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Entre o Profano e o Sagrado: Imagens de Mulher nas Páginas do Jornal Sorocabano O Operário (1909-1913)

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ENTRE O PROFANO E O SAGRADO: IMAGENS

DE MULHER NAS PÁGINAS DO JORNAL

SOROCABANO O OPERÁRIO (1909-1913)

Luiz Carlos Barreira

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RESUMO: Neste artigo, o autor apresent a resultados, ainda parciais, de estudos e investigações que vem des envolvendo, mais recentemente, sobre o tema Escola, periodismo e vida urbana: educaç ão popular e imprensa operária em São Paulo (1888-1925). Com esses estudos e investigações, o autor tem por objetivo apreender os nexos estabelecidos por operários e suas lideranças, no final do século XIX e início do XX, entre educação e mundo do trabalho, mais especificamente, entre educação escolar e modos e viver e pens ar que então adquiriam, no Brasil, sobretudo em det erminadas regi ões do Estado de São Paulo, características acentuadamente u rbanas. Algumas cidades dessas regiões começavam a se industrializar e por isso vivenciavam processos bastante acelerados de transformações sociais. O operariado é um agente social de fundamental import ância para a compreensão dessas transformações. E a imprensa operária, um lugar de memória privilegiado para uma leitura compreensiva de determinados aspectos da sua vida cotidiana. A trama, o cenário e os sujeitos da história que aqui será c ontada são: imagens da mulher operária, veiculadas no jornal sorocabano O Operário, no início do século XX.

PALAV RAS -CHAV E: Imprensa operária – Sorocaba, SP – Brasil; I O Operário - Jornal; Mulher operária; Mulher – educação.

ABSTRACT: In this article, the author presents the results, though partial, of studies and investigations that he has been developed about School, periodicity and urban life: popular education and worker press in São Paulo (1888 – 1925). Based on these studies and investigations, the author has as a goal to learn the nexus established by workers and their leadership, in the end of the 19th and the beginning of the 20th century, between education and the world´s work, more specifc ally, between school education and the ways of living and

thinking that they have acquired in B razil, especially in certain regions of São Paulo State, mainly urban characteristics. Some cities from these regions have just started to develop many industries and for this reason they started to face a great social expansion. The working class itself is a social agent of considerable importance to comprehend these trans formations. And the worker press, where we can have a comprehensive reading of certain aspects concerning

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their daily life. The conspiracy, the scenery and the characters of the history that will be mentioned are: pictures of the worker women in the newspaper from Sorocaba The worker, in the beginning of the 20th century.

KEY-WORDS: Worker press; Sorocaba, SP-Brazil; The worker; Newspaper; O operário; Worker Women; Women -Education.

Introdução

Não são muitos os lugares de memória que nos remetem ao cotidiano do operariado brasileiro e às suas experiências concretas.2 As razões dessa escassez são por demais conhecidas, o que dispensa a sua retomada neste moment o. Há um lugar, ent retanto, que tem se mostrado bastante fértil como fonte de pesquisa para os interessados no tema: a impre nsa operária. Embora essa fonte tenha sido por demais explorada, não pode ser considerada esgotada em todas as suas possibilid ades, posto ser sempre a história escrita com base em questões postas pelo presente daqueles que inquirem o passado, razão pela qual as escritas (ou escrituras) da história trazem sempre as marcas dos tempos e lugares dos sujeitos que se debruçaram e se debruçam sobre o passado.

Há dois anos venho trabalhando com a imprensa operária paulista, mais especificamente com a de Sorocaba, tendo em vista verificar e compreender os sentidos que os operários atribuíram aos acontecimentos da sua vida cotidiana, destacadament e aqueles que diziam respeito à sua própria formação como ser social. Formação aqui tomada no seu sentido mais amplo, que abarca um vasto univers o de fazeres e saberes que vão desde os primeiros aprendizados informais, obtidos pelo sujeito por meio de sua experiência imediat a, seja no convívio com a família, seja com os grupos sociais dos quais participa, até aqueles mais formais, proporcionados pela educação escolar. Fazeres e s aberes que aos poucos vão moldando, por assim dizer, a s ua condição de ser humano e, portanto, de ser social. Por ser necessariament e histórica, essa formação só pode ser apreendida e compreendida, na sua particularidade. E essa particularidade só se manifestará se, na análise, forem consider adas os múltiplos determinantes e condicionantes históricos que c onstituem o particular na sua relação com o mais geral, o univers al.

Apreender as particularidades da vida c otidiana do operariado s orocabano no início do século XX, rec orrendo à imprensa operária local como fonte privilegiada de in vestigaç ão, é um dos principais alvos desta minha pesquisa.

Neste texto, apresento algumas das conclusões a que cheguei acerca das representações sociais relativas à mulher, que o jornal O Operario3 fez circular junto à sua comunidade de leitores. Nessa

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Que fique bem entendida essa afirmação: refiro-me, aqui, a lugares de memória em que esses sujeitos falam por si e não outros por eles.

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Semanário de orientação socialista, editado em Sorocaba, que circulou entre julho de 1909 e dezembro de 1913. Não se tem notícia da existência de qualquer outro periódico editado em Sorocaba, nesse período, que poderia ser classificado como pertencente à imprensa operária local.

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minha incursão pelo jornal, proc urei verificar que representaç ões foram essas, em que bases se assentavam, quem foram os seus difusores e como a mulher sorocabana, sobretudo a operária, a elas reagiu.

Para a consecução desse objetivo específico, reuni uma série de artigos publicados nesse jornal, em cujos títulos havia alguma referência explícita à mulher. Analisei e organizei esses materiais de acordo com as imagens de mulher que neles encont rei, para em s eguida poder verificar a existência de correspondência lógica e histórica entre elas. Ciente, porém, dos limites que aquele procediment o de seleção impunha à análise do tema e ao equacionamento dos problemas investigados. E, ainda, de que todo e qualquer texto possibilita não uma únic a, mas uma infinidade de interpretações. O que não significa, entretanto, que a análise propriament e temática se faça ou se possa fazer sem a observação de critérios rigorosamente estabelecidos.

Para a exposição dos resultados dessa minha incursão pelo jornal, dividi o texto em nove tópicos. Neles, o leit or encontrará os elementos de uma trama que, no início do século XX, acabou por envolver a mulher sorocabana (mas não somente ela) em um emaranhado de imagens que reforçavam algumas seculares representações sociais da mulher e outras que ensaiavam representações que pareciam querer caminhar na contramão da história. Uma, entret anto, acabou por se afirmar ou reafirmar, melhor dizendo, em relação às demais – a que redefinia para a mulher o seu principal papel na sociedade moderna: ser mãe.

Nos sete primeiros tópicos, temos os represent antes do sexo masculino que fizeram circular, no jornal O Operario, as suas representações sobre a mulher e as suas formulações acerca dos papéis que ela deveria assumir na sociedade moderna. Nos dois últimos, temos as mulheres vistas por elas mesmas. É nesse último movimento, o das mulheres por elas mesmas, que se evidencia a incorporação, pela mulher, da representação social acima referida, que acabou por se reafirmar em rel ação às demais. Mas é também nele que uma outra começou a ser esboçada e a constituir, para a mulher daqueles tempos, um caminho alternativo situado entre o profano e o sagrado. Qual seja: uma representação assentada no trabalho, concebido como categoria que funda o ser social.

minha incursão pelo jornal, proc urei verificar que representaç ões foram essas, em que bases se assentavam, quem foram os seus difusores e como a mulher sorocabana, sobretudo a operária, a elas reagiu.

Para a consecução desse objetivo específico, reuni uma série de artigos publicados nesse jornal, em cujos títulos havia alguma referência explícita à mulher. Analisei e organizei esses materiais de acordo com as imagens de mulher que neles encont rei, para em s eguida poder verificar a existência de correspondência lógica e histórica entre elas. Ciente, porém, dos limites que aquele procediment o de seleção impunha à análise do tema e ao equacionamento dos problemas investigados. E, ainda, de que todo e qualquer texto possibilita não uma únic a, mas uma infinidade de interpretações. O que não significa, entretanto, que a análise propriament e temática se faça ou se possa fazer sem a observação de critérios rigorosamente estabelecidos.

