Mendes (1901-1975), poeta que integrava o chamado ‘grupo espiritualista da segunda geração’; foi um dos poetas que encontraram no cristianismo a resposta para os

dilemas de sua época, dilemas que ainda hoje nos rondam: a crise econômica, política e ideológica, o analfabetismo, o preconceito e a indiferença. Essa "conversão" deve ser compreendida não como a simples aceitação do catolicismo, mas como a proposta de um catolicismo mais voltado para os problemas humanos, terrenos. O chamado grupo espiritualista da segunda geração contaria ainda com Vinicius de Moraes e Cecília Meireles.1

Mas, por que relacionar Teologia e Literatura? Ou contrapor Mística e Poesia? A Literatura é uma arte. E todo artista quer comunicar algo à pessoa em seu contexto, a partir do seu mundo, das suas experiências. Toda obra literária afeta a pessoa, ou seja, propõe, questiona, emociona, faz vibrar, ou simplesmente a leva a se identificar de alguma maneira com a obra. Estes aspectos interessam à Teologia, especialmente a uma Teologia que pretende se colocar em diálogo permanente com o ser humano; dar atenção às suas indagações de fé, de mundo, de futuro, e fazer com que também as artes, e por que não a Literatura, contribuam para a sua realização como pessoa.

A pesquisa realizar-se-á a partir da bibliografia relacionada à Teologia e Literatura, à mística cristã e à poesia de Murilo Mendes. A profunda experiência mística de Murilo Mendes, que de uma maneira tão particular soube conjugar teologia, mística e literatura poética, tornou esse tripé a base de seu encontro com o divino, um encontro partilhado com o outro, o necessitado, o marginalizado.

Pretende-se a partir de uma Teologia poética tentar agregar mais uma dimensão do humano à reflexão teológica e abrir-se às novas possibilidades de transmitir a experiência de fé cristã. O caráter místico da obra de Murilo Mendes acentua ainda mais as afinidades com o contexto contemporâneo da sociedade.

1 Literatura Brasileira. Disponível em:

(16)

16

1. Teologia

A Teologia é elaborada a partir do horizonte da fé, é discurso a partir da fé. O sentido e significado da Teologia é acreditar, confiar em Deus. Conforme Afonso Murad e Libanio, o

termo ‘teologia’ significa etimologicamente “um discurso, um saber, uma palavra, uma ciência de ou sobre Deus”.2

O ser humano busca a compreensão da fé: a fé que procura entender (fides quarens intellectun), conforme expressão de Anselmo de Canterbury.3 Para isso, busca meios para aprofundar, sistematizar a fé que o liga a Deus. Neste sentido, o que se pretende é esclarecer

seu ato de fé nele, em Deus. Como afirma Santo Tomás: “O ato do que crê não termina no

enunciado, mas na coisa.”4

Crer em Deus é assumir a sua Palavra revelada na humanidade. A teologia define-se como a reflexão crítica sistemática sobre a intelecção de fé. 5 Não há como fazer teologia sem um mínimo de adesão ao Deus da Revelação, ao contrário, quem se arriscasse a tal feito seria um mero pesquisador, sem qualquer envolvimento com a experiência de fé em Deus, e de Deus na história da humanidade.

Por um longo período na vida da Igreja, o termo Teologia correspondeu à Escolástica

– período em que os cristãos vivenciaram muito mais uma fé a partir dos manuais, o que provocou um afastamento da vivência a partir da experiência do Êxodo, da Libertação, dos profetas e da Fé no Deus libertador.

Após o Concílio Vaticano II, a teologia dos manuais deixa de ser atraente e, sobretudo, eficaz para os acontecimentos que o modelo de sociedade centrada na economia impõe principalmente à vida dos mais pobres, esquecidos e excluídos.

Com um olhar mais voltado para o humano, a Teologia recebeu uma grande contribuição de Karl Rahner, teólogo alemão que se serviu da base antropológica para sua

2 LIBANIO, João Batista & MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 63.

3 TAMAYO, Juan José (org.) Novo dicionário de teologia. São Paulo: Paulus, 2009. p. 524. 4 Santo Tomás. Summa teológica II.

(17)

17

teologia, consagrando o termo “virada antropológica” Ele parte de uma teologia aberta e

profundamente tradicional, mas fortalecida com um novo alento de vida e cultura moderna.6

1.1 – Teologia Moderna

Karl Rahner abre caminhos para uma teologia “que se alinha sempre em torno dos problemas do homem de hoje, e o objetivo prático com que procura fazer sua teologia.”7

Convencionou-se chamar sua teologia de “virada antropológica”, pois Rahner aponta a real

necessidade do compromisso de cada pessoa com a transformação de uma sociedade injusta e desigual para um lugar em que cada pessoa se identifique com o projeto de uma vida melhor para todos. O que move cada pessoa a fazer a adesão a esse chamado são os elementos da fé

cristã que estão centrados na temática da salvação. Afirma Gutierrez: “Salvação de todo ser humano, centrada em Cristo Libertador.”8

Neste período, os temas da criação e salvação passam a ser vistos a partir da experiência do Êxodo. Para Rahner, o homem é ouvinte da Palavra, e quando há vivência em comunidade no respeito, gesto de gratuidade e alteridade, a história da salvação se concretiza. O ato de se pôr a caminho foi uma reflexão posterior ao evento do Êxodo, e levou aqueles que abraçaram a fé a se permitir conhecer o Projeto de Libertação oferecido por Deus.

1.2 – Teologia na América Latina

Na década de 70 a novidade que surge na América Latina é a Teologia da Libertação, e sua proposta é uma nova maneira de fazer teologia.9 A reflexão crítica da práxis histórica é uma marca essencial da maneira de se fazer Teologia da Libertação, uma teologia da transformação libertadora da história da humanidade que se faz, não a partir de um gabinete, mas a partir do concreto da vida, dos conflitos, da pobreza e das diversas formas de opressão, iluminados com a Palavra de Deus que aponta sempre o caminho da terra prometida.

6 Teologia Contemporânea. Disponível em: http://teologia-contemporanea.blogspot.com. Acesso em: 15.10.2012.

7 KASPER, Walter. Cristologia abordagens contemporâneas. São Paulo: Edições Loyola, 1990. p. 65 “A virada antropológica de K. Rahner na Teologia assinala um traço particularmente característico do pensamento moderno. Este último, enquanto se desagrega a dimensão cosmológica, coloca o homem no centro e procura compreender toda a realidade a partir dele”.

