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Entre o legado visigótico e uma sociedade hispânica cristã : relações familiares no Fuero Juzgo (c. 1241) e no Fuero Real (c.1255)

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Academic year: 2023

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Universidade de Lisboa Faculdade de Letras

Entre o legado visigótico e uma sociedade hispânica cristã:

relações familiares no Fuero Juzgo (c. 1241) e no Fuero Real (c.1255)

Mestrado em História – Especialidade em História Medieval

Vicente Medeiro Horta Martins

2022

Dissertação especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em História, na especialidade de História Medieval, orientada pela Prof.ª Doutora

Manuela Santos Silva

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Resumo

A realização desta dissertação tem como objetivo a análise do direito familiar estipulado por dois códigos legais que vigoraram no reino de Castela e Leão no século XIII: o Fuero Juzgo e o Fuero Real. Pretende-se contribuir para uma temática que tem suscitado um crescente interesse no debate historiográfico, tal como para o estudo de duas fontes que têm sido geralmente preteridas por outras, sobretudo as Siete Partidas atribuídas a Afonso X, de Castela e Leão (1252-1284), promovendo, desta forma, o preenchimento de determinadas lacunas historiográficas associadas às mesmas.

Pretendeu-se analisar como evoluiu a realidade espelhada nas determinações presentes no Fuero Juzgo, obra resultante de uma tradução ducentista do antigo código visigodo conhecido por Liber Iudiciorum, até à elaboração de um outro código, o Fuero Real, já adaptado a uma sociedade cristalizada no cristianismo católico e, por isso, marcada por normas de jurisprudência distintas das que tinham estado na génese do código que, até aí, tinha sido mais influente na regulação da sociedade Leonesa-Castelhana. Sendo tão distinto o contexto de elaboração dos dois códigos – um com raízes no século VII e até anteriores – e outro já totalmente imerso em princípios oriundos de uma espiritualidade cristã, contemporâneo inclusive do renascimento da influência do Direito Romano, procurar-se-á perceber como as diretrizes religiosas impactaram a forma como as relações familiares eram reguladas, tal como as dinâmicas a elas associadas, procurando expor e entender as relações interpessoais explanadas nos dois códigos, em busca de eventuais diferenças e semelhanças.

Palavras-chave: Liber Iudiciorum – Fuero Juzgo – Fuero Real – Idade Média – História do direito – Direito Familiar - Legislação visigoda – Legislação fernandina – Legislação afonsina – Casamento – Heranças – Adoção – Orfandade - Desvios Sexuais – Abstract

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This Master Dissertation aims to analyse the family law stipulated by two legal codes that were in use in the kingdom of Castile and Leon in the 13th century: the Fuero Juzgo and the Fuero Real. It is intended to contribute to a theme that has raised a growing interest in the historiographical debate, as well as to the study of two sources that have been put aside on behalf of others, especially the Siete Partidas attributed to Alfonso X of Castile and Leon (1252-1284), thus promoting the filling of certain historiographical gaps associated with them.

The aim was to analyse how the reality mirrored in the stipulations contained in the Fuero Juzgo, a legal code resulting from the translation of the old Visigoth code known as the Liber Iudiciorum, evolved until the elaboration of another code, the Fuero Real, already adapted to a society crystallized in Catholic Christianity and, therefore, marked by jurisprudence norms different from those that had been at the genesis of the code which, until then, had been more influential in the regulation of the Leonese-Castilian society. Being so different the context of elaboration of the two codes - one with roots in the seventh century and even earlier - and the other already fully immersed in principles derived from a Christian spirituality, contemporary even with the revival of the influence of Roman Law, we will try to understand how the religious guidelines impacted the way family relationships were regulated, as well as the dynamics associated with them, seeking to expose and understand the interpersonal relationships explained in the two codes, in search of possible differences and similarities.

Keywords: Liber Iudiciorum – Fuero Juzgo – Fuero Real – Middle Ages – History of Law - Family Law - Visigothic legislation - Fernandine legislation - Alfonsine legislation - Marriage - Wills - Adoption - Orphanhood - Sexual Deviances

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Agradecimentos

Gostaria, nesta fase, de expressar o meu apreço para com todos aqueles que me acompanharam e ajudaram ao longo deste trajeto. Sem eles, todo este caminho teria sido, decerto, muito mais complicado.

À minha orientadora, a Professora Doutora Manuela Santos Silva, pela prontidão com que aceitou orientar este projeto e pelos votos de confiança depositados ao longo deste último ano. Foi, sem dúvida, graças à sua orientação, à sua disponibilidade, à sua generosidade e ao seu apoio no decorrer da orientação que a elaboração deste trabalho teve um desfecho positivo.

Aos Meus Pais e à Minha Avó, os meus sinceros agradecimentos, por me terem proporcionado esta experiência e por me terem dado a possibilidade de prosseguir os meus estudos nesta área que tanta gratificação me dá. Um eterno obrigado, em especial, à minha mãe e à minha avó, por terem sido o meu principal pilar e porto de abrigo, apesar de todas as dificuldades, e por me transmitirem valores que guardarei com apreço e carinho para o resto da minha vida. Não existem palavras suficientes para descrever a estima que tenha para com elas e o quanto lhes estou agradecido. Sem elas, este

trabalho, com certeza, não existiria.

Aos Meus Tios e à Minha Prima, por todo o apoio prestado durante este período e por terem sempre acreditado em mim.

Aos meus colegas de curso, em especial ao Válter Fernandes e ao Duarte Dias, partes integrantes do meu percurso durante a Licenciatura e durante o Mestrado e que sempre estiveram ao meu lado.

Ao Ricardo Lameira, ao Guilherme Páscoa, ao André Escoval e à Mariana Lopes, , um enorme obrigado por todo o apoio e incentivo que me prestaram, mesmo nos períodos de maior desânimo e incerteza.

A todos os que tiveram em contacto comigo neste caminho, especialmente aos meus amigos próximost, devo agradecer por todas as experiências que me proporcionaram.

Obrigado por todas as conversas, por todas as saídas e por todas as contribuições feitas para o meu crescimento pessoal. Foram indispensáveis para a conclusão deste percurso.

Posto isto, agradeço a todos por terem feito parte desta etapa da minha vida. Concluo, seguramente, esta fase com total satisfação, felicidade e orgulho.

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Índice

Introdução ………...6 Capítulo I - Acerca da Fonte: O “Liber Iudiciorum” e o “Fuero Juzgo” ...11 Capítulo II - As diferentes modalidades matrimoniais: o casamento romano, germânico e cristão………...26 Capítulo III - O casamento no Fuero Juzgo e no Fuero Real…………...…40 Capítulo IV - A atribuição de heranças no Fuero Juzgo e no Fuero Real…………64 Capítulo V - Os processos de adoção e a orfandade no Fuero Juzgo e no Fuero Real

……….………78 Capítulo VI – Os desvios comportamentais associados às relações familiares no Fuero Juzgo e no Fuero Real……….………86 Capítulo VII – A regulação dos relacionamentos dos servos e dos libertos no FJ e no FR……….……….104 Conclusões……….………...113 Fontes e Bibliografia ………...………118

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Introdução

A legislação medieval, embora, provavelmente, nem sempre tenha sido aplicada rigorosamente, funciona como uma porta de entrada para o estudo das mentalidades e das conceções sociais de uma diversidade temática notável, limitada apenas pelo alcance e pelos objetivos dos códigos, assim como pela importância que o legislador dava às matérias neles presentes. É, portanto, no campo da legalidade que se insere este projeto, mais concretamente no direito associado às relações familiares de dois códigos que vigoraram no reino de Castela e Leão no século XIII: o Fuero Juzgo (ca. 1241) de Fernando III e o Fuero Real (ca. 1255) de Afonso X. Embora se saiba através das demais fontes contemporâneas que existia um claro contraste entre aquilo que era determinado legalmente e a sua aplicação no quotidiano, não deixa de ser fascinante a possibilidade de poder encarar de perto a forma como os tópicos associados a este tipo de direito eram abordados e refletidos do ponto de vista legal e institucional. Vale também a pena delinear, desde logo, o alcance temático deste projeto, que se liga, naturalmente, às matérias inseridas nos dois códigos referidos. Nesse sentido, identifico e destaco o casamento, a atribuição de heranças, o processo adotivo e o abandono parental, os desvios comportamentais associados à sexualidade e as relações entre e com os servos, como os principais focos de estudo que serão alvo de análise neste projeto.