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Para a exposição dos resultados dessa minha incursão pelo jornal, dividi o texto em nove tópicos. Neles, o leit or encontrará os elementos de uma trama que, no início do século XX, acabou por envolver a mulher sorocabana (mas não somente ela) em um emaranhado de imagens que reforçavam algumas seculares representações sociais da mulher e outras que ensaiavam representações que pareciam querer caminhar na contramão da história. Uma, entret anto, acabou por se afirmar ou reafirmar, melhor dizendo, em relação às demais – a que redefinia para a mulher o seu principal papel na sociedade moderna: ser mãe.

Nos sete primeiros tópicos, temos os repres entantes do sexo masculino que fizeram circular, no jornal O Operario, as suas representações s obre a mulher e as suas formulações acerca dos papéis que ela deveria assumir na sociedade moderna. Nos dois últimos, temos as mulheres vistas por elas mesmas. É nesse último movimento, o das mulheres por elas mesmas, que se evidencia a incorporação, pela mulher, da representação social acima referida, que acabou por se reafirmar em rel ação às demais. Mas é também nele que uma outra começou a ser esboçada e a constituir, para a mulher daqueles tempos, um caminho alternativo situado entre o profano e o sagrado. Qual seja: uma representação assentada no trabalho, concebido como categoria que funda o ser social.

“A mulher comparada aos bons petiscos”

Em meio aos anúncios e propagandas publicados na edição de 01 de janeiro de 1911 do jornal O Operario, mais especific amente nas páginas 2 e 3, encontrei uma “pérola”, cujo título emprestamos para designar este tópico e com ele “abrir” a discussão que farei a seguir. Ao que tudo indica, esse texto deve ter sido extraído de um outro jornal, c uja fonte os editores de O Operario não citam. No lugar da assinatura, encontra-se a abreviatura “Ext.”, que s ugere essa interpretação. Vamos a ele.

A morena – vatapá. A clara – pinhão cosido. A loura – pão de lot. A negra – içá torrado. A magra – bacalhau assado. A gorda – perù recheiado. A regular – gallinha ensopada. A bonita – moquéca á bahiana.

A feia – carne cosida. A sympatica – canja quente. A casada – ovos estalados. A solteira – manteiga derretida. A viu va – feijoada completa.

A comprometida – salada de pepino. A rica – naco de presunto.

A pobre – carne secca.

A remediada – cúscùs de milho. A carola – pão amanhecido. A enjoada – peixe de escabeche. A hereje – salada de pimentão. A sogra – ostra crúa.

A madrasta – pamonha azeda.4

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Nesta, assim como nas demais citações textuais do jornal, optou-se por respeitar a ortografia encontrada nos originais.

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Nenhum comentário acompanha esse texto. Talvez ele tenha sido publicado a tít ulo de entret enimento. Mesmo assim, dele emergem imagens preconceituosas s obr e a mulher, seja no que diz respeito ao seu porte físico, ao seu estado civil, à sua classe social, às suas crenças, seja em relação às suas relações de parentesco. Determinados perfis de mulher são valorizados, outros ridiculariz ados. Puro deboche. A associação da mulher a petiscos não deixa margem a dúvidas: a mulher é uma iguaria a ser saboreada. Mulher -objeto. Mulher-mercadoria. Um ser desprovido de c érebro, pois nenhuma menção às suas faculdades mentais é feit a. Imagens que reflet em, de certa maneira, o pensar de pelo menos parte da sociedade sorocabana sobre a mulher naquela época.

O exercício de comparar a mulher a objetos ou a pessoas (reais ou fictícias) que a ela pudessem servir de exemplo, fossem para o bem ou para o mal, não pára por aí e não se restringe à es fera masculina. Não foram poucas, como se verá, essas comparações.

A adúltera e a esposa

“Abdem” é o pseudônimo de um colaborador residente na cidade de Mococ a, Estado de S ão P aulo, muito provavelmente do sexo masculino, que, em 04 de fevereiro de 1912, publicou um artigo no jornal, intitulado A Adultera, transcrito, a seguir, integralmente.

E’lla cortou o fio a felicidade de uma existencia, atirou a lama um nome, cobrio de

opprobio e vergonha a sua familia. Que lhe importava isso se élla precizava conhecer

outros amores, o sabôr de outros beijos. Estava enfadada de um amor sò, desse

ramerrão de todos os dias, e como as andorinhas, voam em busca de novos amores,

d’esses amores; que começam pela traição de um beijo e acabam estupidamente

n’um bocejo de enfado ou de cançasso do amante que vai procurar outros braços

criminosos que o acôlham.

Desgraçada! Escureceu um lar, e foi brilhar no mundo da prostituição. Esqueceu os

seus santos e sublimes deveres, de filha, esposa e mãi, e foi rebocar-se na lama

putrida dos bordeis, enlevada pela vida facil, pela turturin dos beijos, pela musica das

palavras que mentem e ruflou o vôuo.

Infeliz, que no riso constante, nos gabinetes reservado dos hoteis alegres, não se

lembra do fim que a espera. Cega, que não vê diante de si, o abismo insondavel,

preparado para recebel-a.

Hoje! – A fésta, uma taça de champagne em plena bachanal. Amanhã, á tosse, a

rouquidão suffocante de uma tuberculose. Hoje – coberta de sedas e joias, deitadas

em coxim de veludo; Amanhã a dura encherga de um hospital. Depois ... a lembrança

do passado, o arrependimento, da deshonra, e não podendo pedir perdão ao esposo,

aos filhos; exala o ultimo suspiro com o esprito impregnado pelo remorso. (O

Operario, 04 fev. 1912, p. 2).

Na ótica desse articulista, o caminho que leva ao adultério e à prostituição feminina é de mão única. Uma viagem sem volta. Inicialment e, um caminho sedutor. Mas que fatalmente conduz a “vítima” a um final invariavelmente dramático e aterrorizante.

O desejo de conhecer “outros amores”, “o sabor de outros beijos”, a ânsia de dar vaz ão aos desejos da carne (dançar, tomar champanhe, cobrir -se de sedas e jóias), associados ao enfado do “ramerrão de todos os dias”, são algumas das razões que levariam certas mulheres (casadas ) a trilhar o caminho do adultério. Mulheres egoístas, desgraçadas, infel izes,

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desmemoriadas e cegas, que terminariam suas vidas tuberculosas, arrependidas, co rroídas pelo remorso e desgraç adamente sós, na visão desse articulista.

São muito trágicas essas imagens do adultério, da prostituição e dos bordéis que o autor traz à baila. Imagens extraídas, muito provavelment e, da literatura de ficção, pois fazem lembrar ricos bordéis parisienses, pormenorizadamente descritos em novelas e romances do século XIX. Não t emos notícia da existência de bordéis em Sorocaba e região, nessa époc a, que se assemelhassem àquele sugerido pelo articulista. Sabemos, também, por out ras fontes, que nem todas as prostitutas encerravam suas vidas “fác eis” da forma como a descrita pelo articulista: tuberc ulosas, arrependidas, corroídas pelo remorso e desgraçadamente sós. São imagens da prostituição que, como por todos sabido, guardam pouca semelhança com a realidade vivida pela grande maioria das mulheres que se dedicaram (e se dedicam) ao ofício. Mas essas imagens idealizadas têm sempre uma razão de ser, não importa qual seja. A intenção do articulista é bastante clara: formar opinião, conquistar mentes e corações, recorrendo a tipos ideais (porque depurados de toda e qualquer part icularidade ou historicidade) que produzissem o impacto desejado no público leitor. No caso em tela, estigmatizando atitudes e comport amentos que queria fossem por todos considerados abomináveis.

O artigo que segue, intitulado A esposa, de autoria não informada, foi publicado no mesmo número do jornal em que o foi o artigo supracitado. Nele, são destacadas e reafirmadas as qualidades que todo “homem de bem” esperava encontrar em sua esposa: honestidade, mansidão, caridade, amor e dedicação à família. Qualidades, c omo se verá, hierarquicamente dispostas.

A joia mais formosa da côroa da espôsa, é, sem duvida, a honestidade. Esta joia comtudo não brilha em todo o esplendor naquelle divino diadema, se não tiver ao redor as perolas, não tão formosas mas, que realçam o b rilho. Fallamos da mansidão, da caridade, do amôr da familia e de todas as mais virtudes que constituem a ventura do lar domestico.

