Lia Valls Pereira
Em 2008, o governo bra-sileiro lançou a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP). No capítulo sobre Destaques Estratégicos — temas de políticas públicas escolhidos em razão da im-portância para o desenvolvi-mento produtivo do país no longo prazo — constavam a integração produtiva com a América Latina e Caribe e com a Á f ric a. No a no seguinte, foram detalhadas as metas e iniciativas para a África.
Como meta, a manutenção e/ou aumento da participação da África nas exportações totais brasileiras em 5,1%. Ademais, foram definidas três ações acompanhadas de 20 medidas novas para sua execução. As ações foram: financiamento e promoção do investimento; promoção do comércio exterior; e co-operação e transferência de conhecimento.
A cooperação técnica é um instrumento que sempre foi utilizado pelos países ricos
em suas relações com os em desenvolvimento. Algumas críticas são comuns, como o uso da cooperação como forma de garantir mercado para exportações, imposição de padrões tecnológicos, en-tre outros. No entanto, para países carentes de recursos e conhecimento, pacotes bem desenhados de cooperação técnica tiveram e têm im-pactos importantes no seu desenvolvimento.
Em seminário promovido pelo Centro Brasileiro de
Re-Relações
Brasil-África:
cooperação técnica
e comércio
recer um pacote de políticas públicas que possa ser utiliza-do de forma autônoma pelos governos locais. Os projetos estruturantes são um exemplo dessa modalidade.
Existem quatro projetos estruturantes em operação na África, todos na área de cooperação agrícola. Ou-tro projeto que merece ser destacado são os programas de treinamento de mão de obra pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) que não se vinculam a nenhum projeto específico de investimento das empresas brasileiras. Aliás, o conti-nente é o principal receptor das verbas da ABC — 50%, seguido da América do Sul (23%) e América Central e Caribe (12%), em 2009. Verbas que representam ba-sicamente gastos com viagens e hospedagem dos técnicos brasileiros.
A importância conferida à cooperação é ilustrada pelo aumento do número de projetos que passou de 19 (2004) para 413 (2009). A agência também trabalha com cooperações triangulares. Alguns exemplos de coopera-ção são: Japan International Cooperation Agency (Jica); a Alemanha, por meio da Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (GTZ); e a Inglaterra, com o Department for International Development (DFID).
lações Internacionais (Cebri), em junho de 2010 (o vídeo do seminário está disponível no site www.cebri.org.br), discutiu-se a cooperação técnica do Brasil e da China na África. Uma das questões levantadas foi que a coopera-ção brasileira seria diferente da concedida pelos países do Norte e também da China. Seria uma cooperação que não está associada somente a interesses econômicos imedia-tos. O artigo está pautado nas exposições do seminário.
A atuação da ABC
O órgão responsável pela coordenação das ações de
cooperação é a Agência Bra-sileira de Cooperação (ABC) criada em 1987 e, desde 1996, integrada à Secretaria-Geral do Ministério de Relações Exteriores. No entanto, mi-nistérios e outras instâncias governamentais são atuantes na área de cooperação. A Fundação Oswaldo Cruz e a Embrapa realizam diversos acordos de cooperação com países africanos e latinos.
A ABC não transfere re-cursos financeiros para ou-tros países seja na forma de doações ou financiamentos. Atua organizando e apoian-do o envio de técnicos bra-sileiros para desenvolverem trabalhos locais. Não tem programas desenhados para os países. Trabalha em fun-ção da demanda que pode vir das embaixadas, órgãos do governo ou outra instância governamental do Brasil ou estrangeira.
O desempenho da ABC, no entanto, segue uma orienta-ção que lhe permite elaborar projetos de cooperação com perspectivas de sucesso. O projeto é elaborado a partir de missões de prospecção que visitam o local e trocam experiências com as comu-nidades. Logo, não é a mera replicação da experiência brasileira. Como país em de-senvolvimento, há mais ma-leabilidade para adaptar os instrumentos. Nesse sentido, o Brasil tem condições de
ofe-A cooperação
técnica é um
instrumento
que sempre foi
utilizado pelos
países ricos em
suas relações
com os em
desenvolvimento
A ABC não trata de me-canismos de cooperação in-ter-regionais. Nesse caso, a coordenação cabe ao Minis-tério das Relações Exteriores (MRE). O Departamento de Mecanismos Regionais do MRE abriga dois acordos que envolvem diretamente os países africanos — Fórum Índia, Brasil e África do Sul (Ibas) e a Cúpula América do Sul e África (ASA).