O Fuero Juzgo consistiu, essencialmente, na tradução do antigo código visigótico conhecido por Liber Iudiciorum e abarcava, por isso, na sua génese, tradições legais diferentes daquelas presentes no código que lhe sucedeu, o Fuero Real. Enquanto a matriz legal do Fuero Juzgo assentava em três tradições distintas, a romana, a cristã e a germânica, o Fuero Real dispensou a última, sustentando-se sobretudo nas influências jurídicas romanas e cristãs. Foi tendo em conta este aspeto que foi recolhida a bibliografia para este projeto, sempre tendo em conta a realidade subjacente dos dois códigos e as matérias legais a abordar. Ao longo da pesquisa, todavia, deparei-me com grandes dificuldades na recolha de bibliográfica relativa ao processo de composição de ambas as obras, mas também sobre as matérias abordadas neste trabalho, o que reflete uma possível menor importância dada às mesmas em detrimento da obra magna de Afonso X, as tão bem estudadas Siete Partidas, talvez por estarem tão próximas no tempo desta última. Tal contrasta com a quantidade de estudos sobre o Liber Iudiciorum, obra que serviu de base para o Fuero Juzgo, o que resulta numa maior extensão bibliográfica sobre esta obra, sobre o contexto em volta da sua redação mas também sobre muitas das matérias

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específicas deste compêndio legal, não existindo uma transposição direta deste tipo de estudos nem para o Fuero Juzgo nem para o Fuero Real. Tal resultou numa recolha bibliográfica que, apesar de extensa, se manifesta como muito geral e pouco específica, pelo menos no que diz respeito à literatura auxiliar para a análise das duas fontes, especialmente para as matérias deste projeto. Dos estudos específicos recolhidos, maior parte debruça-se em particular sobre o Fuero Juzgo ou sobre o Liber Iudiciorum, deixando muitas das vezes a análise do Fuero Real de parte.

Apesar destes contratempos, devo destacar uma série de obras que me auxiliaram substancialmente na contextualização das duas obras e no enquadramento das demais práticas matrimoniais que já pude mencionar anteriormente. Nesse sentido, destaco, antes de mais, os vários tomos da “Historia de España” dirigida por Ramón Menéndez Pidal, entre eles o tomo III, IX, X e XIII, bem como o volume de García de Cortazar na “Historia de España” de Miguel Artola e o volume de José Mª Salrach e de Javier Zabalo na

“Historia de España” de Manuel Tuñón de Lara, indispensáveis para a descrição da realidade institucional e política no território hispânico entre o século VII e o século XIII.

Para o acompanhamento da sobrevivência do Liber Iudiciorum após a queda da monarquia visigótica e da penetração e ressurgimento do direito romano em território hispânico, além das obras anteriores, destaco, nomeadamente, o artigo de Armando José Torrent Ruiz, intitulado “La recepción del derecho justinianeo en España en la Baja Edad Media (siglos XII-XV). Un capítulo en la historia del derecho europeo” e o artigo de Antonio García y García intitulado “La penetración del derecho clásico medieval en España”. Para a abordagem referente ao contexto de elaboração do Fuero Juzgo e do Fuero Real, para além das Histórias de Espanha, cabe-me salientar, para o período fernandino, dois artigos de Manuel González Jiménez, “Fernando III El Santo, legislador” e “Fernando III y el gobierno del reino”; para o período afonsino, realço o capítulo de Jerry Craddock na obra de Robert Burns, “Emperor of Culture: Alfonso X the Learned of Castile and His Thirteenth-Century Renaissance” e a obra de Joseph O’Callaghan, “Alfonso X, The Justinian of his age: Law and Justice in thirteenth-century Castile”.

Para o tão bem estudado e explorado casamento romano, aponto para duas obras,

“Women in roman law & society”, de Jane F. Gardner e “Roman Law and the Origins of the Civil Law Tradition, de George Mousourakis, bem como para o artigo de Andrew T.

Bierkan, Charles P. Sherman e Emile Stocquart, “Marriage in Roman Law”. Para o

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casamento germânico, a monografia de Ruth Mazo Karras, “Unmarriages”, manifestou- se essencial, sobretudo na definição que faz deste tipo de matrimónio. Não menos importante, a “Historia de las mujeres” de Georges Duby e Michelle Perrot, em especial o volume dedicado à Idade Média, demonstrou ser indispensável para a compreensão deste tipo de casamento. Para o último tipo de matrimónio que influencia tanto o Fuero Juzgo como o Fuero Real, o cristão, distingo o contributo de Georges Duby, em especial em “O cavaleiro, a mulher e o padre: o casamento na França Feudal”; “Medieval Marriage. Two Models from twelfth-century” e em “A History of Private Life”. Além da obra de Duby, enfatizo a importância das monografias de Philip L. Reynolds “How Marriage Became One of the Sacraments”, de Jean Verdon, “La femme au Moyen Age”, de Christopher N. L. Brooke, “The Medieval Idea of Marriage” e, de Jack Goody, “The development of family and marriage in Europe”. Por último, mas não menos importante, devo destacar a enorme importância da obra de Paulo Merêa para o aprofundar dos meus conhecimentos relativamente às matérias matrimoniais presentes no Liber Iudiciorum/Fuero Juzgo, salientando, por sua vez, os seus “Estudos de Direito Privado Visigótico”, a monografia intitulada “Evolução dos Regimes Matrimonais”, e, por fim, os seus “Estudos de Direito Visigótico”.

O método seguido para a elaboração deste projeto consistiu sobretudo, numa primeira fase, da leitura e análise da bibliografia recolhida com a posterior reflexão da mesma, auxiliando-me da mesma para efetuar a contextualização temática deste trabalho.

Paralelamente, feita a leitura e análise das duas fontes, procurei sistematizar o seu conteúdo, com um levantamento de todos os dados alusivos às vertentes associadas ao processo matrimonial e às relações familiares. Feita esta sistematização, procedi à seriação desses mesmo dados através da elaboração de uma série de tabelas, cada uma correspondente aos tópicos trabalhados, tabelas estas que foram fundamentais para facilitar a comparação dos dois códigos.

O tema desta dissertação final de Mestrado em História Medieval procura, na sua essência, analisar a evolução da realidade espelhada nas determinações presentes no Fuero Juzgo, tradução ducentista do antigo código visigodo, o Liber Iudiciorum, até à elaboração do Fuero Real, código este que fora adaptado a uma sociedade já cristalizada no cristianismo católico e que, por isso, já estava marcado por normas de jurisprudência distintas daquelas presentes no seu antecessor, código este que, até aí, tinha sido dos mais influentes na regulação da sociedade Castelhano-Leonesa. Partindo de contextos de

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elaboração tão distintos, um com raízes no século VII e outro já totalmente imerso em princípios oriundos duma espiritualidade cristã vincada socialmente, e também contemporânea de um renascimento da influência do Direito Romano em território ibérico, procurar-se-á perceber como as diretrizes religiosas impactaram a forma como as relações familiares e as suas dinâmicas eram reguladas, procurando expor e entender as relações interpessoais explanadas nos dois códigos, em busca de eventuais diferenças e semelhanças, acrescentando, ao mesmo tempo, alguma novidade ao tema dos quotidianos e dos costumes do passado medieval hispânico e preenchendo determinadas lacunas historiográficas associadas ao pouco interesse conferido a estes dois códigos legais.

Para uma melhor compreensão dos tópicos levantados e desenvolvidos nesta dissertação, este trabalho foi organizado em sete capítulos principais, dois que procuram fazer uma contextualização temática, sendo os restantes específicos aos pontos a que me propus dissertar: o casamento, a atribuição de heranças, o processo adotivo e o abandono parental, os desvios comportamentais associados à sexualidade e as relações dos servos.