A mulher que unicamente se escudar na virtude de sua honestidade e menosprezar as outras, em vez de alcançar a paz, achar -se-ha perpet uamente em guerra.

De que servira reconhecer e confessar o marido que lhe deve a honra, quando este, ao ent rar em casa, depois de haver commettido algumas dessas fragilidades inherentes á especie humana, em vez de enc ontrar o pe rdão, se vê a braços com o sarcasmo, a affronta, ou a injúria? Revolta-se-lhe nessa occasião, a dignidade de chefe de familia, ferida no insulto que recebe no proprio lar; e desde então o anjo tenebros o das paixões se colloca em lucta com a que deve ser o anjo da guarda da familia, e ai do amor que, por sua natureza leviano, bate azas e vôa; e ai da tranquilidade, harmonia, e reciprocas atenções que os esposos se devem, porque tudo fugiu para sempre ao s ôpro das irritadas paixões. (O Operario, 04 fev. 1912, p. 2).

A existência de tranqüilidade e harmonia no lar dependeria exclusivament e da mulher. Caberia a ela escolher viver em paz ou em permanente estado de guerra dent ro do próprio lar. Aquela que c ultivasse as qualidades que dela se esperava, não teria com o que se preoc upar. A que menosprezasse tais virtudes, não. O amor deveria tudo suportar, como ensinava o Apóstolo P aulo, nas suas admoestações epistolares, aos c ristãos da cidade de Coríntios, na Grécia antiga. Essa esposa idealizada deveria ser compreensiva e estar sempre pronta a perdoar o marido, caso este cometesse atos decorrentes de “fragilidades inerentes à espécie humana” – fragilidades que o articulista não es pecifica. Jamais deveria afrontar ou injuriar o

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marido, nem tratá-lo com sarcasmo. Jamais deveria subtrair-lhe a autoridade. Tratamento recíproco, entret anto, não deveria ser esperado.

No artigo anterior, sobre adultério e prostituição feminina, uma imagem invertida de mulher ideal é apresentada ao leitor para que servisse de contra -exemplo a todas as demais. Nessa imagem, encontra-se toda s orte de atitudes e comportamentos morais socialmente recriminados e abominados. No artigo seguinte, sobre a espos a de um lar domést ico, a mulher é idealizada pela afirmaç ão de valores morais socialment e aceitáveis e desejáveis. Dois movimentos distintos, mas complementares. Ambos reforçando um mesmo tipo ideal de mulher: honesta (fiel e submissa ao marido), acima de tudo, mas também mansa, caridos a, amorosa e dedicada à família.

A mulher comparada à natureza

Corrêa de Azevedo foi um dos colaboradores mais freqüentes de O Operário. É ele quem assina o artigo intitulado As nossas mulheres, publicado no jornal em s eis partes. Em 17 de dezembro de 1911, o público leitor t eve acesso à quarta parte desse artigo. Nela, e na seguinte, publicada em 24 de dez embro de 1911, o autor compara a mulher brasileira com a européia, destacando, nessa comparação, aspectos de natureza geográfica que, a seu ju íz o, determinariam os at ribut os físicos e psicológic os de uma e outra. Neste tópico, co mentarei somente essas duas partes do artigo, ou seja, a quart a e a quinta, mas voltarei às d emais oportunamente.

Logo no início da terceira parte (publicada em lugar de destaque, no espaço usualmente ocupado pelo editorial), o Brasil é descrito, por razões que serão dadas a seguir, como “a terra de promissão, a arca de todas as bellezas que a natureza engendrou, as mais sublimes na terra” (O Operario, 17 dez. 1911, p. 1). Na palheta da criação, nenhuma cor teria Deus deixado de usar na composição da flora, fauna e paisagens do Brasil – país tropical, “filho do sol”. Por isso “tornou-se o mais bello dos lugares da terra, onde os antigos teriam, se o conhecessem, vontade de collocar seu éden” (O Operario, 17 dez.1911, p. 1). De acordo com a tese apres entada e defendida pelo autor, as mulheres seriam sempre o resultado das belez as naturais de seus países, seguindo a marcha de seus movimentos.

Em seguida a essa descrição ufanista de sua terra natal e, subjacente a ela, a glorificação da mulher brasileira, o auto r revela-nos a maneira como representa a mulher européia, denominada, por ele, “filha dos gêlos”. Representação esta formulada com base em uma visão romântica – poder-se-ia dizer – de mulher e assentada na relação de determinação, por ele estabelecida ou assumida, ent re a geografia de um país e a beleza natural de suas mulheres. Nas palavras do autor,

A filha dos gêlos tem nos olhos a recordação da côr de um céo que là não existe,

porque a mulher è celeste; tem no rosto a côr de neve, e no coração a expressão de um

amôr ideal, continente como um sol que jàmais viram, fanatico como sons que jàmais

ouviram; estas soffrem de tristeza, de saudade, de dôr, e lamentam o que não conhecem,

mas a falta que sentem.

A filha dos gêlos tem uma alma á semelhança do sol bo real, que não é o verdadeiro sol, apparece no horizonte á noite inspirando tristeza, como a luz artificial e mystica das florestas de Oberon. Essa luz se resplandece melancolicamente, a alma dessas mulheres languêce de melancolia, como um luzeiro que se perde nas trevas. Os pinheiros, suas arvores; os carvalhos, seus patria rchas; são os companheiros de seus passeios; as flôres morrem ao nascer, despontam vagar osas; os passaros fogem,

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vão para longe, para o sul, os passaros que são os companheiros do amôr! os prados não tem verde, os campos não tem regatos, as aguas não espumam – é tudo silencio – morte – langor – entorpecimento! (O

Operario, 17 dez.1911, p. 1).

A mulher européia tem olhos azuis, para que se recorde da cor de um céu que lá, onde vive, não existe. Tem a pele clara como a neve. E, no coração, o sentimento de um amor ideal. É a “filha dos gêlos”, cuja “alma de sol boreal” (que não é o verdadeiro sol) sofre de tristeza, de saudade (por razões que o autor nos dará bem mais adiante), de melancolia e de dor. Só inspira tristeza. Mas assim é por ser nativa de um lugar cujos prados não têm verde, cujos campos não têm regatos e onde as águas não espumam. Lugar onde as flores morrem ao nascer e do qual os pássaros, que são os companheiros do amor, fogem em direção ao sul. Na Europa, terra dos gelos, tudo seria “silêncio, morte, langor, entorpecimento”. Com essas lúgubres palavras, o articulista despede -se do leitor, deixando um certo suspense no ar.

Na edição da semana seguint e, essa história teve continuidade, aparecendo no jornal no mesmo lugar de destaque ocupado pela parte anterior. Nessa edição, a (repres ent ação da) mulher européia, ou seja “a mulher do gelo”, “a nympha das neves ”, é relembrada e seus supostos atribut os físicos e psicológicos são, uma vez mais, destacados.

Seu espirito está envolvido sempre n’um véo que á imaginação pretende

romper a cada passo; mas a imaginação que è filha dos tropicos, estando

ali entoxicada de frio não tem mais força e sède á constancia enregelada do

juizo. Uma mulher do norte ama porque tem saudades por amôr, porque o

amôr nasceu nella, como a fé na confirmação – tem um amôr de templo,

um amôr mysterioso! (O Operario, 24 dez. 1911, p. 1).

Nesse momento do discurso, a “mulher do gêlo”, “entoxicada de frio” e sem forç as, “sède á constancia enregelada do juízo” e sai de cena para a entrada triunfal da “filha do Brasil”, que aparece assim descrita:

A filha do Brasil nascida e embalada na verdura americana, acostumada à

elevação e ao sublime, tem enthusiasmo, tem poesia, tem ardôr. Seu

coração està em constante harmonia com a natureza. Se o sol arde no seu

zenith, sua alma se abraza na poesia de seu enthusiasmo. Desde que ella

nasce, as notas das matas, da briza, do zephiro e do correr das aguas a

adormecem no berço. Jovem e inquieta corre louca e sonhando pela

estrada de flôres de seu destino. Ama o colibri, ama a borboleta, ama o

sabia a cantar, ama a côr das laranjas entre verdes folhas, ama o céo e ama

a terra, ama tudo! Depois de tudo haver amado, a imaginação a leva por

entre as orações para o templo, e ella ama a Deus e a sua mãe! O cèo, o

altar, o orgam, o livro de resas, a Ave-Maria, a agua benta, a confissão, são

então para ella só os unicos objetos de amôr. Sai do templo, ama a rosa,

crescem os annos e se apresenta essa fascinadora idade, onde sua

imaginação educada por sua mãi, a natureza e o templo procura de tudo

quanto ama formar uma unica imagem para abraçar – ella anceia! –

desvanece, delira! – fórma um ideal á semelhança de tudo quanto viu e

sentiu.

