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Vida podre : a trajetória de uma classificação

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Academic year: 2021

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Lis Furlani Blanco

Vida Podre: a trajetória de uma classificação

Campinas

2015

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Lis Furlani Blanco

Vida Podre: a trajetória de uma classificação

Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Rômulo Machado de Almeida

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do título de Mestra em Antropologia Social.

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pela aluna Lis Furlani Blanco e orientada pelo prof. Dr. Ronaldo Rômulo Machado de Almeida, no dia 24/03/2015.

Campinas

2015

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Resumo

Classificar um alimento como comestível perpassa relações de poder, higiene, saúde, status e classe. Assim, é objetivo deste trabalho analisar a trajetória da vida dos alimentos e sua classificação enquanto comestível. Através da escolha da categoria analítica do podre como conceito liminar que permite pensar as variáveis da desta classificação e da classificação das pessoas em relação, desenvolvi uma etnografia da trajetória de certos alimentos na cidade de São Paulo, em feiras livres e no programa Mesa Brasil do SESC, buscando compreender a crueza da máxima “você é o que você come”.

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Abstract

The classification of food as edible permeates power, hygiene, health, status and class relations. Thus, the aim of this text is to analize the food’s life path and its classification as edible. Throughout the analytical category of the ‘rotten’ as a liminar concept that allows me to think about the variables involved in the food classification in relation to the people’s classification I devoloped a ethnography of some food in the city of São Paulo, at an open market and in the project Mesa Brasil, aiming to comprehend the perversity of the sentence “you are what you eat.

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Sumário

Introdução

01

O campo

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A trajetória etnográfica

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Capítulo 1. Bom para pensar: o comestível

17

O bom para comer

26

A cozinha da antropologia

35

O bom para pensar: o podre

40

Capítulo 2. As variáveis da classificação: risco e valor

51

O Tempo

54

O Valor

59

O Risco

66

Comida: um demarcador social

83

Capítulo 3. Sobre a vida podre

91

A comestibilidade enquanto objeto

93

Vida e estar na vida

99

O estatuto de pessoa

106

Vida podre

115

Considerações finais

125

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Ao meu avô que me ensinou a ter gosto por aprender; aprender sobre a vida das pedras, das plantas, das pessoas, dos animais, das cachoeiras e das coisas.

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Agradecimentos

Escrever os agradecimentos sempre me pareceu uma tarefa bem fácil. No entanto, apesar da aparência, falar um pouco daqueles que contribuíram tanto para a construção de um texto que se desenvolveu junto comigo se tornou um processo mais complexo do que eu imaginava. É difícil conseguir colocar em algumas poucas páginas toda a gratidão pelo apoio e inspiração nesta grande jornada, que tem seu início bem antes da escrita desta dissertação e compõe minha trajetória de vida. Tentando então, transformar em linhas meus sinceros agradecimentos, escrevo aqui uma pequena parte de como tantos e tantas foram e são importantes neste processo de experienciar o mundo.

Agradeço primeiramente à Unicamp e especialmente ao IFCH aonde pude vivenciar tantas experiências, conhecer tantas pessoas, criar tantos laços e aprender tanto para assim me formar não somente como antropóloga e pesquisadora, mas me tornar aquilo que sou hoje. Não esqueço de todos os profissionais desta instituição que tanto me ajudaram neste processo de formação. À Maria José Rizolla, Marcia Regina Goulart, Alexandre D´Avila deixo minha gratidão pela ajuda, paciência e bom humor. À CAPES e a FAPESP pelo financiamento que possibilitou minha total dedicação neste processo e a experiência de trocar e aprender ao permitir a realização de meu intercâmbio de pesquisa, deixo também meus agradecimentos.

Ao Ronaldo Almeida, meu orientador, agradeço pela confiança em explorar uma tema novo e trata-lo com tanto interesse e dedicação. Agradeço também por cada uma das orientações que me levavam a caminhos que eu mesma queria seguir, mas que por alguma razão ainda estavam nebulosos. Sou grata também pelas conversas que me fizeram ter ainda mais convicção em minhas ideias e em meu trabalho e principalmente por me fazer admirar cada vez mais a antropologia, e todos os mundos que ela permite conhecer.

Aos professores do PPGAS, Unicamp: John, Emilia, Heloisa, Omar, Mauro, Nadia, Bibia e Vanessa conjuntamente a todos aqueles que mesmo indiretamente contribuíram para minha formação, sou imensamente grata.

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Faço um agradecimento especial aos membros de minha banca de qualificação que contribuíram de forma valiosa para a construção do texto final. Ao Christiano Tambascia por ser um leitor tão atento e disposto e por trazer sempre referências tão interessantes para a construção etnográfica, além do carinho e atenção sempre dispensados. Ao Felipe Vander Velden sou grata pelas provocações que me levaram a realmente questionar as dualidades que me propunha a combater, mas que ainda estavam presentes em meu texto.

Ao Odela, agradeço pelo aprendizado, pelos vinhos, comidas e especialmente pelas amizades. Sou extremamente grata ao professor Jesus Contreras por me receber, pela atenção dedicada e pelo carinho, à Maria sou grata a todos os momentos que tivemos desde o primeiro dia em que nos conhecemos, obrigada pelas leituras atentas e pela amizade. Agradeço também à Úrsula, ao Gustavo, Barbara, Francesca, Marionna e José Antonio: Barcelona (e eu) não seria a mesma sem vocês.

Agradeço aos meus pais pelo amor, que acima de tudo me deu forças e base para poder realmente ser aquilo que desejava. À minha mãe sou grata especialmente por me ensinar a carregar sempre um pouquinho de nosso lar comigo, independente dos mares que eu me propusesse a navegar. Ao meu pai agradeço pela força, pelo bom humor que não vai embora, mesmo em face às grandes dificuldades e a ambos por incentivarem sempre a me dedicar ao que acredito e a ‘fazer o bem’, apreciando as boas coisas da vida. Agradeço também as minhas irmãs, que mesmo nas provocações e brigas me ensinaram o verdadeiro significado da palavra ‘compartilhar’. À Laís agradeço pela companhia desde meus dois anos de idade, por me aguentar como irmã mais velha, e também por sempre trazer um pouquinho de arte e loucura à minha vida. À Luísa sou grata pela luz, pelas cirandas, pelas poesias e inspirações e por trazer paz nos momentos difíceis desta minha trajetória de pesquisa. Agradeço por ser sempre presente em minha vida, mesmo estando a quilômetros de distancia. À minha ‘pequena’ Larissa agradeço por me ensinar tanto, mesmo quando você pensava que era você quem estava aprendendo. Obrigada pela alegria.

Agradeço também aos meus avós, que mesmo sem entender muito bem porque é que eu tanto estudava, sempre me apoiaram. Estavam presentes nas idas e vindas da Unicamp, do campo, me deram abrigo, me alimentaram com comidas que tinham gostinho

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de amor e ainda me mostraram que na verdade, o que importa mesmo é estar perto daqueles que a gente ama. Agradeço ao meu Tio Carlos a quem eu tanto admiro, pelas conversas, pelas caronas, pelos incentivos nos estudos, pelas viagens que me fizeram cada vez mais ter vontade de conhecer o ‘outro’ e nós mesmos, e pelo amor. Sou grata também a Tia Cecilia e Tio Junior que sempre estiveram à disposição para me ajudar, à minha tia Cris que fez despertar em mim a paixão pela ‘comida’ e a todos os meus tios e tias que ao menos tentaram entender o porquê da minha constante ‘distância’, continuando a dar amor e apoio. Ao Rodrigo sou grata pela disposição em tentar entender esse ‘meu mundo’ e por me inspirar a descobrir outros mundos e outras possibilidades. Obrigada pela companhia, pelo cotidiano, pelas viagens, pelas comidas, e pelas descobertas. Agradeço também por me deixar partilhar desse seu ‘universo particular’ e assim tentarmos construir juntos o nosso ‘lugar’.

