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A regulamentação do Artigo 68 do ADCT como reconhecimento de um estado pluriétnico

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SIMONE ROLIM DE MOURA

A REGULAMENTAÇÃO DO ARTIGO 68 DO ADCT COMO RECONHECIMENTO DE UM ESTADO PLURIÉTNICO

Florianópolis 2018

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SIMONE ROLIM DE MOURA

A REGULAMENTAÇÃO DO ARTIGO 68 DO ADCT COMO RECONHECIMENTO DE UM ESTADO PLURIÉTNICO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. João Batista da Silva, MSc.

Florianópolis 2018

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Dedico este trabalho de conclusão de curso à minha avó, Adelaide – que me ajudou a ser quem eu sou.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, sobretudo às minhas tias Neusa e Neiva e à minha mãe Neila. O apoio de vocês nessa empreitada de fazer uma segunda graduação foi decisivo em todos os momentos do curso. Mesmo vocês estando em outro estado, vocês sempre estiveram comigo.

Aos colegas que conheci durante o percurso nesta graduação, alguns desde a primeira fase e outros que encontrei ao longo do caminho. Alguns colegas (a quem posso chamar de amigos) eu gostaria de agradecer nominalmente: Késsia Gomes de Lima, pelas caminhadas até a Unisul que tivemos (e que permitiram que a gente se aproximasse e eu conhecesse melhor essa pessoa atenciosa e compreensiva); Marcos Demikoski, pelas ideias compartilhadas e desejo por um país mais justo e igualitário; Jéssica Schveitzer, que desde a primeira fase divide trabalhos em equipe comigo; e Vanessa Volpato, pela generosidade e gentileza intrínsecas a sua personalidade (e pelos conselhos fisioterapêuticos nesses momentos finais desse primeiro semestre de 2018).

À Patricia de Oliveira Iuva, por tudo e sempre. Não encontro palavras suficientes para expressar toda a sua motivação e por acreditar em mim em todos os momentos.

Aos professores do curso de Direito da Unisul, por todo o auxílio que vocês me proporcionaram nessa formação acadêmica. Em particular, gostaria de agradecer à professora Andréia Catine Cosme, pela ajuda em responder algumas dúvidas na elaboração deste trabalho de conclusão de curso e à professora Solange Büchele de S. Thiago, coordenadora do curso, pela compreensão neste semestre (literalmente) doloroso.

Dedico um agradecimento especial ao professor João Batista da Silva, que – não apenas quando professor da disciplina de Interesses Difusos e Coletivos, mas também e principalmente enquanto orientador – proporcionou-me crescimento como acadêmica e sempre esteve presente, sanando minhas dúvidas e me incentivando.

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“Direitos humanos não é um plus, é o básico do básico. É o que nos torna humanos, que nos permite viver em sociedade” (Procurador Regional da República Paulo Leivas, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal).

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RESUMO

O presente trabalho de conclusão de curso versa sobre o direito disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – o reconhecimento dos remanescentes das comunidades dos quilombos e o direito de propriedade às suas terras. Para tanto, busca-se discutir o procedimento de reconhecimento dos remanescentes das comunidades dos quilombos rurais pelo Estado em nível federal, refletindo sobre as implicações do título coletivo e pró-indiviso concedido pelo Poder Público e asseverando a República Federativa do Brasil enquanto um Estado Democrático de Direito pluriétnico. No intuito de alcançar esse objetivo, utiliza-se como método de abordagem o pensamento dedutivo e de natureza qualitativa, viabilizado por meio do método do procedimento monográfico e das técnicas de pesquisa bibliográfica e documental – com base em doutrinas, livros do campo da antropologia, artigos científicos, jurisprudências, dissertações de mestrado, teses de doutorado e nas regulamentações do artigo 68 do ADCT em nível federal. Parte-se da apresentação dos conceitos histórico e antropológico de quilombo, a fim de discutir as regulamentações em nível federal do direito fundamental contido no artigo 68 do ADCT e asseverar as implicações da titulação das terras aos remanescentes das comunidades dos quilombos. Conclui-se que o acesso à terra a esses remanescentes é norma que exemplifica o Brasil como Estado Democrático de Direito pluriétnico de acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil – requerendo titulação diferenciada da hegemônica e construção de políticas públicas específicas pelo Estado, com o intuito de reconhecer a diversidade cultural brasileira e o respeito a essa plurietnicidade. Palavras-chave: Quilombo. Direitos Culturais. Estado Democrático de Direito pluriétnico.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

2 OS DIFERENTES CONCEITOS DE QUILOMBO ... 13

2.1 OS QUILOMBOS NA HISTÓRIA ... 13

2.1.1 Breve Histórico do Termo Quilombo e sua utilização na Legislação Colonial e Imperial ... 13

2.1.2 Breve Contextualização Historiográfica dos Quilombos ... 18

2.2 A REDEMOCRATIZAÇÃO E O QUILOMBO CONTEMPORÂNEO ... 20

2.2.1 A Categoria “Terras de Uso Comum” ... 21

2.2.2 O Conceito Contemporâneo de Quilombo ... 24

3 AS REGULAMENTAÇÕES DO ARTIGO 68 DO ADCT NA ESFERA FEDERAL27 3.1 O PROCEDIMENTO NO DECRETO N. 3912/2001 ... 30

3.2 O PROCEDIMENTO NO DECRETO N. 4887/2003 ... 34

3.3 A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 3239/2004 ... 36

3.3.1 A Manifestação da Advocacia Geral da União ... 39

3.3.2 O Parecer do Ministério Público Federal ... 41

3.3.3 A Decisão do Supremo Tribunal Federal ... 44

4 O ARTIGO 68 DO ADCT COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL E AS IMPLICAÇÕES DA TITULAÇÃO DE TERRAS AOS REMANESCENTES DAS COMUNIDADES DOS QUILOMBOS ... 48

4.1 O ARTIGO 68 DO ADCT COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL E UM DIREITO DE PROPRIEDADE QUALIFICADO ... 48

4.1.1 O Artigo 68 do ADCT como Direito Fundamental ... 48

4.1.2 O Artigo 68 do ADCT como Direito de Propriedade Qualificado ... 55

4.1.2.1 Breve Explanação da Propriedade Rural no Brasil e a Legislação a ela Vinculada ... 58

4.2 A REGULAMENTAÇÃO DO ARTIGO 68 DO ADCT COMO RECONHECIMENTO DE UM ESTADO PLURIÉTNICO ... 61

4.2.1 Implicações da Regulamentação do Artigo 68 do ADCT e a Concessão do Título Coletivo e Pró-Indiviso previsto no Decreto n. 4887/2003 ... 63

5 CONCLUSÃO ... 68

REFERÊNCIAS... 71

ANEXOS... 79

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ANEXO B – DECRETO N. 3912/2001, DE 10 DE SETEMBRO DE 2001 ... 82 ANEXO C – DECRETO N. 4887/2003, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003 ... 86

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1 INTRODUÇÃO

Os remanescentes das comunidades dos quilombos possuem direito à propriedade das suas terras, conforme positivado no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Esse direito à terra, no entanto, envolve – dentre outros requisitos – o reconhecimento da própria comunidade enquanto remanescente dos quilombos, de forma que os mesmos devem ser compreendidos a partir de uma concepção contemporânea e não relacionada ao que se entende por conceito histórico do termo. O reconhecimento perpassa a

noção de uma identidade étnica diferenciada, partindo da chamada

autoidentificação/autoatribuição ou autoconsciência e se dá mediante procedimento administrativo definido através do Decreto n. 4.887/2003. A propriedade definitiva das terras pelos remanescentes das comunidades dos quilombos ocorre mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso, o que implica diferenças com o conceito hegemônico de propriedade positivado pelo Direito Brasileiro.