Nesse sentido, o primeiro capítulo funciona como uma introdução às duas fontes, recuando, inclusive, ao período visigótico para expor o ambiente em torno da composição do Liber Iudiciorum e das demais influências que foram essenciais na composição deste código, algo que será recuperado e conservado, mais tarde, no Fuero Juzgo. Aborda ainda o período de sobrevivência do código visigodo e do renascimento do direito romano em território ibérico, como também o período de redação do Fuero Real.

O segundo capítulo, que continua o âmbito de contextualização, apresenta os três principais métodos matrimoniais e enquadra-os num quadro influenciador das matérias que discorrem em ambas as fontes, que, como veremos, assentava num misto entre as três tradições. Divide-se em três subcapítulos que seguem uma ordem cronológica racional que começa com o casamento romano, seguido do germânico e do cristão.

O terceiro capítulo inicia o processo comparativo e abrange todas as matérias que dizem respeito ao processo matrimonial, desde a regulação do casamento, ligada à sua natureza contratual, as dinâmicas associadas ao mesmo, passando pela idade legal dos nubentes, pelas arras, pelas ganâncias e, brevemente, pelo divórcio.

O quarto capítulo, por sua vez, segue a mesma direção que o anterior, abordando agora todos os conteúdos que caracterizaram o procedimento de atribuição de heranças, o

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reconhecimento dos herdeiros legítimos, as proibições relacionadas com estes procedimentos e a deserdação.

O quinto capítulo engloba o sistema de adoção, o abandono e a guarda parental e a orfandade, bem como todos os mecanismos e princípios legais associados a estes dois mecanismos, matérias estas que são menos versadas em comparação com as anteriores.

O sexto capítulo retrata os desvios comportamentais, nos quais se incluem o adultério, o estupro, a sodomia, o incesto e a união com indivíduos pertencentes às ordens religiosas, expondo, numa primeira instância, a evolução do pensamento legalista e punitivo associado a estas matérias, seguido da comparação das disposições tomadas no Fuero Juzgo e no Fuero Real, retratando, sobretudo, a sua condenação e consequente punição.

O sétimo e último capítulo apresenta e desenvolve a breve regulamentação das relações dos servos, desde a sua legalidade até à submissão da sexualidade dos servos à vontade dos seus senhores, passando também pelos desvios comportamentais já abordados, agora aplicados exclusivamente a este grupo social.

Finalmente, refletirei sobre o que se conclui do presente estudo, tendo em conta as realidades distintas dos dois códigos, a diversidade das matérias e o método comparativo empregue.

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Capítulo I - Acerca da Fonte: O “Liber Iudiciorum” e o “Fuero Juzgo”

O Liber Iudiciorum

O Fuero Juzgo tem como documento base o Liber Iudiciorum, a principal e mais importante obra legislativa visigoda, responsável pela aplicação da justiça no reino. Deste modo, é conveniente situar e contextualizar este documento, no qual se irá basear o Fuero Juzgo. Publicado originalmente em 654, por Recesvinto, ainda que a compilação sido inicialmente pensada pelo seu pai, Chindasvinto, e assinalado no tomo régio do VIII Concílio de Toledo, o Liber é o mais completo e mais extenso texto legislativo visigodo1. Neste compilou-se o direito visigodo de até então, que advinha das mais diversas fontes:

visigodas, como o Código de Eurico, o Breviário de Alarico, o Codex revisus de Leovigildo ou até mesmo de outros códigos legais que tivessem sido vigentes no reino visigodo; canónicas, onde se destaca Isidoro de Sevilha e Bráulio de Saragoça bem como as diretrizes emergentes dos concílios eclesiásticos, sobretudo de Toledo; de outros corpos legais não visigodos, entre eles o Corpus Iuris Civilis de Justiniano, mas também de leis Burgúndias, resultando daqui um direito em mosaico, fruto da utilização das mais diversas fontes, e que se adaptava à cultura complexa do reino visigodo, onde se inclui também a influência dos textos literários e religiosos; as normas e fórmulas que advinham do direito romano e dos antigos códigos visigodos, bem como os cânones dos concílios2. A obra detinha um caráter de aplicação nacional que se estendia por todo o reino e, do conteúdo presente, que abrange os demais campos legais, entre eles o civil, penal e judicial, pode-se deduzir que o principal papel do Liber Iudiciorum seria um fortalecimento incipiente da monarquia e o reforço dos poderes do estado3. O Liber, à semelhança do Corpus Iuris Civilis4, divide-se em livros, estes que, por sua vez, se

1 René Ortiz Caballero, “Estudio sobre la ley: del fuero juzgo a la novíssima recopilación,” Derecho PUCP:

Revista de la Facultad de Derecho, 42 (1988): 126; Armando José Torrent Ruiz, “Una aproximación a la legislación visigótica hispana: la imitatio imperii,” RIDROM: Revista Internacional de Derecho Romano, 18 (2017): 21; Beatriz Bernal Gómez, Historia del derecho. (México: Nostra Ediciones, 2010): 90.

2 María Angustias Alba Bueno e Manuel Rodríguez García, “La muerte en el Fuero Juzgo y tipos de enterramentos en el reino visigodo de Toledo,” Estudios sobre patrimonio, cultura y ciencias medievales, 18, nº1 (2016): 82; Michael J. Kelly, “Recceswinth’s Liber Iudiciorum: History, Narrative and Meaning,”

Visigothic Symposium, 1 (2017): 112; Carlos Petit, “Derecho visigodo del siglo VII (un ensayo de sínteses e interpretación),” em Derecho, cultura y sociedad en la Antigüedad tardía, editado por Esperanza Osaba, (Espanha: Universidad del Pais Vasco, 2015), 212-3.

3 Manuel Torres. “Las invasiones y los reinos germánicos de España (Anos 409-711).” em Historia de España: España Visigoda (414-711 de J. C.), dirigido por Ramón Menéndez Pidal (Madrid: Espasa-Calpe S.A, 1940) Tomo 3, 120; Manuel Torres e Ramón Prieto Bances. “Instituciones económicas, sociales y politicoadmnistrativas de la península hispánica durante los siglos V, VI y VII.” em Historia de España:

España Visigoda (414-711 de J. C.), dirigida por Ramón Menéndez Pidal, (Madrid: Espasa-Calpe S.A., 1940), Tomo 3. 257.

4 Gómez, Historia del derecho, 90.

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dividem internamente em títulos, que indicam, de forma sumária, o conteúdo presente.

Por fim, constam nos títulos as leis do Liber, mais de quinhentas, que abordam os demais tópicos legais, a que o livro e o título onde estão inseridas se dedicam.

Neste sentido, é pertinente fazer referência a Lardizábal, que indica quatro classes de leis presentes no Fuero Juzgo: as leis promulgadas pelos monarcas pela sua autoridade e poder, demonstrado pela presença dos respetivos nomes a anteceder as leis; leis que terão sido redigidas a partir dos concílios nacionais, por influência do braço eclesiástico e civil que se uniu ao monarca como chefe supremo; leis sem data ou nome de um autor específico, possivelmente retiradas de antigas coleções e transmitidas assim mesmo, porque não tinham qualquer nome ou porque não seria necessário transmiti-lo; por fim, as antiquae e as antiquae emendata5. Estas remetem aos reinados anteriores ao de Recaredo, sendo, inclusive, apenas a partir do momento posterior à conversão católica do reino, com este monarca, que as leis passam a ser atribuídas a um rei. Deste modo, todas as leis antiquae inserem-se no período ariano do reino visigodo, remetendo, ainda que não diretamente, às obras de Alarico, Eurico e Leovigildo. Este fator tem suscitado algum debate no campo historiográfico, pois muitas das leis são logo atribuídas ao reinado de Leovigildo, descartando as obras legislativas anteriores. A omissão do nome destes monarcas pode estar relacionada com a diferenciação e o afastamento feito pelo reino aquando da conversão ao catolicismo, distanciando os monarcas católicos dos anteriores hereges arianos, que não seguiam a fé agora vigente no reino e que pautava a ação da monarquia. Ainda assim, é curioso verificar que grande parte do material presente no Liber Iudiciorum, mais de trezentas leis aliás, aludiam a esta legislação anterior, agora identificada como antiqua. As antiquae emendata, como o nome indica, foram posteriormente emendadas e corrigidas pelos monarcas católicos, de forma a melhor enquadrá-las legalmente no novo contexto político-social do reino, fazendo referência ao rei que as editara e mandara corrigir, aparecendo em menor número em comparação com a restante legislação. Assim, são identificáveis dois períodos legislativos, o primeiro, de matriz ariana no qual se insere a legislação denominada de antiquae, e um segundo momento, que coincide com a conversão do reino ao catolicismo, iniciando-se uma outra fase de legislativa, com uma maior influência da Igreja, sendo os dois momentos separados por diferenças de estilo, forma e conteúdo na redação das leis6. Convém

