O Problema de Dois Corpos:
Aplicac~oes Pouco Discutidas nos Cursos de Mec^anica
Ro drigo Dias Tarsia
Observatorio Astron^omico
Departamento de Fsica, ICEx - UFMG Caixa Postal 702, 30161 - 970 - Belo Horizonte Trabalho recebido em 29 de marco de 1997
Neste artigo discute-se o problema de dois corpos perturbado pela presenca de uma ter- ceira partcula, supondo existir a interac~ao gravitacional mutua entre elas. O formalismo matematico simples e aplicado numa discuss~ao semiquantitativa de alguns casos tais como estabilidade de satelites e mares oce^anicas.
1. Introduc~ao
O problema de dois corpos tem import^ancia funda- mental em Fsica, sendo estudado em todos os textos de Mec^anica. Entretanto ele e sempre tratado com as duas partculas isoladas do resto do Universo, hipotese usada para colocar em evid^encia as caractersticas prin- cipais do movimento. O caso geral e aquele em que cada uma das partculas sofre ac~ao de uma forca re- sultante externa ao sistema. Dependendo desta forca o problema pode se tornar complicado, passando a ser didaticamente desinteressante. Neste artigo apresenta- mos algumas aplicac~oes do caso geral, supondo existir a interac~ao gravitacional mutua entre as partculas e entre elas e uma terceira. O formalismo matematico e simples e aplicavel a casos pouco discutidos nos livros de Mec^anica, mas que enriquecem o estudo do prob- lema.
2. O problema geral
Sejam tr^es partculas de massas m1, m2e m3, inter- agindo gravitacionalmente. Estamos interessados em descrever o movimento de m2em relac~ao a m1, na pre- senca de m3. As equac~oes de movimento de m1 e m2 em relac~ao a um referencial inercial com origem em um ponto O do espaco s~ao:
m1~r1= ~F21(i)+ ~F31(e) (1) m2~r2= ~F12(i)+ ~F32(e) (2)
em que osndices (i) e (e) s~ao usados para reforcar o que s~ao consideradas forcas internas e externas ao problema de dois corpos.
Seja agora a mudanca de coordenadas:
~R = m1~r1+ m2~r2 m1+ m2
~r21= ~r2,~r1 e as transformac~oes inversas:
~r1= ~R, m2 m1+ m2~r21
~r2= ~R + mm1+ m1 2~r21
em que ~R e o vetor-posic~ao do centro de massa do sis- tema (m1;m2) em relac~ao a O e ~r21, o vetor-posic~ao de m2 em relac~ao a m1.
Com essas express~oes e com a terceira lei de New- ton, ~F21(i) = ,~F12(i), as equac~oes (1) e (2) podem ser transformadas em:
(m1+ m2)~R = ~F31(e)+ ~F32(e) (3)
~r21= ~F12(i)+ ~F32(e) m2 , ~F31(e)
m1
!
(4)
com = m1m2
m1+ m2
A primeira equac~ao descreve o movimento do cen- tro de massa do sistema (m1;m2) em relac~ao a O; a segunda, o movimento de uma partcula de massa re- duzida em relac~ao a m1. Assim, o movimento da
partcula m2, visto por m1, e o mesmo que se m1 fosse xa e m2 tivesse massa .
Se as forcas que atuam sobre as partculas s~ao de origem gravitacional, a equac~ao acima ca escrita:
~r21=,G(m1+ m2)
r221 ^u21+ Gm3
^u32 r322 ,^u31
r231
(5) em que ^ujk e o vetor unitario na direc~ao e sentido de
~rjk. Esta equac~ao nos da a acelerac~ao de m2em relac~ao a m1. O primeiro termo e o do movimento kepleriano (descrito pelas leis de Kepler) de m2 em relac~ao a m1. O segundo termo, que chamaremos de acelerac~ao difer- encial, representa a inu^encia de m3sobre o movimento relativo de m2. Ele e a diferenca entre as acelerac~oes de m2 e m1, sob a ac~ao de m3. Normalmente n~ao con- siderado nos livros, e o responsavel pelas aplicac~oes a serem discutidas a seguir. Notemos que os casos de nosso interesse s~ao aqueles em que a acelerac~ao diferen- cial e pequena em relac~ao a kepleriana; caso contrario, o problema passa a ser de tr^es corpos.