Com base nessas prerrogativas, formula-se o seguinte problema de pesquisa: de que modo se deu e se dá em nível federal o reconhecimento dos remanescentes das comunidades dos quilombos pelo Estado? E quais as implicações do título coletivo e pró-indiviso concedido pelo Poder Público? Para isso, discute-se o procedimento de reconhecimento dos remanescentes das comunidades dos quilombos rurais pelo Estado, refletindo sobre as implicações do chamado título coletivo e pró-indiviso concedido pelo Poder Público, de forma a asseverar que a República Federativa do Brasil representa um Estado Democrático de Direito pluriétnico.

A motivação da pesquisadora em analisar o artigo 68 do ADCT se vincula ao interesse por comunidades etnicamente diferenciadas, tema que conecta o Direito e a Antropologia – área de conhecimento na qual a pesquisadora tem formação, possuindo graduação em Ciências Sociais e mestrado em Antropologia Social. O tema ainda é pouco explorado na área jurídica, sobretudo no que tange sua vinculação com a noção de um Estado pluriétnico – gerando na pesquisadora o intuito de colaborar com a discussão acerca da temática.

O método de abordagem é de pensamento dedutivo – pois parte de uma norma constitucional que concede direito à terra aos remanescentes das comunidades dos quilombos para finalizar com a análise do processo de reconhecimento dessas comunidades e suas implicações – e de natureza qualitativa. O método de procedimento é o monográfico, uma vez que se discutem as implicações do título coletivo e pró-indiviso concedido aos remanescentes das comunidades dos quilombos e sua relação com a noção de Estado Democrático de Direito

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pluriétnico. As técnicas de pesquisa empregadas são a bibliográfica e a documental, com base em doutrinas, livros do campo da antropologia, artigos científicos, jurisprudências, dissertações de mestrado, teses de doutorado e nas regulamentações do artigo 68 do ADCT em nível federal. Para tanto, apresentam-se, no Capítulo 2, os diferentes conceitos de quilombos, com o intuito de delimitar o que representam os chamados quilombos histórico e contemporâneo. Essa apresentação é fundamental a fim de se compreender as consequências de utilização de um ou outro conceito. Da mesma forma, deve-se salientar que a compreensão dessas diferenças é necessária ao se discorrer a respeito das regulamentações do artigo 68 do ADCT.

No Capítulo 3, são discutidas as regulamentações do artigo 68 do ADCT em nível federal, desde a Portaria n. 307/1995 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) ao Decreto n. 4.887/2003, que rege atualmente a matéria. Ao mesmo tempo, é discutida a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3239/2004, que versou sobre a constitucionalidade do Decreto n. 4887/2003 e teve sua decisão colegiada concluída em fevereiro de 2018.

Já no Capítulo 4, reflete-se sobre a caracterização do artigo 68 do ADCT enquanto um direito fundamental, bem como um direito de propriedade qualificado – com o intuito de se asseverar as implicações da titulação das terras aos quilombolas. Busca-se com essa reflexão o entendimento do acesso à terra aos remanescentes das comunidades dos quilombos como exemplificativo do Estado Democrático de Direito pluriétnico consubstanciado na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB).

Na Conclusão, por sua vez, busca-se apontar se a presente pesquisa responde à problematização formulada, considerando-se os Capítulos estruturantes da mesma.

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2 OS DIFERENTES CONCEITOS DE QUILOMBO

No curso do presente capítulo, apresentam-se as diferentes abordagens do conceito de quilombo, uma vez que elas envolvem sentidos que mudaram ao longo da história. Durante a época da escravatura e após a abolição possuía uma conotação e, com a redemocratização brasileira ocorrida na década de 80 do século XX, recebeu novos contornos, culminando com a Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988.

Entender o processo de titulação de terras para os remanescentes das comunidades dos quilombos, também denominados de quilombolas, requer a compreensão das diferenças entre o chamado quilombo histórico ou passadista, o qual ainda está presente no imaginário do senso comum, e o quilombo antropológico ou contemporâneo. Em relação a esse último, cabe ressaltar que ele está vinculado ao que se entende atualmente por quilombo e, também, é o conceito utilizado no procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

2.1 OS QUILOMBOS NA HISTÓRIA

Entre a primeira normativa que envolve a conceituação de quilombo em 1722 e a promulgação da CRFB em 1988, a classificação relativa ao termo se manteve “frigorificada”, no sentido de possuir elementos estanques que o caracterize, conforme salienta Almeida (2011, p. 59). Nesse sentido, é possível elencar as características ou elementos que envolvem os sentidos do que seja um quilombo em sua compreensão histórica, a partir de uma breve apresentação do termo na legislação colonial e imperial, bem como as conotações caso seja utilizada no procedimento administrativo presente no decreto n. 4887/2003 (BRASIL, 2003).

2.1.1 Breve Histórico do Termo Quilombo e sua utilização na Legislação Colonial e Imperial

A palavra quilombo é de origem banto1, com grafia original de “kilombo”, sendo

ora referenciada como “acampamento guerreiro na floresta” (LEITE, 2008, p. 965), ora apenas como acampamento ou fortificação (SILVA; SILVA, 2014, p. 193; VAINFAS, 2000, p. 494). No Brasil, o termo quilombo foi utilizado no período colonial e imperial para classificar os

1 A palavra “banto” se refere ao tronco linguístico “de ampla área da África centro-ocidental, sobretudo da região

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acampamentos ou povoações formadas por escravos que fugiam do cativeiro2– sendo também

designados como arranchamentos ou mocambos3 e tendo como habitantes os calhambolas,

quilombolas ou mocambeiros (SILVA; SILVA, 2014, p. 193).

Assim, em termos históricos, o estudo do conceito de quilombo, conforme ressalta Almeida (2011, p. 59), está relacionado ao período colonial e imperial brasileiro, mais especificamente à escravidão no Brasil4 e às formas de resistência a ela. Essa resistência, no

entanto, não se resumiu aos quilombos, sendo exercida de várias formas, já que

[...] o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantação, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual ou coletivamente. Houve, no entanto, um tipo de resist̂ncia que poderíamos caracterizar como a mais típica da escravidão – e de outras formas de trabalho forçado. Trata-se da fuga e formação de grupos de escravos fugidos. A fuga nem sempre levava à formação desses grupos. Ela podia ser individual ou até grupal, mas os escravos terminavam procurando se diluir no anonimato da massa escrava e de negros livres (REIS; GOMES, 1996, p. 9).

A fuga e a formação de grupos de escravos fugidos é, dessa forma, o que historicamente se vincula à formação de um quilombo, a partir da existência de elementos que o delimitam. Para Almeida (2011, p. 59), os historiadores partem do que se denomina por conceito jurídico-formal de quilombo – uma categoria que representa algo estático, uma vez que exige a existência de características ou elementos descritivos fixos.

