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NARRATIVA CONFESSIONAL: um exercício de autoconhecimento como ato político.

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Academic year: 2021

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NARRATIVA CONFESSIONAL: um exercício de autoconhecimento como ato político. Escrever uma narrativa confessional¹ é um exercício de autoconhecimento que potencializa a consciência de que esse é ato político cuja finalidade é compartilhar e promover valiosos encontros de histórias e experiências.

Escrito por: Iara Aparecida Silva de Oliveira

Geledés – Instituto da Mulher Negra: https://www.geledes.org.br/?s=narrativa+confessional

É elemento chave dessa narrativa a representação dos livros na história de duas gerações de mulheres negras. Para uma, eles (os livros) representaram o sonho não realizado; e para outra, a concretização da mudança de paradigma. Aqui os livros simbolizam o acesso negado e a chave que abre portas para o conhecimento. Os livros também representam comunicação e o acesso às gerações que ousam e ousaram questionar a história e a produção epistemológica dominante. Gerações que corajosamente alçaram e continuam alçando voos para a luta pela liberdade vislumbrando um novo horizonte em que negros e negras ocuparão massivamente todos os espaços que lhe proporcionem conhecimento, equidade e poder.

Portanto, o presente texto é um exercício do encontro da mulher negra com sua história, suas raízes. É um ato político de construção e contribuição para o futuro. Este é sim um ato de afirmação de identidade! Parece muito pretencioso querer falar de si, quando não se é uma personalidade pública, quando se tem uma história relativamente comum a tantas mulheres negras. No entanto, pensar na própria história é também um exercício de pensar a inserção das mulheres negras em uma sociedade patriarcal, racista e machista e em sua luta contra esse sistema de opressão que subjuga essas mulheres! É aprender investigando a própria vida e inserindo-a no contexto dessa sociedade.

É mediante essa perspectiva que muito tardiamente comecei a mergulhar no universo feminista negro e sinto um grande júbilo em gozar dessa descoberta, embora, sem conscientemente saber, esse tema tenha constituído a minha existência. Estamos vivendo novos tempos que nos torna ao mesmo tempo objeto e protagonista de uma relação simbiótica de opressão e resistência. Essa simbiose é a alavanca que impulsiona o nosso desejo, a nossa paixão e nossa ação para existir e resistir.

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Nesse cenário encontro como estratégia desenvolver o olhar sobre mim para que, só assim seja possível mergulhar nesse mundo que passei a enxergar diferente e compreender que o olhar é sobre nós.

Embora saiba que as nossas vivências e experiências transformam nosso olhar, continuo me indagando porque demorei tanto para desenvolver uma visão crítica sobre a minha negritude? A resposta para minha indagação busco na minha trajetória.

Fui criada somente por minha mãe guerreira, como tantas outras crianças. Estudei em escola pública e sempre fui uma boa aluna.

Certa vez minha mãe me contou que deixou de estudar porque não tinha dinheiro para comprar livros e que o seu professor disse que sem livro não dava para frequentar a aula. Pergunto-me sobre quem era esse professor e qual o legado que deixou em sua profissão? Nesta mesma conversa, minha mãe falou que sonhava em ser uma “doutora” e fazer a faculdade de Direito. Talvez pela sua história, pelo seu tempo, pela falta de incentivo, pelo lugar que era reservado à mulher negra na década de 70, minha mãe tenha chegado somente até a 7º série, hoje ensino fundamental.

Quando cheguei ao mundo ela tinha apenas 19 anos. Em seu parto no Amparo Maternal (local destinado às “mães solteiras” que tinham filha/os), depois de um parto fórceps muito difícil foi indagada pela enfermeira se gostaria de dar a sua filha, ao que minha mãe respondeu: “minha filha não é cachorro, tem mãe e vou cria-la”.

Tive uma infância feliz e de muito amor, não obstante as dificuldades das condições objetivas de vida as quais passamos. Minha mãe foi costureira, trançou cabelos, vendedora de revistas e plano de saúde, em uma solitária caminhada na busca por nossa sobrevivência.

Entre tantas boas lembranças, uma memória importante que tenho é a da estante de livros. Na década de 80 era comum vendedores de porta a porta, e foi dessa forma que minha mãe comprou enciclopédia, livros de inglês, dicionário, atlas, coleção de livros de histórias infantis, entre outros. Até Shakespeare tinha! Além de comprar ela não se furtava a receber doações de livros.

Ter uma estante de livros, em uma circunstância de pobreza e de baixa escolaridade me leva a crer que a frustração de ter deixado de ir à escola por não ter

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dinheiro para comprar livros simbolizava, para ela, o resgate de sua formação escolar/ profissional inacabada e tão sonhada. Era definitivamente um ato de resistência. Fiz muitos trabalhos escolares com livros adquiridos por minha mãe! Esta semente que ela plantou definiu meus caminhos e minhas escolhas.

