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A Sílfide Morena Teresa Cabral: dança moderna e apagamento histórico em Salvador

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS CURSO DE DOUTORADO

ORIENTAÇÃO: ELIANA RODRIGUES SILVA

LAUANA VILARONGA CUNHA DE ARAÚJO

A SÍLFIDE MORENA TERESA CABRAL:

dança moderna e apagamento histórico em Salvador

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS CURSO DE DOUTORADO

ORIENTAÇÃO: ELIANA RODRIGUES SILVA

LAUANA VILARONGA CUNHA DE ARAÚJO

A SÍLFIDE MORENA TERESA CABRAL:

dança moderna e apagamento histórico em Salvador

Tese apresentada à banca composta pela Profª. Drª. Eliana Rodrigues Silva (orientadora), Prof. Dr. Raimundo Matos de Leão (PPGAC - UFBA), Profª. Drª. Daniela Maria Amoroso (PPGAC - UFBA), Profª. Drª. Rosa Cristina Primo Gadelha (UFC) e Prof. Dr. Arnaldo Leite Alvarenga (UFMG) como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Artes Cênicas.

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LAUANA VILARONGA CUNHA DE ARAUJO

A SÍLFIDE MORENA TERESA CABRAL:

dança moderna e apagamento histórico em Salvador

Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte Banca Examinadora:

_________________________________________________________

Profª. Drª. Eliana Rodrigues Silva (orientadora)

_______________________________________________________ Profª. Drª. Rosa Cristina Primo Gadelha (UFC)

________________________________________________________ Prof. Dr. Arnaldo Leite Alvarenga (UFMG)

________________________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Matos de Leão (PPGAC - UFBA)

________________________________________________________ Profª. Drª. Daniela Maria Amoroso (PPGAC - UFBA)

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Dedico esse trabalho aos discentes e colegas do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, pela paixão, empenho, alegria e responsabilidade com que temos rabiscado, ainda sem estrutura adequada, uma parte significativa da história da dança para além dos limites da capital do Estado. Com esse exaustivo trabalho de implantação, estamos juntos potencializando e fazendo florescer, mais de cinquenta anos depois da criação da Escola de Dança da UFBA, trabalho, criatividade e muitas danças em algumas das tantas cidades de nosso interior, cerceadas no seu potencial artístico pela falta de oportunidade, infraestrutura e acesso a informações e formação.

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A Eliana Rodrigues, pela confiança, incentivo e dedicação. A Teresa Cabral (in memoriam) e família.

Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, na sua coordenação e secretaria, sempre tão atenciosas e acolhedoras.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela concessão da bolsa de doutorado por período parcial de realização do curso de doutorado no PPGAC.

Aos membros da Banca Examinadora pela disponibilidade e colaboração.

Aos colegas de doutorado, pelos momentos juntos, partilhando experiências e vislumbrando horizontes tão diversos na escrita de cada um.

Aos professores amigos do PPGAC, que nos fazem trabalhar e renovar forças, companheiros nas disciplinas e grandes incentivadores.

A Solange Cintra Monteiro, Carla Leite, Monika Krugmann, Ligia Margarida Araujo, Carmen Lúcia, Nelma Seixas, Ana Lúcia Oliveira, Êmina Silva, Teresa Cintra, Lúcia Matos, Aroldo Fernandes, Leda Ornellas, Lícia Morais, Vera Andrade, Gizella e Rui Gigliotti pelo compartilhamento de experiências.

A Adriana Amorim, Roberto de Abreu, Carla Meira e Maria de Souza, colegas na UESB que, por necessidade, têm se desdobrado para sermos âncora um do outro nesta múltipla jornada de professores, gestores e doutorandos.

A Flaviana Sampaio, Aroldo Fernandes e Vânia Oliveira, companheiros de trabalho na UESB, sempre tão generosos e acolhedores.

Aos meus amores, Lua e Gordo, pela administração em família de tantos trabalhos e tantas viagens; por todo amor, cuidado e alegria que partilhamos na loucura de nossos diversos tempos-espaços-ações. A nossa Lua linda, que tem transitado por fases lindas nessa roda viva que é ter pais artistas. Aos dois, pela doçura, risos, brincadeiras e abraços, sempre!

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Só creio em trabalho que não envelheça. Que esteja sempre se renovando. Que caminhe para novas conquistas. Que tenha uma história para contar, que triunfe.

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A análise da trajetória profissional de Teresa Cristina Cabral Gigliotti à frente do Studio de Dança e do Grupo Studio caracteriza-se como um estudo de caso e uma pesquisa histórica de tendência crítico-analítica, englobando as esferas docente, criativa e coreográfica da dança moderna em Salvador da década de 1970. Metodologicamente, utilizo referências da micro história e história oral ao explorar o vasto acervo documental disponível e trabalhar com depoimentos, de modo que aspectos políticos e socioculturais daquela década sejam desnudados e um olhar mais abrangente sobre a comunidade da dança onde Teresa Cabral estava inserida torne-se possível. Dialogarei, entre outros, com os seguintes autores: Jeanne-Marie Gagnebin, José Miguel Wisnik, Ronaldo Vainfas, Lia Robatto e Lúcia Mascarenhas, Carmen Paternostro Schaffner, Teresa Cabral e Martha Graham. Considero como elementos essenciais para a análise proposta as seguintes características na sua trajetória profissional: identidade artística moderna, fundamentada numa visão prospectiva da vida, integrada ao ser social nas perspectivas de transcendência, humanização e coletividade defendidas por Roger Garaudy (1980); a bem sucedida relação entre suas proposições estéticas e profissionais e a sociedade soteropolitana da década de 1970; a dissociação entre seu trabalho e os princípios políticos e estéticos da dança pós-moderna; a credibilidade dos trabalhos do Studio de Dança e do Grupo Studio entre seus pares, ao agregar profissionais de referência histórica para a dança soteropolitana nos seus quadros de trabalho; as competentes articulações política e jornalística nas esferas local, nacional e internacional; o reconhecimento de seus feitos por meios de prêmios e convites profissionais; sua atuação concomitante no quadro efetivo de professores da Escola de Dança da UFBA.

Em contradição a todos esses dados, identifico a quase completa ausência de memória dessas realizações entre a comunidade de dança de Salvador e seus registros escritos. Minha hipótese é que houve um processo de apagamento histórico de Teresa Cabral do contexto profissional da dança em Salvador da década de 1970, decorrente da independência da mesma em relação aos princípios estéticos e políticos difundidos pela dança conceitual dos Estados Unidos na década de 1960 (em franca exploração em Salvador na década de 1970). Nesse contexto, uma dança que não respondesse à vanguarda estética do momento e que estivesse dissociada de um discurso político explícito não poderia ter visibilidade.

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The analysis of Teresa Cristina Cabral Gigliotti‟s professional trajectory ahead of the Dance Studio and Group Studio is characterized as a case study and a historical research with a critical-analytical tendency, comprising the educational, creative and choreographic spheres of modern dance in Salvador in the 1970s. Methodologically, I use micro history and oral history references to explore the vast collection of documents available and to work with testimonials, so that political and socio-cultural aspects of that decade can be denuded and a comprehensive look about the dance community wherein Teresa Cabral was inserted becomes possible. I will consult, among others, the following authors: Jeane-Marie Gagnebin, José Miguel Wisknik, Lia Robatto and Lúcia Mascarenhas, Carmen Paternostro, Teresa Cabral and Martha Graham. I consider as essential elements to the proposed analysis the following characteristics in her career: modern artistic identity, based on a prospective view of life, integrated in the social being in the perspectives of transcendence, humanization and community defended by Roger Garaudy (1980), the successful relation between her aesthetic and professional propositions and Salvador‟s society in the 1970s, the dissociation between her work and the political and aesthetic principles of postmodern dance, the credibility of the work of the Dance Studio and the Group Studio among its peers, to accrete professional of historical reference for Salvador‟s dance on its work boards, the competent political and journalistic articulations in the local, national and international spheres, the recognition for her achievements by means of professional awards and invitations; her concomitant action with tenured teachers of the School of Dance of Federal University of Bahia.