A primeira citação ao termo quilombo em documentos legais, conforme salienta Souza (2008, p. 2), encontra-se no Regimento dos Capitães-do-Mato, de Dom Lourenço de Almeida, de 1722, no qual consta: “pelos negros que forem presos em quilombos formados distantes de povoação onde estejam acima de quatro negros, com ranchos, pilões e de modo de aí se conservarem, haverão para cada negro destes 20 oitavas de ouro5” (GUIMARÃES, 1988

apud SOUZA, 2008, p. 2). Em consonância com essa definição, há a “resposta ao rei de

2 Vainfas (2000, p. 494) salienta que a fuga e formação de povoações de escravos fugidos foi um fenômeno

presente em todos os lugares da América onde ocorreu a escravidão. Assim, a denominação na América Espanhola era de palenques ou cumbes, na América Inglesa era maroons e na América Francesa grand marronage ou petit

marronage, essa última normalmente para designar a fuga individual e normalmente temporária (VAINFAS, 2000,

p. 494).

3 A palavra mocambo deriva de mukambu, da língua quimbundo (VAINFAS, 2000, p. 494).

4 Não há como precisar o número exato do tráfico de escravos no Brasil, mas se estima que 100 mil africanos

adentraram o território brasileiro no século XVI, 4 milhões entre os séculos XVII e XVIII e mais de 1 milhão e meio nos cinquenta últimos anos de tráfico, no século XIX (VAINFAS, 2002, p. 237).

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Portugal” a partir de consulta realizada ao Conselho Ultramarino6, em 1740, no qual

apresenta-se o conceito formal de quilombo, apresenta-sendo o mesmo “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele” (ALMEIDA, 2011, p. 59).

Tem-se, dessa forma, como salientado por Almeida (2011, p. 59-60), a existência de cinco elementos descritivos que caracterizam o conceito de quilombo: (1) a fuga; (2) o número mínimo de escravos que fugiram; (3) a localização geográfica que se caracteriza pelo isolamento; (4) o rancho; e (5) o pilão. Almeida (2011, p. 60), ao comentar a respeito desses cinco elementos, enfatiza o quanto eles representam – em seu conjunto – derradeiramente o que é necessário para definir um quilombo. Para o autor, esse conceito jurídico-formal está vinculado a “agrupamentos de vadios, que negam o trabalho” (ALMEIDA, 2011, p. 49), uma vez que se tratavam de locais que se opunham à lógica do sistema de trabalho no período colonial e imperial.

Esses elementos, portanto, são condições sine qua non para classificação do fenômeno, de modo que todos devem estar presentes para que haja de fato a existência de um quilombo, em sua concepção jurídico-formal. Nesse sentido, a fuga é elemento que exige um certo número mínimo de escravos fugidos para caracterizar determinado agrupamento de negros como quilombo. Sobre esse ponto, em 1722 eram “acima de quatro” e em 1740 “que passem de cinco”, mas podendo variar conforme o momento histórico e o documento legal assumido como fonte7. No que diz respeito ao elemento de isolamento geográfico, Almeida

(2011, p. 60) ressalta que ele está ligado a lugares de acesso difícil e em proximidade com um ambiente mais natural, marcando uma dualidade entre selvageria e civilização. Esse aspecto acaba por situar os quilombos como fora do mundo de produção e do trabalho, estando os mesmos fora do mercado (ALMEIDA, 2011, p. 60). A quarta característica, o “rancho”, está relacionado à existência de moradia habitual, podendo a mesma estar consolidada ou não, e mesmo podendo haver benfeitorias. O quinto e último elemento seria o “pilão” – instrumento que transforma o arroz colhido em alimento –, o que caracteriza a existência de autoconsumo e possibilidade de reprodução. Para Almeida (2011, p. 64), é importante salientar que os

6 Segundo Almeida (2011, p. 35), o Conselho Ultramarino foi criado em 14 de julho de 1642, a fim de regular

todas as matérias e negócios relativos à Índia, Brasil, Guiné, Ilhas de São Tomé, Cabo Verde e demais colônias portuguesas ultramarinas. Sua extinção ocorreu em 30 de agosto de 1833.

7 Pode-se citar também a Provisão de 6 de março de 1741, que cita cinco escravos; o artigo 12 da Lei n. 236 de 20

de agosto de 1847, da Assembleia Provincial do Maranhão, a “reunião de dois ou mais” escravos; e a Lei Providencial n. 157, de 9 de agosto de 1848, do Estado do Rio Grande do Sul, cujo número é “de mais de tr̂s escravos” (SANTANA, 2008, p. 23).

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[...] cinco elementos já mencionados se mantiveram nas definições de quilombo e só vão sofrer um deslocamento de variação e intensidade entre eles mesmos. Na legislação republicana nem aparecem mais, pois com a abolição da escravatura se imaginava que o quilombo automaticamente desapareceria ou que não teria mais razão de existir. Constata-se um silêncio nos textos constitucionais sobre a relação entre os ex-escravos e a terra, principalmente no que tange ao símbolo de autonomia produtiva representado pelos quilombos.

Em que pese as disposições legais do período colonial que versam sobre os negros escravos em território do Brasil, não houve uma reunião das regulamentações a fim de formar um “Código Negro”, como ocorreu com colônias de outros países europeus, segundo Almeida (2011, p. 35-36). Sobre esse ponto, pode-se citar o Code Noir francês promulgado por Luís XIV em março de 1685, o qual contava com 60 artigos. O referido código recebeu uma segunda versão em 1724, contando com 55 artigos (ano em que os franceses perderam a colônia de Louisiana para os espanhóis, atual território pertencente aos Estados Unidos da América). Também é possível citar o Código Negro espanhol de 1668 e sua segunda versão, de 1724 (também chamado de “Código Louisiana”). Ambos os códigos objetivavam disciplinar a vida dos negros escravos nos territórios franceses e espanhóis das colônias desses países. Para Almeida (2011, p. 35), tratava-se de “garantir a rentabilidade das plantações das colônias, evitando a todo custo sublevações, fugas, ‘reuniões’8 e consolidação de quilombos”.

Contrapondo-se a essa lógica de codificação, os regulamentos portugueses estavam dispersos em disposições, as quais “compreendem as ordenações afonsinas, manuelinas e filipinas9 , bem como as consultas do Conselho Ultramarino ao Rei de Portugal” (ALMEIDA,

2011, p. 35). Mesmo com a Independência do Brasil, em 1822, não há qualquer codificação referente ao tratamento dado aos escravos.

Os chamados “códigos negros” franĉs e espanhol dispunham, conforme salienta Almeida (2011, p. 36), os procedimentos disciplinares punitivos – dentre outras matérias. No caso brasileiro, como já ressaltado, não houve uma sistematização que compilasse todos esses procedimentos. Sobre esse ponto, Almeida (2011, p. 36) discorre que

[...] os mecanismos repressivos, aplicáveis em diversos tipos de atividades, se atualizam em vários dispositivos, enunciando uma certa dispersão dos instrumentos e uma diversidade consoante as diferentes províncias do Império do Brasil. De maneira resumida tal dispersão pode ser assim mapeada: legislação produzida pelas casas reais (alvarás, ordens régias, regulamentos, consultas, provisões), legislação específica por

8 Almeida (2011, p. 60) salienta que o jurista do século XIX Perdigão Malheiro utiliza a palavra reunião para

designar o grupo de escravos fugidos que formavam um quilombo.

9 As “ordenações” se caracterizavam pela grande dispersão dos textos legais que regulavam a colonização

portuguesa, sendo compostas por ordens régias, alvarás, regulamentos, provisões, dentre outros (ALMEIDA, 2011, p. 35).

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colônia, Código Criminal do Império do Brasil, legislação provincial avulsa e diferenciada, província por província (portarias, decretos, leis) e os regimentos de instrução de feitores, notadamente aqueles no âmbito da justiça privada, que conheciam variações de engenho para engenho, de fazenda para fazenda, isto é, vigentes em cada grande plantação.

