V - ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO PARA O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA – LEITURA E ESCRITA
Trazemos aqui uma proposta didático-pedagógica e metodológica para se ensinar português escrito - PE para a pessoa com surdez. Essa aprendizagem decorre da capacidade e da obrigatoriedade de alunos com surdez serem escolarizados a partir de uma concepção bilíngüe de educação, em que Libras e Português escrito são línguas de instrução dessas pessoas na escola.
A escola é o lugar-base para que as pessoas com surdez possam aprender a língua Portuguesa na modalidade escrita, sobretudo porque essa língua é um dos conteúdos do ensino regular e por ser direito dos cidadãos com surdez constituírem-se como sujeitos letrados numa segunda língua, em seus vários níveis de desenvolvimento.
Aprendendo a língua Portuguesa escrita essas pessoas se tornam bilíngües. Bilíngüe não é aquele que possui competência semelhante e perfeita nas línguas, mas quem utiliza constantemente duas (ou mais) línguas (ou dialetos) com diferentes sujeitos em diversas situações do cotidiano e práticas discursivas e de acordo com seu propósito. Sujeito ou pessoa que na prática “fala” ou usa alternadamente duas línguas.
Exemplificaremos, a seguir, a base epistemológica que defendemos para o AEE para o ensino do PE, quanto ao ato de ler, escrever e aprender a gramática de uso pelas pessoas com surdez.
O ato de ler ao se ensinar PE para pessoas com surdez no AEE
Além da atribuição de significados à imagem gráfica segundo o sentido que o escritor lhe atribui, Martins ( 1982) define a leitura como a relação que o leitor estabelece com a própria experiência, por meio do texto. Envolve aspectos sensoriais, emocionais e racionais. Ler não é dizer o já dito, mas falar do outro sentido; é impossível uma leitura do consenso, uniforme, pois no conflito das interpretações se revela a diversidade rica de um texto e, através dele, a da realidade.
O percurso de contextualização vai do todo textual e de seus sentidos iniciais; trata-se de reproduções de trata-sentidos, de um processo de desmontagem do texto em unidades.
Um aluno com surdez, lendo um livro, com imagens da natureza.
O percurso de descontextualização tem a ver com o reconhecimento das partes do texto, suas estruturas em palavras/frases, sílabas e grafemas.
O percurso da recontextualização – montagem dos mesmos ou de outros sentidos, produzindo outras palavras, com outras sílabas e grafemas, para chegar a outras frases e a outros textos – percebendo que o(s) sentido(s) é/serão outro(s).
Professora de Língua Portuguesa, explorando conceitualizações com o aluno com surdez, utlizando um livro com imagens de
sobre e sob.
.
Para demonstrar mostrar os movimentos do todo para as parte e vice-versa, no processo da leitura, destacamos algumas estratégias que julgamos muito importantes para interpretar e compreender textos, na escola. O processo de interpretação depende de informatividade e está relacionado a fazer pressuposições, inferências.
O ato de escrever (produção de textos) no ensino de PE para pessoa com surdez no AEE
Para propormos atividades de escrita, partimos do léxico de uma língua natural, como o Português.
A palavra texto vem do Latim textum, que significa coisa tecida, entrelaçamento. O texto no seu todo é uma tessitura de palavras, idéias, concepções. Suas partes entrelaçadas formam uma rede de relações, articulações, conexões com coerência e coesão. Ensinar as pessoas com surdez a produzir textos em Português torna-as competentes em seus discursos, oferecer-lhes oportunidades de interagir nas práticas da língua oficial e transforma-as em sujeitos de saber e poder. com criatividade e arte. Essas habilidades são aprendidas quando os alunos com surdez tiverem contato com a diversidade textual circulante em nossas práticas sociais.
Para essa aprendizagem ocorra, a educação escolar deve expor os alunos com surdez a todo tipo de texto. A apropriação dos gêneros e tipos de textos/discursos é essencial para que o aluno com surdez faça uso da gramática da Língua Portuguesa.