(18)

18 A Teologia como instrumento de libertação oferece caminhos por diversos interesses que passam das individualidades ao ser relacional. Toda esta ênfase deve despertar em cada pessoa, cada grupo, cada organização o sentimento de responsabilidade do outro, pela vida de todos, e que seja uma vida saudável e digna.

A Teologia da Libertação é uma reflexão que necessariamente deve buscar a compreensão do ser humano. Ao falar de uma sociedade nova e de um homem novo é imprescindível a elaboração de uma antropologia que responda ao projeto salvífico de Deus para a humanidade.10 Esta teologia continua ainda hoje como apelo e deve ser esta a opção da Igreja, ou seja, oferecer esperança para os pobres, como sinal de sua grande responsabilidade social e histórica.

O processo histórico-crítico da Teologia da Libertação imprime na Igreja e na sociedade uma especial atenção ao pobre como sujeito da história, e um forte desejo de que a igualdade seja realidade a todo custo. O que distingue a Teologia da Libertação é justamente o seguimento incondicional de Jesus Mestre por ser Ele o que mais se identifica com o pobre –

mais que isso, Ele foi o Pobre entre os pobres. “Seguir Jesus é refazer em cada momento da

história a atitude fundamental de Jesus. E sua atitude fundamental foi a de ler nos acontecimentos a vontade do Pai”.11

No entender de um dos maiores teólogos de nosso tempo, Jon Sobrino, a Igreja encontrará o caminho da salvação somente nos pobres, entendidos por ele como os povos crucificados de nossa sociedade moderna, verdadeiros servos de Javé pelo sofrimento e pela possibilidade de salvação. O teólogo espanhol ressalta que nos pobres irrompe o mistério da

realidade e neles irrompe a realidade do próprio Deus. E acrescenta “Deus quer sua salvação e libertação e faz a opção por eles”.12 Na América Latina, a tomada de consciência surge a partir da organização dos pobres: “É primeiro aos povos pobres que compete realizar sua

própria promoção”.13

10 VD, 9 Bento XVI afirma que “a realidade nasce da palavra como creatura Verbi, e tudo é chamado a servir a Palavra. A criação é lugar onde se desenvolve toda a história do amor entre Deus e sua criatura: por conseguinte, o movente de tudo é a salvação do homem”.

11 LIBANIO, João Batista. & ANTONIAZZI, Alberto. Vinte anos teologia na América Latina e no Brasil. São Paulo: Vozes, 1994. p. 41.

12 SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 43

(19)

19

O Concílio Vaticano II afirma que a Igreja deve, como Cristo, realizar sua missão “em pobreza e perseguição”.14 Não é essa a imagem que a comunidade latino-americana apresenta ao mundo. As consequências na América Latina das Conferências episcopais de Medellín e Puebla destacam a situação de pobreza e opressão sobre os mais fracos e apontam para a necessidade de uma Igreja mais acolhedora e disposta a transformar esta realidade, uma tarefa para as estruturas eclesiais e os leigos.

A Teologia na América Latina fermentou e abriu os caminhos para uma práxis, não primeiramente a partir da reflexão da fé, mas a partir do compromisso com o chamado de Jesus para que o Reino aconteça já e entre nós. As Conferências Episcopais de Medellín e Puebla convocaram a Igreja latino-americana a estar no mundo sem ser do mundo, isto é, a estar no sistema sem ser do sistema. Chamaram homens e mulheres a experimentar a fé no Deus do Reino e no Reino de Deus a partir das necessidades do humano. As diretrizes das Conferências Episcopais e a Teologia da Libertação provocaram em inúmeros leigos, sacerdotes e bispos o desejo de ser Igreja a partir da compaixão com os mais pobres e marginalizados e levá-los a uma vida melhor.

Para Jon Sobrino15, essa busca incessante do divino no humano, de revelar Deus em tudo, é primeiramente e principalmente obra do humano, e para isso é preciso que esteja revestido do divino. Assim, suas ações, sua fala, seus sentimentos se configuram não apenas

na compreensão da fé como “Inteligência”, mas como vivência transformadora da fé. Sobrino chamou isso de mística que se revela em “amores”. Nesta perspectiva de fé, os cristãos

sentem muito claramente que não podem ser cristãos sem assumir um compromisso libertador.16

1.3 - Desafios atuais para a Teologia

As mudanças na sociedade moderna do século XX contribuíram de certa forma para o questionamento de diversos paradigmas das ciências, assim como lançaram indagações à própria Teologia. A Teologia traz como tema central a Revelação e aponta a experiência cristã como o Caminho da realização humana em todos os sentidos, porém, as promessas da

14 LG, 8.

15 SOBRINO, Jon. O princípio da misericórdia. Descer da cruz os povos crucificados. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 47.

(20)

20 modernidade e atualmente a situação social da pós-modernidade17 respondem por tal comportamento desumano desencadeado pelos sintomas das Grandes Guerras no século XX e século XXI que conferiram às pessoas e ao conjunto da sociedade uma postura mais explícita de indiferença e individualismo.

Com o advento do século XXI fez-se necessário procurar respostas para como a Teologia poderá apontar pistas para os desafios de uma sociedade pluralista, porém que sugere fortemente o individualismo.18 Temas como pobreza, diálogo religioso, marketing e meios de comunicação, presença da mulher na sociedade e na Igreja, relação com Deus hoje e disputa de poder entre países e no meio das religiões desafiam a Teologia, que tem como dever apresentar o rosto de Deus para a humanidade.

A proposta do Concílio Vaticano II de abertura ao diálogo com a sociedade, tratada no item 62 da Constituição Gaudium et Spes, aponta também para a questão da literatura e das artes como uma possibilidade de diálogo da Teologia com outros saberes na perspectiva de expressar-se e dialogar com eles por meio das artes.19

“A literatura e as artes são também, segundo a maneira que lhes é própria, de grande importância para a vida da Igreja. Procuram elas dar expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no universo, dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor. Conseguem assim elevar a vida humana, que exprimem sob muito diferentes formas, segundo os tempos e lugares.”20

17 A pós-modernidade pode ser entendida como um movimento intelectual e cultural característico da sociedade pós-industrial que emerge nas décadas de 60 e 70 muitas vezes associada a um projeto de sociedade que se propõe a superar a sociedade moderna. (...) Para usar uma expressão do pensamento pós-moderno, a modernidade pode ser definida por tudo aquilo que constitui objeto da “desconstrução”. Dicionário Brasileiro de Teologia. Outras definições consultar A modernidade e a Igreja, Urbano Zilles, EDIPUCRS. p. 10.

