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Filosofia como atividade agonística investigativa : concepções de ensino de filosofia

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

JOSÉ AURI CUNHA

FILOSOFIA COMO ATIVIDADE AGONÍSTICA

INVESTIGATIVA: CONCEPÇÕES DE ENSINO DE FILOSOFIA

CAMPINAS – SP

2019

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JOSÉ AURI CUNHA

FILOSOFIA COMO ATIVIDADE AGONÍSTICA

INVESTIGATIVA: CONCEPÇÕES DE ENSINO DE FILOSOFIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Educação, na área Educação.

Orientador:

Professor Doutor ROBERTO AKIRA GOTO

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEFENDIDA PELO ALUNO JOSÉ AURI CUNHA, E ORIENTADA PELO PROF. DR. ROBERTO AKIRA GOTO.

CAMPINAS – SP

2019

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Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Cunha, José Auri, 1957-

C914f Filosofia como atividade agonística investigativa: concepções de ensino de filosofia / José Auri Cunha. – Campinas, SP: [s.n.], 2019.

Orientador: Roberto Akira Goto.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Filosofia. 2. Ensino de filosofia. 3. Experiências. 4. Pensamento. 5. Problema. 6. Filosofia - Investigação. I. Goto, Roberto Akira, 1954-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Philosophy as investigative agonistic activity: conceptions of teaching philosophy Palavras-chave em inglês: Philosophy Teaching philosophy Experience Thought Problem Philosophical investigation

Área de concentração: Educação Titulação: Mestre em Educação Banca examinadora:

Roberto Akira Goto [Orientador] Marcos Antônio Lorieri

Silvio Donizetti de Oliveira Gallo Data de defesa: 30-08-2019

Programa de Pós-Graduação: Educação

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-3430-2918

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Título: FILOSOFIA COMO ATIVIDADE AGONÍSTICA

INVESTIGATIVA: CONCEPÇÕES DE ENSINO DE FILOSOFIA

Autor: JOSÉ AURI CUNHA

COMISSÃO EXAMINADORA

Prof. Dr. Roberto Akira Goto – Orientador Prof. Dr. Marcos Antônio Lorieri – Membro

Prof. Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo – Membro

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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Dedicatória

A meus mestres de práxis pedagógica, Jocimar Archangelo e Ausonia Donato.

Jocimar Archangelo, fundador do Colégio Equipe (SP), e diretor nos anos em fui professor de filosofia do ensino médio, entre 1986 e 1995, por me fazer acreditar que para envolver os alunos em uma experiência filosófica genuína é necessário que o professor dê exemplo de saber exercitá-la com maestria.

Ausonia Donato, diretora pedagógica do Colégio Equipe (SP), por me fazer cuidar da experiência significativa dos alunos como base de sua experiência filosófica, ensinando-me que esta somente será genuína na medida em que o professor conheça o mundo subjetivo e social de seus alunos.

A Marcos Lorieri, meu primeiro mestre nas implicações formativas das potências do pensamento criativo, crítico e cuidadoso, alicerce da investigação filosófica.

Com ele aprendi, em uma palestra sua em 1994, que o pensar por si próprio é condição necessária, embora não suficiente, para a autonomia intelectual, a produção autoral de conhecimentos, e para a autonomia moral, autogoverno de si na gestão das exigências externas e internas. E que a curiosidade do infante, a qual precisa se enraizar já em seu aprender a falar, constituirá a base do pensar por si próprio do adulto.

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Agradecimentos

A Roberto Akira Goto, por ter aceitado e conduzido a orientação deste trabalho até seu “desencantamento”;

A Silvio D. O. Gallo, Marcos A. Lorieri, por terem aceitado participar da banca de exame e por suas arguições propiciadoras de reflexões e acalorados debates;

A Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio e Samuel Mendonça, por terem aceitado participar como membros suplentes da banca de exame, e ficado a postos para a iminência de substituir na última hora um titular acometido por um imprevisto;

A Walter O. Kohan, por sua leitura minuciosa e paciente por ocasião da qualificação, e que embora não tenha podido estar na defesa, suas percucientes observações serviram de baliza para a escrita deste texto totalmente novo;

A todos, agradeço pela generosidade e pela amizade, e sobretudo, pelas contribuições enriquecedoras.

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RESUMO

A partir do levantamento e da análise dos principais livros didáticos de filosofia adotados nas escolas de ensino médio no Brasil, este trabalho pretende caracterizar, em seus traços gerais, as concepções de filosofia e de ensino de filosofia, das quais esses livros seriam representantes. Visando elaborar critérios para a análise comparativa nessas propostas de ensino de filosofia, quanto às concepções de filosofia e de pedagogia filosófica, foram retomadas para exame os seguintes conceitos: dicotomia ‘ensinar alguma história da filosofia’ versus ‘ensinar alguma forma de atividade filosófica’, em Kant e Hegel; experiência, experiência reflexiva e experiência de pensamento como reconstrução da experiência, na filosofia de John Dewey; e reconstrução historiográfica em filosofia ad mentem auctoris, segundo a visão de Oswaldo Porchat Pereira. O propósito dessa análise comparativa é situar a proposta de pedagogia filosófica do livro didático Iniciação à investigação filosófica, escrito pelo autor deste trabalho ainda no ano de 1992, que se pauta por uma concepção de filosofia enquanto atividade de investigação agonística a partir de problemas filosóficos atuais, tendo sua concepção de ensino orientada para transformar experiências didático-pedagógicas em experiências filosóficas, significativas para a relação do aluno com sua compreensão de si e do seu mundo.

Palavras-chave: Filosofia, ensino de filosofia, experiência filosófica, problema, investigação filosófica, pedagogia filosófica.

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ABSTRACT

From the survey and analysis of the main textbooks of philosophy adopted in high schools in Brazil, this work aims to characterize, in its general features, the concepts of philosophy and philosophy teaching, of which these books would be representatives. In order to elaborate criteria for the comparative analysis in these proposals of philosophy teaching, with regard to the conceptions of philosophy and of philosophical pedagogy, the following concepts were considered for examination: dichotomy 'teaching some history of philosophy' versus 'teaching some form of philosophical activity', in Kant and Hegel; experience, reflexive experience and experience of thought as reconstruction of experience, in the philosophy of John Dewey; and historiographical reconstruction in philosophy ad mentem auctoris, according to Oswaldo Porchat Pereira. The purpose of this comparative analysis is to situate the proposal of philosophical pedagogy of the textbook “Iniciação à investigação filosófica” (“Initiation to the philosophical investigation”), written by the author of this work still in the year of 1992, that is guided by a conception of philosophy as agonistic investigation activity from current philosophical problems, and its conception of teaching oriented to transform pedagogical experiences into philosophical experiences, meaningful to the students relationship with the understanding of himself and of his world.

Palavras-chave: Philosophy, philosophy teaching, philosophical experience, problem, philosophical investigation, philosophical pedagogy.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO CAPÍTULO 1 – CAPÍTULO 2 – CAPÍTULO 3 – CONCLUSÃO Referências Bibliográficas ...

FILOSOFIA E SEU ENSINO: CONCEPÇÕES VIGENTES ....

CONCEPÇÃO DE FILOSOFIA E SEU ENSINO COMO ATIVIDADE AGONÍSTICA INVESTIGATIVA: Proposta do livro “Iniciação à investigação filosófica” ...

FILOSOFIA E SEU ENSINO: COMPARAÇÃO ENTRE CONCEPÇÕES, UM BREVE BALANÇO ...

... ... 10 14 63 103 119 122

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APRESENTAÇÃO

A partir do levantamento e da análise dos principais livros didáticos de filosofia adotados nas escolas de ensino médio no Brasil, este trabalho pretende caracterizar, em seus traços gerais, as concepções de filosofia e de ensino de filosofia, das quais esses livros seriam representantes.