Aos meus piracicabanos queridos, agradeço demais por serem parte do que eu sou agora. Por garantirem minhas melhores memórias da infância e adolescência. Ao Isaac, obrigada por acreditar em mim sempre, por me mostrar que tudo tem um lado leve e divertido e por todo amor. À Cunha, agradeço pelas trocas, pelas nossas loucuras, pela inspiração e pelas mãos e falas que também construíram esse trabalho. À Jacq sou extremamente grata sempre, por me acolher, por meu ajudar na mudança a São Paulo, por ser uma companheira sempre presente em minha vida, por ser minha metade. À Ka, obrigada por me acolher de volta em terras Piracicabanas, e pela amizade mesmo que em doses homeopáticas por causa deste trabalho sem fim. Agradeço também a Fla e a Allana, pelos bons momentos e pela amizade sempre. Sou grata também a Nara, por ser minha amiga no extraordinário e no cotidiano, por me entender sempre, mesmo quando a distância se faz presente e por ter contribuído para deixar esse texto com palavras mais bonitas. Deixo aqui meus agradecimentos as pioneiras, Ligia e Isa pelos anos de amizade e companheirismo. Ao Jhow, agradeço pela atenção e ajuda em desvendar o mundo tecnológico da formatação de texto.

À Carol dedico meu agradecimento por se fazer presente ‘nesta longa estrada da vida’, me conhecendo desde pequena e fazendo parte dos meus carnavais, primaveras e invernos. Tenho orgulho de ser sua ‘filha’.

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Aos meus companheiros da turma da pós-graduação de 2012 dedico todo meu amor e força e agradeço pelas trocas, contribuições, conversas, risadas, festas e bares que contribuíram para a escrita deste texto, mas também para aprendizados para toda à vida. Sem a companhia de vocês esses anos não seriam tão divertidos e frutíferos. À Ana e Adrian sou especialmente grata, pois esse texto aqui também é de vocês. Obrigada por criarmos juntos, essa ‘força’ maior que inspira, acalma, dá amor e diversão e acima de tudo força para seguirmos em frente. Me alegra saber que passaremos mais quatro anos juntos. Ao Liniker agradeço pela amizade, pelo companheirismo, pelo total apoio para definição e entrada no campo, por ser um ‘descanso na loucura’ em todo esse processo. Agradeço também a Cat, com sua alegria e bom humor contagiantes e pela presença e amizade que tanto me fazem bem, mesmo à distancia. Ao Thiago pela ternura. À Ana Piu e ao Vitor por toda a poesia. À Fernanda, Luciano, David, Patrik, Christol, Mariana, Lucas, Berenice, Vanessa pela generosidade acadêmica e pela amizade criada neste percurso.

Faço um agradecimento especial ao Hugo, pelas gentilezas, pelas inspirações, pelas trocas, pelos comentários poucos ‘sutis’ e por ser parte deste texto também, porque se somos aquilo que escrevemos eu sou um pouquinho de todo mundo que contribuiu de diversas formas nesta empreitada. Agradeço também ao Daniel de Lucca pela contribuição na construção do projeto de mestrado, pelas conversas que me inspiraram tanto. Sou grata ao Rodrigo (Lala) pela ajuda na ‘entrada’ do mundo acadêmico.

Aos amigos que a Unicamp me deu serei eternamente grata, pois sou um pouco (ou muito) de vocês. Obrigada por crescerem comigo, por estarmos juntos nesta fase de tantas mudanças. Obrigada pelas discussões políticas, pela formação ‘extracurricular’, pela companhia nas aulas, pelo tempo na cantina, pelas festas, pelos bares, pela alegria em poder morar com tanta gente que eu amo. À Bá eu agradeço por seu meu pilar de sustentação, por estar presente nos momentos mais importantes da minha vida, por me divertir nas aulas chatas, por me fazer tentar ser um pouquinho mais ‘relaxada’, por falar tudo que eu preciso ouvir mesmo não querendo. À Gabi, agradeço pelas comidas, pela amizade desde o princípio da graduação, por ser minha companheira de aventuras e acima de tudo por me dar tanto amor. À Tita sou mais que grata por todo o acolhimento, por me fazer se sentir em casa sempre que estou perto de você, e por partilhar de tantas questões, dúvidas e

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pensamentos sobre antropologia, sobre política, amor e sobre a vida. Agradeço a todas as Marias Bonitas, Tambinha, Angel, Bru, Fafs e Gabi por trazerem mais beleza ao meu mundo e por todo amor compartilhado.

Sou especialmente grata à Su por todo o apoio desde o inicio deste processo de mestrado, por compartilhar não somente o quarto mas, todas as nossas aflições, sonhos e desejos. À Dri agradeço pelo amor que fomos construindo juntas, pela casa, pelas caronas, pela comida e pela companhia sempre boa. Ao Chun, agradeço pelo amor e aventuras culinárias.

Aos companheiros da Granja do Solar agradeço pela alegria, pela experiência transformadora de morar com todos vocês. Ao Flavio, ao Beto e ao Xixa deixo meu agradecimento especial por toda a amizade.

Sou extremamente grata à Mari, Marina, Heldinho, Leijoto, por todo o amor, conversas, viagens e aventuras, e pela paciência em alimentar essa amizade mesmo com a distância e a falta de tempo. Ao Pics, agradeço por todas as conversas, pela cura na loucura ou incentivo a um pouco dela, na dose certa. Todo amor à vocês.

Agradeço especialmente a toda a equipe do Mesa Brasil sem a qual este trabalho não existira. Deixo meu obrigada à Luciana e a Sheila por terem me acolhido e por toda receptividade e abertura para o desenvolvimento do meu campo. Sou grata também ao Neto e a todos os motoristas e responsáveis pela colheita que conheci. Aprendi muito com todos vocês.

A todos do Cedeca de Sapopemba sou extremamente grata. À Sueli, Danilo, Choco, Dona Nazinha e a todos que me receberam e acolheram com tanto amor e gentileza, deixo aqui meus sinceros agradecimentos, mesmo sabendo que estes não são suficientes para retribuir tudo o que aprendi com vocês. Não posso deixar de dedicar um agradecimento especial a Dona Nazinha, pelas comidas, conversas e amor, e a Ana, sem a qual este trabalho não existiria. Foi ela quem me mostrou o valor das coisas inúteis e a poesia da vida cotidiana.

Agradeço também a receptividade de todos na Associação de Moradores de Paraisópolis e em especial a Associação de Mulheres representada pela Rejane. Agradeço ao Gilson, à Marly do Cras Campo Limpo, a Monica da Casa da Amizade e a

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xx Eliana do Albert Einstein.

Sou especialmente grata à Carmen do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da Cidade de São Paulo, e a todos os participantes dos grupos de trabalho do Conselho que tanto contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa, e também a Nara do Banco de Alimentos. Sem todos vocês eu não poderia ter escrito todas essas linhas.

Finalmente agradeço a minha banca de defesa pelos preciosos comentários e pelo reconhecimento de um trabalho feito com tanta dedicação. Agradeço especialmente ao Carlos Alberto Dória por ter sido um leitor tão generoso e por te me incentivado durante todo o período de pesquisa. Obrigada pela sensibilidade, pelo carinho, pela leitura rigorosa e por todas as conversas que tivemos. Ao Felipe Vander Velden agradeço mais uma vez por todo o incentivo ao debate.

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Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado serve para poesia (...) Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia (...) Pessoas desimportantes dão para poesia (...) O que é bom para o lixo é bom para poesia (...)

As coisas jogadas fora têm grande importância - como um homem jogado fora Aliás, é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na Terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória As coisas sem importância são bens de poesia.