18 COMBLIN, José. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? São Paulo: Paulus, 2005. p. 36.

19 ASSEMBLÉIA PLENÁRIA DOS BISPOS. Via Pulchritudinis. O caminho da Beleza. São Paulo: Edições Loyola, 2007. A Via Pulchritudinis é um caminho pastoral que não se pode reduzir a um approche (toque/ acesso) filosófico. Mas o olhar do metafísico nos ajuda a compreender por que a beleza é um caminho régio para conduzir a Deus. (...) Percorrer a Via Pulchritudinis implica empenhar-se em educar os jovens para a beleza, ajudá-los a desenvolver um espírito critico em face da oferta da cultura da mídia e plasmar sua identidade e seu caráter para elevá-los e conduzi-los a uma real maturidade”. pp.17-18.

(21)

21 Os escritos bíblicos são Palavra de Deus,21 Palavra que se fez linguagem para se

aproximar do humano. Afirma Mônica Campos: “A Bíblia é literatura, e sendo Palavra de

Deus infere a Deus uma condição de contador de histórias. O Deus Encarnado que habitou

entre nós é um contador de parábolas”.22

As afirmações e provocações da Teologia em um cenário social em que o relativismo prevalece têm exigido desta um dinamismo para lidar com uma realidade em constante mudança. Conscientes desse desafio, alguns teólogos vêm desenvolvendo pesquisas no campo da Teologia e Literatura, a partir de uma perspectiva interdisciplinar.

2 - Literatura

O contato com a leitura poderá proporcionar à pessoa a possibilidade de acumular conhecimentos, pois as obras literárias nos ajudam a compreender sobre nós mesmos e sobre as mudanças do comportamento do homem ao longo dos séculos, podendo nos fazer acrescentar ou mudar nossos valores, conforme afirma Manzatto,

A Literatura é um olhar sobre o mundo, sobre seus valores, suas condições. Ela é também, mas não formal nem diretamente, um juízo de valores, pois ela toma uma posição ante os mitos, coisas e realidades da vida e da sociedade; ela denuncia ideologias, sofrimentos, hipocrisias, falsos valores, opressão, e prega novos valores.23

No senso comum, a Literatura é definida como a arte das palavras. Enquanto instrumento de comunicação, ela transmite os conhecimentos e a cultura de uma comunidade. A obra do escritor é fruto de sua imaginação, embora seja baseado em elementos reais. Da concretização desse trabalho surge, então, a obra literária.

21 DV, 9.

22 CAMPOS, Mônica Baptista. Possibilidade de encontros teológicos-poéticos a partir da mística na obra de Adélia Prado In: Teologias e Literaturas. Alessandro Rocha, Eliana Yunes e Gilda Carvalho (orgs.). São Paulo: Fonte editorial, 2011. p. 61.

(22)

22 A literatura é uma manifestação artística. E difere das demais pela maneira como se expressa; sua matéria-prima é a palavra, a linguagem. O texto literário se caracteriza pelo predomínio da função poética. O caminho que a literatura percorre é este.24

Amora25 afirma que a obra literária se caracteriza pelo tipo de conhecimento que transmite – intuitivo e individual. E acrescenta que só é literatura quando o conteúdo dessa expressão é uma intuição profunda e original da realidade. Neste aspecto, se difere do conhecimento racional e universal, como o das Ciências Humanas e Naturais.

Para ele, Amora, o que caracteriza a obra literária são, em princípio, o conteúdo e a forma:

A forma de linguagem é mais rica e mais variada que a do homem, o que é mais compreensível, pois o artista, isto é o poeta, o ficcionista, o teatrólogo, sente a existência com mais sensibilidade, vê as cousas com mais acuidade, pensa a problemática da vida com mais inteligência; e quem tem mais o que dizer diz com mais palavras e em mais complexa expressão. ”26

É Manzatto que, baseado em uma fala de Jorge Amado, diz:

eu não sei se esta história é verdadeira ou não, eu sei que ela é bonita”, diz Jorge Amado em vários de seus romances. Se a literatura é uma arte, ela deve ter relações com o belo; enquanto arte ela não pode abstrair de sua realidade estética, e isso em sua forma e em seu conteúdo.27

A finalidade da Literatura não é a de apresentar uma nova cultura. A literatura pode ser compreendida como uma das formas de conseguirmos expor nossos pensamentos mais íntimos. Por meio da leitura, torna-se possível descobrirmos a nós mesmos, nos entendermos melhor e, quem sabe, mudar, quando necessário, já que ela não falaria só à razão, mas ao ser humano integralmente. Uma boa leitura pode nos proporcionar emoções jamais imaginadas como: “ver” imagens jamais conhecidas, “sentir” odores nunca cheirados, “degustar” pratos

nunca até então imaginados.

24 O que é Literatura? Disponível em: http://www.brasilescola.com/literatura/o-que-e-literatura.htm. Acesso em: 01.02.2013.

25 AMORA, Antonio Soares. Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 52. 26 AMORA, Antonio Soares. Introdução à Teoria da Literatura. p. 53.

(23)

23

Importante frisar que a literatura “pode ser teologicamente importante na medida em que se ocupa da problemática humana”.28 Se a problemática humana interessa ao autor e este dedica tempo e inspiração para uma possível representação da realidade, também interessa à teologia, pois tudo o que se refere ao humano interessa à teologia, ainda que o autor não professe alguma experiência religiosa. Este é o caráter antropológico da literatura que é importante para a teologia.29

2.1- Relações entre Teologia e Literatura

A literatura, em princípio, é uma relação com a beleza e com o estético, enquanto a teologia procura se relacionar com a verdade, com a questão do conhecimento.

Uma obra literária não tem como objetivo específico descrever a realidade, como o faz a ciência, mas ela busca a compreensão, por meio da apresentação que mostra da realidade ou de um possível sentido da realidade. Assim, a obra não descreve o real, mas a ele se refere, não no aspecto de descrição fenomenológica, mas na tentativa de compreensão de fenômenos. Desse modo, pode-se afirmar que a literatura possui referência com a verdade, pois ela, ao imaginar o que pode ser real, traça um caminho de afirmação da verdade.