In contradiction to all these data, I identify the almost complete absence of memory of these achievements between the dance community of Salvador and her written records. My hypothesis is that there was a process of historical erasure of Teresa Cabral's professional context of dance in Salvador in the 1970s, due to her independence in relation to aesthetic and political principles broadcast by conceptual dance of the United States in the 1960s (in open exploration in Salvador in the 1970s). In this context, a dance that did not respond to the aesthetic forefront of the moment and that was dissociated from political speech could not have explicit visibility.

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Página

1 INTRODUÇÃO 11

1.1 UM ENSAIO COM HISTÓRIA (e) PRÁTICA DA DANÇA 16

1.2 UMA PROPOSTA, OUTRA HISTÓRIA 20

1.3 POR PARTES 22

2 UM POUCO DE MEMÓRIA PARA A DANÇA 28

2.1 COMO É POSSÍVEL EXISTIR? 33

2.2 DIALOGANDO COM A MICRO HISTÓRIA E A HISTÓRIA ORAL 53

3 CONCEITOS, PRINCÍPIOS E APLICAÇÃO DA DANÇA 61

3.1 A DANÇA E SEU CONTEXTO EXPRESSIVO, POR TERESA CABRAL 62

I. INTRODUÇÃO 63

II. A APLICAÇÃO DA DANÇA NA EDUCAÇÃO 65

III. OBRA DE EVOLUÇÃO 69

IV. CONSIDERAÇÃO DA DANÇA MODERNA 79

V. O COMPORTAMENTO DO DANÇARINO PROFISSIONAL 81

VI. ILUSTRAÇÕES E ANOTAÇÕES 87

VII.CONCLUSÃO 96

VIII. BIBLIOGRAFIA 99

3.2 ELEMENTOS-CHAVE DO PENSAMENTO DE TERESA CABRAL

SOBRE A DANÇA 99

4 A GÊNESE PROFISSIONAL DE TERESA CABRAL 107

4.1 ESCOLA DE DANÇA DA UFBA E GRUPO DE DANÇA

CONTEMPORÂNEA 112

4.2 A TÉCNICA E A POLÍTICA NA DANÇA 142

4.3 ALGUMAS NARRATIVAS 157

5 DOS ESTADOS UNIDOS PARA O CORAÇÃO DE SALVADOR 173

5.1 QUANDO A PERSONALIDADE SE INSTITUCIONALIZA 192

5.2 GRANDES AÇÕES GERAM GRANDES RESULTADOS 210

6 É POSSÍVEL IR ALÉM? 233

6.1 UM NOVO STUDIO DE DANÇA 234

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7 DEPOIS DO STUDIO DE DANÇA 286

7.1 NA ACADEMIA BAIANA DE BALLET E MOVIMENTO 287

7.2 NA ESCOLA DE DANÇA DA UFBA 289

TERESA CABRAL: EXISTÊNCIA, APAGAMENTO E REGISTRO 303

REFERÊNCIAS 310

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1

INTRODUÇÃO

Imagem 2

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Sou baiana, de Jacobina. Eu e minha família mudamos para Salvador quando estava perto de completar quatro anos. Estou entre aquelas crianças que desde cedo pedem para fazer dança. Por dificuldades financeiras e pouca sensibilidade artística na família, iniciei meus estudos quando fui sozinha fazer minha matrícula na Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) aos doze anos. Antes de entrar na faculdade de dança, fiz, portanto, apenas cursos livres e preparatórios de forma intermitente, já que o foco familiar eram os estudos regulares para carreiras financeiramente bem sucedidas - estudos estes pagos com esforços descomunais e que foram também imprescindíveis para o meu desenvolvimento profissional na dança. A responsabilidade, entretanto, de honrar com os esforços visíveis dos meus pais para que eu tivesse uma educação de qualidade é um referencial emocional evidente na minha trajetória.

Em 1999, ao adentrar o universo acadêmico da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), aos dezenove anos, deparei-me com um quadro múltiplo de opções técnicas e criativas, sem, no entanto, ter referenciais que possibilitassem identificá-las em técnicas, estilos e ou expoentes. As disciplinas criativas de alguma forma seguiam um curso majoritariamente fluido, uma vez que um grupo de professores as conduzia com alguma sintonia. As disciplinas de técnicas corporais (dança moderna, balé e condicionamento físico), por outro lado – e chocando-se com a insipiente experiência técnica que eu possuía – apresentavam-se sem qualquer direcionamento que as ligasse entre si e apontasse para mim uma possibilidade de convivência tranquila e, quem dera, algum aprendizado menos sofrido. Nesse sentido, aproveitei as vivências criativas com ótimo desempenho e muito prazer. Já as disciplinas técnicas me rendiam provas finais, angustia e até choro no meio da aula, para desconcerto e preocupação de um professor amigo (Antrifo Sanches).

Em paralelo a essa vivência dicotômica entre processo criativo e técnicas de dança, sempre ouvia falar do status que aquela escola carregava – a primeira escola de dança de nível superior do país; da existência, no passado, do Odundê (grupo que conseguiu levar para a faculdade elementos da cultura popular regional); via os quadros dos espetáculos do Grupo Experimental de Dança, de Lia Robatto – sem sabê-los e nem imaginar que virariam meu objeto de estudo do Mestrado; uma ou outra foto de Yanka Rudzka e Rolf Gelewski sem qualquer identificação ou menção às suas funções e permanências na escola. Ainda assim, outros profissionais, como Klauss Vianna e Clyde Morgan, eram totalmente desconhecidos para mim.

No meio do turbilhão prático, tudo ia muito bem nas disciplinas teóricas – até hoje desconfio que passei em primeiro lugar no concurso vestibular, primeiro pelas provas teóricas

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da primeira fase, deixando algum mérito para as provas criativas da fase seguinte. Atrelando aptidão e curiosidade, cursei uma disciplina teórica ministrada pela professora Dulce Aquino:

História da Dança Brasileira. Fiquei completamente envolvida com o programa do curso.

Minha curiosidade em conhecer a história da dança em Salvador só aumentava as esperanças de me encontrar naquele lugar. Nesse contexto, outra vez, incongruências vinham a minha mente: por que, então, a capoeira, as danças populares estavam tão distantes daquilo que me propunham enquanto aprendizado? Por que aquelas mulheres que compuseram o Odundê estavam atuando em setores administrativos da escola, e não nas salas de aula? Por que muitos professores não conseguiam manter um trabalho artístico em paralelo ao fazer docente? Por que as disciplinas técnicas eram completamente fragmentadas em estilos, fundamentos e objetivos particulares? O que existia no passado que promovia tanta glória e reconhecimento àquela escola? Numa conversa com um colega (Daniel Moura), descobri que existia um programa de iniciação científica com inscrições abertas, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). Fui até a professora e propus estudar a história da dança em Salvador, atrelada à origem da Escola de Dança da UFBA. Começou então, em 2002, meu mergulho na pesquisa histórica e acadêmica. Descobri um universo novo, com livros, arquivos institucionais e pessoais, fotos e documentos que mostravam uma parte da trajetória, planejamento e execução de atividades ligadas à dança, histórias e pessoas tão próximas (por conhecimento e vivências) e tão distantes (por afastamento opcional e esquecimento) do meu universo pedagógico e artístico em dança. No final de 2003, conclui o curso de Licenciatura em Dança, assim como meu processo de pesquisa. Fui, sem pausa, caminhando pela História da Dança em Salvador na especialização, mestrado e agora, doutorado.

No momento da especialização (Estudos Contemporâneos em Dança, UFBA, 2004), comecei a direcionar ativamente meus estudos e tive a oportunidade de conhecer a professora Eliana Rodrigues que, antes, me escapuliu pelos dedos na tormenta de minha graduação e, ali, semeou meu olhar para uma duradoura, sensível e humana orientação, que me conduziu até aqui.