O Código Criminal do Império do Brasil alude, em seu artigo 113, sobre a “insurreição de escravos”, a qual representa situação distinta dos quilombos. A insurreição seria quando vinte ou mais escravos se juntarem para buscar a liberdade através da força (BRASIL, 1830). Constata-se, portanto, que nenhum dos elementos descritivos definidores de quilombo restam presentes na caracterização de insurreição.

Embora não tenha havido uma sistematização da legislação voltada a codificar as matérias relativas aos escravos no Brasil, pode-se citar a introdução da Consolidação das Leis Civis de 1858, escrita por Augusto Teixeira de Freitas, na qual o autor faz menção à criação de um Código Negro no Brasil:

[...] cumpre advertir, que não há um só lugar do nosso texto, onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas, se esse mal é uma excepção, que lamentamos; condenado a extinguir-se em época mais, ou menos, remota; façamos também uma excepção, um capítulo avulso, na reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade: fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As Leis concernentes à escravidão (que não são muitas) serão, pois, classificadas à parte, e formarão nosso

Código Negro (FREITAS, 2003, p. XXXVII, grifos do autor).

No entanto, apesar dessa refer̂ncia, a criação de um “Código Negro” no Brasil nunca ocorreu, ao menos em termos escrito e chancelado pelo Estado oficialmente. Cumpre ressaltar também que o texto de Augusto Teixeira de Freitas já estava imbuído de um discurso abolicionista10, movimento que ganhou força no Brasil da segunda metade do século XIX

(ALMEIDA, 2011, p. 36).

Em 1865, há o fim da guerra civil estadunidense e a abolição dos escravos naquele país, deixando “o Brasil definitivamente isolado como nação escravista no panorama internacional” (VAINFAS, 2002, p. 17). Tem-se, com isso, a intensificação do movimento abolicionista no Brasil, com a promulgação da Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871, a qual “declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annual de escravos” (BRASIL, 1871). O referido movimento

10 O abolicionismo foi um movimento que ocorreu no Brasil na segunda metade do século XIX, o qual dizia

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acaba por culminar com a Lei n. 3.353, de 13 de maio de 1888, a chamada “Lei Áurea”, que “declara extinta a escravidão no Brasil” (BRASIL, 1888).

No ano seguinte à Lei Áurea, em 15 de novembro de 1889, ocorre a Proclamação da República. Com isso, em 1891 há uma nova Constituição brasileira, a primeira republicana. Sobre isso, Almeida (2011, p. 41-42) ressalta que

[...] não há uma legislação republicana a respeito e nem qualquer redefinição formal desta categoria quilombo, que, idealmente, teria sido extinta com a abolição da escravatura, em 1888. Na constituição republicana de fevereiro de 1891 não há qualquer menção e nem naquelas que a sucederam. Para os comentadores e juristas, trata-se de uma categoria datada de maneira rígida. Em decorr̂ncia, as análises jurídicas de senso comum, acríticas e historicistas, que não separam a norma instituída das condições materiais de exist̂ncia que a condicionaram, resultam por reificar um procedimento: frigorificaram aquele conhecido esquema interpretativo.

Verifica-se, portanto, um silêncio de quase cem anos no que concerne aos quilombos, havendo uma retomada do termo apenas em 1988, com a promulgação da CRFB, a partir da categoria “remanescentes das comunidades dos quilombos”.

2.1.2 Breve Contextualização Historiográfica dos Quilombos

O conceito histórico de quilombo parte da consideração e problematização dos elementos elencados na seção anterior, estando relacionado principalmente ao binômio fuga-resistência. Vainfas (2000, p. 494) salienta que, a respeito dos quilombos,

[...] o estudo do fenômeno no Brasil tem-se utilizado, basicamente, de documentos produzidos pela repressão que, se não impedem o conhecimento dessas comunidades, exigem um grande esforço para captar aspectos não registrados nas fontes militares. Esta escassez documental decorre ainda de os quilombos do Brasil não terem estabelecido duradouros tratados de paz com as autoridades, a exemplo do que aconteceu nas Antilhas. Nesses lugares, as comunidades negras sublevadas conseguiram negociar essa relativa autonomia, o que permitiu que sobrevivesse e, com o tempo, produzissem seus próprios registros. Os quilombos são citados na historiografia, desde a primeira metade do século XVIII, como parte da história militar dos portugueses na colônia, abordagem mantida até o século XIX. Mas vale ressaltar que a imensa maioria dos estudos teve como objeto o famoso Quilombo de Palmares11,

sem dúvida o maior e mais longevo do período colonial.

11 Palmares foi um quilombo que surgiu provavelmente no início do século XVII, formado a partir da fuga de

alguns escravos de um engenho no sul de Pernambuco. Era localizado na Serra da Barriga, no sertão de Alagoas, sendo formado por dez agrupamentos de aquilombados, tendo como sua capital o mocambo de Macaco. Estima-se que sua população tenha oscilado entre Estima-seis e vinte mil. Após inúmeras expedições dos europeus a fim de derrotar Palmares (datando a primeira de 1612), tropas lideradas pelo paulista Domingos Jorge Velho infligiram uma derrota definitiva ao quilombo em 1695 (VAINFAS, 2000, p. 468-469).

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A partir da década de 30 do século XX, há estudos dos quilombos centrados na resist̂ncia à chamada “aculturação” determinada pelos europeus. Na década de 50, também do século passado, tem-se estudos que privilegiam a rebeldia escrava, trabalhos que se misturam à ascensão dos movimentos negros no Brasil, bem como a emergência de movimentos políticos de esquerda. Os anos 80 do século XX são marcados por estudos que analisam as rupturas e continuidades entre a África e a cultura dos aquilombados (VAINFAS, 2000, p. 495). É importante enfatizar que

[...] os anos 80 e 90 renovaram, em larga medida, os estudos sobre os quilombos no Brasil. A descoberta de novas fontes manuscritas e orais, a inclusão dos aspectos simbólicos e rituais presentes nos quilombos e a ampliação dos estudos arqueológicos dos lugares onde essas comunidades se erigiram têm permitido uma reavaliação da história dos quilombos, atentando para suas especificidades sem reduzi-los a modelos preconcebidos ou ingenuamente idealizadores (VAINFAS, 2000, p. 495).

Em relação à problemática dos quilombos, “era sem dúvida complexa a malha de interesses e relações que envolvia o combate aos quilombos, mas não menos complexa era aquela que promovia seu aparecimento e sustentação” (REIS; GOMES, 1996, p. 19). Pode-se relacionar que o combate e a manutenção dos quilombos, de uma maneira geral, estava vinculada ao momento político das províncias brasileiras. Assim, se as elites de uma determinada província estivessem unidas, maior seria a repressão aos quilombolas; se seus interesses estivessem divididos, crescia o número dos aquilombados e as possibilidades deles se desenvolverem (VAINFAS, 2002, p. 508).

Ao mesmo tempo, não é possível afirmar que havia apenas uma forma de os escravos se aquilombarem, sendo bastante plural e heterogêneo o movimento de formação e desenvolvimento dos quilombos. Sobre esse ponto, Reis e Gomes (1996, p. 23) afirmam que

[...] os quilombolas brasileiros ocuparam sertões e florestas, cercaram e penetraram em cidades, vilas, garimpos, engenhos e fazendas; foram atacados e usados por grupos escravistas, aos quais também atacaram e usaram em causa própria; fugiram da escravidão e se comprometeram com a escravidão; combateram e se aliaram com outros negros, índios e brancos pobres; criaram economias próprias e muitas vezes prósperas; formaram grupos pequenos, ágeis, móveis e temporários, ou grupos maiores, sedentários, com gerações que se sucediam, politicamente estruturados; envolveram-se com movimentos políticos de outros setores sociais, desenvolveram seus próprios movimentos, alguns abolicionistas; aproveitaram-se de conjunturas políticas conflitivas nacionais, regionais, até internacionais, para crescer, ampliar alianças, fazer avançar seus interesses imediatos e projetos de liberdade mais ambiciosos.