3. O sistema Terra-Lua
A Lua descreve uma orbita kepleriana elptica em torno da Terra, cuja excentricidade e 0,055. O perodo do movimento e de 27,32 dias; a dist^ancia media da Lua a Terra e de cerca de 384000 km. O plano da orbita lunar faz um ^angulo de 5,1 graus com o da orbita da Terra em torno do Sol (a Eclptica). Tanto o Sol como os outros planetas inuenciam no movimento da Lua em relac~ao a Terra atraves do termo n~ao keple- riano da equac~ao (5), mas o Sol, por sua massa, e o que tem maior import^ancia. Calculemos ent~ao a acel- erac~ao diferencial para o caso de m3 ser o Sol. De- sprezando a inclinac~ao do plano orbital da Lua em relac~ao a Eclptica, podemos ver que o valor maximo deste termo ocorre com a Lua, a Terra e o Sol alinhados, quando ^u32=^u31. Nesse caso, r31= r = 1;496 1011 m (dist^ancia media Terra-Sol), r21= d = 3;84 108 m e r32= rd. Ent~ao:
ad= GM(rd)S2 ,GMS
r2 ' 2GMSd r3
pois d << r. Portanto, a inu^encia do Sol e inver- samente proporcional ao cubo da sua dist^ancia a Lua.
Assim a acelerac~ao diferencial (ad) pode ser consider- ada como o efeito de uma perturbac~ao ao movimento kepleriano puro. O valor desta acelerac~ao, em relac~ao
a produzida pela atrac~ao gravitacional da Terra sobre a Lua (ag) e dado por:
ad
ag = 2MS
(MT + ML)
d r
3='0;01
com ML=MT = 0;0123, MS = 1;99 1030 kg e MT = 5;98 1024kg.
Apesar de pequeno, este termo e facilmente men- suravel. Ent~ao, quando os tr^es corpos est~ao alinhados, o Sol tende a afastar a Lua da Terra e quando a direc~ao Terra-Lua faz um ^angulo reto com a direc~ao Terra-Sol, o efeito e o de aproximar a Lua da Terra. Em qualquer caso, o Sol modica a forma da orbita lunar em torno da Terra.
4. Limite de estabilidade
Um outro efeito da presenca da acelerac~ao diferen- cial e o fato de que passa a existir um limite para a estabilidade do movimento de m2 em relac~ao a m1, na presenca de m3. Com efeito, se d e a dist^ancia entre m1 e m2 e r a entre m3 e m1, a acelerac~ao diferencial maxima de m2, devida a presenca de m3e:
ad= Gm(r,d)32,Gm3 r2
Quando esta acelerac~ao se iguala a kepleriana, temos:
r3(2d,r) = m1+ m2
m3 (d,r)2d2
Esta equac~ao da a maior dist^ancia d a que m2 pode car de m1 de modo que ainda permaneca gravitando em torno de m1. Quando m2<< m1 e m1<< m3, ela se reduz a:
d =
m1 2m3
1=3
r
No caso do sistema Terra-Lua com a presenca do Sol, r = 1;7 109 m, valor que e 4,8 vezes a dist^ancia Terra - Lua. Logo a Lua e estavel em sua orbita em torno da Terra.
5. Mares oce^anicas
O mesmo formalismo pode ser aplicado para se ter uma explicac~ao simples sobre as mares oce^anicas. As forcas de mare ocorrem toda vez que um corpo de di- mens~ao nita se acelera como um todo sob ac~ao de uma forca que varia ao longo da dimens~ao deste corpo. De- vido ao fato da Terra n~ao ser innitamente pequena
em relac~ao as suas dist^ancias ao Sol e a Lua, as forcas de atrac~ao gravitacional desses corpos sobre os varios pontos da Terra n~ao s~ao iguais, resultando numa forca perturbadora que e func~ao da direc~ao e da dist^ancia entre esses pontos e o corpo perturbador.