Então não ha uma harmonia em sua alma que não seja para esse amôr. Ardente e

enthusiasmada busca na linguagem das flôres a liberdade e consôlo que lhe não dão a

educação e a castidade. Seus negros e lindos cabellos brasileiros entrelaçam flôres,

lettras que juntas formam uma sò palavra, um só sentimento. A saudade, primeira

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melancolia de virgem – é a flôr que traz no peito; a sempre-viva, constancia até à

morte, é o juramento que depõe nas tranças, para que lh’o leia o mundo. Sua alma

pura e limpa, sua alma brasileira, poetica e inspirada, tem para tudo uma linguagem.

(O Operario, 24 dez.1911, p. 1).

A “filha do Brasil”, diferentemente da européia, tem entusiasmo, poesia e ardor. Ama a natureza porque c om ela está em constante harmonia. E é essa harmonia que a conduz ao amor divino e ao amor materno, pontos-chave, como se verá mais adiante, da estrutura argumentativa do autor sobre o papel da mulher no “mundo dos homens ”, no mundo que se fez após a expulsão do homem e da mulher do paraíso.

Depois dessa eloqüente louvação à mulher e à terra brasileira, o articulista-poeta retoma sua lógica inicial e assim conclui, de forma c ategórica, esta parte do artigo: “Ah! tudo quanto afaga e acaricia a imaginaç ão possui o Brasil – tudo quanto basta à alma, tudo quanto a torna nobre e poetica possuem as mulheres do Brasil!”. (O Operario, 24 dez.1911, p. 1).

Modelos de mulher: a brasileira e a francesa

Em 10 de março de 1912, quase três meses depois de publicada a penúltima parte do artigo de Corrêa de Azevedo, veio a público a última, também esta publicada na primeira página do jornal, logo após o seu expedient e, e ocupando quase todo o espaço a ela correspondente. Talvez seja essa última parte a mais interessante de todas elas, por trazer inúmeras informações para a discussão das questões apresentadas neste texto. É nela, por exemplo, que o autor tece considerações mais objet ivas sobre a educ ação (escolar) da mulher brasileira, comparando-a com a da mulher européia, mais especificamente com a da frances a. É nessa parte, ainda, que s e evidenciam alguns dos modelos (saberes) culturais em circulação no Brasil, naquele período de sua história, determinantes de muit as práticas sociais. Vamos ao texto, à procura dessas evidências.

A instrucção abundante e rica, essa instrucção que se obtem por meio de trabalho,

possuem as mulheres do norte.

As mulheres do Brasil, cheias da mais brilhante imaginação, ricas de talento e vivacidade, não podem saciar essas faculdades no deleite de uma instrucção variada que lhes sustentasse a alma ambiciosa de progresso. Uma Brasileira poderia com a mais completa intelligencia illustrar-se por tal fórma, que não tivesse nada a invejar dessas mulheres européas, de que tanto se falla; seu espirito seria superior, diante do qual o espirito das mulheres francezas seria apenas uma ridicula figura. (O Operario, 10 mar. 1912, p. 1).

A primeira evidência, trazida pelo discurso de Corrêa Azevedo, denuncia que, comparada às européias, as mulheres brasileiras não eram suficientemente instruídas. Não possuíam “instrucção abundante e rica”, como as européias. Mas eram inteligentes, talentosas, vivazes e “cheias da mais brilhante imaginação”. Se instruídas fossem, nada deixariam a desejar às européias, principalmente às franc esas.

Nessa parte do discurso de Azevedo, perc ebe -se que, no limiar do s éculo XX, modelos culturais bastante em voga no XI X começavam ser questionados por alguns dos membros da intelectualidade daquele período, fossem eles ligados à elite ou não. Que modelos seriam esses? Muitos deles eram

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franceses. São por demais evidentes e conhecidas as estreitas relações de intercâmbio econômic o e cultural que as elites brasileiras mantiveram, ao longo do século XIX, com a Franç a. Não raro, essa elite enviou seus filhos a esse país para que lá pudessem completar seus estudos e “beber” da cultura local. Entre si, essa elite falava em francês, comunicando-se em português apenas com os serviçais. Não por casualidade, a língua portuguesa acabou por incorporar inúmeras palavras do idioma francês ao seu repert ório, adequando-as, evidentement e, às suas regras gramaticais. Isso, para não dizer de inúmeros hábitos e costumes importados e incorporados por essa elite no seu cot idiano.

A presença acent uada da cultura francesa nas práticas e representações sociais no início do século XX começou a ser, por várias razões, questionada. Vivia-se, então, a euforia do regime republicano rec ém-instituído. O Estado nacional brasileiro passava por reformas profundas, acompanhando mudanças que se processavam no âmbito das relações nacionais e internacionais de produção. Levas e levas de imigrantes de diferentes nacionalidades chegavam ao país, cada qual trazendo h ábitos e costumes nem sempre comuns. Era prec iso inventar a nação e o “povo” brasileiro, atribuindo -lhes características “próprias”. E o Estado prontamente desempenhou esse papel, assistido, evide ntemente, por um conjunto de letrados que, faz endo uso de suas armas – as letras – contribuíram para que essa empreitada fosse vitoriosa.

No discurso de Corrêa de Azevedo o questionamento dessas práticas e representações sociais, como se vê, está presente. Questionamento, em um certo sentido, até bastante prec onceituoso, manifesto, por exemplo, quando ele afirma ser a mulher frances a, perante uma brasileira instruída à moda européia, “apenas uma ridicula figura”. Apes ar disso, o país não compreendia as suas mulh eres.

Desgraçadamente porêm o paiz não comprehende as suas mulheres, transplantou de

Paris o que havia de exterior, fez bailes e sociedades, formou um theatro dramatico e

uma ópera, fez brilhar nos camarotes os brilhantes, as sêdas e o ouro, mas excluiu a

instrucção, sem a qual nada disso é devidamente apreciado.

Faz pena vermos uma mocidade tão esperançosa, tão capaz de um sublime progresso, abandonada e entregue á ignorancia, agonisando na falta de distracção immaculada para o espirito! (O Operario, 10 mar. 1912, p. 1).

O articulista, nesse trecho do seu discurso, continua a deplorar as práticas mimét icas, sempre tão comuns, da elite brasileira. Dos modelos culturais importados da França, o país teria excluído a instrução devida à mulher, deixando -a “entregue á ignorancia”, a agonizar “na falta de distracção immaculada para o espirito”. Mas a que instrução o articulista estaria se referindo? Vejamos.

O lugar que a mulher occupa no Brasil è inferior ao seu merecimento, é indigno. Tornam -se mulheres de fitas, de vestidos e de costumes, mas não -se lhes fórma uma educação capaz de as tornar independentes e aptas a serem as melhores mãis do mundo. (O

Operario, 10 mar.1912, p. 1).

A maternidade entra, finalmente, em cena. A mulher deveria ser educada para bem poder cumprir sua missão, como se verá, divina: ser boa mãe, filha extremosa e esposa fiel. Mas, segundo o

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articulista, ao invés de proporcionar-lhe essa educação doméstica, o homem brasileiro preferiu explorar-lhe a sensualidade.

A sensualidade assentuou-se commodamente no meio da sociedade e desfructa como um oriental os primores de suas odaliscas – suas escravas! A sensualidade matou o espirito e a guerra que ella ainda sustenta contra o espi rito bem prova que a mulher do Brasil tem uma missão elevada a cumprir: ella se não satisfaz com o pouco que della exigem em instrucção: o seu coração contrariado dirige-se para a natureza e instrue-se com toda essa belleza natural que a torna tão original com languidez de seus sentimentos e com esse segrêdo fanatico que lhe dá ao olhar uma melancolia arrebatadora e ás palavras uma amorosa expressão. (O Operario, 10 mar. 1912, p. 1).