No entanto, independentemente do momento em que se produz a pesquisa histórica, não se pode desvincular a ideia de quilombo de resistência à estrutura escravocrata, a qual é

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fundada principalmente na noção de plantation12. Da mesma forma, embora fossem dados

novos enfoques ao estudo dos quilombos pelos historiadores, o conceito em si do termo (vinculado ao conceito jurídico-formal) não foi problematizado. Nesse sentido, Almeida (2011, p. 42) sustenta que

[...] não houve, paralelamente à ação abolicionista, uma produção sistemática de conhecimentos críticos capaz de desfazer a força do consenso histórico das categorias que organizavam o pensamento escravocrata. No caso dos chamados quilombos o consenso repousou no inconsciente coletivo e nele fez-se verdade, senão dogma. Inexistiram relativizações ou incorporação do repertório de observações empíricas encontráveis em inúmeros autores dos séculos XVIII e XIX.

Desse modo, reitera-se a noção de um conceito “frigorificado”, cuja utilização em um procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de terras não abarca uma série de aspectos (empreendidos através de trabalho de campo antropológico), os quais devem ser levados em conta no processo – de acordo com o conceito antropológico do termo.

2.2 A REDEMOCRATIZAÇÃO E O QUILOMBO CONTEMPORÂNEO

A categoria quilombo, conforme problematizada até então no presente trabalho, estava inserida numa ordem escravocrata que vigorou até 1888, estando disposta em documentos legais como forma de contestação ao regime de produção presente na ordem político-social brasileira (MULLER, 2006, p. 48). Desse modo, em relação aos sentidos que envolvem o conceito contemporâneo do termo, há uma inovação no “ordenamento jurídico nacional ao constituir um sujeito de direito bastante peculiar, atribuindo a ele capacidade de reivindicar direito de propriedade” (MULLER, 2006, p. 48). Essa atualização do conceito de quilombo está relacionada a promulgação da CRFB, através da inserção do artigo 68 do ADCT, no qual consta que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988).

O referido artigo do ADCT apresenta a expressão “remanescentes das comunidades dos quilombos”, os quais t̂m direito à propriedade definitiva de suas terras (que, por sua vez,

12 A plantation é tradicionalmente utilizada pela historiografia como sendo a base do sistema de produção do Brasil

Colonial, fundada no tripé “latifúndio, monocultura e trabalho escravo”. A produção era sobretudo a de açúcar, considerada a principal riqueza da colônia (VAINFAS, 2000, p. 489)

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devem estar ocupadas). Cabe, nesse sentido, ao Estado emitir os títulos referentes a essa propriedade. Assim, conforme salienta O’Dwyer (2002, p. 14), não se trata apenas de o texto constitucional evocar uma identidade histórica, como também devem persistir as condições de existência desses remanescentes no presente, pela ocupação das terras por eles. Essas condições constituem pressupostos básicos para que haja a titulação das terras para esses sujeitos.

A fim de buscar o entendimento da compreensão ressignificada de quilombo, presente na noção contemporânea do termo, faz-se necessária a problematização das ditas “terras de uso comum”. Ao mesmo tempo, o conceito contemporâneo do fenômeno dos quilombos exige que se problematize o componente étnico.

2.2.1 A Categoria “Terras de Uso Comum”

Abordar a noção contemporânea de quilombo requer, necessariamente, a análise das chamadas “ocupações especiais”, através da categoria “terras de uso comum” – notadamente citada na literatura antropológica como “terras de preto”, “terras de índio” e “terras de santo” (ALMEIDA, 2010, p. 105; ALMEIDA, 2011, p. 84; OLIVEIRA, 2005, p. 147). Tratam-se de categorias êmicas, ou seja, designações utilizadas pelos próprios sujeitos pesquisados pelos antropólogos para definir seus espaços de ocupação da terra, todos com características semelhantes – são as chamadas terras de uso comum13.

Essa categoria “terras de uso comum” representa um aspecto ignorado na estrutura agrária brasileira até os anos 80, de acordo com Almeida (2010, p. 104). Para esse autor,

[...] elas designam situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e individualmente por um determinado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal controle se dá por meio de normas específicas instituídas para além do código legal vigente e acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social. Tanto podem expressar um acesso estável à terra, como ocorre em áreas de colonização antiga, quando evidenciam formas relativamente transitórias intrínsecas às regiões de ocupação recente (ALMEIDA, 2010, p. 104).

Em linhas gerais, pode-se inferir que as “terras de uso comum” designam situações práticas de “usufruto comum”, colidindo com o sistema jurídico vigente de propriedade14

(ALMEIDA, 2010, p. 105-106). Têm como característica central a impossibilidade de definir seus territórios como pertencentes a determinado indivíduo, sendo um espaço utilizado e

13 As denominações êmicas diferenciadas ocorrem em função de variações regionais (ALMEIDA, 2010, p. 105). 14 Esse ponto será melhor problematizado no Capítulo 4 – O artigo 68 do ADCT como um direito fundamental e

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usufruído por uma determinada coletividade – a partir de usos, sentidos e organização específicos dados por cada comunidade (ALMEIDA, 2011, p. 57-58; O’DWYER, 2002, p. 14). Tratam-se de situações práticas que até então nunca tinham sido “catalogadas, quantificadas ou sujeitas às técnicas dos métodos estatísticos e de cadastramento de imóveis adotadas pelos órgãos de planejamento da intervenção governamental na área rural” (ALMEIDA, 2010, p. 105). No entanto, como enfatiza O’Dwyer (2002, p. 15-16), essas ocorrências eram percebidas empiricamente por pesquisadores das ciências sociais que realizavam pesquisas utilizando as técnicas de observação direta e trabalhos de campo (preponderando as de análise antropológica), bem como por técnicos de agências governamentais que atuavam na área rural, realizando vistorias in loco.

A respeito de suas formações, Almeida (2010, p. 111) afirma que as “terras de uso comum” são

[...] modalidades de apropriação da terra, que se desdobraram marginalmente ao sistema econômico dominante. Emergiram, enquanto artifício de autodefesa e busca de alternativa de diferentes segmentos camponeses, para assegurarem suas condições materiais de existência, em conjunturas de crise econômica também cognominadas pelos historiadores de “decad̂ncia da grande lavoura”. Foram se constituindo em formas aproximadas de corporações territoriais, que se consolidaram, notadamente em regiões periféricas, meio a múltiplos conflitos, em um momento de transição, em que fica enfraquecido e debilitado o poderio do latifúndio15 sobre populações

historicamente submissas (indígenas, escravos e agregados).