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Introdução:

Esta pesquisa tem como tema geral a alimentação, cujos recortes serão definidos ao longo desta introdução. Para a realização de minha pesquisa de campo, me mudei para a cidade de São Paulo, com o propósito de ‘ser levada’ pelo meu objeto e, assim, acabei participando de diversos grupos, reuniões, cursos e eventos que tratavam desta temática.

Neste processo, fui convidada a participar de uma reunião com os membros do Conselho de Segurança Alimentar e nutricional de São Paulo, cuja sede localiza-se em um prédio anexo ao Mercado Municipal, no centro da cidade, próximo à Rua 25 de Março, conhecida como a maior rua de comércio da América Latina.

Situado na Rua da Cantareira, o Mercado Municipal de São Paulo atrai muitos turistas, pessoas de fora da cidade ou os próprios paulistanos que desejam comprar produtos específicos somente encontrados ali. Em sua maioria, as mercadorias ali vendidas tem um preço elevado, dificultando o acesso de camadas mais populares e trazendo certa ideia de status para quem o frequenta.

Como em todos os mercados de alimentos do país, o desperdício produzido pelo “Mercadão”, como é chamado o Mercado Municipal, é grande1

e, por conta de terem seus produtos considerados de altíssima qualidade, quando algum deles não atende a esse padrão, torna-se lixo.

As reuniões do conselho aconteciam de quinta-feira e, em uma ocasião, ocorrera algo fora do normal, que jamais havia se repetido em outras quintas-feiras. Não sei ao certo se havia uma greve dos lixeiros, ou se fora um atraso no cronograma da limpeza da rua, mas, ao descer a ladeira do Metro São Bento e ir caminhando em direção à Rua da Cantareira, fui identificando vários montes de lixo espalhados pelas vias públicas. Todo o cenário parecia um pouco dos filmes de guerra, com as ruas cheias de escombros. Ao me aproximar cada vez mais, vi que em cada monte de lixo se encontrava no mínimo uma

1 O desperdício de alimentos no Brasil chega a 40 mil toneladas por dia. Anualmente, a quantia acumulada é

suficiente para alimentar cerca de 19 milhões de pessoas diariamente. Fonte: Embrapa <https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/1493220/desperdicio-de-alimentos-e-desperdicio-de-recursos-naturais-e-financeiros>. Acessado em: 10/03/14.

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pessoa. Homens e mulheres agachados selecionando comida entre os sacos ou diretamente da rua.

Havia chovido muito na noite anterior, porém, o clima de verão fez com que o sol da manhã iniciasse, logo cedo, o processo de evaporação de toda a água que não tinha escoado para os bueiros, formando diversas poças perto do meio fio. Esse processo de evaporação deixava o ar com uma consistência úmida e a cada passo que eu dava o cheiro das comidas que se deterioravam em meio à água e a outros dejetos ia se tornando cada vez mais forte. Em um momento, caminhando na calçada ao lado de diversas lojas de flores de plástico, senti um mau cheiro terrível e, ao olhar para o lado, percebi um homem catando laranjas da poça de água, observá-las, para, em seguida, morder uma delas. O cheiro cítrico da laranja curtida em água da chuva me enjoou. Tive que encontrar algo em minha bolsa para cobrir meu rosto e continuar o caminho.

Talvez por ser muito cedo e pela umidade do ar potencializar todos os cheiros que estavam ali, esses poucos minutos de caminhada pareceram uma eternidade. Ao perceber que todas essas sensações foram suscitadas em mim ao ver essas pessoas comendo aquela comida, me senti mais uma vez extremamente tocada pelo campo.

*****

Estudos na área de alimentação, ou ainda, as mais diferentes fontes de informação sobre comida que permeiam distintos saberes, não somente acadêmicos, como também de áreas como gastronomia, nutrição, mídias e literatura têm cada vez mais se tornados populares em nossas vidas cotidianas. Ao entrarmos em livrarias, é raro não encontrarmos uma estante de tamanho relevante acerca do tema da alimentação. Os artigos sobre gourmetização da vida, sobre o dilema da alimentação contemporânea, sobre as responsabilidades políticas envolvidas em nossas escolhas alimentares, o que devemos comer, como e até por que comemos são parte de uma gama de material produzido para pessoas leigas na área, mas que se interessam pelo tema em geral.

Como precisamos comer para viver, nenhum outro comportamento não automático se liga de modo tão íntimo à nossa sobrevivência, ao mesmo tempo em que a comida e o comer assumem, assim, uma posição central no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora rotineira. (Mintz, 2001). A comida é, então, assunto do

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nosso dia-a-dia, e a sua função, bem como seu papel na vida do ser humano, vem se tornando central nas preocupações e debates atuais em escala global.

Questões como a obesidade, a segurança e soberania alimentar e, principalmente, os dilemas do abastecimento e acesso à alimentação enquanto problemas mundiais fomentam discussões incessantes em relação à temática da alimentação, a qual tem sua origem em uma preocupação que parece questionar o papel peculiar de nossa espécie no mundo natural.

A comida conecta e separa o ser humano da espécie animal e do mundo natural. Segundo Pollan (2014), é através da cozinha que podemos ter uma compreensão mais profunda do mundo natural e de como atuamos neste contexto. Para o autor, poderíamos enfrentar todas as perguntas em relação à alimentação e à nossa existência animal em um mundo cultural nos embrenhando numa floresta, porém Michael Pollan (2014) afirma ter descoberto que é possível obter respostas ainda mais surpreendentes simplesmente indo para a cozinha.

Em seu livro Cozinhar (2014), o autor introduz o debate sobre a especificidade do animal humano e a importância do ato de cozinhar na separação do homem de suas origens animais. Desde o século XVIII, a cozinha era vista como central na transformação do animal humano, sendo assim, segundo James Boswell (citado por Pollan, 2014), nenhum animal é um cozinheiro, exceto o Homo Sapiens, o animal que cozinha. Para além de sermos uma espécie em destaque nesta discussão, cozinhar é, para estes autores, o que nos transformou no que somos. A atividade de usar o fogo contribuiu muito para o avanço da civilização (Brillat- Savarin, 1995). Não somente enquanto atividade prática, mas em uma perspectiva simbólica, o ato de cozinhar é, segundo Lévi-Strauss (1997), a atividade simbólica que estabelece a diferença entre os animais e as pessoas. A cozinha seria a metáfora da transformação da natureza crua para a cultura cozida.

O sentido literal desta transformação também é foco de diversos estudos contemporâneos. Antropólogos e primatólogos da atualidade alegam que a invenção do ato de cozinhar poderia guardar o segredo da evolução para nossa condição de seres humanos. “Ao redor do fogo nos tornamos mais domesticados” (Wrangham citado por Pollan, 2014:

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15). Isso quer dizer que “cozinhar se tornou compulsório; está cozido em nossa biologia. Primeiro cozinhamos nossa comida, e depois ela nos cozinhou” (Pollan, 2014:15).

Partindo de todos esses pressupostos e sintetizando-os através da ideia de que foi o ato de cozinhar que fez nossa passagem da natureza para a cultura, tanto em um sentido literal quanto simbólico, isto é, o que definiu a condição humana, quando nos aproximamos das pessoas e saímos do plano do humano como um todo, podemos questionar acerca daquelas pessoas que vivem da comida do lixo, comida que pode ser crua ou cozida, mas que é catada, é sobra, resto. O que esta situação social específica pode nos dizer, então, sobre a condição humana, ou o que este estatuto de pessoa pode nos dizer sobre esta situação social?

É este o questionamento central que busco desvelar em minha análise da trajetória da vida dos alimentos jogados fora e da vida de seus comensais. No entanto, para lograr tal objetivo, talvez seja necessário dar um passo para trás e indagar qual concepção de vida permite uma melhor abordagem da temática, assim como, fazer uma reflexão sobre os sentidos do alimento e a sua capacidade enquanto objeto de incorporação de todas essas relações em um só lugar.