Também tracei minha meta de conquista acadêmica de dois outros professores. O primeiro, imprescindível, também não participou de minha graduação: o tão querido e apaixonante professor de filosofia, José Antônio Saja, sobre o qual eu ouvia histórias de salas sempre lotadas de alunos regulares e tantos outros que simplesmente queriam estar ali para escutá-lo. Com a turma da especialização não foi diferente, cativando a todos com suas perguntas e colocações sempre inquietantes. Pela sensibilidade da coordenadora do curso,

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professora Lúcia Lobato, ele se tornou meu orientador. Trabalhamos muito para entender um pouco o processo de criação do curso de dança da UFBA por Yanka Rudzka e problematizar a aplicação do conceito de vanguarda artística naquele contexto. O segundo professor almejado, Antônio Albino Canelas Rubim - estudioso da cultura na Bahia - fizera parte do corpo docente da especialização em 2003, porém se ausentou naquele ano e somente entraria para a minha história durante o mestrado.

O ano de 2005 foi um período de gestação, não só biológica, mas do meu projeto para o mestrado, elaborado ao tempo em que cursei disciplinas como aluna especial no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UFBA. Lá, reencontrei Eliana Rodrigues, como professora de Análise crítica da dança e, depois, de Trabalho individual orientado, quando finalmente, pude definir meu objeto de análise.

Naquele momento, meus questionamentos finalmente estavam associados a uma experiência criativa em dança, como coreógrafa do espetáculo Primeiro de abril – obra teatral do grupo Vilavox, com texto e direção de Gordo Neto, com estreia no Teatro Vila Velha em 2004. Pensar a dança em Salvador no período da ditadura militar no Brasil era instigante e conduzia a análise histórica para outro foco, que não o universo acadêmico da UFBA. Entretanto, pela conformação histórica da dança em Salvador, esse distanciamento mostrou-se impossível, principalmente pelo intervalo temporal em questão: nas décadas de 1960 e 1970, o corpo profissional da dança em Salvador estava ainda muito entrelaçado, seja pela real vivência universitária, ou por projetos artísticos e pedagógicos compartilhados.

A questão da escassa literatura histórica sobre dança fez-me voltar àquele que considero um guia da história da dança em Salvador, porque se propõe a fazer um mapeamento de sua trajetória até 2002, abordando a cronologia e o desenvolvimento da dança em todas as suas esferas profissionais: Passos da Dança – Bahia, de Lúcia Mascarenhas e Lia Robatto. Evidentemente, pela extensão da abordagem, há lacunas, mas para além de qualquer defeito ou incoerência, há, nesta obra, um trabalho precioso de registro e memória que pode oferecer as primeiras pistas para tantas histórias que precisam ser contadas e discutidas pela classe profissional da dança. Comprei-o diretamente de uma das autoras, Lúcia Mascarenhas, no pátio de entrada da Escola de Dança da UFBA, quando ainda era estudante. Desde então, ele tem me auxiliado sempre. No mestrado, não foi diferente: buscando a produção coreográfica no período da Ditadura, conheci o Grupo Experimental de Dança (GED) que, por sua vasta produção, tornou-se o foco de minha análise. Finalmente poderia conhecer e conversar com aquela que, na ausência de Yanka Rudzka, foi uma das pessoas que colaborou de forma tão extensa e multiplicadora para o desenvolvimento da dança em Salvador, Lia

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Robatto. Também, pela necessidade de aprofundar meus conhecimentos nas esferas política e cultural, fiz uma disciplina com o professor Albino Rubim, que juntamente com o professor Saja comporia minha banca examinadora no Mestrado. A dissertação, orientada pela Professora Doutora Eliana Rodrigues, foi adaptada e publicada pela Editora da UFBA (EDUFBA) em 04 de dezembro de 2012, com o título Lia Robatto e o Grupo Experimental de

Dança – Estratégias poéticas em tempos de Ditadura. O lançamento aconteceu num evento

chamado Conversas Plugadas, do Teatro Castro Alves (TCA), que estava homenageando Lia

Robatto1 e consiste, como o nome sugere, num encontro onde aspectos da trajetória

profissional do convidado são discutidos de forma fluida com a plateia. Lia Robatto contou com o Professor Saja como mediador e apresentou ou público o documentário Lia Robatto recém-lançado pela São Paulo Companhia de Dança dentro do Projeto de memória Figuras da

dança, coordenado por Inês Bogéa. O documentário vem acompanhado por um artigo

referente ao profissional da dança, que neste caso, foi escrito por mim com o título Onde cabe

Lia Robatto?.

Assim, meu caminho até a metade da graduação foi muito solitário. Vaguei num misto de medo e desejo que, somente pela esfera do sensível, sou capaz de explicar a capacidade de resistência. Não havia com quem conversar e eram tantas novidades que por muito tempo simplesmente fui escutando, sem conseguir elaborar relações no sentido elementar da palavra. Começar a fazer perguntas foi o que me tirou desse ostracismo. Sem dúvida, já compreendo algumas questões, outras precisam ser aprofundadas. A paixão pela pesquisa e a habilidade nos setores teóricos deram foco ao meu percurso e à profissional que sou hoje. Atuo como professora nos cursos de Licenciatura em Dança e Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Morando em Salvador, viajo toda semana para colaborar na consolidação do segundo curso de graduação em Dança do estado. Criado tardiamente, esses cursos estão possibilitando formação na área para pessoas de diversas cidades próximo à Jequié e mesmo do sul do Estado. Como artista, continuo coreografando para teatro, dirigindo espetáculos vinculados ao curso, porém sem possibilidades, ainda, de administrar minha atuação como dançarina flamenca. Embora não esteja emocionalmente

1

Produções textuais referentes aos estudos citados: relatório A produção artística de dança na Bahia [1940 a 1956] (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica –PIBIC, 2002); monografia Graal – O Segredo da Dança na Bahia: a noção de vanguarda artística aplicada à Escola de Dança da UFBA (Especialização Estudos Contemporâneos em Dança, UFBA, 2004; publicado em LOBATO, 2005); dissertação Estratégias poéticas em tempos de Ditadura: A experiência do Grupo Experimental de Dança de Salvador – BA (Mestrado em Artes Cênicas, UFBA, 2008); livro Lia Robatto e o Grupo Experimental de Dança – Estratégias poéticas em tempos de Ditadura (EDUFBA, 2012).

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satisfeita com esse desequilíbrio teórico-prático, compreendo meu contexto de origem, meus caminhos e minhas opções como algo importante e em processo.

O flamenco integra minha existência, não nas suas formas tradicionais, mas no que possui de dramaticidade, força e concentração – que vai da grande alegria e sedução ao sofrimento e dor incomensuráveis. Tenho refletido sobre o quanto estou, por meio do flamenco, ligada aos princípios da dança moderna, esta que nos orientou na Escola de Dança desde sua fundação até há pouco tempo.

1.1 UM ENSAIO COM HISTÓRIA (e) PRÁTICA DA DANÇA2

Toda narrativa é um ponto de vista e, quando esta adentra o espaço-tempo do corpo, ganha conotação nômade e ancestral.

A pesquisa histórica em dança realizada por um profissional cuja área de atuação é primordialmente a própria dança reflete uma tarefa apaixonada e, ao mesmo tempo, árdua porque encontra ressonância na experiência encarnada do corpo. Ainda que se pudesse optar por uma metodologia absolutamente objetiva e imparcial, as grandes questões inevitavelmente passarão pela vivência cênica. Este é, talvez, um exemplo de estudo no qual podemos trabalhar na perspectiva da alteridade. Não há como olhar o outro, senão através de si. As perguntas surgem em lacunas da vivência estética e as respostas são vasculhadas segundo uma ideia de correspondência atemporal entre presente, passado e futuro. A tarefa de rememorar se atém superficialmente em imagens do passado, mas tem seu foco no vir a ser. Nada é estanque. O corpo enquanto engrenagem incansável elabora e reelabora experiências em busca de textos propositivos.