No âmbito do Ibas foi cria-do um funcria-do de cooperação com contribuições anuais de US$ 1 milhão de cada um dos países membros. O objetivo é a cooperação para projetos que possam ser replicados e sustentados pelas comuni-dades dos países receptores. Logo, a concepção básica é a disseminação das melhores práticas para o combate a fome e pobreza que os países possam incorporar em suas agendas de políticas públi-cas.
A gerência dos recursos fica a cargo da unidade Sul-Sul do Programa das Nações Unidas para o Desenvol-vimento (Pnud), em Nova York. Os projetos eleitos são demandas apresentadas dos países de menor desenvolvi-mento por meio dos governos do Brasil, Índia ou África do Sul. Já foram contemplados projetos para o Haiti, Guiné-Bissau, Burundi, Cabo Verde, Palestina, Camboja e Laos, por exemplo.1
Desenvolvimento); desen-volvimento de fábrica de medicamentos em Moçam-bique (Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz]); e fortalecer o Diálogo Ibas.
As medidas citadas se re-ferem apenas ao PDP, existe uma série de outras inicia-tivas. Um exemplo é o da Fiocruz. As atividades de cooperação na África come-çaram na década de 1990 nos países de língua portuguesa. Inicialmente, eram enviados tutores que auxiliavam na disseminação de recomenda-ções na área de saúde públi-ca. A partir de 2005, a Fio-cruz ampliou as suas ações e passou a apoiar projetos A ASA não tem funcionado
bem. Exige a coordenação dos 12 países sul-americanos com os 54 países africanos. Do lado da América do Sul, a coordenação cabe ao Brasil e da África, à Nigéria. Na prática, é a União Africana que está na liderança que projeta as suas demandas na cooperação.
Outras iniciativas
No PDP de 2009 foram lista-das nove medilista-das: fortalecer a estrutura metrológica afri-cana com o apoio do Institu-to Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade I ndust r ia l (I n met ro) e a ABC; transferir tecnologia institucional para promover desenvolvimento de compe-tências (Instituto Nacional de Propriedade Industrial [INPI]); fortalecer e auxiliar a criação de entidades afri-canas de apoio às pequenas empresas (Sebrae e ABC); promover projetos de coo-peração técnica, científica e de inovação (Ministério de Ciência e Tecnologia); transferir conhecimento em de senvolv i mento u rba no (Caixa Econômica Federal e ABC); implantar programa de internacionalização da Embrapa em parceria com instituições africanas; pro-por modelo de implantação de telecentros de informação e negócios (Ministério do
O tema da
cooperação para o
desenvolvimento é
facilitado quando
se observam
condições
similares nos
países africanos e
no Brasil
O aumento da
demanda por
cooperação
exigirá a
formação de
uma rede
articulada
de gestores
e técnicos
voltados para
essa atividade
estruturantes. O objetivo foi dar capacidade institucional para que cada país crie a sua própria governança e monte os seus sistemas de políticas públicas na área de saúde. Assim, foi criada a Escola de Saúde Pública, em Angola, e os institutos nacionais de saúde pública em Moçambi-que, Guiné-Bissau e Angola. Em 2008, foi inaugurado um Escritório de Cooperação da Fiocruz para a África em Maputo.
Outro exemplo é do Mi-nistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS). As principais deman-das são: programas de trans-ferência de renda (cadastro único), segurança alimentar/ nutricional, assistência social, avaliação dos programas e gestão da informação. Logo, as demandas estão relaciona-das com os programas que o ministério faz no Brasil.2
Uma cooperação
somente altruísta?
A China tem uma orienta-ção dirigista que parte de seus planos estratégicos. Nesse sentido a sua coope-ração é articulada a partir do governo central e tem ramificações com interesses estratégicos e econômicos, como é o caso da construção de estádios e edificações para governos africanos a custo zero. A cooperação brasilei ra at ua em á reas que não são diretamente relacionadas a interesses econômicos. Mas tanto os países desenvolvidos, como a China, podem reivindicar o mesmo. A presença do tema da cooperação no PDP mostra que esse é um dos instru mentos da política econômica brasileira.