No primeiro capítulo, essa tarefa é levada a cabo, esboçando os grandes movimentos e suas inflexões na história das relações do Estado com a sociedade brasileira, quanto às demandas específicas feitas ao papel da educação e, em particular, do ensino de filosofia. A chave interpretativa que alinhavou esse esboço histórico foi a de que, a cada estabelecimento de padrões hegemônicos nas relações de pacto social e de projeto para os país, entre as forças que exercem o poder no Estado e as forças a elas subordinadas na sociedade, modelos de educação e de concepção de ensino de filosofia foram demandados, e muitas vezes expressos, de modo impositivo ou orientativo, por meio de documentos oficiais. No esboço feito para o estabelecimento das inflexões relevantes ao ensino de filosofia, o pano de fundo foi construído a partir do Brasil da primeira República, apoiado nos bastidores pelo lastro de construção histórica do Brasil Império e Brasil Colônia.

A hipótese desenvolvida nesse capítulo, visando situar o mapeamento e análise das concepções de filosofia e de ensino propostas nos livros didáticos, foi que, a partir da Revolução de 1930, três grandes inflexões que se deram nas relações entre Estado e sociedade brasileiras impactaram decisivamente nos parâmetros impositivos ou orientativos com que o Ministério da Educação, criado a partir de então e ainda vigente nos mesmos marcos institucionais, induziu rumos para a educação e para o ensino de filosofia. Cada uma dessas inflexões guardaria estreita relação conceitual, embora não necessariamente temporal, com as três grandes LDBs (Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) – a de 1961, 1971 e 1996. Em geral, observa-se que cada uma dessas LDBs sistematiza e institucionaliza debates que começaram dez anos antes.

Assim, a primeira inflexão dataria dos anos 1950; a segunda, dos anos pós-1964 até o declínio do Regime Militar; e a terceira, teria se iniciado nos anos 1980, ainda em curso.

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Os livros didáticos selecionados para análise filiam-se a essa terceira inflexão na educação e no ensino de filosofia. Seus referenciais de concepção de filosofia e de ensino acham-se aí estabelecidos, embora dialogando com os referenciais das outras inflexões, que por serem meramente inflexões pertencem a uma certa linha de continuidade histórica, contendo apenas reorientações, não rupturas.

Porém, o primeiro capítulo é iniciado pela retomada das visões de Kant e Hegel sobre ensino de filosofia, a respeito do que deve ser central nas pedagogias filosóficas e nos currículos: o exercício do filosofar ou o conhecimento da filosofia dos grandes mestres. Essa retomada se faz necessária, dada a importância assumida sobre o lugar da história da filosofia, em detrimento, às vezes, da atividade filosófica propriamente dita, em nossas práticas escolares e nos livros didáticos disponíveis. Mesmo que “não esqueçamos que a História da Filosofia, como tal, é coisa do século XIX”(PORCHAT PEREIRA, 2005, p.119), a dicotomia ‘ensinar alguma história da filosofia’ versus ‘ensinar alguma forma de atividade filosófica’ tem sido apresentada como sendo originária e constitutiva de todo processo do pensamento filosófico, princípio pedagógico agravado entre nós, pelo fato de que conhecer a história da filosofia tem sido interpretado como dominar exaustivamente os textos e o sistema completo de pensamento do autor, na perspectiva de sua reconstrução ad mentem auctoris (id., p. 118). Sob pena da acusação, nem sempre fundamentada, de ecletismo ou charlatanismo, o que seriam pecados incontornáveis em filosofia.

Diferentemente, o exercício do filosofar não exigiria nem reconstrução fiel e completa de um sistema filosófico, nem domínio da interpretação canônica dos textos dos filósofos estudados, mas tão-somente a compreensão rigorosa de como eles abordaram e resolveram os problemas que investigaram, no contexto em que as suas abordagens e suas soluções foram consideradas pertinentes, cabendo, deste modo, problematizações sobre sua pertinência e atualidade, e sobre a relevância de suas apropriações conceituais em vista dos novos problemas e dos novos contextos em que a atividade filosófica esteja sendo exercida. A chave interpretativa aqui seria “repensar o já pensado, para pensar o ainda não pensado”.

O caminho do meio nessa dicotomia também foi considerado, por ocasião dessa retomada de Kant e Hegel, em que o exercício filosófico seria realizado tendo por finalidade realizar percursos temáticos a fim de obter, enfim, a reconstrução e a veneração de grandes sistemas filosóficos e dos filósofos clássicos, merecedores daquela autoridade que confere aos mortos governarem os vivos.

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O segundo capítulo detém-se na análise da proposta do livro Iniciação à investigação filosófica, escrito pelo autor deste trabalho ainda no ano de 1992, quando iniciava sua atividade docente no ensino médio, no Colégio Equipe (SP). Essa escola foi o lugar onde o autor encontrou solo fértil e apoio pedagógico para desenvolver sua proposta de ensino de filosofia, deixando em segunda prioridade, isto é, em suspenso, suas pesquisas acadêmicas em Lógica e Filosofia da Ciência, na área de filosofia da historiografia.

Nesse capítulo é analisada a concepção de filosofia adotada nesse livro didático, descrita como atividade de investigação agonística a partir de problemas filosóficos atuais, e a sua concepção de ensino orientada para transformar experiências didático-pedagógicas em experiências filosóficas, na relação do aluno com sua compreensão de si e do seu mundo, por meio de trabalho nos planos do pensamento e da linguagem, via exercícios agonísticos de argumentação e contra-argumentação praticados na oralidade, leitura e escrita.

No desenvolvimento desse capítulo, além de ser feita a apresentação do livro quanto às diretrizes e fundamentos da concepção de filosofia e seu ensino, foi necessário retomar o conceito de experiência, intuitivamente formulado por ocasião da elaboração da proposta, agora reconstruído à luz da filosofia de John Dewey, na época situada como horizonte aparentemente longínquo, embora ainda muito vivo nas práticas de muitas escolas, em especial, as escolas experimentais de São Paulo, de cujas concepções o Colégio Equipe (SP), em certa medida, julgava-se herdeiro, nos idos da década dos anos 1970 e 1980.

No terceiro capítulo é feita uma breve análise comparativa entre as propostas dos livros didáticos selecionados como representantes das concepções de filosofia e seu ensino vigentes no Brasil. Nele, são destacados como critérios para essa análise comparativa o lugar da história da filosofia e da interpretação historiográfica dos textos da tradição, além do lugar da experiência de pensamento, dos conceitos e das competências filosóficas. Com base nesses critérios, reconhece-se que os diferentes livros didáticos contemplam de maneira razoavelmente equilibrada todos esses critérios, embora com claro destaque de preferencialidade de caráter conteudístico para a apresentação de conceitos firmados no cânone da história da filosofia, esta considerada ora como central, ora como referencial dos currículos propostos, seja para iniciar, seja para finalizar os percursos temáticos a serem desenvolvidos. A ideia mesma dos autores didáticos de nuançar a diferença entre tema e percurso, ao mostrar o diferencial de suas propostas, serviria ao propósito de amenizar essa ênfase preferencial dada à história da filosofia como sendo o fio condutor dos conteúdos do

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pensamento e da experiência de pensamento filosóficos, selecionados como objetivos gerais e específicos do ensino de filosofia.

No capítulo final que figura como Conclusão, ressalta-se que o livro Iniciação à investigação filosófica, mesmo que contemple a história da filosofia apenas como instrumental, tendo em vista sua abordagem de problema/investigação, dando maior peso à leitura filosófica orientada para a apropriação de conceitos que para a hermenêutica problemática de sua semântica e sua lógica interna, não deixa de ser possuidor de apreciável valor educativo e filosófico, e não deseduca quanto ao valor atual embora instrumental do patrimônio de construtos do pensamento instituído como história da filosofia. Em contraponto, o estudo aponta que justamente o considerar a história da filosofia a partir de seu valor instrumental oferece um encaminhamento fértil ao pensamento filosófico rumo à sua vocação de raiz, qual seja a de examinar, desenvolver e consolidar em bases conceituais os pressupostos de caráter estruturante próprios da cultura, esta considerada como o solo de origem de onde emergem os problemas para a investigação, e principal beneficiária de suas soluções.