Nesse sentido, devemos assumir a importância da análise do comestível para se pensar não somente uma nova perspectiva para a antropologia da alimentação, como também uma nova maneira de compreender a vida dos objetos em relação à vida das pessoas. Tendo em vista que concebemos o ato de cozinhar como a passagem da animalidade para a cultura, idealizamos a comida enquanto a base para nos relacionarmos com a realidade (Mintz, 2001), pois ela entra em cada ser humano e assim, este é substanciado, encarnado a partir da comida que ingere.

*****

“Processos de desenvolvimento: crescimento, maturação, decadência são fundamentais para o que eu compreendo como vida” – Tim Ingold

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Quando iniciei meu mestrado em Antropologia Social na Universidade de Campinas, tínhamos no primeiro semestre uma disciplina de “Seminário de Pesquisa”, na qual todos os projetos dos ingressantes de mestrado e doutorado eram discutidos pelo grupo. No dia da discussão do meu projeto, o colega que fez a problematização de meu texto disse que achava muito interessante o que eu pretendia abordar: a discussão acerca do podre e da vida. Demorei um tempo para refletir sobre isso, o que foi ocasionado pelo encontro, em minhas anotações, da frase (epígrafe deste tópico) de uma entrevista que Ingold deu para o grupo Nau da Usp (Ingold, 2012).

Pensei, então, que talvez fosse sobre isso mesmo que pretendia discutir, mesmo sabendo dos meus limites e da pretensão de tal tarefa. Falar sobre a classificação dos objetos enquanto comestíveis e da vida destes enquanto comida, além das variáveis que estão envolvidas nesse processo do pensamento humano problematiza a própria ideia de vida, não estando esta restrita em minhas análises somente à vida dos alimentos, mas também daqueles que o consomem. O título do meu projeto, “Vida Podre: a trajetória de

uma classificação”, escolhido não ao acaso, já dava indícios de minhas premissas, entre as

quais estava pensar a questão da vida nesse sentido duplo, dos alimentos e das pessoas, e assim, questionar as relações que surgem a partir dessa classificação, principalmente no âmbito da relação entre as coisas e as pessoas e o valor da vida de ambas.

Segundo Tim Ingold (2011), é objeto de estudo da antropologia pensar sobre as condições e potenciais da vida humana e nesse sentido pretendo, nesta dissertação, discutir sobre a vida humana e sua condição através da vida dos alimentos, isto porque, mais do que somente um adágio, nós realmente pensamos e vivemos a constatação: somos o que comemos.

Assim como esta afirmação, a discussão sobre o comestível não é uma discussão nova na antropologia da alimentação, ou mesmo na disciplina antropológica como um todo. Desde Malinowski (1929), Audrey Richards (1932) e posteriormente com Marvin Harris (1985) em seu livro Bom para comer: enigmas da alimentação e cultura, a questão do bom para comer sempre esteve presente. O dilema do omnívoro é parte extremamente relevante de diversos estudos sobre alimentação no âmbito cultural, social,

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econômico e até mesmo biológico e nutricional. Porque não consumimos tudo que é biologicamente comestível? (Fischler,1995:29).

Em que medida, entretanto, a pergunta acerca do “biologicamente comestível” faz algum sentido em termos de contribuição antropológica? A partir do momento em que decidimos comer algo, esse objeto ou esse ser vivo se torna comida, se enquadra na categoria de comestível. Como então procurar as nuances e as diferentes classificações de um mesmo objeto levando em consideração essa perspectiva? Como compreender o pensamento humano e a classificação do alimento enquanto categoria do sensível em um contexto de precariedade? Ou melhor, como um alimento é classificado como não comestível por uma pessoa, descartado, e posteriormente classificado como comestível por outra?

A categoria do podre surgiu como uma possibilidade de um mínimo denominador comum para a classificação dos alimentos enquanto comestíveis, no entanto, ao longo da escrita etnográfica o podre deixou de ser uma variável e se tornou um ponto virtual que poderia iluminar essa classificação. Advindo da própria teoria antropológica, este objeto teve ressonância na análise dos dados de campo e, por isso, foi escolhido como uma categoria não classificável que permite pensar a vida dos alimentos e das pessoas que os classificam e questionar a própria categoria de vida enquanto vida biológica.

Desde Lévi-Strauss, em seu clássico texto sobre alimentação, O triângulo culinário (1997), e com Mary Douglas, em “Pureza e perigo” (1976), a categoria do podre se mostra um interessante lugar para se pensar as variantes do comestível e não comestível. Como um lugar de liminaridade2 (Turner, 1974) que evidencia questões que, de certa forma, somente apareceriam quando à margem destas categorias duais, o podre não se apresenta aqui enquanto categoria nativa, mas, sim, ele é um flutuante, um ambivalente que pode ser comestível ou não, natural ou cultural, mas que, de forma geral, trata do valor da vida.

2 Utilizo do conceito de liminaridade não como um momento na vida da comida enquanto objeto, mas sim

como um momento da vida deste objeto no qual este pode ou não ser considerado comida. A liminaridade não prevê aqui uma teleologia dos alimentos, isto é, todos este como u vir à ser podre, mas sim entre os processos de se tornar ou não comida.

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Em minha etnografia, tive como foco central a vida dos alimentos, mas enquanto desenvolvia a pesquisa e após a sistematização dos cadernos de campo, de minhas percepções e da teoria até então abordada, algumas questões continuavam insistentemente ocupando minha cabeça: como pensar o limite do podre? Existe tal limite? O podre estaria relacionado com a morte? Seria o podre a materialização do medo da morte nos alimentos? E assim, como sabemos em que momento algo está podre? E morto? E vivo? Quando uma maçã cai do pé ela está pronta para ser comida? Ela está morrendo? Em que momento este processo se inicia? E quando termina? E a carne, por se tratar de um animal morto, seria um alimento em estado de putrefação? E os fungos? Um alimento com fungos não teria mais vida do que um que não os contém?

No inicio de minha reflexão caí em uma armadilha criada por meus próprios objetivos de pesquisa. Ao imaginar o podre enquanto um objeto e tratar deste e da vida das pessoas que dele se alimentavam, parecia haver em minha escrita um sentido teleológico da vida dos alimentos que indubitavelmente chegaria ao podre e assim ao perigo de comer este podre, tendo em vista que ele poderia trazer risco de morte à vida dessas pessoas.

A categoria do comestível parecia, em minhas análises, presa a esse limite que gerava uma polaridade entre as representações de podre daqueles que se alimentavam da comida jogada fora, e a realidade da vida enquanto materialidade que caminha para o fim iminente. As necessidades básicas das pessoas que “tinham” que comer ‘essa comida’ eram sempre soberanas à questão da sobrevivência, isso talvez porque o problema estava exatamente aí, na vida e na sobrevivência.

Fui questionada muitas vezes sobre o objeto de minha pesquisa, ouvindo sempre que o que eu estudava não era o podre, pois “isso que você está falando não é podre, são sobras, restos de comida, comida que alguém não quis comer, porque se fosse podre ninguém comia”. Sobre o que eu estava falando então? Afinal de contas, não comemos o podre? Um bom queijo roquefort, ou gorgonzola, um chucrute bem curtido, uma uva fermentada, um faisandé? Não seriam esses também classificados como podre? Mas qual seria o meu objeto de pesquisa? Por que o podre?

Para começar a pensar sobre essas questões, meu primeiro passo foi refletir sobre a categoria de vida, aquela que estava desde o início presente no título do meu projeto

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e como pano de fundo para tudo aquilo que pensava, mas que, somente no processo chamado por Da Matta de “terceira fase de um trabalho antropológico” (1978), consegui perceber sua importância enquanto parte central de meu estudo.