Para Paul Ricouer, “qualquer texto está inserido num contexto mais amplo, um contexto de vida, do qual emerge e para o qual retorna ao ser compreendido”.30 Compreender que o texto refere-se a alguma coisa e não se esgota em si mesmo é reconhecer que é próprio da linguagem remeter a um além de si mesma.

A tarefa hermenêutica, para Ricouer, será possível a partir da compreensão do sentido de uma obra literária. Assim elucida Gentil o ponto de vista de Ricouer:

“O que uma obra de ficção diz não é nem simples cópia de uma realidade já existente anteriormente fora dela, nem pura invenção, exercício de imaginação descolado de qualquer relação com o mundo exterior a ela:

28 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge Amado. p. 68.

29 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica contida a partir dos romances de Jorge Amado. p. 69.

(24)

24 se de um discurso que é feito por alguém, que nasce portanto de uma determinada experiência da realidade, que diz algo dessa experiência e dessa realidade e o diz para alguém, alguém que também vive numa determinada (outra) realidade, tem sua experiência dessa realidade e vai assimilar o que lhe é dito de alguma maneira”.31

O que o texto poderá provocar no leitor não está ao alcance ou atrelado à intenção do autor. O contato da obra literária poderá provocar uma viagem a um mundo antes inimaginável e realizar descobertas no mundo interior ou exterior ao leitor. Ricouer classifica

esta provocação com a expressão: “do texto em direção ao mundo que ele abre.”

A possibilidade da via hermenêutica, que desperta a relação da obra literária com o autor, ao mesmo tempo abre um caminho de possibilidades para a relação com a Teologia. A Revelação de Deus se fez primeiramente por meio de palavras. É compreensível que Deus tenha privilegiado esta forma de comunicação para que, ao se fazer entender, pudesse garantir adesão radical ao caminho apresentado por ele. Afirma Manzatto que a Bíblia não é um livro

científico e por isso a importância de “ir além e chegar até os gêneros literários da Bíblia”,

como poemas, orações, sermões, narrativas históricas, provérbios, romances, novelas. Neste sentido, ela é literária. As narrativas do Primeiro e do Segundo Testamento são referências fundamentais da fé cristã, afirmadas por meio de um procedimento literário, para falar de Deus através de forma humana, e para falar do humano que se reveste do Divino. O ser humano é uma das preocupações da literatura. Seja pela ficção ou pela poesia, ela retrata a vivência do humano, com suas ansiedades e expectativas, na sua busca do sentido da vida e de

suas relações consigo próprio e com os outros seres. Por outro lado, “a teologia é uma melhor compreensão da fé e, à sua luz, do homem, do mundo, do universo, da vida”32, o que

demonstra uma grande proximidade entre teologia e literatura.

2.2 – Teologia e Literatura no mesmo percurso de busca

Vários são os autores que se debruçaram sobre a estreita relação entre poesia e teologia em busca do sentido da vida. O trabalho de Karl-Josef Kuschel, na Alemanha, apresenta-nos o método de analogia estrutural, que busca constatar correspondências e

31 GENTIL, Hélio Salles. Para uma poética da modernidade. Uma aproximação à arte do romance em Temps et Récit de Paul Ricoer. p. 55.

(25)

25 diferenças entre elas na interpretação da realidade. Na América Latina, a obra de Hugo Baggio, em 1974: A experiência de Deus no poeta. Outro nome é Juan Carlos Scannome, com

o artigo “Poesia popular e teologia: a contribuição de Martin Fierro a uma teologia da libertação”, na Revista Concilium em 1976. Este artigo busca refletir o valor da poesia popular para a construção de uma teologia que pretende assumir a sabedoria dos povos.

Outros nomes que publicaram textos na relação teopoética foram: Gustavo Gutierrez, Pedro Trigo e José Arguello, presentes na obra organizada por Pablo Richard: “Raízes da

Teologia Latino-Americana.” No Brasil, de Norte a Sul, tem crescido de forma célere e com

valorosas contribuições de pensadores e pesquisadores das mais diversas universidades brasileiras o trabalho de compreensão do texto literário a partir do diálogo com diversas áreas das ciências humanas, especialmente com a Teologia. Os Encontros teopoéticos e teoliterários com o objetivo de aprofundar e divulgar a pesquisa em Literatura e Teologia têm como referências, na região sudeste, os nomes de Eliana Yunes e Maria Clara Bingemer (ambas da PUC-RJ), Antonio Manzatto, Luiz Felipe Pondé e Waldecy Tenório (PUC-SP), Terezinha Zimbrão e Faustino Teixeira (ambos da UFJF); no nordeste, Antonio Magalhães e Eli Brandão (ambos da UEPB); no sul, Rafael Camorlinga Alcaraz e Salma Ferraz (os dois da UFSC), Paulo Soethe (UFPR) e Kathrin Rosenfield (UFRS); no norte, Douglas Rodrigues da Conceição (UEPA), e mesmo das associações internacionais como a ALALITE (Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia)33 e a ISRLC (International Society for Religion, Literature

and Culture), ou os Grupos de Trabalhos da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada) e da ENANPOL (Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística).

Antonio Manzatto é quem inaugura no Brasil essa possibilidade de diálogo entre Teologia e Literatura.34 A partir dos romances do escritor baiano Jorge Amado, Manzatto reflete a Revelação a partir da visão antropológica.35 Com ele, essa linha de pesquisa começa

e crescer, e outros pesquisadores, como Antonio Magalhães, na obra “Deus no espelho das

33 Realizou-se o IV Colóquio Latino Americano de Teologia e Literatura, sob o tema Literatura e Teologia em diálogos e provocações. Organizado pela Alalite (Associação Latino Americana de Literatura e Teologia) em conjunto com o grupo de pesquisa Lerte da PUC-SP, na PUC-SP entre os dias 1 e 3 de outubro de 2012, contou com mais de cem participantes de várias regiões do Brasil e do exterior.

34 Sobre esse tema, veja-se Edson Fernando de ALMEIDA & orgs. Teologia para quê?, Instituto Mysterium, Rio de Janeiro, 2007. Artigo Literatura e Teologia, de José Carlos BARCELLOS. pp. 113-128.