Assim, considerar a história da filosofia como instrumental, tanto no ensino quanto na pesquisa, poderia oferecer um horizonte propício para a criação filosófica autêntica, por permitir que problemas situados na sua cultura de origem possam dialogar com os construtos conceituais da história do pensamento filosófico.

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Capítulo 1

FILOSOFIA E SEU ENSINO: CONCEPÇÕES VIGENTES

Apresentação do problema

A questão sobre as diferentes concepções de filosofia e de seu ensino, tal como vêm sendo desenvolvidas pelos livros didáticos no atual ensino médio, é tomada como objeto deste capítulo. A linha de abordagem adotada busca fazer caracterizações gerais não exaustivas de algumas das principais propostas, selecionadas pela sua importância no meio escolar, e no debate acadêmico sobre o assunto. Pretende-se apoiar essas caracterizações gerais em um cenário esboçado visando de modo tentativo uma compreensão histórica do contexto onde elas são validadas, quer por documentos legais, quer pela sua fundamentação metodológica.

O propósito deste capítulo é, portanto, esboçar um quadro de referência que conjugue questões sobre filosofia, filosofar e o ensino de filosofia, a fim de, frente a ele, elencar, classificar e comparar as principais concepções de filosofia e seu ensino que se fazem presentes nas principais propostas pedagógicas dos livros didáticos de filosofia adotados atualmente no ensino médio no Brasil. As breves análises e comparações entre os diferentes modelos, nos quais é razoável categorizar a variedade de propostas vigentes, visam a explicitar as implicações que essas concepções imprimem no quadro de referência das articulações entre filosofia, filosofar e ensino de filosofia. A partir dessas implicações, questionamentos poderão ser dirigidos à disjuntiva filosofia vs. filosofar, ampliando o quadro de referência para que acolha outra concepção a respeito da articulação entre fazer filosofia e ensinar a filosofar, a qual será proposta em seguida. Trata-se de preparar terreno para desenvolver a ideia de filosofia como atividade agonística investigativa, e quais formas didático-pedagógicas lhe seriam adequadas.

O quadro de referência será assentado na tensão entre as posições de Kant e Hegel frente às questões: (1) relações entre filosofia e educação; (2) relações entre filosofia e filosofar. As questões acerca da filosofia e seu ensino ganharam relevância no século XVIII, a partir da expansão da matemática e das ciências naturais, no contexto do estabelecimento das

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transformações históricas caracterizadas como início da Era Moderna: triunfo do humanismo, experiência como fundamento do conhecimento, liberdade individual para a busca autônoma da realização humana e da conquista da felicidade, e o ideal do progresso. O movimento de ideias e atitudes que debatia o destino do homem, seus conhecimentos e produções, seus pensamentos e condutas proclamava-se como “movimento das Luzes”, que na França ficou conhecido como Iluminismo, e seu correspondente na Alemanha, então em processo de unificação cultural, nacional e política, chamou-se Aufklärung, ou Esclarecimento. Tornar-se esclarecido, ou como esclarecer-se, era a questão filosófico-pedagógica relevante no ambiente alemão. As formulações de Kant e de Hegel a respeito das finalidades da educação, e dentro dela do papel do ensino de filosofia, estão inseridas nesse contexto.

Kant e o filosofar

Mais que qualquer outra disciplina, campo epistêmico ou corpo de saberes, a filosofia, ou mais propriamente as filosofias ou saberes filosóficos costumam exercer-se de modo estreitamente articulado com seu ensino, seja este de caráter informativo, formativo ou transformativo. Explica-se essa tripla dimensão do ensino pela própria tarefa da educação do homem. De modo geral, entenderemos aqui a educação como o processo de desenvolvimento de cada indivíduo do ponto de vista de sua inserção plena na cultura, compondo-se pelas maneiras de organizar e incorporar criativamente os chamados conteúdos cognitivos, visando à formação e à estruturação de sua identidade, bem como de seus papéis, valores e vínculos sociais, e tendo como horizonte sua preparação para a vida ativa na sociedade, logrando transformar-se, ao mesmo tempo em que vai transformando seu entorno. Tal incorporação de informações culturais pelos indivíduos, embora sempre se realize criativamente por causa da renovação permanente dos contextos da vida, pode se dar, no entanto, de modo passivo, por mera submissão a regras, crenças e valores criados por razão alheia, e não segundo os critérios da própria razão, que o educando desenvolve como expressão de sua experiência de pensamento.

Immanuel Kant (1724-1804), em seu texto Sobre a Pedagogia (KANT, 2006) colocou em relação a filosofia e a educação, considerando a filosofia (no singular) como o pretendido eixo comum a todas as filosofias, e a educação a partir de seu conceito de homem e de cultura. Também foi nesse texto, publicado por um de seus discípulos, tomando por base seus cursos de pedagogia dados presumivelmente entre 1776 e 1787, que Kant examina, de

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um ponto de vista filosófico e pedagógico, a questão que até hoje norteia as relações entre filosofia e seu ensino: ensina-se filosofia ou ensina-se a filosofar?

Ensinar a pensar se torna, quanto a isso, uma questão pedagógica de suma importância: “Não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar” (KANT, 2006, p.27). O pressuposto geral de Kant para essa questão é sua defesa do pensamento autônomo, construído e assentado na própria razão de quem o exerce, não em razão alheia. Ora, o regramento disciplinar a ser aprendido para o exercício do pensamento racional puro somente poderá ser desenvolvido pelo ensino de matemática e pelo de filosofia. Daí as questões: qual o lugar da filosofia enquanto conhecimento produzido pelo pensamento racional, e qual o do filosofar enquanto atividade racional de exercício do pensamento? São dois lugares distintos e um caminho entre eles, ou se trata de uma unidade, um modo de exercício do pensamento inerente e característico do pensar filosófico?

Assim postas, essas questões remetem, primeiramente, a uma investigação pedagógica, quando se considera a disjuntiva filosofia vs. filosofar do ponto de vista da aprendizagem, isto é, das tarefas educativas. Por outro lado, essa questão se projetará para além do âmbito pedagógico, e merecerá um tratamento filosófico analítico na Crítica da Razão Pura, obra de 1781, anterior, portanto, à compilação editorial do texto Sobre a pedagogia. Nessa obra, Kant expõe sua filosofia transcendental, onde inquire o próprio fazer da filosofia, a própria atividade do pensamento racional produtor dos conteúdos filosóficos – sistemas, visões de mundo, teorias e saberes constituintes da filosofia.