A labuta do historiador transita entre as estantes de narrativas oficiais, a existência e competência do registro iconográfico, a subjetividade e a memória daquele que narra fatos e contextos (de forma oral ou escrita) e o universo complexo do próprio historiador que tem questões a fazer e mistérios a desvendar.

Aquele que é considerado detentor de informações, registros e rastros históricos ganha status e responsabilidade ao socializar esses conhecimentos. Sua prática é permeada por imagens, sensações, impulsos emocionais e racionais, além de transparência do inconsciente.

2 Este item reflete a problematização de questões, análises e experimentos elementares desta pesquisa durante a disciplina Processos de encenação (2010.2), ministrada pela professora Doutora Sônia Rangel.

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A história, por si só é oca; serve às traças. Assim como uma pintura perdida no tempo, que passa a existir e recuperar sua memória quando “descoberta”, também as vivências demandam o esforço do registro e da socialização.

Debruçando-se sobre a mecânica da memória, Gaston Bachelard situa sua âncora não no tempo, na cronologia, mas no espaço solidificado pela imagem:

O inconsciente permanece nos locais. [...] Localizar uma lembrança no tempo não passa de uma preocupação de biógrafo e corresponde praticamente apenas a uma espécie de história externa, uma história para uso externo, para ser contada aos outros. [...] mais urgente que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços da nossa intimidade. (BACHELARD, 1989, p.28-29)

Com essa afirmação, o autor adentra o lugar da historiografia de forma fascinante, alimentando a negação do paradigma da história autenticada por fatos, datas e documentos. A valorização do sujeito e sua subjetividade assumem a base da ação de rememorar, perdida no tempo, mas salvaguardada pelas imagens únicas, pessoais. Nesses termos, ele afirma que há nos historiadores um pouco de poetas.

Compactuando com essas ideias, Michel Maffesoli (2005, p.120) conceitua realidade como reunião de pequenas histórias que caracterizam determinada sociedade em seu tempo e complementa: “Aquilo que existe, aquilo que chamamos de realidade, contém uma parcela de quimeras, imaginações ou, para retomar um lugar comum, de inconsciente, que não pode ser negligenciada.”

Todos os trânsitos de subjetividade merecem atenção. Como, então, dar substância a todos esses elementos do fazer histórico? Quais princípios os unem? Estaria a historiografia da dança a serviço da sua prática docente ou cênica, enquanto modelo e regra a serem seguidos ou desobedecidos? Ou ainda: o esforço daquele que labuta na prática cênica deve ser o de deixar provas dos seus feitos para a contemplação pela posteridade?

Resolvi recentemente colocar todas essas questões em mim – uma múltipla exposição. Eu, cobaia de minha própria incursão científica. Tomemos a exposição como condição sine

qua non da arte. Até que ponto deve ir a exposição do artista? Qual sua real carga de

comunhão com seu texto, com sua personagem? Até que ponto sua arte alimenta a busca primordial?

Questões filosóficas essenciais alinhavam realidade e imaginário, experiência e devir, individualidade e cosmos. Seja na dança, ou na vida, das mais simples às mais complexas, as perguntas elaboradas pelo homem refletem um desejo de entendimento e integração com o

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tempo, ainda que o que se encontre seja plural. Novas metas serão traçadas, em sintonia ou à revelia dos indícios, que nunca somem completamente.

Na dança flamenca, o corpo trabalha como um vulcão prestes a explodir, como uma flecha no instante anterior de lançar-se ao alvo. Forças contrárias alimentam uma postura esguia numa sequência de contrações sutis. Os pés têm uma função vertiginosa de ligar a dançarina ao seu centro e ao centro do universo por meio do sapateado vigoroso. Um mecanismo circular aciona o alongamento da coluna, o rebaixamento dos ombros, a insinuação do pescoço e cabeça, em contraponto com a força da gravidade e a expansão do peito, que estimula uma leve transferência de peso para frente. Braços controlados e em suspensão armada ativam um mecanismo dinâmico que lembra a destreza de uma ave em conversões ágeis e precisas. A força é concentrada e direcionada à terra, ao enraizamento. Um dos princípios da historiografia é a integração corpo-raiz, posto que cada indivíduo busque no outro vestígios de si. Nessa tensão ancestral holística se concentra a carga de experiência e maturação do homem, externada pela densidade dramática e extrema passionalidade.

De modo aparentemente paradoxal a essa ideia de enraizamento, a estrutura corporal do flamenco em suas evoluções de sapateado e giros pode provocar no corpo uma crescente concentração de energia, que em grande proporção pode estabelecer no intérprete o estado de vertigem, no sentido de unidade do corpo histórico. Nesses termos não há incongruência. Bachelard (1990, p. 244) explica: “Na vida da metáfora, há como que uma lei da ação e reação: buscar a terra estável, com um grande desejo de estabilidade, é tornar estável uma terra fugidia. O ser mais móvel deseja ter raízes”.

O que aconteceria ao estimular, criativamente, as minhas elaborações sobre história da dança, memória, rastro, fatos e registros; minha experiência enquanto dançarina de Flamenco; minha busca teórica sobre a dança moderna de Teresa Cabral em Salvador da década de 1970, meu rastro ancestral espanhol, minha experiência de vida no trânsito interior-capital com todo o imaginário que guardo das narrativas familiares?

A investigação artística estabelece um estado de alerta, de tensão criadora. O ato inventivo só se manifesta porque há uma ideia em processamento interno, que, segundo Maffesoli (2005, p. 152-153), pode não estar tão explícita: “Inventar é descobrir aquilo que pode estar oculto mas que, nem por isso, está menos presente, em recantos esquecidos e, por vezes, obscuros”.

No meu experimento, o princípio do equilíbrio entre teoria e prática imediatamente acionou o diálogo entre realidade e invenção. O rigor científico da análise histórico-crítica cedeu lugar aos pontos de interseção entre a dramaticidade da dança moderna e da dança

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flamenca. Reflexões sobre termos como memória, rastro, raiz, verdade, fato, registro foram

contemporizadas pela possibilidade da interpretação3 e das imagens que criei a partir das

narrativas familiares no interior da Bahia. Sem preconceito ou resistência, estimulei o

princípio da invenção4 na trama histórica. Quais imagens eu havia criado? Em que medida

elas correspondiam aos dados reais, comprováveis? Qual a importância disso no processo criativo que estava estimulando? O resultado disse seria história ou imaginação?

A imagem da Cigana concentrou todos os princípios e conceitos desse processo de centramento artístico. Bachelard (1990, p. 225) afirma que “tudo começa, mesmo na experiência, por imagens.” A Cigana é aquela que pressente o futuro, que domina o passado, que vaga destemida pelas trilhas da humanidade, que escreve sua história no corpo e no caminho que pisa sem apego, que elabora a memória na coletividade, que tem como verdade a experiência do instante, que tem no ritmo e na beleza o rastro da existência, que tem na serenidade e na ousadia o destemor diante da vida e da morte. Rangel (2006, p.1) explica “[...] a imagem como um grande operator que faz livres conexões, extrapola o simbólico, vai além do psicológico, para aproximar-se do jogo como invenção, intermediação entre conhecido e desconhecido no devir da poética.” A potência libertadora da imagem poética transgride o espaço da conveniência social e permite a exploração de uma rede múltipla de existências.

A Cigana acionou meus sentidos, alinhavando minhas experiências como historiadora e artista. Além de me posicionar num outro ângulo na avaliação daquele que fala e rememora experiências de vida, ampliou minha compreensão do que venho investigando esteticamente. Ao me expor em trânsito, em busca, experimentando o lugar da recusa, da não fixação, deparei-me com a potência do reconhecimento, da criatividade e da ludicidade. Olhar para mim sob esse viés nômade trouxe generosidade e respeito não só por aqueles que me privilegiam com o compartilhamento de suas vivências, quanto comigo mesma, ao acolher intuições e ímpetos criativos no meu labor coreográfico.