Dessa forma, pode-se vincular seu surgimento à própria forma de ocupação do território nacional e a decadência da ordem escravocrata fundada principalmente na noção de plantation. Nesse sentido,

[...] os sistemas de uso comum podem ser lidos [...] como fenômenos fundados historicamente no processo de desagregação e decadência de plantations algodoeiras e de cana-de-açúcar. Representam formas que emergiram da fragmentação das grandes explorações agrícolas, baseadas na grande propriedade fundiária, na monocultura e nos mecanismos de imobilização da força de trabalho (escravidão e peonagem da dívida). Compreendem situações em que os próprios proprietários entregaram, doaram formalmente ou abandonaram seus domínios face à derrocada. Entenda-se que se tratavam de terras tituladas, já incorporadas formalmente ao mercado desde, pelo menos, a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, a qual dispunha

15 Ressalta-se que o conceito de latifúndio atualmente está inserto na Lei n. 4504, de 30 de novembro de 1964.

Conforme disposto nesse diploma legal (em seus artigos 4º, inciso V, alíneas “a” e “b”, cumulado com 46, §1º, alínea “b”), considera-se latifúndio as propriedades que excedam “a seiscentas vezes o módulo médio da propriedade rural [ou] a seiscentas vezes a área média dos imóveis rurais, na respectiva zona” ou, ainda, “não excedendo o limite referido na alínea anterior, e tendo área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, com fins especulativos, ou seja deficiente ou inadequadamente explorado, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito de empresa rural” (BRASIL, 1964).

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sobre a mediação, demarcação e venda das chamadas “terras devolutas do Império”. Em certa medida ocorre uma reversão numa tendência tida como ascensional de estabelecimento de domínios privados com valores monetários fixados (ALMEIDA, 2010, p. 112-113).

No que concerne à Lei n. 601 de 1850, a mesma é elencada como fator determinante de não acesso à terra para diversas populações – dentre elas os negros – que viviam no Brasil quando de sua promulgação (TRECCANI, 2006, p. 47). Isso se deu, sobretudo, porque o artigo 1º da referida lei dispunha que “ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra” (BRASIL, 1850). Cabe ressaltar que antes da Lei n. 601 de 1850, “o meio utilizado para se apropriar da terra era a simples ocupação, ato facultado a todos os homens livres” (TRECCANI, 2006, p. 91).

No entanto, de acordo com Almeida (2011, p. 51), é fundamental destacar que “as terras de uso comum” representam fenômeno heteroĝneo o qual, como já salientado, foge à estrutura agrária oficial do Brasil até os anos 80, em termos de cadastramento realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e pelo Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 1985, o INCRA iniciou a realização do Cadastro de Glebas16, a partir do uso das duas categorias até então utilizadas para descrever

as situações de posse da terra: “estabelecimento” e “imóvel rural”. Frente às pressões exercidas pelo movimento dos camponeses, Almeida (2011, p. 50) enfatiza que foi criada a categoria “ocupações especiais”, a fim de dar conta de situações “marginais” que não se enquadravam como estabelecimento ou imóvel rural. Sobre esse aspecto, cabe ressaltar que

[...] a ideia de “ocupações especiais” inicialmente recobria fatores étnicos e modalidades específicas de uso da terra num contexto de luta pela reforma agrária e de prevalência das formas de organização sindical. A partir de 1988, entretanto, surgiram diferentes propostas de regras e procedimentos disciplinando as modalidades de relação com os recursos naturais. Ganharam força expressões e iniciativas referidas a: “direito consuetudinário”, “desenvolvimento auto-sustentável”, sistema de apossamento pré-existente à ação fundiária, necessidade de uma legislação ambiental e experiências alternativas de produção e consumo. À consciência ecológica sobrepuseram-se transformações objetivas com o advento das chamadas “novas etnias”, cuja expressão coletiva implicava nos “novos movimentos sociais” com formas de organização e luta que transcendiam àquela dos sindicatos de trabalhadores rurais. Neste “novo” contexto tem-se uma mobilização sob o primado de características étnicas articuladas com uma consciência ambiental profunda, que se diferencia daquela imediatamente anterior, em que o fator étnico aparecia condicionado ou subordinado a outras modalidades de luta (ALMEIDA, 2011, p. 51).

16 Procedimento realizado em decorrência da Lei n. 5.868 de 12 de dezembro de 1972, a qual criou o Sistema

Nacional de Cadastro Rural (BRASIL, 1972). A intenção com a criação da referida lei era a “integração e sistematização da coleta, pesquisa e tratamento de dados e pesquisas sobre o uso e posse da terra” (PEREIRA, 2009, p. 26).

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É exatamente nesse ponto do advento das “novas etnias” que se insere a noção do que vem a ser entendido enquanto “remanescentes das comunidades dos quilombos”, tendo no componente étnico um de seus elementos diferenciadores.

2.2.2 O Conceito Contemporâneo de Quilombo

O artigo 68 do ADCT representa a volta de um termo utilizado na legislação anterior à Proclamação da República em 1889, sendo a primeira vez – conforme já mencionado no presente trabalho – que se aborda o termo em um texto legal após longo silêncio. O referido artigo 68 se configura enquanto “um comando constitucional dotado de imperatividade e detentor de normatividade” (SILVA, 1997, p. 60), cuja inserção no texto constitucional se relaciona à luta política de movimentos sociais, em especial os movimentos negros. Nesse sentido, a palavra quilombo é, assim, ressemantizada, a partir de três formas de resistência diferentes e relacionadas,

[...] sendo que a primeira, utilizada até as décadas de 1950 e 1960, é caracterizada pelo uso do termo como resistência cultural, na afirmação da construção de uma cultura negra no Brasil, oscilando, assim, entre uma interpretação histórica e uma interpretação antropológica. A segunda forma, que só seria empregada em fins dos anos 1950, é marcada pela relação do termo com a resistência política, o quilombo servindo de base para se pensar nas formas potencialmente revolucionárias de luta popular frente a ordem dominante. A terceira e última forma torna-se de fato sistemática quando usada pelo movimento negro, ao longo dos anos 1970; ela nomeia o quilombo como forma de resistência negra, unindo assim os aspectos culturais a uma perspectiva política (CARVALHO; LIMA, 2013, p. 336, grifo dos autores).

Tem-se, assim, com a promulgação da CRFB, mudanças no entendimento do que seja um quilombo, lançando o foco para a noção de remanescentes desses quilombos. Desvincula-se, portanto, a ideia de quilombo do conceito jurídico-formal “frigorificado” apresentado anteriormente nesse capítulo. Surge, então, o chamado conceito antropológico ou contemporâneo do termo, a partir do qual

[...] haveria um corte nos instrumentos conceituais necessários para se pensar a questão de quilombo, porquanto não se pode continuar a trabalhar com uma categoria histórica acrítica e com a definição fossilizada de 1740. Faz-se mister trabalhar com os deslocamentos ocorridos nesta definição e com o que de fato é, incluindo-se neste aspecto objetivo a representação dos agentes sociais envolvidos (ALMEIDA, 2011, p. 64).

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Cabe ressaltar a vinculação dos remanescentes das comunidades dos quilombos às chamadas “terras de uso comum”. Não apenas isso, mas a utilização do conceito antropológico de quilombo implica a possibilidade de se romper com o binômio fuga-resistência em sua acepção vinculada ao regime escravocrata que vigorou no Brasil. Não se tem mais um conceito estanque e congelado, ou mesmo algo necessariamente relacionado aos cinco elementos que o define historicamente.

No parecer elaborado pelo comitê sobre quilombos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), por conta da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239/200417, pode-se vislumbrar o que envolve pensar os

quilombos a partir de uma perspectiva antropológica, no qual consta que

[...] longe de investir [...] [em uma] noção de quilombo como formação social única, imutável e fixa no tempo, a noção sócio-antropológica está baseada na pesquisa das situações reconhecidas, in loco, que se apresentam como uma forma de organização social, diversa, multifacetada, dinâmica e persistente dos afrobrasileiros (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 2016, p. 337).