Ao se discutir sobre o papel da filosofia na formação do homem esclarecido foi necessário formular questões sobre métodos de aprendizagem, questões, portanto, propriamente pedagógicas. A partir dos trabalhos de Rousseau, especialmente do Emílio, as crianças deixavam de ser consideradas como adultos em miniatura, e acerca delas postulava-se um modo próprio de postulava-ser, de postulava-sentir e de viver, uma identidade distinta com a qual a pedagogia deveria saber lidar. Kant declara-se muito influenciado pelo Emílio de Rousseau em diferentes passagens de seus escritos, e está atento a essa condição singular do ser criança. Ele havia sido preceptor de crianças e suas aulas gozavam de boa reputação. No entanto,

suas atividades intelectuais eram voltadas para a física e a matemática, e aos 31 anos publicou um tratado sobre a origem do universo [...] Foi por acaso que ele ocupou a cátedra de lógica e metafísica, e não de matemática ou ciência natural. Mas a partir daí ele dedicou todas as suas energias à filosofia. (SCRUTON, 2011, p. 16-17)

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Ao refletir sobre a questão pedagógica geral da aprendizagem dos conhecimentos discursivos, formulados por meio de conceitos e argumentos, Kant estava familiarizado com o problema pedagógico tanto do ensino de filosofia quanto do ensino de matemática e de outras ciências. Em qualquer caso, para Kant a discussão pedagógica deveria levar em conta as finalidades educacionais, frente ao projeto de sociedade e o ideal de humanidade. Por outro lado, deveria levar em consideração também a natureza específica de cada tipo de conhecimento a ser ensinado, e também as características de aprendizagem próprias das crianças, vale dizer, das fases de seu desenvolvimento. Desse contexto derivam as reflexões de Kant sobre as finalidades educacionais do ensino de filosofia, a natureza específica do conhecimento filosófico, bem como o modo como melhor instrumentalizar o processo de aprendizagem para estudantes, no limite levando em conta suas faixas etárias, conforme já está delineado no Emílio de Rousseau. Diante desses três aspectos configura-se sua concepção de filosofia, a qual será tomada como referência e contra a qual será formulada a perspectiva de ensino de filosofia de Hegel.

Para Kant, em sua Crítica da razão pura,

todo o conhecimento racional é um conhecimento por conceitos ou por construção de conceitos; o primeiro chama-se filosófico e o segundo, matemático. [...] Entre todas as ciências racionais (a priori) só é possível, por conseguinte, aprender a matemática, mas nunca a filosofia (a não ser historicamente): quanto ao que respeita à razão, apenas se pode, no máximo, aprender a filosofar. (KANT, A 837 B 865, 2001, p. 672)

A justificativa oferecida por Kant para a diferença intrínseca entre a natureza do conhecimento matemático e a do conhecimento filosófico, consideradas por ele como as duas formas de conhecimento eminentemente racionais, pois estruturadas por conceitos dados à razão (filosofia) ou construídos pela razão (matemática), se dá pelo argumento do tipo de validade: a validade objetiva, isto é, demonstrativa da matemática, impõe-se também como validade subjetiva tanto para o mestre quanto para o aprendiz, em qualquer tempo, uma vez que os procedimentos demonstrativos independem da compreensão ou contexto do pensamento de cada um, dependendo apenas dos procedimentos da razão operando sobre si mesma. Diz ele a respeito dessa diferença:

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é estranho que o conhecimento matemático, seja qual for a maneira como tenha sido aprendido, possa valer também, subjetivamente, como conhecimento racional, e nele não se possa fazer a mesma distinção como no conhecimento filosófico. A causa reside em que as fontes de conhecimento [matemático], que só o mestre pode alcançar, apenas se encontram nos princípios essenciais e verdadeiros da razão, e, portanto, não podem ser extraídos de outra fonte pelos discípulos, nem podem ser de qualquer modo contestados e isto porque o uso da razão não se faz aqui a não ser in

concreto. (KANT, A 837 B 865, 2001, p. 672)

A fim de definir comparativamente a natureza intrínseca do conhecimento filosófico, antes mesmo de abordar os caminhos pedagógicos para viabilizar a aprendizagem e as implicações educacionais dessa aprendizagem, Kant se vale das categorias artista da razão e de legislador da razão. Na matemática, a validade objetiva e subjetiva do conhecimento racional coincidem, porque os axiomas e postulados primeiros são universais e infalíveis, uma vez que construídos apenas pela razão operando sobre si mesma. Eles valem mesmo quando os alunos não os compreendem, e, neste caso, trata-se apenas de exercitar a arte de compreender, manejando habilidades do pensamento racional, tornando-se assim artistas da razão. Diferentemente, na filosofia ocorre que os princípios primeiros são obtidos apenas aproximativamente, pois não são obtidos pela mera utilização das operações lógicas da razão, são criados e oferecidos à razão a partir de seu exterior. Porém, muitas vezes a razão filosófica opera fora dos limites permitidos, e então a primeira tarefa da filosofia, sua tarefa crítica, é legislar sobre o que a razão pode ou não conhecer de modo objetivo. Por esse motivo, em vez de ser artista da razão, o filósofo atua como um legislador da razão.

Deste ponto de vista a filosofia é a ciência da relação de todo o conhecimento aos fins essenciais da razão humana (teleologia rationis

humane), e o filósofo não é um artista da razão, mas o legislador da razão humana.

[...] Desta maneira, a filosofia é uma simples ideia de uma ciência possível, que em parte alguma é dada in concreto, mas de que procuramos aproximar-nos por diferentes caminhos, até que se tenha descoberto o único atalho que aí conduz, obstruído pela sensibilidade, e se consiga, tanto quanto ao homem é permitido, tornar a cópia, até agora falhada, semelhante ao modelo. Até então não se pode aprender nenhuma filosofia; pois onde está ela? Quem a possui? Por que caracteres se pode conhecer? Pode-se apenas aprender a filosofar, isto é, a exercer o talento da razão na aplicação dos seus princípios

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gerais em certas tentativas que se apresentam, mas sempre com a reserva do direito que a razão tem de procurar esses próprios princípios nas suas fontes e confirmá-los ou rejeitá-los. (KANT, A 838 B 866, 2001, p. 673)

Como a criação de conceitos resulta da tarefa especulativa da razão, os conceitos filosóficos são exteriores à própria razão, e devem estar permanentemente sujeitos à fiscalização legislativa da tarefa crítica da mesma. De onde se conclui que o filosofar é que garante a validade do conhecimento filosófico, sendo que este nada mais seria que o processo de sustentação crítica do pensamento especulativo criador de conceitos e de teorias. Daí que somente se pode aprender a filosofar, e não aprender filosofia. Não apenas por causa de condicionamentos pedagógicos restritivos advindos do processo psicológico da aprendizagem, mas, sobretudo, devido à especificidade do próprio conhecimento filosófico, em sua definição de conhecimento racional por conceitos que não são construídos pela razão, mas extraídos especulativamente a partir de noções, ideias e valores fornecidos à razão pela cultura.

No entanto, Kant reconhece a existência de um conhecimento filosófico, uma filosofia, mesmo que esteja constituída de aproximações históricas da criatividade humana em relação à verdade universal. Enquanto as verdades universais dos princípios matemáticos são infalíveis, as verdades universais dos princípios do conhecimento filosófico crítico estão situados na história do progresso da razão em direção ao conhecimento válido incondicionalmente. A saída kantiana a respeito da possibilidade de um conhecimento filosófico válido universalmente é postular um saber conceitual legislador sobre o funcionamento da razão, e este é sua filosofia transcendental.

A questão reposta sobre se cabe ensinar a filosofia transcendental, ao invés de apenas ensinar a filosofar, receberá em Kant a seguinte resposta: a filosofia transcendental é um conhecimento que não se refere ao mundo, mas apenas à razão, suas leis de funcionamento. Portanto, é a razão legislando sobre a razão, o pensamento pensando sobre o pensamento, o conhecimento conhecendo o conhecimento. Além do mais, do mesmo modo que só se aprende a andar andando, ou a respirar respirando, também a razão transcendental e o conhecimento a ela referido só é aprendido pelo exercício. Resulta que, no final, a filosofia transcendental é ela mesma um exercício do filosofar.

Ora, o pensamento racional é entendido por Kant como uma disposição natural, com o mesmo estatuto vital do andar e do respirar. Ele está inserido na ordem da constituição

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humana para sobreviver, viver e, como objetivo último, ser feliz. Daí que o pensamento racional, antes mesmo de buscar o conhecimento teórico, tem como horizonte o pensamento moral. Neste sentido, Kant afirma que

o destino total do homem e a filosofia desse destino chama-se Moral. Por causa dessa prioridade que a filosofia moral tem sobre as outras ocupações da razão, entendia-se sempre ao mesmo tempo, e mesmo entre os antigos, pelo nome de filósofo, o moralista; [...]