Nesse sentido, a valorização das ideias de trânsito e de caminhada na potencialização e convocação do sujeito criador são levantadas por Rangel (2006, p.2) quando pondera sobre a relação enquadramento versus sensação de deslocamento/desvio; por Maffesoli (2005, p.130) na referência à intuição como “sedimentação da experiência ancestral” (saber incorporado); por Jung (1978, p.209), quando afirma que o futuro se prepara com antecedência no

3

O termo está sendo usado no sentido aplicado por Luigi Pareyson (2005, p.03) no prefácio do livro Verdade e Interpretação: “[...] aquela solidariedade originária entre pessoa e verdade [...]”, vislumbrando “[...] a possibilidade de um diálogo entre as diversas perspectivas pessoais, desde que finalmente se abandone a concepção objetiva de verdade”.

4 O termo está sendo aplicado segundo MAFFESOLI (2005, p. 129): “[...] se a palavra „invenção tem um sentido, este é bem o de fazer vir (in-venire) à luz aquilo que existe, e já está aí”.

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inconsciente; por fim, por Bachelard (1989, p.31), quando enaltece o devaneio do caminho, almejando que “toda pessoa deveria então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus bancos”.

Os caminhos de devaneio estético que trilhei como Cigana pontuaram muitos aspectos familiares, desde a rememoração, apropriação e reinvenção de histórias alheias, ou a autovalorização na busca particular pela minha árvore genealógica e suas analogias com os ciganos; também reacenderam a coragem de lançar-me em terras desconhecidas da invenção e criatividade, por dar-me a mão e ler o destino do meu desejo. A Cigana representou o “de

repente”5

, o insight, o espelho que refletiu minha identidade e ancestralidade, que autenticou a permissividade para a desmedida cênica.

Do resultado, já não interessa se aquilo que mostrei em cena é exatamente como as palavras da minha mãe ou da minha tia. Já não cabe contestar a imagem romântica que fiz da casa natal. Não é transgressora, nem desafiadora a pergunta da plateia quanto à veracidade dos fatos contados ou à curiosidade em saber o quanto daquilo foi experimentado por mim ou por outros familiares. Importa o quanto tudo isso ativa no espectador a reflexão, a identificação e o estimula na busca permanente. Bachelard (1989, p.31) explica que “o que comunicamos aos outros não passa de uma orientação para o segredo, sem, contudo, jamais poder dizê-lo objetivamente”. O que dancei está em mim e é verdade. Palavra de historiadora!

1.2 UMA PROPOSTA, OUTRA HISTÓRIA

Em maio de 2008, fui procurada por Teresa Cristina Cabral Gigliotti (1948 - 2008) - que será nominada apenas Teresa Cabral durante o desenvolvimento desta tese, modo como era conhecida profissionalmente - para realizar um trabalho biográfico referente à criação de um Centro de Memória da Dança em Salvador, projeto concebido e coordenado por ela e

Solange Cintra Monteiro6. A primeira ação seria a escrita de sua biografia, com base no

extenso acervo documental que a mesma acumulou ao longo de sua carreira profissional. Tal proposta de investigação e escrita biográfica sobre Teresa Cabral era concernente com a minha linha de pesquisa e possibilitaria a continuidade do trabalho com pesquisa histórica em dança que tanto me alimenta e instiga.

5 Faço aqui uso do termo utilizado em análise de criação literária por Francisco Bosco, transpondo-o para a realidade de trânsito proposto aqui entre o fazer teórico e prático da dança: “O tempo de passagem da leitura [TEORIA] à escrita [PRÁTICA] é este „de repente‟ [...]” (BOSCO, 2007, p. 40).

6 Amiga de Teresa Cabral desde a década de 1960, quando integraram o elenco do Grupo de Dança Contemporânea da UFBA.

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A dança, em Salvador dos anos 1970, estabeleceu um quadro peculiar de rico desenvolvimento, diferente das outras linguagens artísticas, sufocadas pela censura militar: Carlos Moraes teceu o elo entre as danças populares dos grupos folclóricos e o balé clássico da Escola de Balé do Teatro Castro Alves (EBATECA), inventando o perfil estético do Balé Brasileiro da Bahia (BBB); em 1972, Laís Salgado Góes - Chefe do Departamento de Dança da Escola de Música e Artes Cênicas (EMAC) da UFBA - contratou Clyde Morgan (ex-dançarino da companhia de José Limón) para dirigir artisticamente o Grupo de Dança Contemporânea (GDC); o Grupo Experimental de Dança estava em fase de plena produtividade e diversidade estética, somando doze espetáculos na década; Marta Saback criou sua companhia (O Grupo) em 1974; em 1977 a Escola de Dança da UFBA lançou o Concurso Nacional de Dança Contemporânea e Carmen Paternostro estruturou o grupo Intercena; o espaço da dança em espetáculos de teatro cresceu significativamente, de vinte (20) espetáculos na década de 1960 para setenta (70) espetáculos na década de 1970; a dança

passou a integrar o espaço da educação formal nas escolas da rede estadual de ensino.7

As primeiras escolas e academias de dança particulares criadas no início da década de 1970, segundo Robatto e Mascarenhas (2002) foram a Academia Belly Barbosa (1971), o Studio de Dança (Teresa Cabral - 1972) e a Flicts (Êmina Almeida Silva - 1974). Todas priorizaram, nas suas dependências, o espaço para a pesquisa estética e vivência artística - em paralelo com a função docente - por meio de seus respectivos grupos de dança.

Teresa Cabral formou-se na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia entre os anos de 1963 e 1970 sob a influência predominante da dança moderna expressionista alemã. Nos Estados Unidos, em 1971, investiu em intensa formação na escola de Martha Graham. Nesse mesmo ano fez cursos nas escolas de Alvin Ailey (balé clássico, dança moderna e jazz) e Merce Cunningham (pioneiro da dança pós-moderna).

Nesses termos, o estudo da trajetória de uma profissional que acumulou tal formação, estruturando tão logo uma carreira sólida nas esferas de criação, atuação e ensino (particular, público e de nível superior) da dança, sem dúvida abarca o contexto e um recorte expressivo do desenvolvimento da dança em Salvador naquela década.

7 Para um estudo mais abrangente do desenvolvimento da dança em Salvador na década de 1970, consultar ARAUJO (2012).

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1.3 POR PARTES

Trata-se, portanto, de uma pesquisa histórica de tendência crítica e analítica. Consiste num estudo da trajetória, processos criativos e coreográficos, bem como de formação e oferta da dança moderna em Salvador, a partir de seu desenvolvimento na década de 1970. Configura-se também como um estudo de caso, na medida em que privilegiou uma análise da experiência de Teresa Cabral com a dança moderna em ambientes profissionais particulares. O objeto de estudo é, portanto, a dançarina, coreógrafa e professora Teresa Cabral. O contexto da análise abarca especificamente o Studio de Dança e o Grupo Studio de Dança Contemporânea. Como parte significativa de existência profissional, o extenso percurso de Teresa Cabral na Escola de Dança da UFBA como aluna, dançarina do GDC e integrante do corpo docente - onde concentrou sua atuação profissional a partir de meados da década de 1980 até sua aposentadoria, serão abordados em afinidade com a busca de suas especificidades no Studio de Dança e Grupo Studio, de forma a colaborar para a leitura de suas andanças.

A proposta metodológica da micro história (VAINFAS, 2002) considera a análise documental de uma determinada personalidade histórica como possibilidade de se compreender seu contexto. Ao tentar entender sua história em particular, aspectos políticos e socioculturais são desnudados e um olhar mais abrangente sobre aquela comunidade torna-se possível. Nesse sentido, ao analisar a trajetória profissional de Teresa Cabral, será possível compreender como a vertente do ensino da dança moderna em Salvador, atrelada ao trabalho artístico de grupos de dança, se desenvolveu em Salvador na década de 1970.

O extenso acervo documental existente e trabalhado na primeira etapa da pesquisa, além de se configurar como recurso pertinente à aplicação da metodologia micro histórica, possibilitou o mapeamento de uma rede de profissionais atrelada à Teresa Cabral e ao contexto do ensino particular da dança em Salvador. São poucos os documentos referentes ao Studio de Dança enquanto instituição de ensino, servindo os programas de espetáculos e artigos de jornais como orientações para a estruturação desse espaço de ensino, seu perfil estético e metodológico, seus corpos docente e discente e a influência de seus ensinamentos na carreira de alguns profissionais locais.