5 Ortiz Caballero, “Estudio sobre la ley: del fuero juzgo a la novíssima recopilación,” 127-8

6 Ibidem, 127; Armando José Torrent Ruiz, “Una aproximación a la legislación visigótica hispana: la imitatio imperii,” 27-8, 40-1.; Manuel Torres e Ramón Prieto Bances. “Instituciones económicas, sociales

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também mencionar que, entre a revisão legal promovida Leovigildo e a promulgação do Liber por Recesvinto, não houve nenhuma compilação nem reforma legislativa no reino visigodo. As leis redigidas e promulgadas pelos monarcas durante este período, entre elas as de Recaredo, Sisebuto e Chindasvinto, apenas adquirem, pelo menos, forma escrita aquando da sua introdução no Liber, o que não quer dizer que não fossem aplicadas por via do direito consuetudinário ou da oralidade7.

A primeira versão do Liber, como já foi indicado, promulgada por Recesvinto em 654, será mais tarde recuperada e revista oficialmente por Ervígio, em 681. O monarca irá propor, tal como Leovigildo fizera anteriormente, uma reforma profunda da legislação, baseando-se agora no conteúdo do Liber, aquando do XII Concílio de Toledo. Desta irá emergir um Liber reformado ao qual se dá o nome de forma ervigiana do Liber Iudiciorum, onde se corrigiram, interpolaram e modificaram diversas leis, outras foram redigidas e incluídas na nova versão, três que remetiam a Vamba e trinta e quatro a Ervígio, omitindo-se também outras leis, tendo esta revisão o objetivo clarificar e facilitar a compreensão do material anterior que serviu de base, não sendo de estranhar que muito do código tenha mantido as suas feições originais. A grande novidade desta nova versão foi a inclusão do Livro XII, cujo foco é exclusivamente o tratamento dos judeus do reino8. Todavia, esta versão não será a última. Égica, irá pedir outra revisão do Liber, em 693, e irá encarregar essa revisão ao XVI Concílio de Toledo. Porém, é possível que tal não se tenha concretizado, pelo menos oficialmente, pois encontrar-se-ão outras versões do Liber, de caráter mais particular, em que estão presentes leis de Égica e Vitiza, onde se corrige, de forma pontual, o texto original com preceitos relativos, sobretudo no que diz respeito ao direito público e aos deveres do monarca, adicionando-se também leis de Recesvinto anteriormente suprimidas por Ervígio ou que não terão sido incluídas na versão original. A esta última versão, a mais completa do Liber, dá-se o nome de vulgata

y politicoadmnistrativas de la península hispánica durante los siglos V, VI y VII.” em Historia de España:

España Visigoda (414-711 de J. C.), dirigida por Ramón Menéndez Pidal, 259.; Michael J. Kelly,

“Recceswinth’s Liber Iudiciorum: History, Narrative and Meaning,” 112; Carlos Petit, “Derecho visigodo del siglo VII (un ensayo de sínteses e interpretación),” em Derecho, cultura y sociedad en la Antigüedad tardía, editado por Esperanza Osaba, 207.

7 Manuel Torres e Ramón Prieto Bances. “Instituciones económicas, sociales y politicoadmnistrativas de la península hispánica durante los siglos V, VI y VII.” em Historia de España: España Visigoda (414-711 de J. C.), dirigida por Ramón Menéndez Pidal, 258.

8 Manuel Torres. “Las invasiones y los reinos germánicos de España (Anos 409-711).” em Historia de España: España Visigoda (414-711 de J. C.), dirigido por Ramón Menéndez Pidal. 128.; María Angustias Alba Bueno e Manuel Rodríguez García, “La muerte en el Fuero Juzgo y tipos de enterramentos en el reino visigodo de Toledo,” 82; Armando José Torrent Ruiz, “Una aproximación a la legislación visigótica hispana: la imitatio imperii,” 41

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e será a que maior divulgação teve após a queda da monarquia visigoda, versão esta que utilizada para este trabalho9.

O Liber inaugura também o final da dualidade legislativa no reino, pois é atribuído ao código força legal suficiente para se sobrepor a qualquer outro código em circulação, mas também ao direito consuetudinário, assumindo o Liber uma posição central para a resolução de todas as questões judiciais, com o seu uso e aplicação a serem exclusivos aos tribunais de justiça. Este surge num momento em que a monarquia visigoda já havia conquistado a unidade religiosa, territorial e política no reino, com a conversão de Recaredo e com as conquistas de Suintila, respetivamente. Atendendo a isto, a obra surge como um novo esforço, agora para obter a unidade legal no território, pois os códigos em vigência anteriormente serão, como afirmado supra, abolidos, face às divisões promovidas pela legislação destinada aos hispano-romanos presente no Breviário de Alarico e à legislação destinada aos godos, ainda que em vias de se romanizar, presente no Codex revisus de Leovigildo e no Código de Eurico, num esforço de fazer confluir tanto os godos como os hispano-romanos numa norma de justiça comum, unindo legalmente ambas as comunidades. A partir da promulgação do Liber, o cumprimento da lei deixou de ser ambíguo na sua aplicação e passou a ser extensível a todos os habitantes do reino, sem exceção, deixando também de ser utilizados em tribunal outros códigos e textos legais senão os presentes nesta obra, tanto que se estabelecem penas pecuniárias caso se usasse outro código senão o Liber. Assim, o Liber assume-se como a manifestação final de todo um processo de fusão social, política, cultural e religiosa, processo este que foi longo e de alto custo para a máquina monárquica, fruto do conflito que travou com a população hispano-romana e com o catolicismo. Este transformou a sociedade goda, devido aos choques culturais que surgiram do mesmo e esta transformação confluiu na integração legal das três heranças que marcaram a monarquia visigoda: a herança romana, a herança germânica e o impacto da herança cristã, todas estas reconhecidas no Liber e com influências diversas dentro da obra. As grandes transformações legislativas anteriores à redação do Liber, ou seja, as leis que surgiram no reinado de Chindasvinto e de Recesvinto, seu sucessor, irão ser essenciais para a consolidação e fortalecimento do poder real, que mostrava até então sinais de debilidade, sendo o trabalho de recompilação

9 Espinosa Gomes da Silva, História do direito português: fontes de direito, 3ª ed. (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000): 72.; René Ortiz Caballero, “Estudio sobre la ley: del fuero juzgo a la novíssima recopilación, 126.; Armando José Torrent Ruiz, “Una aproximación a la legislación visigótica hispana: la imitatio imperii,” 41.

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impulsionado por ambos e inaugurado em 654, fruto da atividade legislativa destes dois monarcas10.

Antes de abordar o ambiente a partir do qual o Fuero Juzgo irá emergir, julgo ser pertinente fazer uma pequena abordagem às influências externas presentes no Liber.