A legislação da razão humana (filosofia) tem dois objetos, a natureza e a liberdade, e abrange assim, tanto a lei natural como também a lei moral, no princípio em dois sistemas particulares, e finalmente, num único sistema

filosófico. (KANT, A 840 B 868, 2001, p. 674)

Sendo a razão uma disposição natural para a atividade de pensar por meio de conceitos, e cabendo esta ser regulada com vistas ao fim supremo de toda atividade humana que é a felicidade moral, a filosofia ao legislar sobre a razão, legisla por consequência sobre toda forma de conhecimento e, no limite, sobre toda forma de conduta humana. O fundamento desse poder legislativo é a liberdade da razão, e o poder da legislação por esta estabelecido será chamado por Kant de autonomia. A filosofia de Kant é, portanto, uma legislação para aperfeiçoar o homem nos progressos rumo à conquista da autonomia intelectual, como meio, e autonomia moral, como fim. É neste contexto que se insere o projeto educacional de formar o homem esclarecido, ou o projeto da educação para o esclarecimento (Aufklärung).

O dispositivo pedagógico a ser acionado por Kant em vista da efetivação da educação para o esclarecimento será a prática socrática de pensamento conceitual e argumentativo em comunidade de diálogo. Não se ensina o pensamento, mas pode-se ativar a coragem para o exercício do pensar por si mesmo. Esta é a proposta de Kant (2012) em seu texto de 1784, Resposta à questão: O que é o Esclarecimento?

O Esclarecimento é a libertação do homem de sua imaturidade [menoridade] (Unmündigkeit) autoimposta. Imaturidade é a incapacidade de empregar seu próprio entendimento sem a orientação de outro. Tal tutela é autoimposta quando sua causa não reside em falta de razão, mas de determinação e coragem para usá-lo sem a direção de outro. Sapere Aude! Tenha coragem de usar sua própria mente [seu entendimento] (Verstandes)!

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No famoso §40 da Crítica da faculdade do Juízo, Kant postula o que considera como sendo as três máximas que legislam sobre o funcionamento do pensamento racional em vista da busca do conhecimento verdadeiro, válido universalmente:

São as seguintes as máximas do entendimento humano comum: 1. Pensar por si; 2. Pensar no lugar de qualquer outro; 3. Pensar sempre em acordo consigo mesmo. A primeira máxima é a maneira de pensar livre de

preconceito (Voruteil); a segunda, a maneira de pensar alargada; e a

terceira, a maneira do pensar consequente. A primeira é a máxima de uma razão jamais passiva. A propensão à passividade, por conseguinte a heteronomia da razão, chama-se preconceito. A libertação do preconceito chama-se Esclarecimento. (KANT, 2008, p. 140)

A Crítica da Faculdade do Juízo constitui a terceira das três Críticas de Kant, e foi escrita em 1790, depois de ele ter escrito a Crítica da razão pura (1781), e a Crítica da razão prática (1788). Nela, Kant começa discutindo o ato de julgar em geral, incluindo aquele que inclui a imaginação e o sentimento, portanto, o juízo de gosto. Trata-se de um texto que também é posterior a O que é Esclarecimento (1784), em que Kant fala da coragem de pensar por si mesmo como sendo o principal objetivo da educação para formar o homem esclarecido. Agora, porém, ele acrescenta a esta máxima do pensar por si mesmo a máxima do pensar alargado do ponto de vista do outro, e a do retorno desse outro pensar com avaliação de suas consequências sobre o pensar por si mesmo.

Partindo da interpretação dessas três máximas postuladas por Kant como reguladoras do pensamento conceitual argumentativo, pode-se adiantar a hipótese de que a sequência da atividade do pensamento filosófico no dispositivo pedagógico socrático seria: argumento, contra-argumento, rebate e balanço conclusivo. Essa hipótese será objeto de considerações no próximo capítulo.

Qual seria a finalidade epistêmica e educativa de ensinar filosofia transcendental? Ora, o desenvolvimento de habilidades da autonomia crítica permite analisar epistemicamente os limites e garantias de certeza de todas as formas de conhecimento, todas elas sujeitas ao exame quanto à sua falibilidade. E no caso dos conhecimentos organizados na forma de sistemas filosóficos, a crítica de sua falibilidade se torna ainda mais premente, uma vez que o fundamento do conhecimento de tais sistemas é de natureza especulativa e doutrinária. Ora, existem vários sistemas filosóficos na história da filosofia, diferentes doutrinas filosóficas são aceitas como teorias verdadeiras. Porém, o fundamento de verdade

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dessas pretensões de conhecimento não se baseia em evidências externas ao próprio pensamento, isto é, em dados de experiência objetiva que possam confiavelmente corroborar ou refutar hipóteses ou postulados.

Resulta que a verdade dos sistemas de filosofia é essencialmente especulativa e doutrinária, necessitando estar autorizada, expressa ou implicitamente, por instâncias do poder moral, político ou acadêmico, neste caso, pela comunidade de especialistas. Diferentemente, a verdade das teorias científicas apoia-se em menor grau na autorização das instâncias de poder, devido ao seu caráter descritivo, referido a mensurações factuais da experiência objetiva comum.

Deste modo, as relações entre a filosofia, o filosofar e o ensino de filosofia acham-se conjugadas em Kant na sua doutrina filosófica transcendental referente ao funcionamento da razão, utilizada na tarefa de produzir verdades universais garantidas. E a finalidade educativa de ensinar tal doutrina transcendental seria o desenvolvimento das habilidades próprias do esclarecimento, quais sejam: pensar por si mesmo; pensar de maneira alargada com os outros; e pensar sempre em acordo com seus próprios critérios, aperfeiçoando-os, ao mesmo tempo em que, por meio deles, progride rumo à autocorreção de falhas e erros de pensamentos anteriores.

Os pressupostos de Kant que estão na base dessa conclusão dizem respeito ao seu conceito de homem, da vida em sociedade como meio de realização humana, e de felicidade como finalidade última da vida humana. O homem é entendido por Kant como um ser entre os animais e os deuses, dotado de razão e liberdade, sendo estas orientadas para a busca da felicidade, a ser conquistada na convivência com outros homens. Para o sucesso de sua busca de felicidade, o homem é entendido como educável, por possuir a condição de ser perfectível, sujeito à disciplina normativa e capaz de autorregulação autônoma.

Nesse contexto se insere o para que serve aprender filosofia, que só pode ser aprendendo a filosofar, sendo que o ensino de filosofia precisa ser fiel a essa condição de aprender filosofia, aprendendo a filosofar. Além do mais, a finalidade educativa do aprender filosofia não é outra senão aprender a fazer o uso público da razão, como caminho para alcançar o esclarecimento da inteligência. Para Kant, a vocação natural para buscar a felicidade baseia-se na liberdade para pensar por si mesmo e, assim, encontrar autonomamente as regras de conduta que sejam adequadas e justas. Essa liberdade de pensar por si mesmo foi chamada, como vimos, de “esclarecimento”, e mesmo não podendo ser

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ensinada, pode ser incentivada, encorajada e favorecida. A limitação do uso público da razão impede o esclarecimento, enquanto que o incentivo ao uso público da razão favorece o progresso do esclarecimento:

Para este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão liberdade. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. [...] Ora, por toda a parte há limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento? Qual não o impede, e até mesmo o favorece? Respondo: o uso público da razão deve ser sempre livre e apenas ele pode realizar o esclarecimento entre os homens. [...] Entendo por uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto estudioso, realiza diante de todo o mundo letrado. (KANT, A 484-5, 2012, p. 145-6).

Aprender a filosofar será, portanto, aprender a pensar criticamente, manejando as regras da legislação transcendental do funcionamento da razão, a fim de que não opere fora dos limites de produção do conhecimento válido. Mas esse saber manejar o funcionamento da razão precisa ser feito perante a comunidade total de estudiosos habilitados com maestria ao uso público da razão, por meio de suas obras escritas. Kant inscrevia a filosofia no gênero da escrita, e o público de estudiosos era para ele essencialmente o público letrado.