Segundo aspectos da proposta metodológica da História Oral (CALDAS, 1999), o depoimento das personalidades históricas é de grande valia, devendo, por seus princípios, guiar a construção textual, uma vez que, depois de diversos encontros de entrevistas gravadas e transcritas, ocorre a transcriação, que consiste na arrumação de tais entrevistas, de modo

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que o texto final seja a voz direta do entrevistado, não secundarizada na voz do historiador. Entretanto, sua aplicação de forma estrita não se ajusta a esta tese, no que se refere ao depoimento de Teresa Cabral, uma vez que a mesma faleceu após o início deste trabalho, quando eu ainda me dedicava à organização do acervo documental. Sua morte prematura provocou grande lacuna nesse sentido, pois o acesso a informações e impressões particulares que possibilitariam analogias com os registros existentes tornou-se impossível pelos trâmites tradicionais da entrevista. Ainda assim, e baseando-me na proposição metodológica da

história oral, busquei uma forma de sua fala existir e ser registrada neste trabalho, adaptando

o conceito da transcriação enunciado acima. Isto porque, além de algumas entrevistas publicadas nos jornais da época, Teresa Cabral construiu uma tese sobre a dança quando pleiteou o cargo de professor assistente na UFBA em 1974. Utilizar esse texto de modo tradicional, recortando-o e selecionando trechos específicos para serem debatidos e associados a outros autores restringiria a possibilidade de acesso ao seu jeito de escrever e, principalmente, a forma como ela pensava e dialogava com a dança naquele momento. Optei, portanto, por trazê-lo na íntegra, sem a condução do meu olhar, para só depois analisar seu conteúdo. Este artifício não desfaz a lacuna de ouvir suas impressões transformadas pelas vivências ao longo do tempo. Ouvi-la hoje, após revisão e maturação dos fatos e contexto de suas experiências na década de 1970, poderia trazer elucidações, novas compreensões e mesmo negações de dados daquele período. A esse aspecto, somo o conceito de sujeito

encarnado, de Denise Najmanovich (2001), segundo o qual, a experiência e a compreensão de

determinado objeto se dá de modo subjetivo, particularizado, dada a influência de aspectos

singulares da vida do indivíduo. Por fim, transcrever totalmente sua tese8 neste trabalho é

também uma forma de contrapor a ideia de apagamento histórico de sua vida profissional que trago como hipótese desta tese, registrando e socializando com a comunidade de dança mais um documento reflexivo sobre a dança nos seus aspectos conceituais, pedagógicos e artísticos.

O recurso da entrevista, assim como o recolhimento de depoimentos escritos, foi executado de modo restrito, uma vez que considero extremamente significativa a experiência narrada por cada personagem dessa história. A dinâmica intermunicipal de trabalho que assumi em 2011, portanto, ao longo da trajetória do doutorado, impossibilitou maior abrangência de contato com profissionais da dança que dialogaram com Teresa Cabral. O diálogo foi estabelecido de modo mais direto (entrevistas em encontros presenciais) com Vera

8 A tese de Teresa Cabral foi submetida apenas à revisão e normatização comum à tese como um todo, de modo que sua integridade (conteúdo e forma) está preservada.

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Andrade, Lícia Morais, Solange Cintra Monteiro, Êmina Silva e Ana Lúcia Oliveira. Suas contribuições privilegiam experiências na Escola da Dança da UFBA e nos primeiros anos do Studio de Dança. Dentro do possível também trabalhei para não interferir nos discursos dessas personagens. Em alguns casos, apenas recortei o texto em trechos a partir do tema discutido em cada momento onde foram aplicados. Além disso, concordaram em escrever depoimentos sobre suas experiências com Teresa Cabral ou com o Studio de Dança: Teresa Cintra, Lúcia Matos, Aroldo Fernandes e Leda Ornellas. O depoimento de tantas outras pessoas teria o poder de interferir de modo positivo (problematizador) neste estudo, o que assegura tal análise como uma possibilidade de diálogo sobre as danças exercidas por seus profissionais no contexto apresentado.

A primeira etapa dessa análise correspondeu à pesquisa de referências primárias e secundárias, com a organização cronológica, análise e catalogação das diversas fontes disponíveis: cerca de seiscentas (600) fotos, cem (100) programas de espetáculos e eventos, trezentos e setenta (370) artigos de jornais e cento e quarenta (140) documentos oficiais. Em seguida, foram executadas as seguintes ações: construção de um Memorial Completo com informações mescladas de todas as fontes escritas, com cento e setenta e duas (172) páginas; construção de um Currículo de Base com trinta e oito (38) páginas, fruto de análise do Memorial e que contempla, no corpo do texto, diversas questões e apontamento das lacunas existentes; criação de uma pasta digital com os programas de espetáculos e eventos, num total de quatrocentos e sete (407) imagens digitalizadas e identificadas; criação de uma pasta digital de fotografias, num total de seiscentas (600) imagens digitalizadas; subdivisão das fotos digitalizadas em trinta e três (33) pastas específicas, pelo critério de distinção dos figurinos ou ambiente dos eventos e coreografias (restando ainda fotos não agrupadas); criação de um Quadro Cronológico onde constam os profissionais com os quais Teresa Cabral interagiu (situando os eventos e as datas); encontro com profissionais contemporâneos de Teresa Cabral cujo objetivo foi socializar a proposta e andamento da pesquisa. Estiveram presentes nesse encontro: Solange Cintra Monteiro, Carla Leite, Monika Krugmann, Ligia Margarida Araujo, Carmen Lúcia, Nelma Seixas, Ana Lúcia Oliveira e Eliana Rodrigues.

Embora recente, a história da dança cênica em Salvador demanda atenção, pois raramente encontramos acervo tão cuidadosamente construído como o de Teresa Cabral. Com ele, é possível não só visitar o passado, mas integrá-lo à atualidade de forma mais ativa e consciente, na medida em que as analogias e as referências se entrecruzam, se chocam ou se afinam. Seu acervo fotográfico pode inspirar montagens coreográficas a partir da análise dos princípios estéticos e coreográficos desenvolvidos há cerca de quarenta anos. Suas

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declarações e cobertura jornalística são relevantes enquanto pensamento da dança, dada a grande mobilização que ela conseguiu em torno de seu trabalho. A partir desse acervo, é possível verificar como a sua obra interferiu para a recepção da dança. As frequentes analogias à beleza e figuras etéreas como as sílfides possibilitam analisar o olhar da sociedade para a sua dança a partir do crivo fantasioso do balé clássico, ainda que em atitude e produtividade, Teresa Cabral pudesse ser comparada a um furacão.

São, portanto, fontes informativas pertinentes a essa investigação, textos teóricos, documentos oficiais, fotos, matérias e entrevistas em jornal escrito, programas de espetáculos, relatos orais e escritos. Suas presenças no texto podem ocorrer como comentário de referência, citação ou transposição direta, respeitando o potencial comunicativo de cada documento.

A questão que conduzirá esta análise é a seguinte: De que maneira Teresa Cabral se posicionou naquele momento enquanto profissional da dança, em termos de princípios estéticos e filosóficos, conduta profissional e características técnicas e criativas, especialmente na condução do Studio de Dança e no Grupo Studio? A partir desse questionamento central, alguns indícios ajudaram a direcionar o foco de análise desta tese, quais sejam: as analogias possíveis entre a sua experiência e as vertentes e técnicas de dança em desenvolvimento na época, a experiência de aula na escola de Merce Cunningham, os ecléticos diálogos com o movimento coreográfico em Salvador e no Brasil; uma vasta cobertura jornalística no Brasil; sua participação como uma das três representantes da América do Sul no 3º Festival de Bonn na Alemanha, onde também teve cobertura jornalística consistente; a relação entre o Studio de Dança e a sociedade soteropolitana, considerando-se o caráter original de uma escola particular com foco na dança moderna; o Studio de Dança como espaço de formação amadora e profissional de dança em Salvador; o Studio de Dança e o Grupo Studio como difusores da dança enquanto arte e profissão.