Gramática de Uso - reflexão sobre a língua – no ensino de PE para pessoa com surdez no AEE
Ao se ensinar Português escrito para pessoas com surdez, deve-se conceber que o processo de letramento requer o desenvolvimento e aperfeiçoamento da língua em várias práticas sociais de interação verbal e discursiva, principalmente da escrita.
ParaSoares (2003), o letramento, como o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, configura um estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita. Considera que o letramento traz conseqüências políticas, econômicas, culturais para os indivíduos e grupos que se apropriam da escrita, fazendo com que esta se torne parte de suas vidas como meio de expressão e comunicação.
A apropriação da Língua Portuguesa escrita pelos alunos com surdez demanda atividades de reflexão sobre a língua voltadas para a observação e a análise dessa língua em uso, para o conhecimento de sua estrutura, do sistema lingüístico, funcionamento e variações em contextos de prática e uso, seja nos processos de leitura como na produção de texto. Para conhecer e usar a gramática normativa é preciso ir além da reflexão sobre a língua. Há que existir também uma prática de produção de vários gêneros textuais e gêneros discursivos, que possibilitem ao aluno ampliar sua competência e seu desempenho lingüísticos no uso de sua gramática internalizada e reflexiva.
Níveis de ensino do Português, como segunda língua de pessoas com surdez
Para a aprendizagem do Português como segunda língua das pessoas surdas sugere-se uma proposta didático-pedagógica que em um primeiro nível de ensino esteja voltada para os processos iniciais de alfabetização e de letramento. Num segundo nível, intermediário, os textos veiculados apresentarão estruturas, organização e funcionamento de razoável complexidade, em condições de promover a leitura, interpretação e escrita, segundo categorias mais elaboradas da Língua Portuguesa.
Professora de Língua Portuguesa com dois alunos com surdez, trabalhando na produção de texto, com uso de livros e dicionários. Os dois alunos estão sentados, com livros e dicionários expostos na carteira.
O AEE para o ensino do Português escrito PE para pessoas com surdez
Este momento didático-pedagógico do AEEPS acontece na sala de aula multifuncional e em horário oposto ao da sala de aula comum. Todo o ensino é desenvolvido por uma professora, preferencialmente, formada em Letras e que conheça os pressupostos lingüísticos e teóricos que norteiam o trabalho do ensino de Português escrito para pessoas com surdez, anteriormente citado.
O objetivo desse atendimento é desenvolver a competência lingüística, bem como textual, nas pessoas com surdez, para que elas sejam capazes de gerar seqüências lingüísticas.
A sala de recurso multifuncional precisa ter entre os seus recursos :
• amplo acervo textual em Língua Portuguesa, capaz de oferecer ao aluno a pluralidade dos discursos, pelos quais possam ter oportunidade de interação com os mais variados tipos de situação de enunciação;
Nessa sala, quando o professor atende a alunos com surdez, não se utiliza da Libras para se ensinar o Português. A Libras, como intermediária nesse aprendizado, não é indicada, pois trata-se de duas línguas distintas, com gramática e regras próprias que as estruturam.
Professora de Língua Portuguesa explorando um painel com imagens e palavras escritas sobre indigenas brasileiros, com dois alunos com surdez. Um aluno está apontando um palavra escrita no painel e a professora explicando.
As aulas AEE para o ensino do PE são preparadas segundo o desenvolvimento e aprendizagem do aluno com surdez. O professor do AEE avalia e analisa o estágio de todo o desenvolvimento do aluno, em relação à Língua Portuguesa -leitura e escrita- procurando compreender em qual estágio esse aluno se encontra, no domínio da língua.
Como o canal de comunicação específico para o ensino e a aprendizagem é a Língua Portuguesa, utiliza-se a leitura labial, a leitura e a escrita.