(26)

26

palavras”36, irão trabalhar o método da correlação baseada no pensamento do teólogo alemão

e pastor luterano Paul Tillich, um dos mais influentes teólogos protestantes no século XX. Os

trabalhos de José Carlos Barcellos, que estuda a “aproximação” da teologia com a literatura a partir do fenômeno das “linguagens de empréstimo” da teologia atual, irão demonstrar o

modo de falar de Deus a partir da literatura, que parece ser o ponto em comum da teopoética.37 Barcellos comenta sobre “um crescente interesse pela aproximação entre

teologia e literatura, tanto no âmbito dos estudos literários, quanto no dos estudos

teológicos”38, e destaca os ganhos e os desafios para este “processo de constituição de um campo interdisciplinar”.39

Para Eliane Yunes, “vem se configurando um diálogo promissor, pois o ponto de

partida, a matéria-prima, é o Verbo”.40Propõe repensar Verbo divino e verbo humano: “Estas práticas de pensar a literatura e a teologia à luz do verbo humano provocam o repensar o

Verbo divino, o sopro de espírito sobre os mortais: sua expiração é a nossa inspiração”.

Maria Clara afirma que, “com a colocação do humano no centro do pensar teológico,

assim como a consideração da experiência como um convite a fazer teologia, a literatura

passou a ser vista como um campo fértil de diálogo com a Teologia”.41 Rubem Alves não se

propõe a discutir método, e fala sobre teopoética através de um discurso poético. Para ele, a

teopoética é a fala do corpo. Fala da beleza que “mora em nossos corpos”.42 Sugere que a palavra teologia seja substituída pela palavra teopoesia: “nada de saber, o máximo de Beleza”.43 Alex Villas Boas, em sua obra “Teologia e Poesia”, irá desenvolver a temática da Teopoética a partir da “Busca de sentido em meio às paixões em Carlos Drummond de Andrade como possibilidade de um pensamento poético teológico”.44 Ele acredita que “a

36 MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: Teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000.

37MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: Teologia e literatura em diálogo. p. 46

38ALMEIDA, Edson Fernando de & NETO & Luiz Longuini (orgs.). Teologia Para Quê? In: BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Teologia. Rio de Janeiro, Instituto Mysterium, 2007. p. 113.

39 ALMEIDA, Edson Fernando de & NETO & Luiz Longuini (orgs.). Teologia Para Quê? In: BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Teologia. p. 113

40YUNES, Eliana. “et alii” (orgs.) Murilo, Cecília e Drummond 100 anos com Deus na poesia brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 9.

41 BINGEMER, Maria Clara. A literatura como um campo fértil de diálogo com a teologia. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1640&secao=251. Acesso em: 14.11.2012

42 ALVES, Rubem. Lições de Feitiçaria meditações sobre a poesia. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 40. 43 ALVES, Rubem. Lições de Feitiçaria meditações sobre a poesia. p. 40.

(27)

27 poesia pode reconciliar-se com a Teologia quando o sonho de ambas é o de uma nova

humanidade”. No universo teológico apresentado por Villas-Boas45 é possível verificar um caminho de encontro e de construção já iniciado e percorrido entre Teologia e Literatura. É um caminho aberto, possível de encantamento e descoberta da forma de apresentar (ou encontrar) Deus através das palavras.

3 - Teologia, poesia e mística

Para relacionar Teologia, mística e poesia buscar-se-á um estudo sobre as diferentes compreensões de mística na história, ressaltando o distanciamento e sua reaproximação a partir das suas matrizes.

Normalmente a mística cristã é definida como a forma e o grau de intensidade que atingem a experiência e o conhecimento de Deus. Pode-se dizer que a mística é a experiência de Deus como uma dimensão humana. Deus está presente no profundo de cada ser humano. Ele envolve, penetra e mora em cada homem e mulher. Qualquer pessoa pode fazer a experiência com Ele na simplicidade do dia a dia.

3.1 - Compreensões da Mística

Na Patrística, Orígenes é referência, e para ele a vida mística é como uma espécie de conhecimento experimental da realidade divina. A partir dessa crença, irá desenvolver a doutrina dos sentidos espirituais. Ele acredita, ainda, que a conversão é a primeira etapa do itinerário espiritual, ou seja, o retorno do homem a si mesmo. A segunda etapa é simbolizada por Orígenes no Êxodo: a saída da escravidão do Egito e a entrada na terra prometida.46

Orígenes nasceu em Alexandria do Egito por volta do ano de 185 d.C. Aplicado aos estudos da Bíblia, tem como exemplo de vida o pai, assassinado em Alexandria durante uma perseguição aos cristãos no ano de 202 d.C. Os ensinamentos de Orígenes visam

45 VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Poesia A busca de sentido em meio às paixões em Carlos Drummond de Andrade como possibilidade de um pensamento poético religioso. pp. 25-54.

(28)

28 exclusivamente ao progresso espiritual do homem, e se tornam muito inovadores em relação aos dados da tradição.47 Como grande estudioso, com critério científico das Sagradas Escrituras, apresenta a alegoria como método de interpretação bíblica e também faz uma analogia com o corpo humano, para nos fazer entender a interpretação literal da Bíblia. Bogaz afirma que a doutrina de Orígenes lhe faz merecer o título de “fundador da mística cristã”.48

A realidade divina é um tema presente na Teologia de Orígenes. Vannini afirma que Orígenes apresenta a vida mística como uma espécie da realidade divina, dando início assim à doutrina dos sentidos espirituais, que permite provar, tocar e ver as realidades divinas.49 No caminho para Deus, Orígenes apresenta duas etapas do itinerário espiritual: a conversão, ou seja, o retorno do homem para Deus, e o caminho do Êxodo: sair da escravidão do pecado, dos vícios e das concupiscências da carne, despojando-se da vida carnal para chegar progressivamente à vida espiritual.50 Bogaz traz à tona o tema do pecado em Orígenes da seguinte forma:

Todos os seres humanos tendem ao Sumo bem, que é Deus. Aos poucos cada ser humano vai se identificando com Deus. Pelo pecado, o ser humano perde sua imagem divina. De fato, a imagem não foi perdida, segundo Orígenes, mas somente silenciada pelo pecado.51

Se Bogaz considera Orígenes o “fundador da mística cristã”, a tradição indica

Gregório de Nissa como “pai da mística cristã”. Ele que nasceu no ano de 335 na Ásia menor,

escreveu muito em vários campos – teológico, exegético, pastoral -, mas é justamente no âmbito místico, sem dúvida, que deu sua contribuição mais significativa. Gregório aponta para o epéktase, ou seja, o fato de Deus estar sempre além, e por isso a necessidade de ir para frente para alcançar a meta, evocando o texto Paulo de Fl 3,13-14 –“esquecendo o que fica

para trás, com todo o meu ser continuo correndo para a frente. Esforço-me para alcançar a

meta (...)”.