Através da definição ingoldiana, que não vê a vida dos objetos ou alimentos como “a movement towards terminal closure” (2011: 48), mas como um processo no qual “things are in life rather than life in things” (idem, ibidem), podemos compreender melhor as variáveis que se apresentam entre as categorias duais de comestível e não comestível. O podre nos permite assim sair de um relativismo cultural no qual tudo é passível de ser classificado como comida e também não nos deixa cair em um determinismo biológico, pois ele próprio não se apresenta como um nome para um momento definido da vida das coisas e das pessoas; em sua nebulosidade, em seu processo de não enquadramento classificatório, ele se torna um classificador, um classificador de gente, um demarcador social.

Uso, então, o podre enquanto conjugado com a ideia de valor, valor da vida das pessoas e dos alimentos, para que de seu lugar de ambiguidade revele as complicações entre o não comestível e o comestível e nos mostre que nesses meandros existem variáveis como as de tempo, status e risco que definem sua classificação.

O podre é, nesse sentido, uma categoria analítica, pois é através dele que consigo conjugar valor com as variáveis apresentadas acima, levando ao limite o não comestível; o podre é visto então como o conceito chave desta dissertação, e não como objeto de estudo. Meu objeto de estudo se define, desta maneira, enquanto o objeto-comida, pois o podre em si não existe. No entanto, por ser o podre um conceito liminar, não classificável e que é central na construção do objeto de estudo desta etnografia, foi necessário organizar a escrita desta dissertação em relação ao limite de meu vocabulário e do vocabulário encontrado em campo, ou seja,

if realities are not independent of our representations of them and our involvement with, then our raising of scientific question can be no innocent act” (Schweder, 1991 citado por Hastrup, 1993:733). In the world of mood, to claim innocence would be to deny the essential reflexivity inherent in any description. We have no choice but to invest our own experience in the description. – We notice how the words derive their meaning from the very context they purport to descrive; that is the carachteristic feature of reflexivity. With truly reflexive anthropology we shall not have to make a choice, but to live with the paradox of definitional realities (Hastrup,1993:733).

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Nesse sentido, penso que “every ethnographer is painfully aware of the discrepancy between richness of the lived field experience and the paucity of the language used to characterize it. This is no reason to stop talking, however” (Hastrup, 1993:735).

Poderia, em minhas análises, ter optado pela preferência de usos de diversos conceitos nativos, utilizando para cada situação o termo exato o qual foi empregado. Contudo, seguindo essa orientação, não lograria ainda elucidar as questões que vejo como mais relevantes em minha discussão, para as quais o conceito de ‘podre’ e sua problematização demonstram, ao longo do texto, ser extremamente profícuas. Uma escolha extremamente fiel aos termos nativos não traria o ganho analítico que o conceito escolhido pode contribuir. Como bem aponta Marilyn Strathern,

não se trata de imaginar que seja possível substituir conceitos exógenos por correspondentes nativos; a tarefa é, antes, a de transmitir a complexidade dos conceitos nativos com referência ao contexto particular em que são produzidos. (...) Isso exige que os próprios construtos analíticos sejam situados na sociedade que os produziu (Strathern, 1988: 33).

Sendo assim, meu objeto de estudo se inicia com a comestibilidade, ao passo que esta se torna um objeto em si e posteriormente vai se transformando ao longo da dissertação na vida podre; a questão central torna-se o processo de classificação da vida e as variáveis que entram nesse jogo, pois, assim como a concepção que apresento da vida, esse trabalho não se organiza em uma escrita linear, em termos de tempo e espaço, mas sim em um ciclo de vida, o processo de “being alive”(Ingold, 2011).

O campo

Ao longo deste livro, o que mais me importa é pensar a alteridade na sociedade de classes. Essa alteridade é axiomática em qualquer pesquisa etnográfica de campo. Como aconselha C. Geertz, citando Thoreau, "não vale a pena atravessar meio mundo [...] para contar o número de gatos em Zanzibar". Penso nisso cada vez que me deparo com o potencial especial da pesquisa etnográfica. Atravessar meio mundo é o que os antropólogos mais gostam de fazer — literal ou metaforicamente. Mas será que o simples fato de estar em Zanzibar garante bons resultados? Se voltarmos do campo, depois de dois meses ou de dois anos, simplesmente repetindo o que já foi dito e descrito por outros métodos, "reforçando verdades antigas" (Geertz, 1988), será que os resultados terão valido a viagem? O método etnográfico foi fundado na procura por alteridades:

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outras maneiras de ver (ser e estar) no mundo. Se não levamos nossas análises até as últimas consequências, por que — meu Deus — não usamos um método mais simples? É com essa proposta, convidando o leitor a vir conosco experimentar outros mundos, que embarcamos nesta viagem. (Fonseca, 2000:9).

Durante um pouco mais de seis meses de minha pesquisa de campo vivi no município de São Paulo e tive como campo previamente definido uma instituição e duas feiras em favelas da cidade. Iniciei a pesquisa e o foco anteriormente escolhido foi se transformando e o que era para ser uma etnografia multi-situada, nos termos de George Marcus (1995), se tornou a etnografia da trajetória da vida de certos alimentos que iam se misturando à vida das pessoas, e eram ambas classificadas de acordo com diversas vozes: das instituições, dos lugares, das pessoas. Como foi apontado anteriormente, creio ser importante ressaltar que a classificação dos alimentos como comestíveis se dá em relação ao seu lugar de denominação e aos agentes que os classificam. O alimento é objeto e agente deste processo semântico, e a vida na qual os alimentos existem tem como constituintes vozes que também a definem. Essas vozes se concentram, nesta etnografia, em alguns “campos” específicos que serão apresentados abaixo como forma de contextualização da pesquisa, mas os quais não são o foco deste estudo. A partir da premissa de que aquilo que é comida é considerado por seus comensais como comida, desenvolvo essa etnografia a partir de um panorama mais amplo da trajetória de certos objetos os quais são classificados como comida ou como lixo.

Para assim, acompanhar a trajetória da vida destes objetos e como esses vão sendo classificados, fez-se necessário realizar um recorte que a princípio me soava como um recorte espacial, porém, posteriormente, deixando de pensar nesta trajetória enquanto um caminho linear, percebi a importância em descrever alguns campos que iam surgindo em minha narrativa, mas sem contudo tê-los como campos de uma etnografia multi-situada. Ao falarmos sobre a vida, no processo de “being alive”, essas vozes, pessoas, e instituições são mais um daqueles que “estão na vida”. A partir desta perspectiva apresento os lugares que participam dessa narrativa: o projeto Mesa Brasil, a feira na favela do Madalena em Sapopemba e a favela de Paraisópolis.

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Para tanto, realizei uma etnografia destes alimentos nos lugares que descrevo abaixo através de participação nas reuniões, nas atividades formativas de cada entidade, nas colheitas urbanas, além de uma vivência regular nas favelas e no programa Mesa Brasil.

Em decorrência do contexto em que a pesquisa se deu, nenhuma entrevista ou conversa foi gravada, mas o trabalho constante de sistematização diária dos dados de campo foi realizado para que as informações fossem fiéis à minha experiência vivida nestes lugares, tendo em vista que “to move, to know and to describe are parallel facetes of the same process, that of life itself” (Ingold, 2011:3). Me propus, assim, a “being observant”, pois “being observant means being alive to the world” (Idem, ibidem).

O Mesa Brasil

O programa Mesa Brasil é uma iniciativa do SESC em parceira com o governo federal que tem como objetivo

a segurança alimentar e nutricional sustentável, que redistribui alimentos excedentes apropriados para consumo fora dos padrões de comercialização. Formado por uma rede de banco de alimentos que busca onde sobra e entrega onde falta – o Mesa Brasil SESC contribui para o combate à fome através da complementação de refeições. (http://www.sesc.com.br/mesabrasil).