A hipótese que se estabelece, portanto, é a de um apagamento histórico de Teresa Cabral enquanto profissional de relevante contribuição para o desenvolvimento da dança em Salvador a partir de suas atividades à frente do Studio de dança e Grupo Studio na década de 1970.

Nesse sentido, foram os objetivos desta investigação histórica: Identificar elementos que justificassem um processo de apagamento histórico de Teresa Cabral enquanto profissional da dança em Salvador; Contextualizar a inserção da Dança Moderna em Salvador, bem como identificar os princípios que prevaleceram na formação oferecida na Escola de dança da UFBA; Problematizar os diálogos, desacordos e associações estéticos e

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artísticos do período; Elencar as características da dança no contexto coreográfico do Grupo Studio e na esfera pedagógica do Studio de Dança, levando em consideração as possíveis conexões com elementos do balé clássico e da dança pós-moderna; Verificar a relevância do Studio de Dança e do Grupo Studio para a história da dança em Salvador; Registrar a trajetória profissional de Teresa Cabral como um elemento constituinte da História de dança em Salvador.

Desde 1971, prestes a viajar para os Estados Unidos, Teresa Cabral mobilizou o público e a imprensa com o seu desempenho cênico. A ideia de responsabilidade, perseverança e metas claras em tão pouca idade chamou atenção para sua trajetória. Ao criar o Studio, inseriu sua dança na rotina da cidade, participando de eventos, mostras beneficentes, didáticas e profissionais. Em menos de dois anos, precisou ampliar o Studio de Dança para corresponder à demanda de novos alunos. Investiu intensamente no seu aperfeiçoamento e na oferta de cursos de qualidade, convidando expoentes de diversas técnicas para ministrarem cursos regulares, workshops e cursos de férias. Administrou com destreza temporadas marítimas internacionais do Grupo Studio. Representou a Bahia em apresentações em outros estados, festivais e encontros de dança, sem comprometer a qualidade de seu Studio de dança e recebendo, muitas vezes, prêmios e homenagens. Teresa Cabral se propôs a desenvolver a dança moderna e compartilhá-la com o público.

Embora formada nas grandes escolas da dança moderna, ela criou sua própria dança, fundamentada numa visão prospectiva da vida, buscando integrá-la com o ser social nas perspectivas de transcendência, humanização e coletividade defendidas por Roger Garaudy (1980). Por isso, ganhou visibilidade e espaço de crescimento em Salvador, levando para outros estados e para a Alemanha um olhar propositivo perante a vida, promovendo ao público e aos seus alunos, não somente beleza estética, mas capacidade de integração entre a arte e a vida. Nesse sentido, preservou o princípio básico da dança moderna e de todas as danças sociais da humanidade.

A partir desses parâmetros, a tese está dividida da seguinte forma: No capítulo 2, apresento as questões conceituais que orientam a hipótese de apagamento histórico de Teresa Cabral. No capítulo 3, exponho a tese escrita por Teresa Cabral sobre a dança. No Capítulo 4, percorro o período de formação acadêmica de Teresa Cabral, bem como estabeleço os parâmetros que desencadearam o apagamento histórico de Teresa Cabral, discutindo política e técnica em dança. Em seguida, analiso o percurso do Studio de Dança e do Grupo Studio ao longo da primeira metade da década de 1970. A análise do período entre 1976 e 1980 é feita no capítulo 6, quando evidencio os elementos mais significativos para o declínio da atuação

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de Teresa Cabral à frente de sua academia particular e grupo de dança. O capítulo 7, por fim, analisa a continuidade da trajetória profissional de Teresa após o fim do Studio de Dança, quando manteve dedicação praticamente exclusiva à Escola de Dança da UFBA. Por fim, concluo a tese afirmando a seriedade e dedicação de Teresa Cabral para com o desenvolvimento da dança profissional em Salvador, em contraposição ao apagamento histórico evidenciado pela falta de memória, preconceito pelos profissionais que atuaram com base em trabalhos técnicos de dança e restrição na difusão de suas contribuições.

Teresa Cabral dedicou-se a dança integralmente. Meu intuito é esclarecer e trilhar a sua experiência histórica com responsabilidade, franqueza, clareza e subjetividade, sabendo que junto consigo, outras personagens dessa história também ganharão a visibilidade necessária para que novas e mais abordagens de dança e de história da dança possam surgir.

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2 UM POUCO DE MEMÓRIA PARA A DANÇA

Imagem 3

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Este capítulo pretende esclarecer a noção de apagamento histórico aplicado nesta tese como premissa para a falta de memória das atividades profissionais de Teresa Cabral na História da dança em Salvador. A partir da contribuição teórica de Jeanne Marie Gagnebin e José Miguel Wisnik sobre os elementos que integram o universo da memória, da existência e do apagamento histórico, será possível entender o alcance prospectivo das práticas de amplo acesso às vivências ancestrais e de como a hipótese apresentada abraçará outros tantos profissionais do mesmo período histórico em questão, dada a fragilidade de registro público da dança e de seus profissionais em Salvador. Se o exercício ativo da memória é seletivo por natureza, o descaso para com ele é responsável por lacunas abissais mesmo entre contemporâneos.

[...] a memória dos homens se constrói entre dois polos: o da transmissão oral viva, mas frágil e efêmera, e o da conservação pela escrita, inscrição que talvez perdure por mais tempo, mas que desenha o vulto da ausência. Nem a presença viva nem a fixação pela escritura conseguem assegurar a imortalidade; ambas, aliás, nem mesmo garantem a certeza da duração, apenas testemunham o esplendor e a fragilidade da existência, e do espaço de dizê-la. (GAGNEBIN, 2006, p.11)

É comum assistirmos a espetáculos e nos encantarmos com o trabalho dos materiais gráficos, bem supridos de informações e imagens de qualidade. Entretanto, é uma raridade encontrarmos nesses documentos o ano de realização dos eventos, posto que o artista, diferente do historiador, direciona a confecção daquele material para duas funções específicas: a primeira, de divulgação, que finda seus objetivos no ato da apresentação cênica; a outra, de memória, porém, uma memória curta, já que com o passar dos anos, aquela montanha de papéis torna-se apenas um volume sem função que acumula poeira e toma os espaços da casa. Para o historiador, em contrapartida, são tesouros, saboreados um a um e guardados com cuidado. O intuito desta prática é manter tais experiências em estado acessível, capaz de dinamizar a exercício artístico atual com o que foi, sem que estes artistas o saibam parte de seu alicerce, os seus passos ancestrais, tornados muitas vezes inexistentes pela prática cotidiana imediatista. Dependendo do trato com elementos do passado, muitas ideias e inclinações estéticas ganham fundamento, como também muitas proposições perdem seu caráter inovador, vanguardista. Nesses casos, o mais interessante é investigar a coincidência de objetivos, funções e interferências da arte na vida nas referidas épocas de análise.

[...] o passado continua agindo, operando, no presente, ele não é um tempo definitivamente morto, mas continua vivo, mesmo que encoberto, no presente. Essa frase caracteriza uma relação ao passado e à cultura que não é uma relação de posse

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e de acumulação, mas uma relação viva, ancorada numa certa ética da transmissão. Cabe ao presente, em particular ao historiador de hoje, ficar atento àquilo que jaz nos acontecimentos e nas obras do passado como promessa ou protesto, como „confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade‟, enumera Benjamin na quarta tese „Sobre o conceito de história‟, como sinal ou balbucio de um outro porvir. (GAGNEBIN, 2006, p.82)

Tenho me deparado com tantas situações desse teor e a mais surpreendente, claro, é a ausência de conhecimento da comunidade artística de dança em Salvador (na qual me incluo) sobre grande parte de seu histórico e a importância de cada mobilização pessoal daqueles que, muitas vezes, são ainda nossos colegas, professores e gestores. Como a realidade cênica da dança em Salvador e no Brasil é tão recente, historicamente falando, é possível ainda documentá-la com acesso pessoal a tais personagens, que muitas vezes estão ocultadas por nossa ignorância e nosso descaso.