47 BORRIELO, L., CARUANA, E., DEL GENIO, M.R.; & SUFFI,N. Dicionário de Mística. São Paulo: Edições

Loyola, 2003. p. 812.

48 BOGAZ, S. Antonio; COUTO A. Márcio. & HANSEN H. João. Patrística caminhos da tradição cristã. São Paulo: Paulus, 2008.

49 VANNINI, Marco. Introdução à mística. p.45. 50 VANNINI, Marco. Introdução à mística. p. 45.

(29)

29 A mística ocidental latina (séc. IV-V), por sua vez, reconhece como seu mestre Santo Agostinho.52 É uma mística do conhecimento, remonta a Platão, e seus expoentes no cristianismo são Agostinho e Santo Tomás. A mística de Santo Agostinho está fundamentada na Encarnação do Verbo na história. Como exemplo desta espécie de mística temos um trecho das Confissões, de Santo Agostinho:

Ó Deus! Formosura sempre antiga e sempre nova – quão tarde Te amei!...Tu estavas em meu coração – e eu Te buscava lá fora... Tu estavas comigo mas eu não estava Contigo...

e, então, Tu me chamaste em altas vozes... Rompeste a minha surdez... relampejaste e afugentaste a minha cegueira...recendeste suave perfumes em torno de mim, e eu os sorvia –

e,agora, vivo a suspirar por Ti... Saboreei-Te, e, agora, tenho fome de Ti... Tocaste-me de leve – eu me abrasei em tua paz. Quanto mais possuo, tanto mais Te procuro... Que eu me

conheça a mim para que Te conheça a Ti.53

O primeiro a falar de Teologia Mística é Pseudo-Dionísio54, herdeiro de uma tradição

anterior. Conforme Costa, “toda a sua obra está voltada para o problema do conhecimento de Deus”.55 Um escritor de língua grega, por volta do século V, provavelmente siríaco, compôs

quatro tratados e dez cartas, afirmando terem sido redigidos por Dionísio. Vannini comenta

que “o fato é que os textos atribuídos a Dionísio são postos como fundamento da mística no Ocidente”. Ele acrescenta que “a um desses textos, o mais breve, mas talvez o mais importante, a Teologia mística, deve-se inclusive ao próprio fato de o termo ‘mística’ ter entrado no uso corrente”.56

Para Dionísio, o conceito fundamental de mística é que “à causa de todas as coisas,

que é superiora a todas as coisas, nenhum nome se destina, e a ela se destinam todos os nomes

das coisas que são”.57 Ou seja, a realidade de Deus é absolutamente transcendente, além de todo nome, mas cada homem colhe de Deus aquilo que é capaz, na medida em que seu amor –

o ágape cristão – é mais ou menos perfeito.

Inácio de Loyola se destaca pela sobriedade e pela vontade missionária. No “relato de um peregrino”, ele desenvolve uma espantosa amplitude de experiência interior com a

52 VAZ, Henrique C. de Lima. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 37.

53 PERINE, Marcelo (org.). Diálogos com a cultura contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2003. pp. 128-129.

54 VANNINI, Marco. Introdução à mística. p. 49.

55COSTA, Ricardo da. O Pseudo-Dionísio Aeropagita In: Mística e Paideia. Disponível em: http://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/2004_07.pdf. Acesso em: 24.06.2012.

(30)

30 presença amorosa de Deus. Relata que as suas mais fortes experiências visionárias (Trindade, Criação e Eucaristia) ocorreram na época da sua conversão, por volta de 1522-1523, fortemente marcada pela ascese.

Desde os primeiros séculos, o cristianismo defrontou-se com grandes desafios: a crise interna causada pelas primeiras heresias, os ataques dos filósofos pagãos, a perseguição do Império Romano e a oposição ao judaísmo. O Cristianismo não nasce nem se apresenta como uma filosofia. Nasce como uma religião baseada na fé e na revelação divina; anuncia uma mensagem nova para dentro de um mundo velho, estrutura-se em comunidades, cuidando dos mais pobres. Jesus, o humilde artesão da Galileia, anuncia a Boa-Nova e instaura o Reino de Deus para todos os homens. A doutrina cristã respondeu não só às exigências religiosas e místicas da época, mas também às exigências éticas.

A teologia monástica medieval tem como meta última a contemplação de Deus, ou seja, a experiência de Deus. Afirma Zilles: Nessa teologia acentua-se a humanidade de Cristo para restabelecer a unidade originária entre Deus e o homem. A descrição psicológica chega a um ponto culminante nos tempos modernos com Teresa de Ávila e São João da Cruz.58 O objetivo da mística é, pois, o itinerário do homem a Deus através das realidades sensíveis e da Bíblia. Tenta-se conhecer a luz de Deus através da obscuridade humana.

A Escolástica –“ciência que se ocupa em fundamentar e explicar o saber revelado e os dogmas aceitos pela Igreja”59 em todo seu desenvolvimento se manteve no terreno do

conhecimento teórico e especulativo da investigação da verdade divina, enquanto a mística persegue um conhecimento de Deus e de sua presença na profundidade íntima da alma, baseado numa relação interior e sobrenatural com a divindade, um conhecimento experimental de Deus, afirma Zilles. A escolástica recebeu esse nome graças às artes ensinadas nas alturas pelos acadêmicos teólogos e filósofos nas escolas medievais.

Neste período, duas dimensões importantes centralizaram os ensinamentos e os debates: a fé e a razão. A novidade será a harmonização dessas duas esferas. Agostinho irá defender uma subordinação maior da razão em relação à fé, enquanto Tomás de Aquino

(31)

31 apresenta certa autonomia da razão, na obtenção de respostas, por força da inovação do aristotelismo, apesar de em nenhum momento negar tal subordinação da razão à fé. 60

A partir dessas esferas, a relação entre razão e fé, filosofia e teologia encontra nova participação de ordens religiosas: a escola franciscana e a escola dominicana. A decadência da escolástica ocorreu por volta dos séculos XIV e XV, depois da morte de Duns Escoto.61 Nessa época surgem grandes místicos. Para aqueles que não encontravam respostas na razão o caminho era o da mística.