O projeto Mesa Brasil recolhe alimentos doados por diversos tipos de estabelecimentos alimentícios e faz um processo de triagem e higienização para que esses alimentos sejam repassados para diversas instituições, com o intuito de combater a fome através do combate ao desperdício, estando sempre atentos para a colheita de produtos que perderam seu valor comercial, mas que ainda estão aptos para consumo.

Utilizando do conceito de Segurança Alimentar, sendo este a garantia a todos os brasileiros de acesso a uma alimentação adequada à sobrevivência e à saúde em termos de quantidade, qualidade e regularidade, este projeto parte das categorias de higiene alimentar e nutrição para classificar assim o que é podre e o que ainda é considerado alimento.

Através de uma metodologia baseada nos parâmetros de higiene da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e de parâmetros mundiais de nutrição e

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segurança alimentar, os programas de recolhimento de sobras e doação de alimentos para combate à fome trabalham dentro de um quadro de categorias relacionadas às ciências biológicas, médicas e exatas. Os fatos científicos e biológicos, as características naturais dos alimentos e a capacidade do ser humano de usar seus sentidos e sensações classificam e definem essas sobras.

Sapopemba, Feira do Madalena, Ana Paula e Dona Nazinha

Meu primeiro dia de campo de toda a pesquisa foi realizado em Sapopemba. Cheguei lá por intermédio de um grande amigo que também é meu colega de turma de mestrado e que já realizava sua pesquisa há tempos nesse distrito. Em Sapopemba, pretendia estudar a feira e o consumo das sobras de alimentos, tentando assim comparar com outra feira, da favela de Paraisópolis, a qual tem uma posição geográfica muito diferente à de Sapopemba.

Sapopemba é um sub-distrito do município de São Paulo que possui mais de trezentos mil habitantes e mais de trinta bairros e se localiza na zona leste da cidade, há mais de duas horas e meia de transporte público do centro. Esses bairros apresentam uma grande variedade em seu nível sócio econômico, desde famílias de classe média a um nível de vulnerabilidade social bem alarmante.

Foi no CEDECA, Centro de Defesa de Criança e Adolescente, do bairro do Madalena que conheci a maior parte das pessoas que aparecem nessa etnografia, cujas vidas permeiam e são permeadas pela vida dos objetos descritos no texto. O CEDECA, além de se ocupar da defesa da criança e do adolescente, é um ponto de encontro e articulação dos moradores do bairro. Lá trabalham Dona Nazinha e Sueli e foi através do CEDECA que Ana conseguiu sair da Praça da Sé e construir uma casa para viver com sua família. É também na rua ao lado do CEDECA que se encontra a principal feira do bairro.

A feira do Madalena acontece todas as quintas-feiras e é o principal local para a compra de frutas, verduras, legumes e carnes da maioria dos moradores da região. É também na feira do Madalena que Ana Paula faz algumas compras e colhe boa parte dos alimentos que são deixados pelos feirantes.

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Paraisópolis

Paraisópolis poderia ser considerada o padrão de favela que visualizamos ao pensar em tal palavra. Originária de um loteamento destinado à construção de residências para a classe alta, a região foi ocupada em sua maioria por migrantes nordestinos que vieram a São Paulo para trabalhar na construção civil. Ao mesmo tempo em que a favela foi crescendo, novos bairros nobres com condomínios de luxo eram criados ao redor da ocupação; atualmente a favela é habitada por mais ou menos 100 mil pessoas.

Um enclave periférico na cidade de São Paulo, em um estilo de favela muito parecido com as favelas do Rio de Janeiro, segundo Feltran (2010), Paraisópolis se diferencia de outras periferias de São Paulo. Sem entrar na questão se existe uma “não presença” ou falta do Estado nessas localidades, além dessa forma de gestão governamental, se vê muito presente a gestão das Ong’s e entidades assistenciais. Paraisópolis conta com uma feira livre muito grande realizada todos os sábados, e nela podemos ver as redes de articulação para aproveitamento das sobras.

Além disso, duas outras entidades participam da organização da vida cotidiana em Paraisópolis, abrangendo suas diversas esferas. A Casa da Amizade e o Centro de Serviço Social da unidade do Hospital Albert Einsten prestam diversos serviços de assistência à comunidade e ajudam na definição da comestibilidade dos alimentos a partir de suas próprias perspectivas sobre risco, tempo e valor.

A trajetória etnográfica

Como, então, descrever e colocar no papel a trajetória de um objeto que passa por diferentes lugares em termos geográficos e tem relação com diferentes atores, focando no objeto em si e em sua classificação como produtora de diferenciação, mas ainda assim dando importância para as relações que constrói?

Para tanto, escolhi quatro alimentos que, em suas trajetórias, abordam questões que vejo como centrais para a discussão do “bom para comer e bom para pensar”. A partir

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da história de alguns momentos da vida desses objetos, vou desenhando suas trajetórias, descrevendo seus campos, os atores com os quais eles se relacionam, as vozes que disputam legitimidade e a vida daqueles que os consomem.

Parto, portanto, da perspectiva Ingoldiana relacionada ao conceito de ‘dwelling’, isto é, “to be embarked upon a movement along a way of life” (Ingold, 2011:31), no qual “the path and not the place is the primary condition of being”. Vejo, assim, não somente o processo de experimentação da vida, como o próprio processo de construção etnográfico como “a matter not of testing conjectures in arenas of practice, but of enrolling practical activity in the very process of following a train of though – they place the investigator, in person, right in the midst of things” (Ingold, 2011:34).

Pretendo, como Paul Stoller diz, desenvolver uma etnografia que dê aos leitores “a taste of ethnographic things” (1990:9), construindo um texto articulado com a descrição dos aspectos sensitivos da vida dos seguintes objetos: a banana, o frango, o mamão e o iogurte.

Concebi como necessário e interessante, do ponto de vista da construção etnográfica, iniciar o primeiro capítulo com uma breve discussão sobre o comestível. É a discussão sobre a comestibilidade da casca da banana que nos guia para uma concepção de como a noção desta é construída e as variantes que operam nesta definição. É também parte deste capítulo uma reflexão sobre o processo de classificação. A discussão sobre o bom para comer é mais uma vez trazido à tona. Abordo então, através do regaste da discussão de Mauss e Durkheim (1981), o processo classificatório, compreendendo este como uma atividade cotidiana na seleção dos alimentos. Desenvolvo um breve panorama da história da antropologia da alimentação, ou, talvez, do que chamo de ‘cozinha da antropologia’. Posteriormente, o tema do ‘podre’ é introduzido partindo de sua concepção mais ampla, de um ponto de vista teórico e prático, para assim chegarmos ao foco desta analise através de uma discussão sobre o iogurte, o controle do podre e seu uso enquanto categoria não classificável que ilumina o processo de classificação.

O segundo capítulo, que tem como título “As variáveis da classificação: risco e valor”, pretende, de forma geral, abordar as variáveis que definem a comestibilidade dos alimentos. A feira livre, e mais especificamente a ‘xepa’, será um ponto crucial para

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abordagem desta questão, tendo em vista que é o local e a temporalidade que articulam as categorias presentes no título deste capítulo. Um breve levantamento do conceito de risco será articulado com a vida do mamão, bem como as histórias sobre o frango que pretendem elucidar os questionamentos sobre pureza, perigo e magia. Caminhando para uma discussão sobre hierarquia em relação aos alimentos, e estes como demarcadores sociais, nos direcionamos para o terceiro e último capítulo.

“Sobre a vida podre” pretende articular as variáveis da comestibilidade dos alimentos com a vida das pessoas que os consomem. Partindo da perspectiva chave da antropologia da alimentação, isto é, ‘somos o que comemos’, mas também ‘comemos o que somos’, busco compreender a perversidade do processo de incorporação em relação ao dilema do omnívoro e o lugar das pessoas nesta relação. É necessário, para tanto, o questionamento da própria ideia de vida, ou de vida biológica, para podermos compreender o processo de estar vivo e a relação entre as coisas e as pessoas.