Dessa maneira, a formação e existência dos quilombos contemporâneos remete a situações diversificadas, como também pode ser percebido a partir da leitura do parecer da ABA ao STF:

[...] os quilombos contemporâneos se consolidaram a partir de grupos familiares extensos que suportam processo produtivo singular, que conduziram ao acamponesamento com o processo de desagregação das fazendas de algodão e cana de açúcar e também, da indústria saladeril no sul, e outras transformações econômicas que, nas diversas regiões do Brasil, introduziram uma diminuição do poder de coerção dos grandes proprietários territoriais. [...] A questão das chamadas terras de quilombos deve ser remetida à formalização jurídica das terras de uso comum, ou seja, domínios doados, entregues ou adquiridos, concessões feitas pelo Estado, áreas de apossamento ou doadas em retribuição aos serviços prestados, iniciativas que permitiram aos ex-escravos e seus descendentes, um lugar para viver e produzir, em moldes correlatos aos de sua terra natal ou mesmo como continuidade de sua vida rural no Brasil colonial. [...] Em algumas situações reconhecidas como “terras de preto” tais territórios compreendem, portanto as diversas modalidades decorrentes da reorganização da economia brasileira no período pós-escravista, onde, inclusive, não apenas os afrodescendentes estão envolvidos (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 2016, p. 338).

Somada à noção utilizada pelo legislador constitucional de “remanescentes das comunidades dos quilombos”, tem-se a reutilização do termo “quilombola” para designá-los –

17 A referida ADI será discutida no presente trabalho de conclusão de curso no Capítulo 3 – As regulamentações

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sendo ambos os termos utilizados contemporaneamente como sinônimos. Leite (2002, p. 19) salienta que a utilização do termo “quilombola” foi apropriada por militantes e intelectuais afrodescendentes durante a Assembleia Constituinte em 1987 e 1988.

Considerar os quilombolas em uma perspectiva antropológica implica, assim, no reconhecimento de comunidades com “práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio” (OLIVEIRA, 2016, p. 11). A noção de etnicidade acaba por ser fundamental ao se pensar antropologicamente os remanescentes das comunidades dos quilombos, uma vez que se tem no componente étnico uma marca diferencial para caracterizá-los. Sobre esse aspecto, O’Dwyer (2002, p. 14) ressalta que

[...] o fato de o pressuposto legal referir-se a um conjunto possível de indivíduos ou atores sociais organizados em conformidade com sua situação atual permite conceituá-los, numa perspectiva antropológica mais recente, como grupos étnicos que existem ou persistem ao longo da história como um “tipo organizacional”, segundo processos de exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de fora. Isso sem qualquer referência necessária à preservação de diferenças culturais herdadas que sejam facilmente identificáveis por qualquer observador externo, supostamente produzidas pela manutenção de um pretenso isolamento geográfico e/ou social ao longo do tempo.

Assim, “nos estudos antropológicos, as relações entre indivíduos e territórios são entendidas como usos sociais dos espaços acessados, bem como dos elementos materiais e imateriais que neles se encontram e circulam” (MURA; SILVA, 2015, p. 20). Em outras palavras, o componente étnico está associado à noção de alteridade – problemática que permeia a própria existência do fazer antropológico em todas as suas vertentes. Ela está fundada na dicotomia entre o “nós” e os “outros” e acaba por marcar os critérios de pertença dos grupos étnicos (O’DWYER, 2002, p. 15).

Tratam-se de discussões essenciais da antropologia ao se produzir um laudo pericial em antropologia. Essas noções acabam por adentrar o mundo jurídico, uma vez que a produção dos chamados laudos antropológicos faz parte do procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos – a ser discutido no próximo capítulo do presente trabalho.

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3 AS REGULAMENTAÇÕES DO ARTIGO 68 DO ADCT NA ESFERA FEDERAL

Considerando-se o artigo 68 do ADCT, o presente capítulo busca discutir as regulamentações na esfera federal18 dessa norma constitucional – de forma a discorrer sobre os

procedimentos administrativos19 da identificação à titulação das terras quilombolas, bem como

a ADI n. 3239 (a qual versa sobre a impugnação do Decreto n. 4887/2003). A respeito do supracitado artigo do ADCT, deve-se mencionar que se trata de norma ora entendida como de eficácia limitada ou reduzida, o que implica a necessidade de desenvolvimento normativo para que a norma produza os seus efeitos (MENDES; BRANCO, 2016, p. 70); ora como de eficácia plena, as quais “podem disciplinar de pronto as relações jurídicas, uma vez que contém todos os elementos necessários” (MENDES; BRANCO, 2016, p. 69). Em outras palavras, há compreensões tanto que afirmam que, para satisfazer seus efeitos básicos, deve ser editado norma que o regulamente (seja a cargo do Poder Executivo, seja do Poder Legislativo), como aquelas que todos os seus elementos já estão dados de pronto na própria norma.

Cabe ressaltar que entre a promulgação da CRFB e a primeira regulamentação federal do artigo 68 do ADCT se passaram 8 anos, com a publicação da Portaria n. 307 do INCRA20, em 22 de novembro de 1995. Essa portaria era bastante sucinta, apenas incumbindo

ao INCRA

[...] determinar que as comunidades remanescentes de quilombos, como tais caracterizadas, insertas em áreas públicas federais, arrecadadas ou obtidas por processo de desapropriação, sob a jurisdição do INCRA, tenham suas áreas medidas e demarcadas, bem como tituladas, mediante a concessão de título de reconhecimento, com cláusula ‘pro indiviso’, na forma do que sugere o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal (BRASIL, 1995).

18 De acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo (Organização Não Governamental fundada em 1978 por um

grupo de antropólogos, advogados, médicos, jornalistas e estudantes a fim de defender os direitos dos povos indígenas frente às ameaças do regime político vigente no país naquela época), há comunidades quilombolas em 24 estados brasileiros, sendo que 21 deles possuem legislações que versem sobre populações quilombolas: Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins. Ao total, são 212 normas estaduais, dentre Constituições estaduais, leis, decretos, instruções normativas, portarias e resoluções. Algumas são específicas para as populações quilombolas, outras eles constam como um dentre outros beneficiários (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO, 2018a).

19 Celso Antônio Bandeira de Mello salienta que há divergência entre os termos processo e procedimento, no

entanto as leis costumam usar indiferentemente ambos os termos. Salienta-se, portanto, que no presente trabalho os termos são utilizados como sinônimos, apesar de o termo mais comum no Direito Administrativo ser procedimento (MELLO, 2017, p. 496).

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Essa regulamentação previa desapropriações, porém isso nunca ocorreu (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO, 2018b). Em 1999, o governo federal – através da Medida Provisória n. 1911 de 25 de novembro de 1999 – transfere a competência do INCRA para o Ministério da Cultura, o qual fica incumbido do “cumprimento do disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” (BRASIL, 1999). A grande diferença entre a primeira normativa e a segunda é que se retira a possibilidade de desapropriação.

A publicação pelo governo federal de um processo administrativo para regulamentação de terras aos quilombolas ocorreu 13 anos após a promulgação da CRFB, com a publicação do Decreto n. 3912 em 10 de setembro de 2001 (ocorrido no segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso). Esse decreto “regulamenta as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas” (BRASIL, 2001). O referido documento legal foi revogado com a publicação do Decreto n. 4887, do dia 20 de novembro de 2003, durante o primeiro mandato do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Esse novo decreto, por sua vez, “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” (BRASIL, 2003).