Na busca de uma compreensão da relação entre Teologia e mística é preciso verificar

que “a mística cristã se caracteriza por sua relação com o mistério de Cristo”.62 N’Ele e com

Ele todas as coisas alcançam seu desígnio.

A relação entre Teologia e Mística é estreita. O termo teologia, originário do grego, compõe-se etimologicamente de dois termos: theós + logia = Deus + ciência. Tem por objeto

principal Deus. “Coloca-se Deus em discurso humano. Um saber, uma palavra, uma ciência

de ou sobre Deus”, enquanto o termo mística é a forma grega adjetivada mûstikos do verbo mûo, que significa fechar os olhos e calar a voz para penetrar no mistério impossível de ser categorizado, e do verbo mûien, que significa a iniciação, a subida ou ascese.63

Na Bíblia não encontramos o termo mística, porém, no cristianismo, ela é entendida como a experiência daqueles que buscam mergulhar no Amor de Jesus derramado. Normalmente a mística cristã é definida como a forma e o grau de intensidade que atingem a experiência e o conhecimento de Deus. A mística é um conceito fundamental do cristianismo como o é de toda religião que admite em seu âmbito o mistério. O místico indica a teologia

60 A Escolástica pré-tomista. Disponível em: http://www.mundodosfilosofos.com.br/escolastica.htm. Acesso em: 01.04.2012.

61 Ele nasceu provavelmente em 1266, em um povoado que se chamava precisamente Duns, nas proximidades de Edimburgo. Atraído pelo carisma de São Francisco de Assis, entrou na família dos Frades Menores e, em 1291, foi ordenado sacerdote. Dotado de uma inteligência brilhante e levada à especulação – essa inteligência pela qual mereceu da tradição o título de Doctor subtilis, “Doutor sutil” -, Duns Scoto foi dirigido aos estudos de filosofia e de teologia nas célebres universidades de Oxford e de Paris. Concluída com êxito sua formação, dedicou-se ao ensino da teologia nas universidades de Oxford e de Cambridge, e depois de Paris, começando a comentar, como todos os Mestres do seu tempo, as Sentenças de Pedro Lombardo. Disponível em: http://www.franciscanos.org.br/?p=4351. Acesso em: 13.02.2013.

62 SILVA, Maria Freire da. Espiritualidade e Mística em Perspectiva Trinitária. In: Revista de Cultura Teológica v.13. nº 50 Jan/Mar 2005.

(32)

32 como um discurso fundamentado, e uma vivência da experiência de fé cristã como consequência de uma teologia que encontra sua raiz no mistério pascal. A experiência mística nasce de um processo que exige a conversão como ponto de partida para o seguimento de Jesus. No adjetivo mystikós vive-se a verdadeira mística. Então, a mística é, sobretudo, a transformação disso em experiência: é viver na presença de Deus, é encontrar Deus em todas as coisas.

A mística é uma atitude diante da vida por parte de quem se permite à entrega do mistério e se deixa transformar por ela na vida concreta. É essa atitude fundamentada no mistério, vivida em profundidade, que é chamada de mística. Quando Karl Rahner chama os cristãos do futuro de místicos, ele quer dizer que eles viverão nessa verdade.64

3.2- Mística do seguimento de Jesus

Convocado pelo chamado: “Vem e segue-me”, o cristão sente-se impelido a fazer a

experiência profunda e marcante no seguimento a Jesus, “a chave e a síntese da existência cristã”.65 No “arder do coração”, aqueles que caminham com Jesus aprendem a ouvir, a

acolher, a partilhar e a testemunhar as maravilhas que Jesus reserva para os que o abraçam e o seguem. O seguimento de Cristo é uma exigência de fé.

Para Jon Sobrino, “o seguimento é categoria cristológica fundamental, lugar primigênio de toda epistemologia teológica cristã e princípio hermenêutico fundamental”.66 A

vida do cristão torna-se uma marca quando o compromisso de lançar as sementes e de cuidar delas o leva a abraçar o projeto do Reino de Deus, atuante na história, sobretudo, na vida e na história daqueles a quem foi negado o direito à vida plena e feliz. (Jo 10,10 e Mt 5,1ss) Os

místicos vivem a dinâmica da entrega de si mesmo, e atualizam o sentimento do apóstolo: “Já não sou eu quem vivo; é Cristo que vive em mim”.(Gl 2,20)

64 BORRIELO, L., CARUANA, E., DEL GENIO, M.R.; & SUFFI,N. Dicionário de Mística. p. 397.

65BOMBONATTO, Vera Ivanise. O compromisso de descer da cruz os pobres. Disponível em:

(33)

33

Aceitar o seguimento a Jesus “supõe a coragem de aceitar o desafio de lutar contra as

forças propulsoras do Anti-Reino”.67 Comprometido com o mandato de Jesus “Ide por toda a terra e anunciai o evangelho a todas as criaturas”(Mc 16,15), mesmo diante dos desafios e perseguições, o místico é aquele que encontra “luz diante das trevas” e sente-se chamado a fazer uma profunda experiência de Deus.

Para a teologia, a vida é o que de mais precioso Deus nos reservou, e por isso declarou a existência humana fruto do seu trabalho e criação (Gn 1). Neste sentido, o cuidado, ele o encarrega a todo ser vivo, para que não haja necessitados de qualquer espécie. Jesus ordenou aos discípulos dar de comer à multidão, e não mandá-la embora: “Dai vós mesmos de comer”

(Mt 14,13-21).

A mística cristã imbuída da mensagem de Jesus implica neste compromisso de transformação social, na busca da realização da justiça para os pobres e para toda a criação.68 A mística não é privilégio de alguns, mas uma dimensão humana à qual todos tem acesso. Karl Rahner inaugura uma maneira de compreender a experiência mística e afirma que a mística não pode ser elitista. Todo cristão é chamado a ser místico. Gustavo Gutierrez, em

uma das suas obras mais místicas, afirma: “Seguir a Jesus define o cristão”.69 Os pobres surgem como questão central da mística: “Com quem me identifico?” O Reino de Deus é dom gratuito e leva à transformação da pessoa que se identifica com o seguimento de Cristo e se coloca a caminho para contribuir nesta missão.