Analisando minha infância e minha trajetória, compreendo que, embora minha mãe não tivesse conseguido concluir nem sequer o ensino fundamental, depositou em mim a esperança dos seus sonhos não realizados. Fazia um grande esforço para que eu tivesse um destino diferente. Colocou-me na melhor escola pública possível e apertava o parco orçamento para pagar a passagem de ônibus, além de me colocar em cursos que ajudassem na profissionalização. Vale ressaltar que nesta época as mulheres não tinham amparo legal para obrigar aos pais a registrarem seus filhos, portanto, não tenho o nome do meu pai e nunca recebi pensão de alimentos.

Nesta história é possível identificar as diversas violências cometidas contra a mulher negra, tais como: estigmatiza-la para ter bebês em hospital destinado às “mães solteiras” e cogitar a possibilidade de doação de uma criança; a ausência ainda hoje da responsabilidade paterna no que diz respeito aos cuidados e educação dos filhos; a violência do Estado quando limita o acesso à educação à condição econômica; entre tantas outras violências. Tal realidade vai se reconfigurando com o tempo e as violências tomando novas faces. Hoje já está pacificada pela lei, por exemplo, a obrigação do genitor indicado pela mulher a realizar exame de DNA e efetivar a paternidade legal e suas responsabilidades. Ainda que muitos não exerçam a paternidade afetiva, pelo menos, tem o dever legal de assumir a obrigação de ofertar alimentos. Contudo, as mulheres que são compelidas a assumirem sozinhas a maternidade continuam submetidas a julgamentos preconceituosos de uma sociedade notadamente machista, racista e patriarcal.

Voltando na esperança e no esforço depositado na minha educação, passei pela frustração de descobrir que ser uma boa aluna no ensino público não era suficiente. Com 15 anos era hora de trabalhar.

Esta passagem cabe uma reflexão! Até os dias de hoje a condição da/o estudante da periferia é trabalhar e estudar. A família necessita que essa/e adolescente seja capaz de auxiliar financeiramente em casa. Dessa forma, ingressar no ensino superior continua

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para muitos sendo um sonho distante, e quando possível é permeado de muito esforço, diferente daqueles que tem o privilégio de dedicar-se exclusivamente aos estudos. Contudo, atualmente saudamos a importante conquista das cotas raciais, seus efeitos benéficos na inserção da/o negra/o na Universidade e os avanços sociais e políticos que essa ação afirmativa tem proporcionado.

Pois bem, embora nunca tenha parado de estudar ou deixado de tentar, naquele momento, o que eu tinha aprendido estava aquém das exigências para passar em uma faculdade pública. Percebi que não tinha aprendido o suficiente para concorrer com o privilégio de quem estudou em bons colégios.

Tal circunstância desafia a nossa autoestima e parece nos jogar no abismo do conformismo. Mas não podemos aceitar o lugar a que fomos historicamente destinada/os e não é opção deixarmos de vislumbrar nossos sonhos.

Em casa vivia o ambiente de uma família negra recebendo a influência da cultura negra. Contudo, essa influência ainda não tinha expressão política para mim, pois aquele, na minha percepção, não era em um espaço questionador e crítico. Não me lembro de diálogos dentro do ambiente familiar que se referissem à opressão sofrida pelos negros. Imagino que a ausência desse diálogo fosse uma realidade muito comum nas famílias negras, já que sabemos que os mitos da miscigenação e da democracia racial, muito contribuíram para que a nossa identidade fosse apagada e nossas vozes fossem neutralizadas. Essa condição, muito provavelmente, afastavam as famílias negras da oportunidade do encontro com as militâncias negras e de construir um ambiente que permitissem o enfrentamento do racismo estrutural ao qual fomos e somos subjugada/os.

Em uma recente conversa com um tio, quis saber um pouquinho da nossa ancestralidade e ele me disse que o bisavô dele era branco e que, portanto, somos também descendentes de italianos, essa foi a única referência que ele considerou relevante sobre a história da nossa família. Problematizar essa questão com ele foi muito difícil, já que falou sobre sua ascendência branca com certo orgulho, mesmo sendo um negro retinto, e não sabendo em que condições ocorreram essa miscigenação. Tal diálogo me reportou à leitura do livro Olhares Negros: raça e representação de bell hooks que problematiza que “aprendemos a achar bonito aquilo que é o nosso oposto,

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pois projetamos no outro aquilo que negamos em nós mesmos”. Fomos ensinada/os a nos sentirmos inferiores e aprendemos que a referência de beleza é o padrão eurocêntrico.

Ainda sobre as influências das raízes negras em minhas raízes negras, passei por uma fase em que rechacei a minha cultura negra, pois não gostava dos sambas e músicas que minha mãe ouvia. Destilei preconceito sobre as religiões de matriz africana, ou seja, passei por um período de negação da minha identidade.