Nesse sentido, é seguro dizer que o Liber e, consequentemente, o Fuero Juzgo se caracterizam por diversas influências que conferem a este código de leis uma certa personalidade, devido à confluência e compenetração de elementos orientais, romanos, eclesiásticos e germânicos, o que resulta num direito visigótico misto, eclipsando a sua pureza germânica, sendo que a originalidade que advém deste fenómeno verifica-se também nos delitos e nas respetivas penas presentes no Liber. Ainda assim, de todos os elementos externos existentes, o mais forte é, sem dúvida, a influência romana que se irá explanar pela obra. A aceitação desta vertente legal romana havia sido preparada, primeiro, através do contacto dos visigodos com Roma e fortalecida, posteriormente, pela persistência do direito romano nas comunidades hispano-romanas no reino, cujo procedimento, sem publicidade e sem um caráter formalista será preservado, o que, a partir da convivência regular entre as duas comunidades, facilitou a sua receção, encontrando-se cerca de 100 leis puramente romanas entre as tantas presentes no Liber11. Apesar da primazia da influência romana, não se deve menosprezar o impacto que a conversão ao catolicismo teve na monarquia e, consequentemente, no papel do rei como legislador, através da introdução, primeiro, do direito canónico vincadamente católico, mas também com uma maior permeabilidade às influências eclesiásticas neste novo direito visigótico. Tal irá traduzir-se numa forte influência dos concílios eclesiásticos, principalmente os de Toledo, o que irá moldar as decisões afetas à máquina eclesiástica do reino, face à inclusão do clero na máquina estatal, tornando-se inclusive o principal corpo a quem o rei recorria para obter conselho; mas também dos cânones canónicos, não

10 Faustino Martínez Martínez, “Cuestiones visigodas,” Estudios de Historia de España, 18, nº1-2 (2016):

21-2; Manuel Torres. “Las invasiones y los reinos germánicos de España (Anos 409-711).” em Historia de España: España Visigoda (414-711 de J. C.), dirigido por Ramón Menéndez Pidal. 120; Manuel Torres e Ramón Prieto Bances. “Instituciones económicas, sociales y politicoadmnistrativas de la península hispánica durante los siglos V, VI y VII.” em Historia de España: España Visigoda (414-711 de J. C.), dirigida por Ramón Menéndez Pidal, 257-8; María Angustias Alba Bueno e Manuel Rodríguez García, “La muerte en el Fuero Juzgo y tipos de enterramentos en el reino visigodo de Toledo,” 82; Nociones de Historia del derecho civil (Derecho barbaro germánico, español y francés), 14; Sayas Abengochea, Historia Antigua de España II: De la Antigüedad tardía al ocaso visigodo, (Madrid: UNED, 2001), 266.

11 Manuel Torres e Ramón Prieto Bances. “Instituciones económicas, sociales y politicoadmnistrativas de la península hispánica durante los siglos V, VI y VII.” em Historia de España: España Visigoda (414-711 de J. C.), dirigida por Ramón Menéndez Pidal, 205-6; El derecho procesal en la Edad Media (Lima:

Cultural Cuzco S.A Editores, 1998), 99; Armando José Torrent Ruiz, “Una aproximación a la legislación visigótica hispana: la imitatio imperii,” 10

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sendo estranho verificar referências à Bíblia, aos Decretos ou aos Pais da Igreja12. Assim, o Liber surge como a expressão máxima do ideal jurídico da monarquia visigoda, cuja aplicação, como vimos, se restringia aos tribunais e à ação dos juízes, onde convergiam tanto as influências eclesiásticas como também as romanas13. Por fim, penso ser apropriado fazer referência a Bernal Gómez quando esta aponta três razões que conferem ao Liber uma grande importância no contexto ibérico: foi essencial para a consolidação do princípio de territorialidade no âmbito da aplicação do direito, devido à sua aplicação por todo o reino visigodo; constitui-o o expoente da legislação visigoda, pois foi o final de um processo recompilador iniciado por Alarico e continuado por Eurico, Leovigildo e pelos três monarcas associados às respetivas versões do Liber; e, por fim, irá permitir a sobrevivência do direito romano em Espanha durante a ocupação muçulmana, como veremos adiante14.

A sobrevivência do Liber Iudiciorum num ambiente pós-visigótico

A monarquia visigoda cai em 711, como consequência da invasão muçulmana, e, com ela, também se assiste ao declínio da utilização do Liber em território ibérico. Porém, este sobreviverá. Este fenómeno foi assegurado pela sua vigência nos núcleos moçárabes, na sua versão vulgata, o que tornará suscetível a transmissão dos seus conteúdos para os reinos cristãos a norte, tornando-se vigente, mais tarde, tanto na Catalunha como em Leão.

Todavia, é possível que este tenha mantido uma maior uma utilização no meio moçárabe, que se manteve num meio social mais tradicional e cuja natureza do Liber representava a individualidade que se conservava e a liberdade que fora perdida com o domínio muçulmano. Sendo, numa primeira instância, a principal fonte de direito em território ibérico, o Liber, ao envelhecer juridicamente, começou a ser substituído por um direito local; por um direito consuetudinário e também por um direito suplementar aos novos fueros e costumes promulgados nestes dois ambientes distintos. Para além disso, assiste- se também à sobrevivência de um direito romano vulgar que, ao se aliar à inicial vigência generalizada do Liber, se agregou e também substituiu o elemento germânico do direito consuetudinário visigodo. A tal se chegou através da conversão do Liber em direito

12 Ortiz Caballero, “Estudio sobre la ley: del fuero juzgo a la novíssima recopilación,” 129; Azevedo, Luis Carlos de, “O direito visigótico,” Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 96, (Janeiro, 2001) 7; Armando José Torrent Ruiz, “Una aproximación a la legislación visigótica hispana: la imitatio imperii,” 21; Marcello Caetano, História do direito português: fontes, direito público, 1140-1495.

3ª ed. (Lisboa: Verbo, 1992) 106.

13 Caetano, História do direito português: fontes, direito público, 1140-1495, 106

14 Gómez, Historia del derecho, 90

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consuetudinário, justificando-se este fenómeno pela antiguidade da norma nele presente, de forte matriz romana e canónica, como já vimos, que fora sacralizada pela sua aplicação e duração, e confirmada pela Igreja, face ao papel que esta teve na sua criação, sendo também importante realçar o seu caráter quotidiano que terá facilitado esta transformação15. Assim, de forma geral, pode-se dizer que vigorou em Espanha, até ao século XI, no campo legal civil, um direito influenciado pelas disposições do Liber, que se alastrou pelos reinos asturo-leoneses e pelos núcleos moçárabes. Ao entrar em desuso, incorporou-se no direito consuetudinário local. No campo legal canónico, destaca-se a Coleção Canónica Hispana e as obras que desta derivavam16; paralelamente, a nível local, surge um outro instrumento, os fueros, que nascem como instrumento jurídico que favorecia a repovoação das zonas recém-conquistadas através da concessão de privilégios económicos, sociais e políticos. Os fueros municipais eram, na sua essência, redações do direito local vigente numa localidade ou território que reuniam neles normas diversas consoante as necessidades locais, recolhendo também o direito consuetudinário local onde se adicionavam os ditos privilégios, sendo que alguns destes conservavam algumas provisões existentes no Liber17.

A sobrevivência do Liber nas zonas cristãs e nos núcleos moçárabes, até pelo menos meados do século XI, bem como a conservação do direito romano nas escolas canónicas, dará origem a um ambiente propício ao ressurgimento do direito romano no território espanhol. Porém, este processo apenas dá um grande salto em frente a partir do século XII, com o ressurgimento dos princípios do direito romano e com o reconhecimento da legitimidade do direito justinianeu, aspetos que se irão impor sobre o direito feudal, este que era prevalecente no Ocidente Medieval. Tal deve-se à partida de muitos indivíduos, que saem dos círculos catedráticos a que pertenciam, para estudar nas principais universidades europeias, sobretudo em Itália, destacando-se, entre elas, a de Bolonha. No seu regresso, traziam consigo livros e códices de direito romano e, tendo como modelo o

15 Hilda Grassoti “Organización política, administrativa y feudo-vasallática de León y Castilla durante los siglos XI y XII.” em Historia de España Menéndez Pidal: Los reinos cristianos en los siglos XI y XII, dirigido por José María Jover Zamora (Madrid: Espasa-Calpe S.A., 1992) Tomo 10. Volume 2. 31.; García de Cortazar, Historia de España dirigida por Miguel Artola: La época medieval. (Madrid: Alianza, 1988) 237; Armando José Torrent Ruiz, “La recepción del derecho justinianeo en España en la Baja Edad Media (siglos XII-XV). Un capítulo en la historia del derecho europeo,” RIDROM: Revista Internacional de Derecho Romano, nº10 (2013): 46; Gomes da Silva, História do direito português: fontes de direito, 155- 6; Caetano, História do direito portugués: fontes, direito público, 1140-1495, 240; Bernard F. Reilly, The Medieval Spains, (Cambridge: Cambridge University Press, 1993), 37.