O professor precisa conhecer muito bem a organização e a estrutura da Língua Portuguesa. Os recursos escritos são vitais para a compreensão do PE, seguidos de uma exploração contextual do conteúdo em estudo
O AEE em Língua Portuguesa escrita é de extrema importância para o desenvolvimento e a aprendizagem do aluno com surdez nessa língua e na sala comum e a avaliação das aquisições do aluno no PE evidenciará os avanços desse aluno e servirá para redefinir o planejamento, em caso contrário.
Algumas sugestões de atividades pedagógicas envolvendo várias linguagens e vivências no AEEPS
Para fases iniciais de aprendizado da Língua Portuguesa
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• Expressão corporal;
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• Expressão artístico-cultural;
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• Contextualização de situações vividas;
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• Sessão de filmes (vídeo/TV etc).
Para a leitura
• leitura de ícones, sinais, índices, símbolos e signo lingüísticos; • leitura visual de imagens;
• leitura de texto escrito: texto - frases – palavras – sílabas – letras; • interpretação/compreensão por meio do desenho;
• interpretação/compreensão por meio da escrita: aplicação das condições de produção dos gêneros textuais e discursivos.
Para a escrita
• Do desenho à palavra – da palavra ao desenho; • Da frase ao desenho – do desenho à frase; • Do texto ao desenho – do desenho ao texto;
Para descoberta da escrita: linguagens lúdicas
• brincadeiras; • jogos interativos; • testes-problema; • jogos eletrônicos • informática;
• livros com imagens e livros sem imagens.
Para desenvolver o léxico: estudos ortográficos e do sentido das palavras em diferentes contextos
• propor atividades de escrita contextualizada, ou seja, a partir de um dado assunto ( aprender a escrever com sentido e não apenas desenhar palavras) ;
• contextualizar o uso do léxico (das palavras) da Língua Portuguesa escrita em várias situações diferentes ( manga de camisa, manga fruta e outras).
Para a produção de textos escritos em Português
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• cultivar no aluno com surdez o processo de criar signos, para interagir com outras pessoas pro meio da produção de textos escritos – bilhetes, cartas etc.
A escola tem uma contribuição muito importante na inclusão da pessoa com surdez na sociedade e, nesse sentido, o aprendizado do Português escrito tem a sua parte, por ser mais um instrumento que essa pessoa terá para se integrar às sociedades gráficas e tecnologicamente avançadas. O ensino do Português escrito não deve, portanto, se restringir à alfabetização das pessoas com surdez, pois este conhecimento é necessário, porém insuficiente como instrumento. Todos os níveis de letramento, dos momentos iniciais de aprendizado aos do ensino superior precisam ser desenvolvidos e nesse sentido o AEE para o ensino da Língua Portuguesa escrita é indispensável e relevante.
BAKHTIN, M. (V.). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.
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SOARES, Magda. LETRAMENTO – um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
______________. Alfabetização e Letramento. São Paulo: Contexto, 2003.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fracasso do processo educativo das pessoas com surdez é um problema resultado das concepções pedagógicas de educação escolar adotadas pelas escolas e de suas práticas. O foco do trabalho deve ser a transformação das suas práticas pedagógicas excludentes em inclusivas, pois se compreende o homem como um ser dialógico, transformacional, inconcluso, reflexivo, síntese de múltiplas determinações num conjunto de relações sociais, com capacidade de idealizar e de criar.
Por isso, é que defendemos a reinvenção das práticas pedagógicas na perspectiva da educação escolar inclusiva para pessoas com surdez, visando proporcionar a essas pessoas a oportunidade de aquisição de habilidades para a vida em comunidade, ou seja, como atuar e interagir com seus pares no mundo, considerando o contraditório, o ambíguo, o complexo e o diferente e suas conseqüências. Continuar neste embate epistemológico entre gestualistas e oralistas é manter na exclusão escolar as pessoas com surdez,
Vê-se, portanto a urgência de deflagrar iniciativas que desconstruam os modelos conservadores da escola comum, para gestar formas de fazer uma educação escolar inclusiva pautada no reconhecimento e na valorização das diferenças, mostrando efetiva e coerentemente, a possibilidade da educação escolar inclusiva de pessoas com surdez na escola comum brasileira.