Mas a mulher brasileira é forte e det erminada. Inconformada por não poder cumprir satisfatoriament e sua missão, buscou na natureza os conhecimentos de que precisava. Toda essa determinação e força de vontade teriam sido, entretanto, uma dádiva divina.

A constancia que caracterisa as mulheres do Brasil é a imagem que representa esse comportamento de virtude e merecimento que não foi a educação que plantou em seu coração, mas Deus. Ellas são as magas desta terra, que dão uma côr local a todas as scenas naturaes que assaz impressionam as estrangeiras que visitam e admiram este paiz abençoado. (O Operario, 10 mar.1912, p. 1).

O homem brasileiro muito teria a aprender se s e propusesse e se empenhasse em estudar a mulher de sua terra.

Quantas inspirações não beberiamos em sua originalidade para as transmittirmos á

nossa litteratura, e quanto não ganharia a familia brasileira com os seus proprios

costumes, sua lingua e seu amôr?!

Mas em lugar de amarmos o que é nosso, puramente nosso, afrancezamos as mulheres e lhes adoramos o typo estrangeiro, o qual não póde produzir senão a confusão dos sentimentos, a irrisão nos costumes e por cons equencia a incompetencia na poesia escripta. (O Operario, 10 mar. 1912, p. 1).

Temos aqui, uma vez mais, a crítica ao comportamento do homem brasileiro que, segundo Corrêa de Azevedo, insistia em ignorar as c oisas da terra e a imitar as personagens da literatura estrangeira que todos liam e estudavam. Mas temos, também, a crença na possibilidade de mudança desse comportamento e o desejo de que um dia todos pudessem compreender que “as nossas mulheres” eram “as circassianas americanas nas fórmas, e as allemãs da America nos sentimentos e no amôr” (O Operario, 10 mar. 1912, p. 1). Com essa crítica e essa crença, temos, por fim, a evidência de que outros modelos culturais, que não apenas os franceses, já circulavam no Brasil daqueles tempos.

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Mulher: “senhora e escrava de todos os séculos”

A primeira parte do artigo de Corrêa de Azevedo, intitulado As nossas mulheres, cujas três últimas partes foram anteriormente apres entadas e comentadas, foi publicada no jornal em 02 de julho de 1911. Essa parte foi iniciada com a seguinte epígrafe, cuja aut oria é atribuída a Engel (e não Engels).

Arrancada á patria, debaixo de um céu estrangeiro, testemunha de seus trabalhos e de suas dôres, a mulher reune um thesouro para a eternidade. A sua alma recebe impressão onde dorme o germem occulto de mil conhecimentos preciosos entre os habitantes do céo. Desta alma despedaçada e cheia de soffrimentos desabrocharão um dia mil virtudes, das quaes a mais sublime, a mais doce, o seu comple tamento, é a perfeição da humanidade, este sagrado amôr que se dá a todos os sêres e até ao proprio inimigo. (O

Operario, 02 jul. 1911, p. 1).

Essa epígrafe traz alguns dos principais element os que nucleiam o pensamento de Corrêa de Azevedo sobre uma presumida contribuição que a mulher traria para a humanidade, sobretudo no limiar dos tempos modernos. A mulher, segundo Engel (sobre quem não temos ainda nenhuma informação), reuniria “um thesouro para a eternidade”. Na sua alma, dormiria “o germem occulto de mil conhecimentos preciosos ” e dela desabrocharia, um dia, “mil virtudes ”, dentre as quais a por ele co nsiderada “a mais sublime, a mais doce, o seu completamento”, qual seja, a perfeição da humanidade. A mulher é vista, assim, como redentora da humanidade. Mas como poderia ela contribuir para que tal redenção se desse? Que “thesouro” ela teria reunido para isso? Que “germem occulto de mil conhecimentos preciosos” seria esse a que o autor da epígrafe se refere? De que pátria teria sido ela “arrancada”? Acom panhemos o raciocínio do articulista, Corrêa de Azevedo, e vejamos se nele encontramos respostas para essas questões.

Logo após a epígrafe, e de uma pers pectiva que se quer histórica, o autor assim situa a mulher:

Grande e sublime, escravisada e profanada, amada e idolatrada,

desperdiçada e abandonada, trahida e corrompida, mas sempre bem vinda

como um pensamento accostumado, è a mulher a senhora e a escrava de

todos os seculos, a quem todos os seculos veneraram, e a quem todos os

seculos deram nas paginas de seus contos e de suas lendas um capitulo

mais ou menos pomposo, mais ou menos infame, mais ou menos sacrilego,

mais ou menos amoroso.

É isto a mulher! (O Operario, 02 jul. 1911, p. 1).

Nesse trec ho do discurso, a mulher ter -se-ia feito pres ente, na história da humanidade, como “a senhora e a escrava de todos os seculos”. Mas por quais razões?

A mulher, flôr que desabrochou sempre no encanto magico de sua innocencia infantil, brincando nas ondulações do berço como anjo alado no seio de um futuro incomprehensivo, teve em todos os tempos essa poesia que fez poeta, ou essa loucura que delirou

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em ardentes corações pelo amôr puro e immaculado, ou pela gloria cheia de seus movimentos tormentosos, que ao fim de sua carreira ou trazem á proscripção, ou um nome que não apaga. (O Operario, 02 jul. 1911, p. 1).

Por enquanto, ainda nenhuma pista. Continuemos.

Ella, a sacerdotiza do coração humano, tremendo nas ancias de sua imcomprehensivel insaciabilidade eterna, teve sempre o poder imantado de prender e mandar, como se a houvesse creado Deus para inspirar no homem esse exemplo de veneração que ao depois do Christianismo foi explicar nas virtudes de Maria, arrancando a mulher dos grilhões da escravidão barbara em que o mêdo e o egoismo dos homens o haviam posto. Maria, a mãi das mulheres; Maria a santa mulher; Maria a mãi christã, foi a reprodução da originalidade de Eva, mas pura e immaculada, tal como Deus tentára apresentar a Rainha do Paraiso. Maria tornou-se a Eva aperfeiçoada na obediencia e no amôr, a esposa do espirito que com santissimo semblante, onde se lhe pintàra a pureza de uma alma divina, ouviu as palavras do anjo que lhe anunciou a maternidade. (O Operario, 02 jul. 1911, p. 1).

Agora, sim, temos algumas pistas que poderão nos levar ao entendimento das questões anteriormente levantadas.

Consideremos, primeiramente, à luz do texto, as razões de ter sido a mulher “a senhora e a escrava de todos os seculos”. Essa história parece remontar aos tempos do Jardim do Éden, aos tempos da criaç ão, por Deus, do homem e da mulher. Deus teria criado a mulher, “com o poder imantado de prender e mandar”, para que servisse de “exemplo de veneração” ao homem. Mas Lúcifer, principal artífice da queda do homem (e da mulher) e da sua expulsão do Éden, fez com que essa história tivesse um outro enredo, diferente daquele inicialmente escrito por Deus. Mesmo c om a expulsão do Éden, sua “pátria”, a mulher teria continuado a carregar consigo suas virtudes originais e a servir de exemplo de veneração aos homens. Por isso, em todos os tempos, ela teria tido “essa poesia que fez poeta, ou essa louc ura que delirou em ardentes corações pelo amôr puro e immaculado, ou pela gloria cheia de seus moviment os tormentosos, que ao fim de sua carreira ou trazem á proscripç ão, ou um nome que não apaga”. Ora inscrita, ora proscrita da história escrita pelos homens, a mulher ter -se-ia feito escrava do homem, objeto de sua veneração, fosse para o bem ou para o mal. Mas essa história teve continuidade. Deus ainda daria uma outra oportunidade à humanidad e, para que ela pudesse se redimir dos seus pecados.

Com o cristianismo, as virtudes da mãe de Jesus, Maria, teriam arrancado a mulher “dos grilhões da escravidão barbara em que o mêdo e o egoismo dos homens o haviam posto”. Maria teria sido “a reproduç ão da originalidade de Eva, mas pura e immac ulada, tal como Deus tentára apres entar a Rainha do Paraíso”. Maria ainda teria tornado Eva “aperfeiç oada na obediência e no amôr”. Por fim, a chave do enigma: um anjo teria anunciado a m aternidade a Maria.