Suponhamos a Terra solida e esferica, inteiramente coberta por uma camada de agua. A acelerac~ao de uma partcula de agua, devido a atrac~ao gravitacional da Terra e
g0= GMR2
em que M e R s~ao a massa e o raio da Terra. Com a pre- senca da Lua, a acelerac~ao diferencial desta partcula de agua, sera:
ad= Gmr2 ^ur,Gm a2 ^ua
em que m e a massa da Lua, e a, a dist^ancia Terra-Lua r a dist^ancia partcula - Lua. De acordo com a posic~ao da partcula de agua, r muda de valor e ^ur; de direc~ao.
O Ap^endice contem uma deduc~ao simples para a acel- erac~ao diferencial; por enquanto vamos procurar fazer a discuss~ao de modo mais intuitivo para que os efeitos fsicos quem mais claros. A Figura 1 mostra a Terra, a Lua e quatro pontos (A,B,C,D) do oceano.
No ponto A, a acelerac~ao diferencial vale ad= wa+ wt= Gm(a,R)2,Gm
a2 ' 2GmR a3
Como wa e maior que wt, ad tem sentido voltado para a Lua a acelerac~ao total da partcula em A
~a = ~g0+~ad
passa a ser menor que g0. No ponto B, teremos:
ad= wb+ wt= Gm(a + R)2 ,Gm
a2 '2GmR a3
e, como agora wte maior que wb, a acelerac~ao diferen- cial esta dirigida para fora da Terra. Assim, da mesma forma que em A, a acelerac~ao total em B e menor que go.
Nos pontos C e D, as acelerac~oes wce wd fazem um
^angulo obtuso com wt. Elas podem ser decompostas em duas componentes, uma paralela e oposta a wt e outra, perpendicular a esta, voltada para o centro da Terra. Dessa forma, em C e D, a acelerac~ao resultante torna-se maior que g0. Entre C e D, no trecho CAD, a acelerac~ao resultante esta dirigida para A e no trecho CBD, ela esta dirigida para B. O efeito total e ent~ao do oceano se precipitar, em uma metade da Terra, no sen- tido do ponto A, onde a Lua esta no z^enite, e na outra metade, para o ponto B, onde ela se encontra no nadir.
O involucro do oceano torna-se um elipsoide com o eixo maior apontado para a Lua. Proximo a A e B ocorrera a mare alta e em C e D, a mare baixa.
Com a rotac~ao da Terra, os pontos de mare alta e baixa se deslocam sobre a superfcie de nosso planeta.
Por isso, no intervalo de tempo entre duas passagens su- cessivas da Lua pelo meridiano de um local (em media, igual a 24 horas e 52 minutos), os pontos de mare alta d~ao uma volta em torno da Terra e, durante este inter- valo de tempo, havera duas mares altas e duas baixas.
As mares produzidas pelo Sol s~ao semelhantes as da Lua, mas como a raz~ao entre as acelerac~oes devidas a Lua e ao Sol e:
Mm
RS
RL
3
'2;2
a forca da mare solar e 2,2 vezes mais fraca que a da lunar.
Durante as luas Nova e Cheia, os uxos de mare solar e lunar comecam simult^aneamente e observa-se a mare alta maxima; nos quartos Crescente e Minguante da Lua, nos momentos da mare alta lunar tem lugar a mare baixa solar e observa-se a mare mnima. Deve-se notar que, na realidade o fen^omeno das mares e mais complicado que o esquema simples apresentado acima;
provavelmente o efeito mais importante n~ao discutido, e o de que os oceanos est~ao sujeitos a oscilac~oes natu- rais. Alem disso, a Terra n~ao esta coberta totalmente
pelas aguas; a onda de mare encontra formas de litoral diferentes e complexas, bem como fundos de mar difer- entes. Isso produz atrito e em consequ^encia, o maximo de mare em um ponto da Terra, n~ao coincide com o momento de culminac~ao da Lua neste ponto, podendo haver atrasos de ate 6 horas. Da mesma forma, a altura da mare n~ao e a mesma em todos os lugares.