A palestra do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães (então ministro - chefe da Secretaria de Assuntos Es-tratégicos do Brasil) resumiu a orientação brasileira no campo da cooperação na
África. Existem identidades culturais e laços históricos que unem o Brasil ao conti-nente africano. O Brasil tem interesses políticos relativos à formação de coali zões Sul-Sul nos organismos mul-tilaterais e, logo, alianças com os países africanos são bem-vindas. Há interesses econômicos na promoção do investimento das empre-sas brasileiras na região. O tema da cooperação para o desenvolvimento é facilitado quando se observam con-dições similares nos países africanos e no Brasil na questão da saúde, agricul-tura e redução da pobreza. Em adição, a importância da África na política externa brasileira pode ser mensura-da pelo número de embaixa-das abertas — em 2002, em 16 países; atualmente, 35. Segundo o diplomata, “só se abre embaixada em países onde há interesses mútuos políticos e comerciais”.
Benefícios e custos
Quanto custa a cooperação técnica brasileira? Não há recursos financeiros transfe-ridos diretamente, como na China, mas há gastos com pessoal, viagens e material. Ademais, a ausência de um plano estratégico faz parte da lista de preocupações dos técnicos brasileiros que fize-ram suas exposições no
se-minário do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
O mon itora mento dos projetos a partir da criação do Sistema de Informações de Acordos Internacionais (Siain) é um passo importante que poderá fornecer mate-rial para futuras avaliações. Quanto a esse último item, o Ministério das Relações Exteriores e o Instituto de Pesquisa Econômica e Apli-cada (Ipea) iniciaram um levantamento sobre as ações de cooperação realizadas pelos diversos organismos. É uma iniciativa que deve ser acompanhada.
O aumento da demanda por cooperação exigirá a formação de uma rede arti-culada de gestores e técnicos voltados para essa atividade. Dado os limites dos recursos será preciso definir priorida-des a partir da construção de uma agenda de coope-ração. A ausência de uma concepção dirigista faz com que a cooperação horizontal atenda a demandas pontuais, o que pode ser positivo. Os diversos órgãos preservam sua autonomia e podem de-senvolver modelos de atu-ação que melhor atendam às demandas apresentadas em cada área. Há risco, po-rém, de uma fragmentação das i n iciativas de forma que não sejam asseguradas continuidade, coerência e
A participação
da África nas
exportações
brasileiras
chegou a
5,7%, em
2009, e caiu
para 4,6%
de janeiro a
novembro de
2010
possibilidade de avaliação dos resultados.A motivação para este arti-go foi a citação da cooperação técnica no PDP. A participa-ção da África nas exportações brasileiras chegou a 5,7%, em 2009, e caiu para 4,6% (janeiro a novembro de 2010). O período de instabilidade política e conflitos generali-zados fazem parte do passado para a grande maioria dos países africanos. Os países ricos em recursos naturais apresentaram elevadas taxas de crescimento na primeira década do século 21 e as perspectivas são otimistas. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o cres-cimento esperado para esses países é de 6,4% e para os não intensivos em recursos de 5%, em 2011. Logo, o potencial do mercado africano é um ponto que não pode ser ignorado na agenda brasileira.
A agenda brasileira de coo-peração técnica não pode, en-tretanto, somente ser avaliada por possíveis ganhos econômi-cos comerciais. A atuação de técnicos nacionais e a formu-lação de programas em outros países é uma experiência que agrega conhecimento não só para os africanos como para os brasileiros.
Lia Valls Pereira é coordenadora do Centro de Estudos do Setor Externo do IBRE/FGV
1O Fundo Ibas recebeu em setembro de 2010, o prêmio Millennium Develop ment Goals em reconhecimento pelo seu papel na Cooperação SulSul. É um prêmio concedido por organizações não governamentais que monitoram o cumprimento das Metas do Milênio da ONU.
2O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) funciona como um instrumento de identificação e caracterização socio econômica das famílias brasileiras de baixa renda. É utilizado, obrigatoria mente, para a seleção de beneficiários e para integração de programas sociais do governo federal.