A maternidade (santificada) é a resposta à questão anteriormente levantada sobre a presumida c ontribuição da mulher para a redenç ão da humanidade. P or uma mulher, Maria, o Redentor da humanidade viera ao mundo. Pelas mulheres, inspiradas em Maria, santa (separada, escolhida por Deus para cumprir uma missão) e imaculada (s em pecado), outros homens poderiam vir ao mundo e

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ser por elas educados. Uma verdadeira “revolução” celestial, como conclui o articulista, na seqüência do seu discurso.

Nesta celestial revolução, o coração, que é o apostolo da sensibilidade, teve a mais importante missão a cumprir, derrogando os odios, abandonando a superstição e enchendo-se de mil magicos movimentos por tudo quant o sentia e soffria, teve em recompensa o amôr, amôr a Deus, amôr ao proximo, amôr à mulher. (O Operario, 02 jul.1911, p. 1).

O amor e o culto à mulher deveriam observar, a partir de então, outros critérios, quais sejam, aqueles definidos pela Igreja Católica, mas a ela revelados pela vontade divina. Graç as a esses critérios:

A mulher não se tornou o vulgar instrumento de sensualidade, mas o sanctuario das mais doces affeições que a humanidade contou em seus cantos religiosos. Tinha-se chegado emfim ao tem po que deveria confundir o amôr com a religião, porisso que quando a religião não esteve intimamente ligada à perfeição da mulher, também foi seu culto grosseiro e frio.

Gabriel disse a Maria: Bendita és-t u ent re as mulheres ! e Maria abençoou as mulheres, deu-lhes um culto, uma religião, um amôr e uma biblia.

E com este presente sacramental pareceu a mulher comprehender melhor a sua missão, abençoando com o amor o fructo do seu vent re, tornando-o melhor, mais brando e penitente. A mulher remida e adorada teve na terra os seus altares, onde a magnifica poesia do coração todos os dias prefazia o seu sacrificio inspirado. (O Operario, 02 jul.1911, p. 2).

Maternidade: “eco revelador da história da mulher”

Na semana seguinte, O Operario estampou a segunda parte do artigo de Corrêa de Azevedo. Nesta parte, como na terceira, que veio a público dois meses depois, o articulista continua a situar o lugar que deveria ser dispensado às mulheres na história da humanid ade, a questionar e a c riticar o tratamento que os homens lhes vinham dispensando e a defender um conjunto de princípios e atitudes que deveriam pautar as relações entre os dois gêneros.

O articulista inicia a segunda parte do seu texto reafirmando haver um eco revelador da história da mulher no “espirito de toda humanidade”. Que eco seria esse? Pelo que vimos até aqui, não seria difícil deduzir. Mas vejamos se o aut or t em algo mais a nos dizer sobre o assunto.

A mulher de hoje abatida pela vaidade, escravisada nas etiquet as e deveres, profanada pela estupida sensualidade, ainda, atravez dos seus vestidos de imaginarias côres e modelos, attesta os moviment os desse corpo de sacerdotiza, desse olhar de inspiração, desses labios que psalmaram no templo. A mulher é uma lenda viva, é uma biblia que foi trans vertida em linguas que não s ão as horientaes, em volumes que não são os

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primitivos patriarchas pergaminhos.

A mulher é um composto de passadas recordações, cujo rosto lindo e avelludado ainda nos revela esses rostos de santos que só para o céo se sorriam. A mulher é uma harmonia que foi melodiosamente desprendida pelas vibrações da magnifica lyra do christianismo, ha já muitos seculos, mas cuja musica grandiosa e eterna ainda nol -a conservam, fazendo-nos vibrar o coração aos vinte annos, e nos encantando a alma nesse extasis, nessa religião, nesse culto, nesse s onho, nesse delirio, ou nesse angelico fanatismo a que se chama – amôr! (O Operario, 09 jul.1911, p. 1).

Os olhos do autor vêem a mulher do mundo moderno como uma “lenda viva”, “uma biblia”, que teria sido “ trans vertida em línguas que não são as horientaes, em volumes que não são os primitivos patriarchas pergaminhos“. Ou seja, um ser (divinal) que fora profanado, sobretudo “pela estupida sensualidade”. Mas essa “lenda viva” ainda conservaria traços que testemunhavam a existência de um passado santo e imaculado, tais como: “corpo de sacerdotiza”, “olhar de inspiração” e “labios que psalmaram no templo”. E esses traços seriam reveladores de um “echo eterno”: o amor materno.

Vedados os olhos da innocencia e das primeiras idades, vem -nos apenas revelar esse echo o amôr a nossa mãi; esta, com seu santo amôr nol-o transmitte mais poderosamente, e quando o jovem póde comprehender o amôr de mãi, quando o santifica respeitando-o, é quando a virgem, imagens de suas idealidades, n’um dia, n’um minuto, lhe faz ouvir à alma o som desse acorde que atravessa os seculos, na immortalidade da alma. (O Operario, 09 jul.1911, p. 1).

O jovem só poderia bem c ompreender o amor que os homens deveriam dedicar à mulher, quando bem compreendesse o “amôr di mãi”. E caberia a ela, mãe, ensiná-lo.

Para que não restassem dúvidas sobre o assunto, o articulista introduz várias interrogações, cuidadosamente apresentadas e obs ervando forma literária bastante rebuscada, sobre o desabrochar dos sentimentos masculinos frente ao sexo oposto, t odas elas indicando, entret anto, uma única direção.

que mais é esse sentimento que experimentamos na primeira vez que o olhar, o gosto vergonhoso, o som semi-articulado da sympathia virginal nos vem acordar desse somno que dormimos longo tempo no amôr de nossa mãi?!

Que será esse vago e prompto sentimento que se transmitta mais veloz do que o som, mais rapido do que a luz, mais gracioso do que o sorriso, mais immediato do que o susto?! Que sera esse sentimento vago, occulto, vergonhoso, recatado, que nos prende aos passos de uma mulher, assim como nos prende o vôo compassado e meditabundo de um passaro que vaga no firm amento?! Que serà esse momento que nos rouba a materia e nos deixa somnolentos e cabisbaixos contemplar o pé mimoso da virgem que brinca descuidosa com uma flôr cahida do seio por descuido amoroso?! Que serà esse sonho fanatico e santo que nos livra das concepções terrestres, e deposita nossas reflexões nas dobras alvissimas de um collo pudico, que movendo-se nos faz estremecer a alma, nos conserva ali, nos adormece, nos induz, nos insinua n’um mundo de fadas,

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onde tudo é bello, juvenil, é sublime e poetico?! Que será esse movimento que nos faz não querermos ser nós mesmos naquella occasião e nos depõe o coração nas polidas ondulações dos cabellos annelados de uma virgem, e ali nos oscula, nos acaricia, nos faz delirar envolvendo-nos como zephyros por entre esse fim que se tornam outras tantas mil seducções que agrilhoam o pensamento, nos carregam de suspeitas, de ciumes e de poesias?! (O Operario, 09 jul. 1911, p. 1).

E, finalmente, a confirmação da direção dessas questões, desse saber anunciado, revelado.

Não será tudo isso o amôr!? O amôr, que é essa harmonia vibrada, esse canto psalmeado, esse hymno entoado ha muitos mil annos, que ainda nos espaços de encontro dos mil mundos luminosos vai echoando, vai resoando eternamente aos ouvidos das gerações que passam, das gerações que voltam, das gerações que existem?! Não serà esse amôr um echo eterno, tão eterno como a alma, porisso que ella è o resultado do amôr?!

E a mulher è a depositaria desse amôr, è o tabernaculo que contem as táboas de seus mil encantos, sacerdotiza encarregada de as lêr sem fallar com os labios, de os cantar sem sons à humanidade que comtempla a meiga belleza de suas feições e dos dotes de sua alma.

A mulher representa o amôr – o homem representa o culto. (O Operario, 09 jul.1911, p. 2).

A tese da queda, da proscrição do homem do paraíso, e a possibilidade de s ua redenção, pela obediência da mulher às ordenaç ões divinas (ser mãe), é uma vez mais aqui reafirmada. Tudo o mais que estivesse fora dessa relação c ristã (mais especificamente católica) entre os gêneros deveria ser banido da sociedade.