16 Antonio García y García. “La penetración del derecho clásico medieval en España,” Anuario de historia del derecho español, nº36 (1966): 575

17 Derecho UNED. “El Derecho Medieval.” Historia del Derecho Español. Acedido a 4 de Janeiro de 2021

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método bolonhês, passarão a organizar os estudos de direito romano e canónico nas universidades ibéricas, distinguindo-se, entre as demais, Salamanca e Lérida. Tal será fundamental para o ressurgimento do estudo dos principais textos de direito romano na Península Ibérica, fenómeno este que, por sua vez, dará origem a novos focos de romanismo jurídico no território18. Contudo, esta reintrodução mais fundamentada do direito romano não levou a uma extinção das antigas normas de direito consuetudinário, verificando-se, invés disso, a uma paulatina substituição das mesmas, devido à vontade que o rei e os novos juristas viam na utilidade das “novas” formulações romanísticas, que se revelavam como um instrumento teórico imprescindível para os propósitos centralizadores da monarquia, algo que acontece em conjugação com transformações nas formulações doutrinais. Para além disso, destacam-se também as práticas notariais e as resoluções judiciais que, no final do século XII, já utilizavam fórmulas romanísticas19. Penso ser relevante fazer um pequeno aparte para explicar o porquê desta viragem, a partir do século XII, no conhecimento jurídico. Nesse sentido, assiste-se a uma tensão, durante a Idade Média, entre o discurso laico e religioso e a um dualismo entre as matérias religiosas e jurídicas. No campo secular, como já vimos, assiste-se a um ressurgimento do direito romano justinianeu, que garantia princípios jurídicos básicos, concedendo desta forma material jurídico suficiente à monarquia para a consolidação do seu poder; oferecia a possibilidade de tratar juridicamente a vida política; por último, defendia-se também a insistência deste direito nos ideais de majestade real, autoridade pública e diferenciação entre público e privado. No outro lado do espectro, emerge também um direito canónico revigorado, que fomenta o seu surgimento como sistema jurídico orgânico, algo situável no século XII, como consequência da reforma Gregoriana. Tal não significa que a Igreja não tenha tido uma atividade normativa no campo do direito nos séculos anteriores, pois o direito romano foi, numa primeira instância, tutelado pela Igreja. Este, ao contrário do

18 Hilda Grassoti “Organización política, administrativa y feudo-vasallática de León y Castilla durante los siglos XI y XII.” em Historia de España Menéndez Pidal: Los reinos cristianos en los siglos XI y XII, dirigido por José María Jover Zamora, 31; Marta de Carvalho Silveira. “O tempo nas penalidades: uma análise comparativa do Fuero Real e do Fuero Juzgo,” Revista de História Comparada, 3, nº1 (2009): 10;

Antonio García y García. “La penetración del derecho clásico medieval en España,” 576; Armando José Torrent Ruiz, “La recepción del derecho justinianeo en España en la Baja Edad Media (siglos XII-XV). Un capítulo en la historia del derecho europeo,” 47; Caetano, História do direito portugués: fontes, direito público, 1140-1495, 336-7.

19 García de Cortazar, Historia de España dirigida por Miguel Artola: La época medieval, 246; Armando José Torrent Ruiz, “La recepción del derecho justinianeo en España en la Baja Edad Media (siglos XII- XV). Un capítulo en la historia del derecho europeo,” 53.; José Mª Salrach e Javier Zabalo, Historia de España dirigida por Manuel Tuñón de Lara: Feudalismo y consolidación de los pueblos hispânicos (siglos XI-XV), (Barcelona: Labor, 1981): 64

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campo secular, fortalecia e consolidava a figura papal, cada vez mais universal e comum a toda a Cristandade, e fortalecia a estruturação interna da Igreja, apresentando-a como autêntica sucessora do Império Romano, dando origem a um modelo de teocracia papal no Ocidente que estruturou muitas das monarquias no decorrer desse século, fornecendo, através do direito canónico, material direcionado para a organização do aparato jurídico laico, agora através de diretrizes da Igreja, o que, por outro lado, leva a que as monarquias tivessem que recorrer mais ao pontificado romano e às correspondências decretais do papado de forma a obterem legitimidade política de Roma20.

A divulgação do direito romano em território espanhol, como vimos, irá auxiliar a consolidação do poder monárquico, o que se traduz na paulatina redução da diversidade foral, fruto dos trabalhos dos novos juristas formados em direito romano, que irão constituir uma minoria influente patrocinada pelo monarca. É deste papel e influência em crescendo que estes indivíduos irão começar a corrigir os antigos fueros, mais particularistas, facilitando o florescer de uma conceção universalista em torno do direito e da lei. É também possível que os fueros municipais mais extensos tenham surgido como resposta ao direito justinianeu que agora surgia em território espanhol. Porém, como direito local, não eram completos juridicamente e utilizavam alguns princípios de direito romano para colmatar as suas brechas. Não obstante, este fenómeno terá facilitado a introdução e proliferação do direito romano nos fueros locais, tanto pelas necessidades que decorriam das suas falhas bem como pela influência dos juristas que os corrigiam.

Através deste processo, a monarquia via facilitada os seus esforços de centralização do poder em torno da figura do rei21.

O Fuero Juzgo

Fruto deste ambiente, em 1241, no contexto da Reconquista, após um ano de presença em Córdoba, Fernando III irá conceder à antiga capital do califado um fuero próprio, o Fuero Juzgo, que se baseava no antigo Liber, mas que detinha uma formulação própria e original, cuja novidade consistia, sobretudo, na tradução da obra para o romance, ainda

20 Marta de Carvalho Silveira. “O tempo nas penalidades: uma análise comparativa do Fuero Real e do Fuero Juzgo,” 10-1; Antonio García y García. “La penetración del derecho clásico medieval en España,”

577; García de Cortazar, Historia de España dirigida por Miguel Artola: La época medieval, 246; Espinosa Gomes da Silva, História do direito português: fontes de direito, 198; Caetano, História do direito portugués: fontes, direito público, 1140-1495, 333

21 García de Cortazar, Historia de España dirigida por Miguel Artola: La época medieval, 249-53; Hilda Grassoti, “Organización política, administrativa y feudo-vasallática de León y Castilla durante los siglos XI y XII.” 33

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que com algumas modificações22. Este momento inaugura uma mudança na orientação foral seguida pela coroa de Castela pois esta enfrentava dificuldades relacionadas com a consolidação do seu poder face à força das forças nobiliárquicas e eclesiásticas do reino, sendo Fernando III essencial no lançamento das bases de um poder unificador que provinha da coroa. Neste sentido, a mudança na orientação foral deve-se ao particularismo jurídico vivido no reino castelhano, natural tendo em conta as diversas realidades vividas. Estas realidades nasciam da criação de registos próprios de leis pelas comunidades locais, através dos líderes nobiliárquicos e dos concejos vecinais23. Desta disputa nasce um direito de características locais que a monarquia pretendia substituir, procurando através de novos discursos jurídicos a unicidade de normas de ordenamento social24. Através do Fuero Juzgo, os esforços de Fernando III irão virar-se para a integração normativa do direito no reino, como elemento catalisador da consolidação política da monarquia nos territórios recém-conquistados25.