Embora sejam questionáveis essas restrições para o exercício da filosofia, tanto a que impõe respeito à legislação transcendental, quanto a que restringe esse exercício a obras escritas para o público letrado, ainda assim merece valor a ideia kantiana de que a filosofia é intrinsecamente um exercício do pensamento racional, dirigido ao debate entre todos aqueles que puderem aprender a fazer o uso público da razão, ou seja, submeter-se tão somente às regras da estruturação conceitual e argumentativa do pensamento. Frise-se, no entanto, que mesmo entendendo a filosofia como um filosofar por meio do uso público da razão, a finalidade epistêmica desse filosofar em Kant será produzir, por aproximações tentativas, conhecimentos ou sistemas filosóficos candidatos à melhor expressão da verdade, credenciando como válidas e verdadeiras as respostas para as questões investigadas. O horizonte da verdade está presente no filosofar, não apenas como ideal regulador metodológico, mas como otimismo assertivo para elaboração de respostas no interior de quadros teóricos, estruturados por conceitos e justificado por argumentos.

Em suma, para Kant, produzir conhecimentos filosóficos verdadeiros constitui o objetivo de todo filosofar, e mesmo para ler, compreender ou debater esses conhecimentos

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filosóficos produzidos é preciso filosofar. Deste modo, a filosofia em qualquer momento é um exercício de filosofar, embora desse exercício possa resultar como produto, ao final de um processo crítico, um sistema de pensamento totalizante que mira o horizonte da verdade universal. A vontade de certeza predomina sobre o impulso para duvidar, o otimismo da razão teórica vence o ceticismo da razão crítica. O progresso do esclarecimento da inteligência humana era uma crença de valor inabalável em um momento da história em que o pressuposto da perfectibilidade do homem servia de coluna vertebral tanto para a moral, quanto para a política e a ciência. A crítica ao ideal de progresso não havia reunido dados e instrumentos de análise para minar os alicerces do otimismo iluminista.

Hegel e a história da filosofia

O otimismo iluminista expresso na crença no progresso – não apenas do esclarecimento, mas sobretudo da história humana – encontra seu ápice em Georg Wilhelm F. Hegel (1770-1831). Quanto à concepção de filosofia e seu ensino, Hegel tem sido frequentemente contraposto a Kant. Hegel defende um ensino conteudístico de pensamentos e de sistemas filosóficos, do mesmo modo que se ensina qualquer outra ciência. Discorda enfaticamente de Kant quanto ao preceito segundo o qual o que se pode ensinar ou aprender vem a ser formado apenas pelos procedimentos e operações do filosofar. Deve-se ensinar filosofia e, neste sentido, ensinar a história da filosofia. Hegel defende, para a aprendizagem filosófica, que ao invés de se aprender a pensar por si mesmo, como propõe Kant, o que importa é aprender a história dos pensamentos que já foram pensados pelos grandes pensadores da tradição, e avaliar o quanto essa história evolui para uma totalização, em sua busca de alcançar o referencial da verdade absoluta na apropriação da realidade:

A filosofia deve ensinar-se e aprender-se, como qualquer outra ciência. O prurido infeliz de educar a pensar por si e para a produção autônoma pôs esta verdade na sombra – como se, ao aprender o que é substância, causa, ou seja o que for, eu não pensasse por mim mesmo, como se eu não produzisse

por mim mesmo essas determinações no meu pensar, [...] como se, ao

familiarizar-me com o teorema de Pitágoras e a sua demonstração, eu mesmo não conhecesse este teorema e não demonstrasse a sua verdade. Por muito que o estudo filosófico seja em si e para si um fazer por si mesmo, é igualmente uma aprendizagem – a aprendizagem de uma ciência já

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elaborado; este bem hereditário deve ser adquirido pelo indivíduo, isto é,

ser aprendido. (HEGEL, 1989, p.11, grifos nossos)

Hegel possui uma peculiar concepção de realidade, pela qual a história constitui a realização progressiva da ideia absoluta, e o conceito filosófico seria a representação dessa ideia como guia de sua realização. A filosofia figura como expressão da consciência histórica em si e para si de uma época por um povo. Daí o pressuposto máximo do idealismo de Hegel de que todo o real é racional, ou seja, é conceito, e todo o racional é o real. Logo, haveria uma identidade entre o conceito filosófico da filosofia verdadeira e o real histórico, na medida em que só é real o que foi já pensado como ideia por um sujeito, sendo tal sujeito entendido como o espírito da história. A filosofia, para Hegel, é a ciência da realização da ideia absoluta na história – humana ou natural. Em outras palavras, a filosofia é o conhecimento verdadeiro da marcha e da velocidade do progresso com que se dá a realização da ideia absoluta no tempo histórico:

O que é real é racional e o que é racional é real. Esta é a convicção de toda consciência livre de preconceitos, e dela parte a filosofia, tanto ao considerar o universo espiritual como o universo natural (HEGEL, 1997, p. 36).

Daí decorre sua concepção de ensino de filosofia, sendo ela marcantemente diferente da de Kant, pois se trata de ensinar um conhecimento verdadeiro, embora situado em seu processo de realização no tempo histórico, pressupondo, contudo, que a verdade estará completamente realizada com o fim da história, isto é, com a completa realização da ideia absoluta.

Julgo [...] poder pressupor como correto que o ensino da filosofia nas Universidades só pode fazer o que deve – uma aquisição de conhecimentos

determinados – quando tomar um determinado curso metódico, que englobe

e ordene o pormenor. Só nesta forma é que tal ciência, como qualquer outra,

se pode ensinar. Mesmo se o docente quiser evitar este termo, terá a

consciência de que, antes de mais e essencialmente, precisa fazer isso. Tornou-se um preconceito, não só do estudo filosófico, mas também da pedagogia – e aqui ainda mais difundido – de que é o pensar por si que se deve desenvolver e exercitar; primeiramente, no sentido de que a este respeito não depende do elemento material e, em segundo lugar, como se a aprendizagem fosse oposta ao pensar por si mesmo. Ora, na realidade, o pensar pode exercitar-se apenas em semelhante material, que não é produto e composição da fantasia, nem de uma intuição, chame-se ela sensível ou intelectual, mas um pensamento e, além disso, um pensamento não pode

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aprender-se de nenhum outro modo a não ser que seja pensado por si mesmo. (HEGEL, 1989, p. 21-22, grifos nossos)

Para Hegel, não pode haver oposição entre pensar por si mesmo e aprender algo já pensado, pois um pensamento somente pode ser aprendido se for pensado pelo sujeito do pensamento, aquele que está aprendendo a matéria. Neste sentido, trata-se de um sujeito que está pensando por si mesmo ao elaborar o material de sua imaginação ou de suas experiências, isto é, seus próprios pensamentos, para isto utilizando as habilidades e os condicionamentos que caracterizam seu modo particular de pensar.

No entanto, o que ambos, Kant e Hegel, estão chamando pelos termos sujeito e filosofia são coisas bem diferentes. Kant fala sujeito ou espírito referindo-se ao agente no processo psíquico produtor de representações, sendo estas as percepções sensíveis da experiência, ou as elaborações intelectuais dos conceitos. Além disso, quando Kant fala de filosofia, está se referindo a um conhecimento exclusivamente mediante conceitos, diferindo da matemática apenas porque os conceitos desta são formas destituídas de conteúdo, construídas pelo próprio discurso, enquanto que os conceitos filosóficos possuem conteúdos que precisam ser dados a partir do mundo exterior. Pode-se conferir esse modo de conceber com as próprias palavras de Kant:

O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito [sujeito], das quais a primeira [a sensibilidade] consiste em receber as representações [as impressões ou intuições sensíveis], e a segunda [o entendimento] é a capacidade de conhecer um objeto mediante essas representações [os pensamentos ou conceitos]. [...]