São olhos que não vêem, por não poder ou não querer ver a mulher e o homem na sua totalidade concreta. V êem, ou deveriam ver, apenas o s eu “espírito”, posto ser essencialmente cristão o amor que se lhe deveria dedicar. “A mulher é uma harmonia que foi mel odiosamente desprendida pelas vibrações da magnifica lyra do christianismo”, diz o autor. Em decorrência desse entendimento, a mulher só poderia ser vista e venerada como mãe, mi ssão que lhe fora por Deus atribuída.

Mulher cristã: exemplo de renúncia

Passados quase dois meses, os leitores do jornal puderam conhecer a terceira parte do artigo de Corrêa de Azevedo, também ela publicada em lugar de destaque no jornal, ocupando o espaço comument e reservado ao editorial. Nesse passo, o autor retoma e apr ofunda aspectos anteriormente apresentados.

A imagem de mulher, a seguir apresentada, mais se aproxima da imagem de uma daquelas figuras femininas santificadas pela Igreja Católica, do que propriamente da de uma mulher pertencente ao mundo dos vis mortais.

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Companheira do homem, allivio na sua desgraça, essa proscripta do paraiso sem cessar prova o seu doce arrependimento na continencia do soffrimento, na fôrça da alma, e na perserverança da obrigação.

Muda na presença do injusto, seu despota, quando este lhe lança os sarcasmos de sua

ira, a mulher sò acha na sua alma um sorriso brando para dar- lhe, ou dobra a fronte

sôbre o peito para receber o castigo: – tão santa que imita do Christo e dos martyres a

humanidade!

A injustiça e a calumnia, ella as recebe com aquelle costume de padecimento que tão perfeitamente copia do Redemptor, como se sua moradia não fosse da terra!

Quando o mundo brasphema e a condemna; quando o mundo ergue cruzes pra crucifical -a n-a opinião public-a; ell-a, -a humilde s-ant-a, pôe p-ar-a o cèu -as mãos, là fix-a seus humildes olhos exclama: assim seja! (O Operario, 03 set. 1911, p. 1).

Essa imagem caricatural de mulher muito faz lembrar a figura de Maria Madalena, igualmente retratada nos textos bíblicos do Novo Testamento. Aí, a mulher é apresentada como um ser alienado de si mesmo, sem identidade e vontade própria, a “viver” em função sempre do outro. Verdadeiro arremedo de mulher.

A sociedade sacrifica mil victmas em holocausto de seus caprichos, e depois que ha consummado seus crimes, não quer arrependimento, não quer remorsos, mas ri -se sarcasticamente e exclama furiosa á mulher que por obediencia e humildade se prestou a seus erros: É uma mulher! Resumindo neste termo a mais ignobil das condições. (O

Operario, 03 set.1911, p. 1).

Mulher sem vontade própria, mulher -objeto, que se presta a servir a todos, sem nada pedir em troca. Assim procedendo, espia o seu pecado original – a desobediência a Deus.

A’ mulher se assignalaram todos os mais pesados deveres; o homem guardou para si

os direitos. O pai christão jà se acostumou a educar a filha para escrava de um outro

despota, ou para um méro objecto de luxo; no entretanto que cria no filho o caracter

de independencia, de arrogancia, e de magestade. O homem que buscou ser mais

independente; não procurou para seu filho, o mimoso ornamento de sua familia,

tambem uma posição independente.

A isto se não chamaria falta de amor, falta completa, mas sim costume, ou dever paternal. Tão errado vae o seculo! (O Operario, 03 set.1911, p. 1).

Nem mesmo no seio da família é considerada uma igual. Reza o costume que ela deveria ser criada (educada) para servir aos homens. Primeirament e ao pai e aos seus irmãos. Depois, ao marido e aos filhos. E ela o faz com muita resignação e amor no coração, pois “sabe” ser essa a sua missão (divina) em “terra estrangeira” (fora do paraíso).

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No entretanto tu, pai, tu chefe de familia, quem te adoçou as horas de dissabôr, quem

no leito da enfermidade te serviu de anjo guardião? Não foi a filha querida? Teu filho

vagava então no mundo; arrastava-se nos tapetes da sociedade quando gemias;

applaudia com furor as vaidades mundanas quando anciavas; osculava com os labios,

com que te oscùla as faces venerandas, as sujas faces do vergonhoso crime, quando

tua filha em tua agonia chorando te beijava a fronte encanecida e muito respeitada.

Ah! pobre escrava, tão comndenada a amar e a não ser amada! tão com ndenada a soffrer e não ter direito de se queixar! (O Operario, 03 set.1911, p. 1).

Tão errado foi e vai o século! O gênero masculino, aqui representado pela figura do pai, não chega a ser propriamente recriminado por suas atitudes e comport amentos frente à mulher. A esses comportamentos e atitudes masculinos “não se chamaria falta de amôr, falta completa, mas sim costume, ou dever paternal”.

Todo sofrimento terreno da mulher seria um dia, entretanto, recompensado.

Este martyrio é santo, e tão santo que sò tem no céo a recompensa. Um dia para lá voltarà a m ulher sôlta das garras do despota que a fez escrava, para ser adorada pelos anjos e brilhar com a pureza de suas virtudes, recebendo as recompensas que Deus dá aos justos e aos callados soffreram. A sciencia da dôr que ella soffreu serà então premiada com a immortalidade gloriosa. A illustração que lhe não quizeram dar, os anjos lhe ensinarão. A liberdade que jàmais possuiu, a terà no espaço livre e incomprehensivel do infinito. O amor que lhe roubaram ou profanaram, Deus lh’o darà puro e santissimno de sua propria Divindade, e, remida para sempre, a mulher será dos bemaventurados a companheira inseparável, a amiga, a mãi, a irmã dos habitantes do cèo. ( O Operario, 03 set.1911, p. 1).

Após seu passamento, quando então começaria a viver e a usufruir as delícias da cidade celestial, a Nova Jerusalém, todas as carências terrenas da mulher seriam então supridas. Finalmente ela encont raria a paz de espírito, a imortalidade da alma, a ilustração que lhe fora negada, a liberdade c om que tanto sonhara, o verdadeiro amor (o amor divino), o companheirismo, a amizade e a frate rnidade dos habitantes da cidade celestial.

De acordo com esse discurso, somente a morte, que é a negação absoluta do ser, poderia libertar a mulher da sua alienação, da sua condiç ão de escrava (do homem e da sociedade). Viva, a mulher deveria resignar -se e ac eitar sua condição de ser errante (estrangeira), porque proscrita do paraíso. Deveria sofrer tudo calada, sem se queixar, posto ser esse o preço que deveria pagar, por sua desobediência a Deus e c omo garantia de um dia poder regressar à pátria querida.

A missão da mulher (fosse ela operária ou não) foi assim apresentada e exaustivamente trabalhada por Corrêa de Azevedo e outros colaboradores do jornal O Operario. Ser boa filha, espos a e mãe era uma missão que se queria fosse divina. É possível que boa parte das mulheres daquela época tenha acreditado piamente nessa máxima. Não sabemos. Entretanto, nem todas, como se verá, puderam (ou quiseram) criar e educar seus filhos orientando-se por ela.

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A mãe rica e a mãe operária

O texto que segue, intitulado A’s mães operárias, é colaboração de uma articulista que se identifica como “Uma operaria”. O texto foi publicado no jornal em 31 de dez embro de 1911, seis meses após a greve vitoriosa dos tecelões sorocabanos, pela redução da sua jornada de trabalho. Com uma jornada de trabalho reduzida, que iniciava às 5h da manhã e se estendia até às 17h, os operários sorocabanos já podiam freqüentar as escolas noturnas locais, que iniciavam suas atividades às 18h. Segundo o jornal, a greve teve como única finalidade criar as condições objetivas para que isso ocorresse. Com uma jornada de trabalho que se estendia, antes da greve, até às 21h, isso não era possível.

Essa colaboradora dedicou a sua “mes quinha e obscura collaboração” às pobres mães operárias, que diariamente abandonavam suas casas e seus filhos e iam trabalhar a fim de poderem ajudar seus maridos na luta pela sobrevivência. Assim ela se expressou:

A vò z pobres mães operarias, que sois obrigadas a abandonar os vossas mizeros e humildes cazebres, os vossos ternos e queridos filhinhos, deixando-os muitas vezes em poder dos estranhos, ou de algumas filhas ainda de menor idade, a fim de poderdes ajudar os vossos esposos na dura luta quotidiana, dedico hoje esta minha mesquinha e obscura collaboração. (O Operario, 31 dez.1911, p. 1, grifo nosso).