Contudo, raiz é raiz, não se deixa de ser mulher, negra e periférica. A cultura está no sangue, temos a marca da opressão, da falta e do precário acesso à educação, à moradia, ao lazer, ao esporte, sentimos toda ordem de expropriação. Então, nesse despertar nos encontramos.

Além da música, mudei o meu modo de ser, de me comportar, as minhas referências, os meus desejos e as minhas preferências agora pautadas na minha identidade racial.

Com o surgimento de um novo olhar sobre o nosso ser e estar social é que refletimos sobre a oportunidade do encontro crítico com a nossa negritude. Apesar de gostar de hip-hop e ser fã de Racionais, não havia desenvolvido a capacidade crítica sobre a questão racial e hoje, quando revisito suas músicas, entendo o que eles diziam e o quanto as suas letras, embora tivessem um recorte machista, depois de tantos anos, ainda estão na vanguarda da cena musical e retratam tão bem o sistema de opressão que continuamos vivendo. A despeito de não ter militado na pauta racial e não ter conhecido o feminismo negro na adolescência, o trânsito pela cena cultural negra deixou raízes, cujos frutos sempre florescem.

As nossas conquistas prenunciam que além das vitórias individuais somos também chamadas às lutas coletivas. A caminhada é longa e os espaços institucionais e acadêmicos são campos de luta e disputas cuja ordem do dia é subverter a lógica.

Estamos num momento revolucionário. Não obstante o infeliz retrocesso no cenário político atual, podemos presenciar um avanço crítico, que vem sendo construído desde há muito tempo, por uma militância aguerrida. Somos beneficiada/os pela experiência e conhecimento acumulados de tantas irmãs e irmãos negros brilhantes.

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Estamos em um grande tempo de possibilidades e oportunidades de luta e transformação!

Somos frutos de gerações que não tiveram acesso à escola e que em um círculo vicioso vimos reproduzindo as condições objetivas de vida de nossos ancestrais, num clássico exemplo de racismo estrutural, cujo sistema de opressão usurpa dos negros e das negras a chance de alcançar posição de poder e, por conseguinte os mantêm subordinados à baixa escolaridade e à pobreza. Neste sentido, em referência às cotas raciais, há quem argumente que é uma forma de privilégio para negras e negros ou que se trata de discriminação contra brancos pobres, por exemplo. Contudo, estamos falando de política compensatória e de reparação para tantas pessoas que como tanta/os de nós, remam contra a maré e encontram correntezas revoltas que tentam minar nossos anseios por oportunidade de escolaridade, empregabilidade e livres de opressão.

Podemos nos perguntar por que contar uma história que é comum a tantas famílias negras? Sou a primeira pessoa da família que concluiu o nível superior e plantei a semente para a mudança desse paradigma. Hoje trago outra perspectiva de vida e história para a minha filha.

A caminhada é longa! O sentimento de incapacidade, de inferioridade e de ter aprendido que aquele lugar é suficiente ainda pululam a realidade de meus familiares, pois num Estado cuja estrutura é racista essa lógica prevalece. Mas neste cenário não me furto de problematizar o racismo e hoje, diferente do que foi na minha adolescência, essa temática está fortemente presente nos diálogos da família.

Cotidianamente são publicados indicadores dos mais diversos institutos de pesquisas cuja conclusão aponta que negros (pretos e pardos) morrem mais, tem menos escolaridade, tem menos emprego, as mulheres negras ganham menos e sofrem mais violência. Enfim, nos dados e na prática a população negra brasileira está mais vulnerável às mazelas dessa sociedade reprodutora de desigualdades cuja maioria pobre é negra porque estamos enredados em um país racista no qual as oportunidades não são as mesmas.

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Para concluir, reafirmo que o encontro com os livros e a leitura da/os intelectuais negra/os, são ao mesmo tempo um alento e uma estratégia de resistência. Além de indicar o quão é importante compreender a nossa história, permitem criar capacidade crítica para questionar o lugar que nos foi imposto nesta sociedade; possibilita compartilhar afetos e experiências; fornecem instrumentos e estratégias para penetrarmos nas estruturas e ocuparmos posições de poder político e econômico. Todo esse arcabouço de informação e acesso ao conhecimento nos oportuna pautarmos temáticas transversais sobre gênero, raça, política, economia, meio ambiente, genocídio negro, encarceramento em massa, violência doméstica contra mulher, contra crianças; e tantas outras temáticas que afetam nossas vidas negras!!!

Lutando e somando forças somos mais potentes para penetrarmos nas estruturas!

O aprendizado é permanente e conhecimento é poder!

¹ Narrativa confessional é um termo usado por bell hooks cujo significado se assemelha à narrativa autobiográfica e traz sua definição no livro “Olhares Negro: raça e representação”. p. 125

Referência

hooks, bell. Olhares Negros: raça e representação. Tradução Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

Referências

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