Vivo hoje, pessoalmente, a constatação (ou o dilema) do profissional de dança que, imbuído dos trabalhos teóricos e acadêmicos, ressente a falta das aulas e da prática cênica. Foi por questionar essas posturas na Escola de Dança da UFBA que comecei a querer saber mais sobre essas pessoas e a razão de parecerem tão “acomodadas” em corpos “velhos”. Indignava-me conviver com profissionais da dança que não dançavam. Era, para mim, uma incongruência e uma falta de norte. Ao adentrar o universo dos registros do passado e me integrar com as realidades apagadas da história, aprendi a olhar de outro jeito e enxergar a verdade pessoal no trabalho de tantos colegas, com os quais convivemos muitas vezes com preconceitos, sem respeitar seus corpos maduros e cheios de experiência. Outros olhares. Faço aqui uma citação, dentre tantas possíveis, não sem intenção premeditada, para que outros profissionais da dança se lancem na gritante constatação de sua existência e busquem tantos outros à nossa volta. Mestre King – Raimundo Bispo dos Santos – primeiro homem a prestar vestibular para dança, tem tantas histórias e tantas vivências para compartilhar: das questões técnicas na sua formação universitária; de quantos alunos preparou no curso de dança do Serviço Social do Comércio (SESC), que representa valioso espaço de formação técnica no trânsito de pessoas advindas das camadas mais populares para a Escola de Dança da UFBA; do estudo sobre a cultura popular afro-brasileira; do respeito e estímulo profissional a tantos alunos, que rapidamente se tornam parceiros de trabalho ou se lançam em trabalhos no Brasil e no exterior; principalmente da sabedoria em não permitir que o tempo se estabeleça como bloqueio entre as danças de sua caminhada. A idade cronológica no corpo de Mestre King nunca foi parâmetro para os abusos da hierarquia senil na coexistência que cultivou nos espaços de sua vivência. Isso faz dele uma personagem extremamente coletiva, acessada com

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respeito, afeto e intimidade por seus pares de tantas idades. Em 2011, a Escola de Dança da FUNCEB o homenageou em evento de finalização das suas atividades anuais. Lá estava ele vestido em traje majestoso e com o semblante perspicaz e bem humorado de sempre, como quem esquece e se diverte nas vestes cênicas de um rei, ao tempo em que observa com extrema atenção o desempenho daqueles que dançavam para festejá-lo. Em termos de registro escrito sobre a trajetória e contribuições de Mestre King para o desenvolvimento da dança, já temos o trabalho de Débora Ferraz de Oliveira (2008), que coincide com um movimento recente de atrelar a ele o conceito de dança afro-brasileira. Para investidas como essa, é certa a resposta calma e contundente, mais ou menos assim: “eu não criei nada, sou apenas um pesquisador”.

Essa preocupação com o registro e socialização de experiências pode parecer, aos desavisados, uma situação esdrúxula. Acostumados a viver a história como algo distante, disposta em museus e velharias, menospreza-se a contribuição individual nessa trajetória coletiva da dança, talvez por não sermos ainda capazes de perceber o trabalho de colegas como algo importante historicamente, ou por julgar ser esta prática um culto a personalidades específicas. O fato é que, não sendo fruto de um investimento pessoal - que pode ser interpretado como vaidade - estudos como este podem nunca sair de pastas e gavetas empoeiradas. Entretanto, ou em resposta a esses empreendimentos pessoais, as possibilidades de apoio institucional para tais empreitadas começam a fazer parte da lista de prioridades em

editais ou iniciativas de instituições públicas e/ou culturais9.

O quadro de apatia nos registros históricos tem se modificado nos últimos anos, posto que profissionais da dança local começam a se debruçar sobre trabalhos dessa natureza, estimulando o debate sobre aspectos inquietantes da dança, visivelmente motivados por questões latentes na rotina laboral de uma comunidade. A característica de integração desses estudos com a dinâmica de trabalho de cada um desses profissionais afasta positivamente os resultados documentais da tradicional visão objetiva e distanciada do historiador, reservado pelo tempo e pela falta de compreensão sensível sobre o que se dedica a narrar. Jeanne-Marie Gagnebin, ao analisar As teses sobre o conceito de História, de Walter Benjamin (1940), destaca no autor

9

Em dezembro de 2012, por exemplo, fui convidada pela Fundação Cultural do Estado da Bahia para escrever um livro sobre os quinze anos do Quarta que dança, projeto governamental que prevê uma temporada de apresentações de dança, com o intuito de dar oportunidades a novas companhias, coreógrafos e intérpretes, mostrar processos de construção coreográfica e potencializar o quadro de espectadores para a dança em Salvador. Recentemente, o projeto ampliou sua abrangência ao incluir cidades da região metropolitana e do interior da Bahia no roteiro de apresentações.

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[...] sua crítica à concepção de cultura como uma acumulação de „bens culturais‟ e sua ênfase na decisiva significação da “transmissão” cultural. Ambos os momentos se completam num esforço de dessubstancialização daquilo que se costuma chamar de cultura: essa não consistiria num aglomerado de objetos preciosos, mas seria definida muito mais como relação espiritual viva do presente ao passado, do passado ao presente.(GAGNEBIN, 2008, p.81)

Na busca analítica da história a partir dessa lógica, Gagnebin considera que as noções de “bens culturais”, “coisas brutas e materiais”, “finas e espirituais”, assim como “grandes gênios” e a “corveia sem nome” citadas por Benjamin devem ser discutidas, não pelos conceitos de vergegenwartigung (atualidade; presentificação; que vê a cultura como inventário), ou kulturgüter (bens culturais; acumulação de bens), ou ainda erbe (herança; leitura da história como coisa, substância); mas na perspectiva de conceitos como aktualität (vir a ser ato de uma potência) e uberlieferung, que

[...] pode ser traduzido também como „tradição‟, mas prefiro restituí-lo de maneira mais literal como „transmissão‟, ressaltando assim o processo histórico concreto, material, de desistências, de perseverança, de lutas e de violência que transporta ou não, leva ou não, transmite ou não um acontecimento de uma obra do passado até nosso presente. (GAGNEBIN, 2008, p.81)

Nesses termos, a tradição de uma leitura tendenciosa e superficial que privilegiava vencedores e ditava verdades universais passa a ter como perspectiva uma discussão dinâmica, democrática e ponderada por múltiplos olhares.

Lia Robatto, por exemplo, foi uma das primeiras a investir em atividades memorialistas. Inicialmente, publicou uma pesquisa sobre dança com base na sua trajetória prática (ROBATTO, 1994). Anos depois, publicou com Lúcia Mascarenhas um livro de cunho panorâmico sobre a dança em Salvador: Passos da dança – Bahia (ROBATTO; MASCARENHAS, 2002). Sem dúvida, obras dessa natureza colaboraram para que eu atentasse para a existência de uma trajetória coletiva, assim como me possibilitou conhecer percursos particulares e suas contribuições para a dança como um todo. Ao lê-la, não podia imaginar que o Grupo Experimental de Dança seria meu objeto de estudo do mestrado. Mas descobri ali que muitos dos meus professores “sem história” agregavam ações significativas num passado não tão distante. Enquanto foi aluna, de 1999 a 2003, consegui enxergar as incongruências entre as questões políticas que envolveram Lia Robatto na Escola de Dança da UFBA e a simplicidade com que quadros com fotos de suas produções resistiam nas paredes daquela escola desde a gestão de Eliana Rodrigues. Pouco se falava, mas a história estava ali, pedindo para ser contada. Estão também interessados nessa organização e compreensão da dinâmica da dança em Salvador, profissionais como: Eliana Rodrigues, que, entre outras

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