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Capítulo 1 - Bom para pensar: o comestível e o não comestível

O Comestível

Certa manhã, considerada típica no programa Mesa Brasil do município de São Paulo, a responsável pela coordenação da unidade Carmo recebeu uma ligação de uma fábrica de doce de banana buscando saber se o programa aceitaria a doação de algumas toneladas de casca de banana.

Em resposta, a coordenadora disse que não poderia tomar essa decisão sozinha e que precisaria consultar a coordenação estadual. Luciana, diretora estadual do programa, foi então informada sobre o pedido de doação. A primeira ação de Luciana foi telefonar para o microbiologista que presta consultoria para o Mesa Brasil e perguntar a ele sobre os riscos do consumo desse alimento e sobre como a higienização e preparo de tal alimento deveriam ser conduzidos, caso a doação fosse aceita. O microbiologista pediu um tempo para pensar. Após alguns minutos ele retornou à Luciana e disse ser possível aceitar a doação, dizendo que a higienização da casca poderia ser feita através de sua fervura ou cozimento e que ela seria uma fonte importante de nutrientes.

Depois dessa ligação, Luciana consultou as culinaristas para que a possibilidade de receitas com a casca da banana fosse pensada. As culinaristas, então, fizeram uma rápida pesquisa e apresentaram uma pequena lista de diversas receitas. Agora era a vez das nutricionistas realizarem uma pesquisa sobre os nutrientes que poderiam ser encontrados nesse alimento e assim compreender se ela seria uma fonte importante na complementação nutricional das entidades atendidas pelo programa.

As nutricionistas chegaram à conclusão de que a casca da banana era rica em nutrientes e que, além disso, era possível criar uma ampla variedade de receitas com ela, o que permitiria um grande aproveitamento da doação, sem mencionar ainda a questão da higienização e armazenamento que não exigiam grandes esforços das entidades atendidas.

A doação foi aceita e todas as instituições atendidas pelo programam no município de São Paulo receberam alguns quilos de casca de banana, mas somente após um curso de formação no qual um representante de cada entidade aprenderia a fazer todas as

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receitas levantadas pelas culinaristas. As principais delas eram bolo de casca de banana, torta, brigadeiro e farofa.

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Não é comum pensarmos que na língua portuguesa existem dois adjetivos diferentes para tratar da “comestibilidade” de um alimento3. O sujeito “comida”, quando se

transforma em adjetivo, é conhecido como comestível, enquanto que o outro adjetivo, comível, apesar de mais simples, é poucas vezes recordado. O comestível seria muitas vezes definido como “aquilo que se pode comer”, entretanto, essa definição se prova muito relativa, principalmente se analisarmos a cena acima e pensarmos na casca de banana também como algo “que se pode comer”.

Essa expressão por si só tem abertura para, no mínimo, duas vertentes de análise, e é em relação a essas duas vertentes que explorarei a questão da comestibilidade da casca de banana. Para além da definição abrangente do comestível como “algo que se pode comer”, muitas vezes a comestibilidade do alimento está associada a sua propriedade de não causar risco àquele que o consome, ou ainda, de não ser tóxico ou contaminado. O comível, por outro lado, seria aquele alimento que possui sabor ou gosto possível de ser consumido, ou ainda, que seja no mínimo agradável para consumo.

A casca de banana, ao surgir na pauta do Programa Mesa Brasil, não era a priori considerada comestível ou muito menos comível. Ela passou por um processo não somente semântico, mas também burocrático para mudança de seu estatuto. O fato das nutricionistas consultarem diversos profissionais antes de anunciarem o aceite da doação e a ordem de consulta destes profissionais diz muito sobre a criação da comestibilidade dos alimentos e as esferas de poder que inferem sobre essa nomeação. Este processo é, assim, o próprio processo de criação da categoria comida, que tem seu estatuto de objeto transformado em relação à sua comestibilidade.

Os microbiologistas foram quem primeiramente definiram a casca da banana como passível de ser comida (verbo e sujeito), porque é a biologia a voz mais legitimada

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Talvez em inglês essa associação seja mais espontânea, pois intuitivamente falando seria mais fácil transformar o verbo ‘eat’ em ‘eatable’ e não ‘edible’. No entanto, a segunda opção é a mais comum e significa comestível e a primeira tem como significado ‘comível’.

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para pensar a capacidade de um alimento trazer, por um lado, risco à vida das pessoas ou ser, por outro lado, considerado como nutriente para manutenção desta mesma vida. Posteriormente, as culinaristas foram consultadas sobre a possibilidade de tornar esta comestibilidade comível, isto é, de fazer a passagem da natureza do alimento para a cultura do preparo. Em última instância, foi a funcionalidade dos alimentos que precisou ser analisada para que esse fosse aceito como um alimento comível e comestível e também nutritivo.

A casca da banana se torna então comestível a partir da perspectiva da ciência. Quando os microbiologistas afirmam que ela é passível de ser comida, algo que antes era lixo4 é classificado como alimento; e essa transformação se dá através de um processo de nomeação que traz à tona a política por detrás da classificação.

O próximo passo estaria associado à transformação do não tóxico, o passível de ser digerido e metabolizado pelo corpo humano, em também agradável ao paladar humano, e, mais ainda, a um paladar humano específico. A casca de banana não é comida crua, não é comida de qualquer maneira. Culinaristas são consultadas para pensar nas possibilidades, até o presente momento do texto, chamadas de culturais, de construção de um prato; é o processo de transformar um alimento, isto é, um apanhado de nutrientes, passível de ser digerido sem a priori causar risco de contaminação, em uma comida5.

Esses nutrientes também precisam ter uma funcionalidade, pois as pessoas que recebem os alimentos do Mesa Brasil se encontram, segundo definição do próprio programa, em uma situação de vulnerabilidade social, e não estariam assim recebendo o básico dos direitos sociais, como alimentação, moradia e educação. Desta forma, a alimentação recebida deve cumprir sua função de nutrição enquanto direito, enquanto acesso a uma alimentação saudável e nutritiva.

4 O conceito de lixo tem grande relevância nesta dissertação, concebido aqui como ‘matéria morta não

reaproveitável’, ou ainda, ‘matéria sem estatuto de vida’. Parto da premissa sintetizada nas análises de Daniel De Lucca, no qual o lixo é definido como ‘coisa dotada de qualidades desprezíveis e asquerosas’, associado quase sempre ao inútil e perigoso (2008).

5 Diversos estudos clássicos que abordam a questão da alimentação de uma perspectiva das ciências humanas

apontam a diferença entre alimento e comida. A comida seria o alimento transformado através da cultura, e o alimento seria somente um objeto sem significado social antes deste processo. Assim como Câmara Cascudo (1983), Roberto Da Matta (1987) também realiza esta distinção em suas obras sobre alimentação. No entanto, defino aqui como comida tudo aquilo que é comida por alguém. A comestibilidade de um objeto é um momento em seu processo de vida enquanto tal e discorrerei mais sobre o tema no último capítulo.

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Ao tomarmos uma perspectiva da história da espécie humana, a classificação do comestível, ou a transformação de algo em alimento e/ou comida, é notadamente empregada como medida para identificar o afastamento da dependência da natureza pelo homem e seu desenvolvimento rumo à espécie humana atual, na qual acreditamos haver um predomínio do cultural/ social.

Entretanto, nas análises dominantes sobre a história das revoluções que impulsionaram o desenvolvimento da espécie humana, segundo Baurrau, citado por Contreras (2011), quando se refere à revolução tecnológica do fogo e da cocção, pode se dizer que talvez tenha havido um exagero na importância atribuída à revolução neolítica ou à domesticação das plantas e animais, esquecendo-se de uma revolução mais antiga, de ordem culinária: a revolução de tornar comestíveis coisas que não o eram necessariamente.