Intuições [sensíveis] e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o

nosso conhecimento, de tal modo que nem conceitos sem intuição que de algum modo lhes corresponda, nem uma intuição sem conceitos podem dar qualquer conhecimento. [...]

Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos [conceitos] sem conteúdo [intuições]

são vazios; intuições sem conceitos são cegas. Pelo que é tão necessário

tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objeto na intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las aos conceitos). Estas duas capacidades ou faculdades não podem permutar as suas funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua reunião se obtém conhecimento. (KANT, A50-1 B 74-6, 2001, p. 114-5)

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Essa concepção de Kant, conhecida como Idealismo Crítico ou Criticismo, com implicações nos modos de conceber a filosofia e seu ensino, fica mais clara se retornamos ao pressuposto primeiro de todo o seu filosofar, formulado a partir de uma modificação crucial do pensamento de Aristóteles acerca da origem do conhecimento. Segundo Aristóteles, nada chega ao intelecto sem que antes passe pelos sentidos. Ao que Kant acrescentará: “exceto o próprio intelecto”. Ou seja, o aparelho cognitivo produz certo tipo de conceitos, os conceitos a priori, e portanto, produz filosofia a partir de si mesmo, como condição de possibilidade de qualquer conhecimento sobre a realidade externa, e até mesmo de qualquer experiência perceptiva dos órgãos dos sentidos.

Embora o Idealismo de Hegel seja declaradamente uma consequência do Criticismo de Kant, a divergência é grande neste ponto, o qual não é de importância pequena no que respeita às concepções de filosofia de cada um dos dois grandes pensadores alemães. Para Kant, o pensar por si mesmo é pensar a partir das próprias intuições da experiência sensível e dos pressupostos ou hipóteses conceituais livremente criadas, ou elaborados criativamente, fazendo valer o máximo uso da liberdade de pensamento, no uso público da razão. Hegel, diferentemente, considera o pensar por si mesmo como apenas o processo temporal de realização do pensamento histórico em um sujeito, no caso um estudante que aprende filosofia, segundo as preleções e orientações de seu professor ou mestre. Seria como se o processo psíquico do sujeito que aprende filosofia fizesse ele mesmo parte ativa do processo histórico, sob a condição de sujeito histórico que toma consciência da ideia se tornando realidade em sua mente: primeiramente, enquanto realidade subjetiva psiquicamente vivida na forma de conhecimento aprendido; em segundo lugar, enquanto realidade objetiva conhecida em alguma de suas formas socialmente instituídas – jurídica, política, econômica ou, cultural.

Nesse caso, caberia ao estudante aprender a lógica e os conteúdos dessa ciência da história, e então pensar por si mesmo seria conseguir aplicar a lógica interna dessa ciência para a compreensão dos conteúdos já pensados e estabelecidos como verdadeiros por ela, sem mais necessitar a todo momento das explicações e do referendo do seu professor, do mesmo modo como ocorre na aprendizagem de qualquer ciência. Fica de fora a questão sobre se filosofia será mesmo uma ciência verdadeira sobre o real histórico, uma vez que essa concepção é assumida como pressuposto. Karl Marx, um dos discípulos de Hegel, será quem questionará fortemente a validade de tal pressuposto, propondo ele, em contraponto, o

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conceito de ideologia (MARX, 2010), no sentido de justificação interessada que apresenta uma particular interpretação da realidade como se fosse universal.

Apesar de serem concepções tão marcantemente distintas em seus fundamentos, como essa de Kant e de Hegel a respeito da filosofia e seu ensino, muitas tentativas pedagógicas de ensino de filosofia no Brasil e alhures têm se esforçado para conciliá-las de modo não dicotômico: o exercício do filosofar não deveria contradizer o ensino de história da filosofia. Deve-se ensinar a filosofar com os problemas da história da filosofia. O esforço didático de tornar a aprendizagem significativa do ponto de vista do aluno não passaria de criação de ciladas pedagógicas para instanciar os grandes problemas da história da filosofia nos pequenos problemas do vivido cotidiano dos alunos. Essa tem sido a posição dominante nos livros didáticos de filosofia no Brasil.

Tudo se passa como se a perspectiva kantiana de ensinar a filosofar funcionasse na didática como um moderador de doutrinação filosófica, tornando o ensino de filosofia menos diretivo. Ou, no melhor dos casos, procura-se incentivar um ensino de filosofia menos orientado para a erudição histórica, mesmo sendo essa erudição um modo de acesso aos clássicos do pensamento. Ora, sendo os clássicos do pensamento parte do patrimônio cultural da humanidade, dar acesso a eles seria uma das tarefas irrecusáveis de uma educação de qualidade, assim argumentam os defensores do ensino da história da filosofia. E, numa posição conciliatória, o ensino do exercício do filosofar a partir de problemas ou temas, visando ao desenvolvimento de habilidades, seria uma estratégia didática para melhor alcançar uma aprendizagem conteudística da história dos grandes pensadores. Outras posições acrescentarão que se deve ensinar a história da filosofia situando historicamente os pensadores, seus pensamentos e seus conceitos, seus temas e seus problemas, e neste caso, ensinar história da filosofia seria mais legitimamente uma recriação dos conceitos à luz do contexto histórico dos problemas que lhe deram origem.

Esse panorama buscando caracterizar o modo como as principais concepções sobre ensino de filosofia no Brasil estruturam os programas e as orientações didático-pedagógicas propostas pelos livros didáticos é o que cabe mapear em seguida, ainda que em suas linhas gerais, construindo parâmetros de comparação e análise em vista da discussão que se pretende fazer.

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Ensino de filosofia no Brasil: hipótese sobre as inflexões nas políticas para a educação e o ensino da filosofia

De fato, o ensino de filosofia no Brasil é marcadamente estruturado pelas propostas dos livros didáticos, embora em conformidade com diretrizes, parâmetros e orientações das políticas para a educação, produzidas pelo Governo Federal por meio de seus órgãos competentes. Os programas dos conteúdos e habilidades, e as concepções sobre o que seria filosofia bem como o papel educacional de seu ensino têm sido objeto de regulamentações e de implementações administrativas, de caráter político institucional, desde a Colônia e o Império, chegando à República e à atualidade.

De um modo geral, ainda que tenha sido considerada uma forma de conhecimento que goza de certo prestígio na formação da elite, observa-se que em todo seu percurso educacional no Brasil, da Colônia aos dias atuais, a filosofia é apresentada como um conhecimento sem objeto nem método determinados, portanto, um conhecimento não-científico, do tipo doutrinário. Dependendo da escola filosófica que se adote, haveria uma doutrina cuja verdade nela estará inscrita, e ancorada, sobretudo, na autoridade dos pensadores tomados como mestres, não na experiência de pensamento atual de quem problematiza a realidade a partir de seu contexto cultural historicamente localizado. Embora predominante no Brasil, essa concepção de filosofia como conhecimento do tipo doutrinário, conforme a definição acima de ancoragem da verdade na autoridade do mestre ou da tradição, ela não esteve imune a contestações.

Contudo, certas vertentes da filosofia têm reagido a essas contestações pela defesa da garantia de verdade filosófica apoiada na abrangência explicativa dos sistemas doutrinários, isto é, a pretensão de uma verdade universal exigiria a mais ampla abrangência da validade da doutrina a ser aceita como verdadeira, passando assim ela a gozar do status de teoria filosófica possuidora de seus critérios de validação interna. Esses critérios de validação interna de cada sistema tendem a se apresentar como tribunais que decidem sobre a validade de todos os outros sistemas: em Kant, o tribunal da razão crítica transcendental; em Hegel, o tribunal da razão idealista histórica. Mais tarde, com Karl Marx, o tribunal último seria o da razão materialista histórica. A pretensão da lógica interna de cada sistema erigida em tribunal para decidir sobre a validade de todos os outros terminaria por consagrar uma determinada linha de temporalidade objetiva da história da filosofia, ou mesmo, da própria história

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humana. Por exemplo, o tribunal da razão histórica terminaria por definir uma filosofia de época mais conforme o Zeitgeist da era das revoluções sociais. Em suma, visando escapar do relativismo das doutrinas, postulava-se a existência de um critério universal de validação das teorias filosóficas, mesmo que tal critério tivesse sua validade construída em nome da lógica interna de um sistema filosófico particular.