A busca pela centralização do poder monárquico por Fernando III, iniciada com o retomar da Reconquista e com a união das coroas de Castela e Leão, levou à consolidação das conquistas no sul da península o que, por sua vez, facilitou o estabelecimento da autoridade monárquica sobre a população local, auxiliando-se da promulgação do Fuero Juzgo, código que detinha, como tradução do código visigodo, um alto valor simbólico, possuindo uma tradição jurídica e antiguidade suficiente para garantir o seu uso26. O Fuero Juzgo surge como resposta à desorganização causada pela falta de um código legislativo próprio nestes novos territórios, bem como da necessidade da monarquia se sobrepor às demais forças do reino e de centralizar o seu poder. A sua diversidade temática e quotidiana forneceu a Fernando III os parâmetros legais para responder às questões das comunidades urbanas, delimitando, simultaneamente, o campo de atuação

22 María Angustias Alba Bueno e Manuel Rodríguez García, “La muerte en el Fuero Juzgo y tipos de enterramentos en el reino visigodo de Toledo,” 82.; Manuel González Jiménez, “Fernando III El Santo, legislador,” Boletín de la Real academia Sevillana de Buenas Letras: Minervae Baeticae, nº 29 (2001): 115- 6.; Luis G. De Valdeavellano, Historia de España antigua y medieval: Castilla y Aragón en el siglo XIII (Madrid: Alianza, 1988), 124.

23 Marta de Carvalho Silveira. “O tempo nas penalidades: uma análise comparativa do Fuero Real e do Fuero Juzgo,” 10.

24 Ibidem

25 Francisco Javier Fernández Conde, “Los grandes problemas y realizaciones de la vida intelectual:

teología, espiritualidad, filosofía, derecho.” em Historia de España Menéndez Pidal: La época del gótico en la cultura española (c. 1220 – c. 1480), dirigido por José María Jover Zamora (Madrid: Espasa-Calpe S.A., 1994) Tomo 16. 538.; Marta de Carvalho Silveira. “O tempo nas penalidades: uma análise comparativa do Fuero Real e do Fuero Juzgo,” 10-1.

26 Marta de Carvalho Silveira, “Um olhar jurídico sobre a morte: uma análise comparativa do Fuero Juzgo e do Fuero Real,” Dossiê: Matar e morrer na Idade Média, 17, nº1 (2017): 57.

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jurídico da autoridade real, reforçando o papel e a centralidade da monarquia no campo do direito27.

A importância do Fuero Juzgo irá vincar-se na região da Andaluzia, zona anteriormente sob a influência do Fuero de Cuenca. O modelo foral criado inicialmente para Córdoba irá expandir-se para as demais cidades e vilas conquistadas no decorrer da Reconquista.

Destaca-se a sua implantação em Toledo, Córdoba e mais tarde Sevilha, o que dá conta da manifesta utilidade do Fuero Juzgo neste contexto repovoador que se aliou ao reforço do poder do rei e da monarquia28.

O Fuero Real

Fernando III acabará por falecer em 1252 e será sucedido pelo seu filho, Afonso X.

Aquando da ascensão do novo monarca, o panorama foral do reino castelo-leonês concentrava-se em torno de quatro famílias forais de caráter local: o Fuero de Benavente, difundido sobretudo no noroeste do reino leonês; o Fuero de Logroño-Vitoria; a família foral difundida a partir do Liber Iudiciorum e do Fuero Juzgo, em Leão, Toledo, na Andaluzia e também em Múrcia; e, por último, uma série de fueros de frontera ou de la Extremadura, disseminados desde Sória até Ribacôa. A região de Castilla la Vieja, por outro lado, estava à margem deste mapa foral e funcionava como uma região sem fueros, regendo-se por um direito particularista e tradicional, baseado sobretudo nas fazañas dos juízes e no costume não escrito, e, portanto, longe de qualquer tribunal controlado pelo monarca, o que se traduz num escasso nível de aplicação do direito de origem régia, sobretudo nas atuais províncias de Burgos, Valladolid e Palência. Subsistia, assim, no reino castelhano-leonês um direito territorial que não conseguia suprimir a diversidade legislativa no reino29.

Afonso X, numa primeira instância, irá seguir, à semelhança do seu pai, uma orientação uniformizadora do direito, fazendo-se valer de concessões do Fuero de Cuenca, do Fuero

27 Ibidem

28 Nociones de Historia del derecho civil (Derecho barbaro germánico, español y francés), 28-9.; Manuel González Jiménez, “Fernando III El Santo, legislador,” 116-7.; Manuel González Jiménez, “Fernando III y el gobierno del reino,” Estudios de Historia de España, 12, Tomo 1, (2010): 270-3.

29 Manuel González Jiménez, Alfonso X El Sabio, (Barcelona: Editorial Ariel, 2004): 91.; Julio Valdeón, José Mª Salrach e Javier Zabalo, Historia de España dirigida por Manuel Tuñón de Lara: Feudalismo y consolidación de los pueblos hispânicos (siglos XI-XV), 65.; Hugo Oscar Bizzarri, “Las colecciones sapienciales castellanas en el proceso de reafirmación del poder monárquico (siglos XII y XIV)”, Cahiers de linguistique hispanique médiévale, nº20, (1995): 36-7.; Jesús García Díaz, “El reflejo del ideario jurídico-político de Alfonso X de Castilla en su proyecto legislativo”, Revista de Estudios Histórico- Jurídicos, nº42, (2020): 302-3.

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Juzgo, do Fuero de Toledo, entre outros, a várias cidades do reino. Afonso X assume-se também como um continuador da administração legislativa do seu antecessor em dois aspetos: através da confirmação e da concessão de fueros locais a diversas populações que possuíam uma tradição jurídica própria; através da concessão, por outro lado, do Fuero Juzgo, sob a formulação toledana, às novas comunidades e aos locais por povoar do Sul recém-conquistado, procurando a unificação jurídica destas regiões sob um único código legislativo30. Será sobre esta égide de continuidade que, entre 1252 e 1255, Afonso X terá redigido o futuro Fuero Real, não sendo possível indicar com exatidão a data da sua redação, existindo, por conseguinte, várias propostas para situar a composição deste código de leis, desde a mais tardia, em 1293, até à mais precoce, em 1249. Consideradas as demais datas propostas no meio académico, a mais consensual aponta para a publicação do Fuero Real nos finais de 1254 ou no início de 125531. A nova obra, intitulada inicialmente Fuero del Libro ou Libro del Fuero32, foi concedida pela primeira vez nesse ano de 1255 a Aguilar de Campóo, Sahagún, Burgos, Carrión de los Condes e aos restantes concelhos na merindad mayor de Castela. O ano de 1256 será ainda mais prolífico no aspeto concecional, com a confirmação do Fuero Real a Segovia, Soria, Peñafiel, Palencia, Arévalo, Trujillo, Cuéllar, Atienza, Buitrago, Hita, Alarcón, Alcaraz, novamente a Burgos, e, finalmente, a Ávila. Em 1257, será mais uma vez concedido, agora a Requena e Talavera. Após um hiato de três anos, assiste-se a uma nova vaga de concessões, entre 1260 e 1265, onde se destaca o seu outorgamento a Ágreda, Villa Real, Madrid, Tordesillas, Almansa e Valladolid. Por último, será concedido a Belorado, em 127233.

30Marcelo Pereira Lima, “Comparando a fabricação de códigos afonsinos: o Especulo, o Fuero Real e as Siete Partidas”, Revista de História Comparada, 9, nº1, (2015): 10-1.; Olga Pisnitchenko, “O Rei e a Lei:

Algumas reflexões em torno das obras jurídicas de Alfonso X”, Faces da História, 2, nº2, (2017): 8.; Julio González González, “Época de Alfonso X: La política legislativa y cultural” em Historia de España Menéndez Pidal: La expansion peninsular y mediterránea (c.1212- c. 1350), (Madrid: Espasa-Calpe, 1990) Tomo 13. Volume 1. 179.;

31 Manuel González Jiménez, Alfonso X El Sabio, 92-3

32 Jerry Craddock, “The Legislative Works of Alfonso el Sabio”, em Emperor of Culture: Alfonso X the Learned of Castile and His Thirteenth-Century Renaissance, ed. por Robert Burns (Pensilvânia, University of Pennsylvania Press, 1990): 184.; Joseph F. O’Callaghan, Alfonso X, The Justinian of his age: Law and justice in thirteenth-century Castile, 22.