A mística do seguimento de Cristo implica abertura ao chamado, colocar-se, sentir-se participante e disposto a viver no aqui da história as Bem-aventuranças que Jesus prometeu. Acomodação e descompromisso, portanto, não se inserem na mística do seguimento. Não há espaço para atitudes contrárias.

67 BOMBONATTO, Vera Ivanise. O compromisso de descer da cruz os pobres.

68 BETTO, Frei & BOFF, Leonardo. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. p. 44.

(34)

34

3.3. - Teologia da mística

O núcleo místico do cristianismo se evidencia a partir da mensagem essencial de Jesus: o Reino de Deus está presente e se encontra dentro de vocês.70 Em sua pregação, Jesus não anunciou a si mesmo nem a Igreja, mas o Reino de Deus. Ele realizou-se em si. Viveu com intensidade e com imenso amor a serviço do Projeto Divino do Pai: o Reinado de Deus.

A obediência – escutar – de Jesus ao Pai, por amor, estabelece na relação do Pai com o

Filho o desejo de servir: “Cristo se fez obediente até a morte e morte de cruz” (Fl 2,8); “Desci

do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade de quem me enviou” (Jo 6,38); e “O mundo saberá que amo o Pai se faço como o Pai me ordenou.” (Jo 14,31). Toda entrega,

escuta e obediência que Jesus anunciou e realizou por causa do Reino tiveram inspiração em sua experiência mística, na união com o Pai.71

A presença ativa das três pessoas divinas nos místicos é uma verdade intensamente vivida,72 para que possam “ir e dar frutos” (cf. Jo 15), e se deixem transformar pelo amor

divino experimentando Deus manifestado no seu amor e por sua graça.

O Catecismo da Igreja Católica73 aponta o Cristo como centro da catequese. São diversos os documentos da Igreja no Brasil e na América Latina que destacam a importância do seguimento a Jesus, vivenciando, anunciando e testemunhando a pessoa de Jesus – assim como suas palavras, gestos e sua história – a fim de que muitos possam fazer o encontro

pessoal com Ele. Para o místico, o seguimento a Jesus é comprometimento, “procurando reproduzir a mística e a conduta do Mestre”.74

Os evangelhos sinóticos destacam que o lugar da pregação de Jesus foram os pobres, como representantes de uma classe social desprovida e desprotegida pela elite dominante da época. Era o reinado dos grandes e poderosos. Em contraposição a essa tal elite e porque veio

“dar vida para todos” (cf. Jo 10,10), Jesus anuncia o Reino de Deus. No anúncio da pessoa do Pai, Jesus O chamou de “Abba”, Pai amoroso. A intimidade de Jesus com o Pai, núcleo de sua

70 GRÜN, Anselm. Mística descobrir o espaço interior. São Paulo: Vozes, 2012. p. 29. 71 ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. São Paulo: Vozes, 1995. p. 63.

72 ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. p. 161. 73 Cat., 426.

(35)

35 mística, é a chave para anunciar libertação (cf. Lc 4), anunciar as bem-aventuranças (cf. Mt 5), como demonstração de que acredita na justiça de Deus aos pequenos. O místico cristão, no seguimento a Jesus e na sua dedicação ao compromisso com o Reino de Deus, precisa buscar

a “eficácia histórica75 a fim de que o ‘Deus do Reino’ possa realizar historicamente sua vontade para com a humanidade”.76

O Reino de Deus foi anunciado aos discípulos em parábolas para que compreendessem (Mt 13-31,35), e Jesus sempre comparava com situações do seu tempo. Mas é fato que o Reino de Deus se constrói no dia a dia, em palavras, atitudes, gestos de amor, de vida, de

perdão, gestos de levantar os caídos “à beira do caminho”. (cf. Lc 10,25-37)

Para a experiência mística de cada pessoa são necessários o interesse pelo Reino de Deus e a experiência do amor, da doação e do serviço. Como disse Jesus: “Se alguém quer ser

o maior, seja aquele que serve”. (Mc 9,30-37) Esta é a mística do Reino: “Eu tive fome e me

deste de comer. Tive sede e me deste de beber” (Mt 25,31-46).

Ao longo da trajetória do cristianismo muitos místicos, pessoas que experimentaram uma profunda relação com Deus, foram manifestando em suas vidas e no seu tempo um êxtase do amor de Deus. Muitos deles viviam em conventos ou monastérios e a partir da experiência de revelação de Deus em sua vida foram orientados a escrever o que de extraordinário lhes acontecia.

Na história do Cristianismo, desde o início encontramos exemplos de homens e mulheres que vivenciaram profundamente o Evangelho. Para os cristãos, é nele que se encontram os fundamentos da mística cristã. Por este motivo, é interessante notar como cristãos profundamente interessados em problemas sociais do seu tempo são conhecidos como os grandes místicos da história. No período antigo, vários são os místicos de referência. Para citar alguns: Inácio de Antioquia (35 d.C – 107 d.C.) e Gregório de Nissa (330-395), no Período da Patrística; Bernardo de Claraval77 (1090-1153), Hildegarda de Bingen78

75 ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. p. 164. 76 ESPEJA, Jesus. A espiritualidade cristã. p. 164.

77 LYON, Henry, L. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1990. p. 259.

Referências

Documentos relacionados

Neste trabalho, nós apresentamos: (1) uma pesquisa que indica o interesse dos performers em explorar as novas tecnologias mocap, e as barreiras de entrada em usabilidade que

Nessa situação temos claramente a relação de tecnovívio apresentado por Dubatti (2012) operando, visto que nessa experiência ambos os atores tra- çam um diálogo que não se dá

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

nesta nossa modesta obra O sonho e os sonhos analisa- mos o sono e sua importância para o corpo e sobretudo para a alma que, nas horas de repouso da matéria, liberta-se parcialmente

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

Figura 4– C-novo no solo g m -2 proveniente da parte aérea de arroz, sorgo e soja nas três frações físicas granulométricas nos solos Planossolo Arênico a, c, e e

Our contributions are: a set of guidelines that provide meaning to the different modelling elements of SysML used during the design of systems; the individual formal semantics for