O fato é que a contestação do valor de verdade das doutrinas ou teorias permitiu que as alternativas – ensinar filosofia e suas doutrinas ou ensinar a questionar criticamente essas doutrinas –, adquirissem importância de modo cada vez mais irrecusável, desde meados do século XIX na Europa, e no Brasil com a chegada da República. Toda vez que foi colocada a questão sobre o que ensinar em filosofia, a questão sobre essa disjuntiva passou a figurar implicitamente ou de modo expresso. Como vimos, os pontos de vista de tal questionamento podem ser filiados, de algum modo, aos referenciais sobre ensino de filosofia de Kant ou de Hegel, mesmo quando indiretamente, via menção a modelos de ensino de filosofia praticados em países da Europa, como a França, Itália ou outro.

Rui Barbosa, por exemplo, um luminar da transição do Império para a República, em um parecer de 1882, já questionava o caráter dogmático e doutrinário do ensino de filosofia que vinha sendo praticado após a Independência, voltado para a formação de uma elite nacional, no contexto da fundação de uma nacionalidade carente de consciência de si e de identidade própria. Assim pronunciava-se Rui Barbosa:

Não é papel do Estado [o ensino de uma ou outra concepção filosófica]; entre as filosofias, entre as religiões, não é a ele que incumbe eleger, mas à consciência individual. O que o programa oficial dessa disciplina pode indicar é a história da evolução filosófica, a apreciação crítica da influência de cada escola, o conhecimento das bases da apologia de cada sistema, a separação entre a parte dessas ideias que a verificação experimental tem

confirmado e a que pertence ao domínio extracientífico da metafísica e dos

documentos e dos sentimentos pessoais do sistema ou do crente. (apud GONÇALVES, 2011, p. 28-9)

Compreende-se o contexto em que Rui Barbosa emite seu parecer. A concepção positivista de Estado por ele defendida, e que será fundamento filosófico do arcabouço jurídico-político da República implantada a partir de 1889, pretende que o Estado seja laico, lastreado no conhecimento científico, e que na mesma medida em que não adotaria nenhuma religião como oficial, também deveria se manter distante de concepções metafísicas da

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filosofia, entendidas como próprias do antigo regime monárquico a ser substituído. Rui Barbosa propõe que o ensino de filosofia fosse orientado pela exposição de várias doutrinas e escolas filosóficas segundo sua evolução filosófica, e neste sentido um estudo comparativo e evolucionário, fazendo a exposição culminar em seu ápice com a concepção científica e positivista de conhecimento, em pleno gozo de autoridade na época, considerada a mais abrangente e universal, inclusive fornecendo base para o nascimento da sociologia, a ciência da sociedade. De modo análogo, ainda hoje, quando é trazida de volta a discussão sobre o ensino de religião no currículo escolar, a solução encaminhada será a de ensinar a história comparada das religiões, correndo o risco de que essa história comparada seja orientada para justificar a religião colocada pela escola no topo da escala evolutiva da experiência humana do sagrado ou da compreensão da verdade divina.

Por essa chave pode-se caracterizar a visão sobre o ensino de filosofia que vigorava na Colônia e no Império. Já ao introduzir o ensino de filosofia, os jesuítas deram-lhe um papel propedêutico ao ensino de teologia, articulando a filosofia de Aristóteles com a de Santo Tomás de Aquino, tomando a Escolástica como referência. Correspondia aos ensinamentos da Igreja Católica, religião oficial da Coroa Portuguesa e, depois, do Império do Brasil. Na Colônia, conforme Geraldo Balduíno Horn (2000, pp. 17-33), a Filosofia, como disciplina escolar, foi introduzida pelos jesuítas para reforçar o pensamento católico em sua luta contra a Reforma, o que correspondia, na prática, a fazer catequese. No Império, o ensino de filosofia nos liceus e ginásios das Províncias foi largamente obrigatório, e seguindo a moda europeia, pautou-se progressivamente pela introdução da Lógica e da doutrina filosófica do Positivismo, tópicos que favoreciam o pensamento científico que então começava a predominar.

Tendo como pano de fundo o ensino de filosofia introduzido no Brasil pelos jesuítas, um fato irá preparar a mudança de enfoque que definirá sua presença no Império: a chegada da Família Real portuguesa em 1808. A partir daí, enquanto na Europa ampliam-se as transformações sociais e culturais advindas do sucesso do Iluminismo, e seu otimismo quanto ao progresso da razão, no Brasil, a elite intelectual da corte transplantada além-mar precisa ser reproduzida. A ênfase em pesquisa científica e tecnológica abre caminho para a chegada do positivismo de Auguste Comte, seguido pelo evolucionismo de Charles Darwin, importados da Europa do século XIX. O ensino da metafísica escolástica e da teologia sofre sérios questionamentos frente aos objetivos de formar uma nova elite mais familiarizada com

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o progresso tecnológico e capitalista, que os Estados nacionais europeus emergentes elevaram à categoria de objetivo de cada nação em consolidação.

Dessa forma, o ensino de filosofia continua a ser propedêutico, mas agora para oferecer aos membros da elite uma cultura geral, a ser completada nos cursos superiores (em especial, medicina, direito e engenharia), nos quais o desenvolvimento das ciências cumpre um papel de catalisador do progresso. A ênfase no desenvolvimento das ciências torna compreensível que o ensino de filosofia tenha deixado de merecer incentivos públicos no Império, permanecendo, no entanto, como ensino complementar e optativo. Mesmo no Colégio Pedro II, fundado no Rio de Janeiro em 1837, e mantido pela Coroa, “ela nem sempre fez parte do currículo, pois de acordo com as várias reformas educacionais, a instituição subtraiu ou adicionou a disciplina, disponibilizada como “curso livre” para muitas séries” (VALVERDE, A.J.R.; ESTEVES, A.A., 2015, p. 270).

O advento da República aguçará a discussão sobre mudanças quanto à perspectiva de qual seria a função do ensino de filosofia, tendo em vista a consolidação da nova forma de Estado. Do ponto de vista da oferta, no início da República, o ensino de filosofia manterá o caráter não obrigatório, optativo segundo as reformas de Benjamin Constant de 1890, de Epitácio Pessoa de 1901, de Maximiliano de 1915 e de Rocha Vaz de 1925 (GONÇALVES, 2011, p. 29). Os rearranjos entre as frações das elites que haviam aderido ao regime republicano não alteravam o caráter oligárquico herdado do Império, permanecendo intocadas as políticas de acesso à educação e, em suas linhas gerais, as diretrizes curriculares, especialmente quanto ao ensino de filosofia, ganhando maior ênfase o incentivo à formação de pensamento científico e positivista.

O quadro geral da educação e do ensino de filosofia inaugura uma configuração inteiramente nova a partir da Revolução de 1930, consolidado pelo golpe de Estado de 1937. Antes, o cuidado com a instrução pública era provido por uma diretoria do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Já no Governo Provisório em 1930 foi criado o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, que a partir do golpe de 1937 passaria a se chamar Ministério da Educação e Saúde. Significa que a educação passa a merecer a atenção de política pública essencialmente importante, em vista da realização do projeto de país e da construção da consciência de nação com identidade própria. Foi para realizar essa tarefa que os revolucionários de 1930 definiram que o Estado oligárquico vigente precisaria se tornar

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