33 Manuel González Jiménez, Alfonso X El Sabio, 93; Faustino Martínez Martínez, “El transito de la oralidad hacia la escritura en la experiencia juridica del siglo XIII: ejemplo sajon e hipotesis castellana (parte segunda),” Cuadernos de Historia del Derecho, (2008).; Marcelo Pereira Lima, “Comparando a fabricação de códigos afonsinos: o Especulo, o Fuero Real e as Siete Partidas”, 28; Julio González González, “Época de Alfonso X: La política legislativa y cultural” em Historia de España Menéndez Pidal:

La expansion peninsular y mediterránea (c.1212- c. 1350) 179.

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Todavia, a aplicação do Fuero Real não será consensual entre as elites do reino nem entre todas as cidades a que fora concedido, em muitas delas, pela força. Por um lado, a oposição mais feroz provinha dessas mesmas cidades e vilas, que viam o código como limitador da sua liberdade e dos seus privilégios, e consequentemente, como ameaça à sua tradicional autonomia política e jurídica. As elites nobiliárquicas também não viram com bons olhos o Fuero Real face ao medo de perderem os privilégios e benefícios tradicionais de que dispunham com os sistemas legais anteriores que protegiam sobretudo as suas prerrogativas e reivindicações, considerando-se titulares de uma jurisdição própria e não de uma cedida pelo rei. A reação estala em 1272, ano da última concessão do Fuero Real, quando os concelhos e as principais famílias nobiliárquicas do reino ameaçaram romper a sua lealdade com o monarca, reclamando a confirmação dos seus privilégios, liberdades, usos e costumes de que usufruíam anteriormente. De forma a preservar a paz e a manter vivas as suas pretensões imperiais, Afonso X recua na sua política de exclusividade do Fuero Real, permitindo que este passasse a ser utilizado como referência jurídica em casos de lacunas legais a nível local, e, deste modo, os concelhos viram o retorno e a confirmação dos privilégios e costumes de que dispunham antes da concessão do Fuero Real. Noutras localidades, há testemunhos da sua conservação, ainda que compaginado com os antigos fueros locais34.

O Fuero Real teve diversas influências externas, algo que se destaca especialmente nas suas diretrizes assentes no direito romano, mas também no direito canónico. O influxo das ideias e de preceitos romanísticos decorrentes do ressurgimento do direito romano terá particular impacto nas matérias de direito civil explanadas no código: regras de sucessão; executores testamentários; adoção, cujo regulamento fora ajustado ao sistema Justinianeu; teoria contratual; regulação do processo judicial e em muitos dos títulos do Livro I e II. Noutras matérias, o Fuero Real, retificou antigos fueros sem adotar características romanas; reavivou também certas provisões do Fuero Juzgo que haviam

34 Marta de Carvalho Silveira, “Uma visão jurídica dos judeus à luz do Fuero Real,” Brathair: Revista de Estudos Celtas e Germânicos, 15, nº2 (2015): 216.; Irma Antonieta Gramkow Bueno, “A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval: uma análise da Leges Visigothorum e da legislação afonsina” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Rio Grande do Sul, 2012): 59-60.;

Jesús García Díaz, “El reflejo del ideario jurídico-político de Alfonso X de Castilla en su proyecto legislativo”, 304-5.; Daniel A. Panateri, “Proyecto político y producción jurídica en Alfonso X : consideraciones sobre la relación texto-contexto a partir de algunas variantes en sus proemios," Mirabilia, nº23, (2016): 163-4.; María Paz Alonso Romero. “La monarquía castellana y su proyección institucional (1230-1350): La posición de la monarquía en el reino”, em Historia de España Menéndez Pidal: La expansion peninsular y mediterránea (c.1212- c. 1350), (Madrid: Espasa-Calpe, 1990) Tomo 13. Volume 1. 537.

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caído em desuso; finalmente, estabelece regras distintas originárias do direito canónico ou de outras fontes, entre elas a Bíblia35. Para além das influências externas, o Fuero Real assume-se como uma compilação de vários fueros castelhanos e leoneses, mas também do Fuero Juzgo, como afirmei acima, cuja inovação decorre da elaboração teórica do poder monárquico, que atribuía ao rei o papel central e ordenador do corpo social do reino. Apesar de se assumir como uma compilação de material anterior, o Fuero Real adota um cariz mais sistemático que os demais fueros municipales que o influenciaram.

Aquando da redação do novo código legal, Afonso X terá sido auxiliado por peritos jurídicos e juristas reais versados nos princípios do direito romano da Receção36.

O projeto político de Afonso X conflui em três obras essenciais: o Fuero Real, o Especulo e as Siete Partidas. Estas três obras renovaram o panorama legislativo dos fueros particulares, de alcance meramente local, e das recompilações de costumes e fazañas, caminhando para um direito de cariz territorial que se baseava nos melhores aspetos do direito tradicional e no direito comum romano-canónico que se impunha na Europa, pretendendo-se unificar e monopolizar o direito na mão do rei, atribuindo-se o papel de administrador da justiça e de legislador ao monarca, contrapondo com a sua função atual que se restringia à promulgação de fueros37. O controlo da administração judicial era assim um pilar fundamental dentro da conceção jurídico-política de Afonso X, e, nesse sentido, encontram-se no Fuero Real os primeiros passos nessa direção, através da sua disseminação extensiva pelo território castelhano e na Extremadura, territórios que, como já vimos, estavam à margem das quatro grandes famílias forais, o que leva à consequente uniformização e unificação jurídica da região ao dar exclusividade de atuação ao Fuero Real, algo semelhante àquilo feito pelo seu pai com o Fuero Juzgo.

Assim, o Fuero Real cumpria o seu objetivo vital: o reforço e a afirmação do poder monárquico no campo legal, dotando estas cidades e vilas de uma lei única geral para

35 Rafael Altamira, Spain. Sources and Development of Law, ed. por Carlos Petit, (Madrid: Dykinson, 2018), 52-3.; Julio Valdeón, José Mª Salrach e Javier Zabalo, Historia de España dirigida por Manuel Tuñón de Lara: Feudalismo y consolidación de los pueblos hispânicos (siglos XI-XV), 162.; Manuel González Jiménez, Alfonso X El Sabio, 95.

36 Julio Valdeón, José Mª Salrach e Javier Zabalo, Ibidem, 161-2; García de Cortazar, Historia de España dirigida por Miguel Artola: La época medieval, 250.; Manuel González Jiménez, Ibidem.; Irma Antonieta Gramkow Bueno, “A incorporação de modelos femininos cristãos na legislação ibérica medieval: uma análise da Leges Visigothorum e da legislação afonsina”, 58.; Faustino Martínez Martínez, “El transito de la oralidad hacia la escritura en la experiencia juridica del siglo XIII: ejemplo sajon e hipotesis castellana (parte segunda),”.; Marta de Carvalho Silveira, “Uma visão jurídica dos judeus à luz do Fuero Real,” 215.

37 Manuel González Jiménez, Ibidem, 90. Julio Valdeón, José Mª Salrach e Javier Zabalo, Ibidem, 113.;

Hugo Oscar Bizzarri, “Las colecciones sapienciales castellanas en el proceso de reafirmación del poder monárquico (siglos XII y XIV)”, 38.; Marta de Carvalho Silveira, Ibidem.

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todos os súbditos, sendo inclusive possível que este projeto se destinasse à totalidade do reino castelhano-leonês38. Contudo, como já vimos, este projeto fracassou devido à revolta de 1272 e à posterior revogação do Fuero Real.

38 Faustino Martínez Martínez, Ibidem.; Manuel González Jiménez, Ibidem, 90-2; Julio Valdeón, José Mª Salrach e Javier Zabalo, Ibidem, 161-2.; Julio González González, “Época de Alfonso X: La política legislativa y cultural” em Historia de España Menéndez Pidal: La expansion peninsular y mediterránea (c.1212- c. 1350) 179-183.; Jesús García Díaz, “El reflejo del ideario jurídico-político de Alfonso X de Castilla en su proyecto legislativo”, 296-9.

Referências

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