6. Limite de Roche
Em 1880, Edouard Roche mostrou que se um satelite se aproximar de um planeta alem de uma dist^ancia mnima, forcas de mare podem destru-lo.
Embora a determinac~ao rigorosa desta dist^ancia seja complicada, o formalismo descrito e aplicado acima pode ser usado para termos uma boa aproximac~ao.
Seja um satelite de massa m e raio r, orbitando em torno de um planeta de massa M >> m, a uma dist^ancia d. A acelerac~ao gravitacional produzida pelo planeta sobre o satelite, e GM=d2. A acelerac~ao difer- encial que atua em um ponto da superfcie do satelite, sobre a linha que une os centros do planeta e do satelite, e dada por:
ad= GM(dr)2 ,GM
d2 ' 2Gmr d3 A acelerac~ao angular do centro do satelite e:
! =
GM
d3
1=2
e a acelerac~ao diferencial centrpeta entre a superfcie do satelite e seu centro e:
a1= w2(dr),w2d = w2r = Gmrd3
Para que o satelite n~ao se fragmente e necessario que a combinac~ao a1+ ad seja igual a acelerac~ao auto- gravitacional do satelite, Gm=r2, o que da:
d =
3M m
1=3
r
A dist^ancia d e a menor dist^ancia que o satelite pode car do planeta sem ser destruido pelos efeitos de mare.
Em termos de densidades, d =
3M
m
1=3
R'1;44
M
m
1=3
R
em que M e m s~ao as densidades volumetricas do planeta e do satelite e R, o raio do planeta.
Os calculos completos resultam em que, para corpos solidos ou gelo, de raio maior que 20 km, o coecien- te numerico da equac~ao acima e 1,38; para um corpo caindo diretamente sobre um planeta, o coeciente e 1,19. Para o sistema Terra-Lua, d'2;9 RT = 18500 km. Devemos notar que os satelites do sistema solar est~ao alem do limite de Roche; ja os aneis de Saturno, que se localizam entre 80000 Km e 136000 km do centro do planeta, o limite de Roche e 150000 km. O mesmo acontece com os aneis de Jupiter, Urano e Netuno.
Ap^endice
A Figura 2 mostra o ponto P do oceano sujeito a forca de atrac~ao gravitacional da Terra e da Lua.
A acelerac~ao de P, devido a atrac~ao gravitacional da Terra e:
g0= GMR2T
A acelerac~ao diferencial a que esta sujeito P e
~ad= ~f,~gL= Gmr2 ^ur,Gm R2 ^ux
em que M e a massa da Terra e m, a da Lua.
Como r2= R2+ R2T,2RRTcos, o segundo termo da acelerac~ao diferencial ca:
~f =GM R2
^ur
1,2(RT=R)cos + (RT=R)2 Como tambem (RT=R) << 1 a express~ao acima pode ser desenvolvida e, em primeira ordem em (RT=R), temos:
~f =GM R2
f1 + 2(RT=R)cosg^u1g Tambem em primeira ordem,
sen '(RT=R)sen ; cos '1
Com isso, a express~ao da acelerac~ao diferencial do ponto P ca:
~ad=
GMRT
R3
(2cos ^ux,sen ^uy) e a acelerac~ao total do ponto P e:
~ge= ~g0+~ad
A acelerac~ao diferencial e maxima para = 0, com direc~ao e sentido para Lua, havendo ent~ao uma diminuic~ao de ~ge no ponto sub-lunar (em que nosso satelite esta no z^enite). Quando = =2 (na direc~ao perpendicular a da Lua), a acelerac~ao diferencial e
mnima e aponta para o centro da Terra; a acelerac~ao total e maxima. Entre esses dois pontos, ~ge n~ao tem a direc~ao do centro da Terra; como a agua n~ao su- porta forcas tangenciais, o envelope aquoso se distorce de modo tal que ~geseja normal a supercie da agua. A massa oce^anica tende ent~ao a se deslocar para as regi~oes da Terra situadas ao longo da reta que une os centros da Terra e da Lua, em ambos os lados da Terra.
Bibliograa
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