Deve-se asseverar, ao mesmo tempo, que o artigo 68 do ADCT – embora seja o artigo vinculado ao acesso à terra das comunidades quilombolas – não é o único dispositivo legal contido na CRFB que toca os remanescentes, podendo-se citar também o artigo 215 (disposto no Título VIII – “Da Ordem Social”, Capítulo III, “Da Educação, Da Cultura e Do Desporto”, Seção II, “Da Cultura”) e seus respectivos parágrafos e incisos:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

II – produção, promoção e difusão de bens culturais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

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IV – democratização do acesso aos bens de cultura; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

V – valorização da diversidade étnica e regional (BRASIL, 1988).

Soma-se também à discussão, o artigo 216, constante no mesmo título, capítulo e seção da CRFB:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (BRASIL, 1988).

Ou seja, além de uma disposição constitucional que versa sobre o acesso à terra aos remanescentes das comunidades dos quilombos, há outras normativas na CRFB que buscam garantir direitos e valorizar as manifestações artístico-culturais dos quilombolas. Sobre esse ponto da CRFB, pode-se afirmar sem dúvidas

[...] de que esta seção destinada a tratar da cultura revela nova compreensão acerca do tema, tomando a expressão cultura não mais em sua acepção meramente folclórica, monumental, arquitetônica e/ou arqueológica – nota dos textos constitucionais pretéritos – mas o conjunto de valores, representações e regulações de vida que orientam os diversos grupos sociais, numa visão que não se remete mais ao passado, mas, ao contrário, se orienta e se renova no presente (DUPRAT, 2007, p. 34).

Tem-se, assim, nova acepção constitucional sobre o tema cultura21, a qual – por sua

vez – relaciona-se, dentre outros aspectos, à temática dos quilombolas. Tratam-se, portanto, de

21 É importante salientar que se entende cultura no presente trabalho de conclusão de curso, do ponto de vista

antropológico, a partir do conceito do antropólogo estadunidense Clifford Geertz (1926 – 2006). Para esse autor, a cultura “consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidos” (GEERTZ, 1989, p. 23). Ou seja, seriam os “sistemas entrelaçados de signos interpretáveis; [...] [de modo que] a cultura não é um poder, algo ao

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normas constitucionais que ultrapassam o acesso à terra, englobando também os aspectos simbólicos inseridos no domínio cultural: é o reconhecimento de um estado nacional pluriétnico.

No que concerne às regulamentações do artigo 68 do ADCT em si, embora o Decreto n. 3912/2001 tenha sido revogado, é fundamental discuti-lo no presente trabalho, a fim de se compreender os diferentes procedimentos de regulamentação já criados. Ademais, salienta-se que as críticas referentes ao primeiro decreto foram levadas em consideração para a publicação do Decreto n. 4887/2003.

O segundo decreto representa uma mudança de paradigma ao se pensar as terras quilombolas. O procedimento administrativo da identificação à titulação dessas terras se tornou mais complexo (no sentido de envolver mais instituições públicas) e passou a se basear também em legislações internacionais das quais o Brasil é signatário. Ainda referente a esse decreto, deve-se citar a ADI n. 3239/2004, cuja decisão foi publicada em 8 de fevereiro de 2018 e a qual permite discorrer a respeito do Decreto n. 4887/2003 e suas implicações.

3.1 O PROCEDIMENTO NO DECRETO N. 3912/200122

O Decreto n. 3912/2001– já em seu artigo 1º – confere à Fundação Cultural Palmares23 (FCP) a competência tanto para iniciar quanto para concluir o procedimento

administrativo que envolve os remanescentes das comunidades dos quilombos, o qual começa com a identificação das comunidades e culmina com a titulação e registro imobiliário das terras ocupadas. Além disso, consta no artigo 1º, parágrafo único, o seguinte:

[...]

Para efeito do disposto no caput, somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que:

I – eram ocupadas por quilombos em 1888; e

II – estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988 (BRASIL, 2001).

qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 1989, p. 24).

22 O Decreto n. 3912/2001 consta completo no Anexo B do presente trabalho de conclusão de curso.

23 Instituição pública fundada no dia 22 de agosto de 1988 e dedicada à promoção e preservação da arte e da cultura

(31)

Esse dispositivo citado representa o ponto mais polêmico do Decreto n. 3912/2001, o qual é criticado na esfera judicial, sobretudo, por membros do Ministério Público Federal24

(MPF). Para Beckhausen (2007, p. 22), esse artigo deve ser analisado conjuntamente com o disposto na CRFB, em especial o artigo 68 do ADCT, já que consta expresso nele que os remanescentes das comunidades dos quilombos “estejam ocupando suas terras” (BRASIL, 1988). Essa expressão pode denotar, num primeiro momento, que seria possível interpretar que o “estar ocupando” se relaciona à noção de continuidade da comunidade quilombola com o território reivindicado. Ou seja, pressupõe-se que o legislador se preocupou em afirmar que quem não estiver no território pleiteado não tem direito. Beckhausen (2007, p. 22), no entanto, evidencia que essa interpretação é errônea. Para o autor, o legislador não poderia ter expressado isso, já que a ideia de “estar ocupando só pode ser mensurada se avaliada em conjunto com outros princípios constitucionais” e, em especial, com o fundamento da dignidade da pessoa humana (BECKHAUSEN, 2007, p. 22). Na mesma linha, Duprat (2007, p. 31) registra um erro material no artigo 1º, parágrafo único, inciso I, do Decreto n. 3912/2001, o que o tornaria inconstitucional. Para a autora, isso se deve ao fato de “referir-se ao ano de 1988 como data de ocupação de terras por quilombos, se como tal se pretende ter em conta a definição legal que remonta a 1740, por se tratar de situação que não mais se revela, quer no plano dos fatos, quer no plano do direito” (DUPRAT, 2007, p. 31). Além disso, a autora enfatiza que não há qualquer citação a marco temporal referente à ocupação do território no artigo 68 do ADCT, bem como a necessidade de haver relação entre a ocupação original e a atual (DUPRAT, 2007, p. 32).

Segundo Duprat (2007, p. 32), assegurar o direito constante no artigo 68 do ADCT envolve dois pontos chave: (1) a existência de comunidades remanescentes de quilombos; e (2) o acesso à terra a esses remanescentes pelo fato de sua existência enquanto quilombolas. Assim, conforme assevera a autora, há relação de complementariedade e de acessoriedade entre os dois pontos chave – “de tal forma que a compreensão de um decorre necessariamente do alcance do outro” (DUPRAT, 2007, p. 32). Assim, apenas esses dois fatos são necessários para que se garanta o comando constitucional na acepção da autora. Dessa forma, não se deve admitir que um decreto “numa visão unilateral, opere um reducionismo no conteúdo de sentido da norma” (DUPRAT, 2007, p. 32). Portanto, por se tratar de norma constitucional, nem via legislação

24 É importante salientar que o Ministério Público Federal atua em relação às comunidades quilombolas

(entendidas enquanto comunidades tradicionais), cuja área temática se insere na atuação da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (6CCR). A essa câmara “incumbe atuar nos feitos cíveis relativos à defesa dos direitos e interesses das populações indígenas e relacionados às comunidades tradicionais”, conforme preceitua a Resolução do Conselho Superior do Ministério Público Federal, n° 148, artigo 2°, § 6°, de 1º de abril de 2014 (BRASIL, 2014).

Referências

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