Pode-se dizer, por essa dedicatória, que a colaboradora deve ter freqüentado, com uma certa regularidade, as páginas do jornal, uma vez que, naquele dia (“hoje”, no trecho supracitado), dedicava sua colaboração às “pobres mães operarias”. Procurei -a no jornal pelo pseudônimo com o qual assinou o artigo aqui c omentado, mas não a localiz ei. É possível, também, que tenha usado outros pseudônimos ou até mesmo deixado de assinar seus textos.

Duas imagens de mulher – a “rica” e a “pobre” – destacam-se no discurso dessa colaboradora. Enfatiza-se, em um e outro caso, as condiç ões materiais da vida de cada uma.

Em quanto as mães ricas viram-se descuidadosamente no seu leito macio, pensando,

muitas vezes, no que melhor empregar o seu ouro, nós, os operarios, lutamos desde

cedo até á noite com o trabalho; enquanto os seus filhos frequentam collegios, bôas

escolas, os nossos, pobres, veem-se obrigados passar o dia todo no fundo dessas

fabricas, sem tempo quasi para aprenderem alguma couza a noite.

Choramos e temos razão para isso porque, não obstante [s]ermos pobres operarias, que vi vemos chorando amargamente, não encontramos uma alma caridosa que venha suavisar as nossas dores de mães amantissimas.

As lagrimas das ricas são guardadas como quem guarda um thesouro ...

Se vó z, caras collegas, fazeis, economia para comprar alguns metros de grosso riscado para com elle agazalhar o mizero corposinho de vossos filhos simi-nus, ellas, os ricos, gastam com abundancia em sedas e fina cambraía, pondo -se em seguida a se exhibirem, envolvendo-nos com o seu olhar desprezador e altivo!...

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Porque toda essa indefferença, esse orgulho todo, si tudo neste mund o é nada, tudo è pó? [...} (O Operario, 31 dez.1911, p. 1).

A indiferença para com a miséria e o s ofrimento vividos pelo operário (“não encontramos uma alma caridosa que venha suavisar as nossas dores”), o orgulho e a altivez das “ricas ” (“a se ex hibirem, envolvendo-nos com o s eu olhar des prez ador e altivo”) parecem ser o que mais incomoda a essa observadora dos costumes e dos hábitos culturais de uma e outra classe. A mãe “rica” tudo tem, tudo pode, sem ter de trabalhar. A “pobre” quase nada tem a oferecer a seus filhos, nada pode, embora se esfalfe de tanto trabalhar.

Porventura não tereis vóz o mesmo direito de desfructar com ellas, pobres operarias?

Não! Vòz respondereis: – porque ellas são ricas, e por isso não comprehendem os

nossos martirios.

Aquelle, dinheiro que ellas atiram as mãos cheias ao rigor da moda, não é mais do

que ganho com o nosso suor [.. ]. (O Operario, 31 dez.1911, p. 1).

O apelo a determinados sentimentos humanos, como os de justiça (humana e divina), auto-estima e principalmente o mat erno, é uma das principais estratégias de persuasão utilizada por essa articulista.

Ensinai, pois, mães, os vossos filhinhos, mandae-os para a escola, afastae-o desses terriveis sangue-sugas que se chamam industriaes, para que mais tarde possais ver em vossos filhos um cidadão activo, instruido. Vamos minhas bôas Amigas, deixeis de muita crença, que tudo o que nos contam não è mais do que illusão. Unamo -nos, operarias, instruimos os nossos filhos, para que elles mais tarde sejam homens, cidadões livres, fortes deffensores da nossa Classe. (O Operario, 31 dez.1911, p. 1).

A que crenças estaria a articulista se referindo? Como, com o que e por quem a classe operária sorocabana estaria sendo iludida? São perguntas para as quais ainda não encontramos repostas satisfatórias.

Percebe-se, nesse discurso, a manifestação de uma clara consciência de classe. A exploração econômica sofrida pela classe operária é sabida e sentida na própria pele. As razões dessa exploração, a julgar pela tese defendida pela articulista para a superação (negação objetiva) da situação de miséria vivida por aquele operariado, nem tanto. Nesse trecho final do seu discurso, o sentiment o transmitido é o de renúncia (pelo menos assim me parece). Renuncia-se a favor dos mais jovens, em nome de q uem se deposita a esperança da defesa futura da classe. E isso, pela educação. P ela ed ucação escolar? P arec e que sim. Mas, ao que tudo indica, não a educação oferecida pelas escolas noturnas locais, criadas para o operariado. O objeto do desejo da articulista parece ser os “collegios” e as “bôas escolas” freqüentados pelos filhos das “mães ricas”, onde, possivelmente, boa formação era dada. Pela instrução, pela boa educação dada aos filhos, a articulista acreditava ser poss ível superar as precárias condiç ões de vida do operariado.

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A mãe burguesa e a mãe anarquista

Elvira, uma das mulheres que mais freqüentaram as páginas de O Operario, é quem assina o artigo A Burgueza e a Anarchista, publicado no jornal em 12 de janeiro de 1913, um pouco antes do abrupt o encerramento de suas atividades. Elvira deve ter sido muita próxima, do ponto de vista político e ideológico, dos redatores do jornal, a julgar pelo es paço que estes sempre lhe reservaram em suas páginas, publicando seus artigos na primeira ou até mesmo no espaço c orrespondente à primeira coluna, normalmente utilizado pelo redator para a publicação de seus próprios textos ou de autores com os quais ele se afinava, polít ica e ideologicamente.

Elvira escreveu sobre vários assuntos. Por razões óbvias, escolhemos este em que ela se manifesta sobre gênero e classe social. Não por acaso, decidi encerrar este texto com as suas refl exões. Trata-se de uma voz que destoa da grande maioria dos colaboradores do jornal, sejam eles homens ou mulheres, sobre o t ema aqui t ratado. Por ser uma voz destoant e, pode nos revelar alguns segredos. Essa decisão envolve questões de método, mas também expressa uma tomada de posição política e ideológica do pesquisador frente à construção do conhecimento histórico.

Vejamos, então, c omo Elvira refletiu sobre o cotidiano das mulheres do seu tempo e que mensagens ela procurou transmitir -lhes. Não só a elas, evidentemente, mas a todo o público leitor do jornal, fosse ele: homem ou mulher; operário ou capitalista; liberal ou anarquista.

A educaç ão, principalment e aquela que todos recebemos desde os primeiros dias de nossas vidas no seio da família e da comunidade da qual ela participa, responsável por mu it os dos hábitos e c ostumes que adquirimos e valores que moldam o nosso caráter, é o primeiro e mais importante aspecto abordado por Elvira neste seu artigo, assim iniciado:

A irregularidade e a falsidade de muitos individuos depende da educação que

recebeu na sua infancia. Tanto o homem como a mulher modernos passam de um

estado ao outro sem enthusiasmo, sem fé.

A mulher especialmente o unico fim que ella aspira é aquelle de ter uma casa propria, de brilhar segundo o grau e de gosar todos os prazeres. As moças ricas se fazem esposas e mães sem verem o verdadeiro senso da vida na maternidade – os filhos são sempre um accidente de des agrado que lhe deforma o corpo e consoma-lhe a belleza – mais o senso da vida o procuram nos prazeres amorosos, na comodidade, nas relações mundanas. (O

Operario, 12 jan.1913, p. 1).

Na sociedade moderna, a palavra de ordem é a reiteração, tendo em vista a perpetuação do status quo. Homens e mulheres modernos passam da infância à vida adulta “sem entusiasmo, sem fé”, levando consigo o primeiro aprendizado, a educação recebida na infância. A mulher moderna aprendeu, com sua mãe, a aspirar à casa própria e ao gozo dos prazeres. Aprendeu, também, a se fazer esposa e mãe, mas sem compreender o verdadeiro sentido do casamento e da mat ernidade. Esta última, concebida como um acidente desagradável e deformador do corpo. A mulher moderna

Referências

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