A casca da banana, assim como outros produtos que poderiam ser mencionados em referência à revolução citada acima, era muitas vezes vista como não comestível por não ter passado pelo movimento de ordem culinária, isto é, o processo cultural que transforma algo do domínio da natureza em algo do domínio da cultura, que pode ser considerado e que muitas vezes é concebido como livre de riscos.

O não comestível, assim como o comestível, pode ser classificado, então, de diferentes maneiras, estando estas claramente associadas à sua forma de preparo, ao tempo de maturação, aos hábitos alimentares. No entanto, ao quebrar esse ciclo “natural” visto como a transformação cultural do não comestível em comestível – e, mais ainda, em comível –, ou seja, quando retiramos as formas ditas culturais desta relação, o laço entre a denominação de comida e de comensal é explicitada, e a vida de ambos torna-se o cerne da questão.

A casca de banana é extremamente interessante para elucidar as questões que aponto como pertinentes, pois ela por si só permite uma gama de classificações. Falo aqui da casca de banana que se tornou comida, mas para um grupo de comensais específicos. Desde o princípio de minhas análises falo de um comestível que está associado à questão da necessidade e essa especificidade do domínio do que compreendemos como biológico sobre a cultura/sociedade traz um conflito para a própria definição de alimento e comida. Se a comestibilidade é vista como uma proeminência de biológico, do passível de ser

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alimento em termos físicos, como pensar a transformação de um objeto em comida, sendo esse um combustível para um corpo que precisa de energia?

Quando pensamos em tornar passível de ser comida uma casca de banana para alguém que passa fome, essa transformação cultural é vista como criativa e extremamente profícua porque a necessidade do alimento se tornaria superior à ideia de um alimento que, além de não tóxico, pudesse ser saboroso. Entretanto, o que venho resgatando na discussão até aqui apresentada é a ideia de que a propriedade de comestibilidade em si é uma relação; uma relação entre corpo, fala, nomeação, biologia, cultura e sociedade.

Simone Frangella (2009), em seu célebre estudo sobre moradores de rua, dedica um capítulo inteiro sobre a alimentação de pessoas em situação de rua, e apesar de toda a riqueza de detalhes e de uma etnografia extremamente pertinente para a antropologia como um todo, deixa passar uma discussão de grande relevância. Ao tratar dos sistemas alimentares destes sujeitos, a antropóloga diz se surpreender quando em um salão paroquial no qual havia uma doação de refeições para os moradores de rua, estes se revoltaram dizendo que aquela comida servida não era digna de pessoas, ou ainda, não era comida (2009). Penso que, talvez, a surpresa da antropóloga seja mais profícua do que a própria ação dos sujeitos por ela estudados. Afinal de contas, porque nos surpreendermos com o fato de um ser humano classificar como ruim ou como não comível um objeto, quando esta pessoa estaria no limite da necessidade, da sobrevivência?

A seleção dos alimentos é uma atividade tão cotidiana em nossas vidas que pode ser até mesmo considerada banal e, assim, não digna de atenção. Escolhemos o que nos parece comestível, o que nos parece comível, aquilo que nunca o foi ou até mesmo aquilo que deixou de ser comida. Os processos culturais tornam algo comestível ou o mantém nesta posição de não comestível, pois afinal de contas, tudo que é classificado como comida é, ao menos, para seus comensais, comestível.

Para traduzirmos em uma terminologia da antropologia da alimentação ou até mesmo em termos da gastronomia, quando falamos de comida e da negação em considerar certos alimentos ou certos objetos enquanto comida, existem dois vocábulos que são proeminentes nesta discussão: “disgust” e “distaste”. Em português ambos podem ser

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traduzidos como desgosto ou ainda, o primeiro como repugnância e o segundo como repulsa, desprezo.

Fischler, em O omnívoro (1995), analisa como a diferença destas duas palavras pode ser condicionada à separação entre a função biológica e a psicológica, cultural e social da alimentação. Para o autor é interessante pensar o desgosto, pois,

el disgusto es um fenómeno que posée a la vez una dimensión biológica y una dimensión psicológica, social y cultural. Cuando se habla del disgusto, se hace una referência a: estados del sujeto o de los afectos (emociones, sensaciones); comportamientos (mala cara, rechazo, regurgitación y vómito); y también representaciones (1995:76).

Sendo uma das funções do prazer a função biológica, o desgosto resultaria de uma mecânica biológica ligada à proteção do organismo durante uma situação alimentícia; a incorporação de uma substância estranha pode ser perigosa.

É por esse risco que a casca da banana teve que passar por tantas aprovações de especialistas para ser finalmente classificada como comestível. Ao ser finalmente considerada boa para comer, a casca da banana se torna também boa para pensar, em especial no que tange ao debate das funções enquanto separadas entre biológicas e sociais, e a dimensão da classificação sempre atrelada a essas duas esferas.

Em sua análise sobre “el disgusto”, Fischler (1995) afirma que manifestações biológicas e comportamentais do desgosto podem ser compreendidas como dispositivos de proteção do organismo, porém existe ainda uma dimensão específica que pode ser caracterizada como a particularidade humana desta questão: no homem, as proteções mencionadas tem também outra dimensão que não é biológica, fisiológica, sensorial ou comportamental, mas que procede do universo dos conceitos e representações, isto é, a dimensão ideal.

Ancorando-se na discussão apontada por Lévi-Strauss, Fischler (1995) postula que a comida não deve ser somente boa para comer, mas também boa para pensar, e nesse sentido, pensar os alimentos quer dizer classificá-los, ordená-los, e o desgosto seria então ligado a um transtorno desses processos de classificação, uma dissonância entre categorias. O desgosto aconteceria quando a comida não é boa de pensar.

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A transformação do objeto casca da banana em um alimento, em comida, nos mostra que essa separação entre as dimensões da vida entre biológica e social não se dá exatamente desta maneira. A questão do desgosto é interessante analiticamente falando porque a própria classificação de algo enquanto comida também o é. Ao compreendermos os alimentos ou os objetos como um todo através de uma perspectiva na qual suas propriedade por si só não podem “be identified as fixed essential atributes of things but rather processual and relational; pratically experienced” (Ingold, 2011: 50), a própria noção do que consideramos bom para comer questiona a divisão das dimensões de um objeto e de sua vida.

Fischler, um pouco mais adiante em suas análises sobre a alimentação, afirma que a comestibilidade dos alimentos também está relacionada com aspectos culturais, isto é, que uma comida boa de pensar

puede poner en evidencia la existência de una operación cognitiva que consiste para el comensal en verificar si el alimento potencial ‘pega’ em relación con las categorias culturales y con las reglas culinárias de referencia. El digusto consiste en una protección biológica reconstruída culturalmente (1995:76).

Para além da ideia de que o alimento em potencial deve ser não somente biologicamente comestível, mas também sê-lo culturalmente, eu diria que a própria comestibilidade já é um processo duplamente marcado. “The fact is that nutrition in human society cannot even be considered apart from the cultural medium in which it is carried on” (Richards, 1932:10).

Nesse sentido, o fato da casca da banana se tornar comida, ou seja, sair de seu estatuto de lixo no qual não era considerado em nenhum momento como alimento, é um processo cultural em seu sentido mais amplo. No entanto, enfatizo que o contexto específico na qual essa discussão está inserida traz também contribuições que estão delimitadas por seus próprios referenciais.

Quando falamos do comestível ou não comestível estamos aqui falando de um contexto de precariedade. A casca de banana poderia ser sim transformada em alimento através de concepções políticas de aproveitamento total de comida, ou de movimentos

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