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Processo

3931/16.2T8MTS.P1.S4

Data do documento 13 de abril de 2021

Relator José Rainho

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL

Acórdão

DESCRITORES

Casamento > Regime de comunhão de adquiridos > Bens próprios > Doação > Interpretação da vontade > Acórdão uniformizador de jurisprudência

SUMÁRIO

I - Visando a ação o reconhecimento de que certos bens, porque lhe foram doados ou adquiridos com valores doados, são próprios da mulher e não comuns do casal, incorre em nulidade o acórdão que, mesmo que a título subsidiário, equaciona o direito aos bens à luz do enriquecimento sem causa.

II - Tendo corrido procedimento cautelar que foi indeferido e ação em que foi julgado caduco o direito da mulher à anulação de venda feita pelo marido, o assim decidido não vale como autoridade de caso julgado que se imponha na ação onde a mulher pede o que consta do ponto I.

III - O pagamento, satisfeito pela mãe da mulher ao vendedor, do preço da aquisição de um imóvel para morada da filha, marido e filhos, e a transferência de dinheiro a que a mãe da mulher procedeu para uma conta bancária do casal, não são comportamentos que, só por si, levariam uma pessoa normal, colocada na posição do marido, a supor que tais dádivas estavam a ser feitas aos dois membros do casal.

IV - Sendo a mulher filha da doadora e não ocorrendo qualquer razão particular para que a doadora contemplasse pessoalmente o genro, o sentido que uma pessoa normal – de quem se pressupõe que seja razoável, honesta, esclarecida, zelosa, sagaz e experiente – colocada na situação concreta em que se encontrava o marido, deduziria daqueles dois atos da sogra só poderia ser que esta estava a fazer uma doação à filha, embora com natural e amplo proveito e disfrute para a pessoa do genro.

V - No limite, o mais que se poderá dizer é que se está perante um comportamento equívoco ou ambíguo da doadora, sendo a dúvida resolvida no sentido menos gravoso para a disponente, e esse é o que afasta a doadora da contração de qualquer obrigação contratual perante o genro.

VI - Tendo tal liberalidade sido deferida apenas à mulher, que era casada no regime de comunhão de adquiridos, segue-se que os bens respetivos foram integrar o acervo próprio da mulher, e não o acervo comum; e aquilo que foi adquirido à custa da doação conserva a qualidade de bem próprio.

VII - Dentro do critério adotado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 02-07-2017 (AUJ n.º 12/2015), é de entender que a circunstância de não constar dos documentos de aquisição ou de documento equivalente, que os valores usados para o efeito eram da mulher, não colide com a conclusão

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de que aquilo que foi adquirido conserva a qualidade de bens próprios, podendo a prova dessa aquisição ser feita por qualquer meio.

VIII - A perda de benefícios a que alude o art. 1791.º do CC opera ipso jure, independentemente, pois, de qualquer declaração de revogação por parte do autor da liberalidade, mas isso não significa que se está perante uma norma imperativa que o tribunal deva fazer valer entre os ex-cônjuges.

IX - A haver litígio sobre a perda de benefícios recebidos de terceiro na pendência do casamento, tal só poderá ser dirimido no confronto do doador, e não em ação em que as partes são apenas os ex-cônjuges.

TEXTO INTEGRAL

Processo n.º 3931/16.2T8MTS.P1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação ………..

+

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA demandou, pelo Juízo Local Cível ……… (transitando depois o processo para o Juízo Central Cível ……..) e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, BB, peticionando que fosse declarado que a moradia que identifica, o respetivo recheio, o veículo automóvel que também identifica e o montante pecuniário que de igual forma identifica, não fazem parte da comunhão de bens do casamento da Autora e Réu, devendo ser considerados bens próprios da Autora, condenando-se o Réu a reconhecê-lo como tal e determinando-se os respetivos registos.

Alegou para o efeito, em síntese, que:

- Casou com o Réu sob o regime supletivo da comunhão de adquiridos;

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- A mãe da Autora foi contemplada com um prémio monetário do sorteio Joker;

- A mãe da Autora decidiu então ofertar à filha o valor do custo da aquisição da moradia em causa, pois que foi ela, mãe, quem suportou, em benefício exclusivo da filha, o preço respetivo (€400.000,00);

- A mãe doou-lhe ainda, e em exclusivo, a quantia de €500.000,00;

- Parte deste dinheiro foi depois usado para remodelar e decorar a moradia, bem como para adquirir os bens que compõem o seu recheio; outra parte foi usada para adquirir o veículo automóvel em questão; a parte remanescente foi aplicada em produtos financeiros junto de um banco;

- Ocorreu entretanto a separação do casal;

- No decurso da separação o Réu procedeu, abusivamente, à venda do veículo automóvel;

- Deste modo, conclui, a moradia, o recheio, o veículo e os montantes aplicados no banco pertencem em exclusivo à Autora, e não também ao Réu, porquanto foram adquiridos à custa de doações feitas exclusivamente à Autora, limitando-se o Réu a sair beneficiado pelo facto de ser casado com a Autora.

Contestou o Réu, concluindo pela improcedência da ação.

Disse, em síntese, que as ofertas em causa foram feitas ao casal, que foi essa a vontade e intenção da mãe da Autora, e não apenas à Autora, razão pela qual os bens em igualmente causa, adquiridos pelo casal durante o casamento, integram a comunhão conjugal.

Seguindo o processo seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente.

Inconformada com o assim decidido, apelou a Autora.

Fê-lo com parcial êxito, pois que a Relação ……. decidiu o seguinte:

“a) a moradia sita no prédio urbano localizado na Rua ……., nºs …. e ….., fracção autónoma …., composta por habitação na cave, rés-do-chão e 1º andar, com a descrição predial ……. e artigo matricial ……, da freguesia …….., ………,

b) o respectivo recheio,

c) o valor da venda do automóvel da marca …….. e com matrícula ….-ML-….,

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d) os montantes identificados (na petição) transferidos pela mãe para a conta bancária do Banco Santander Totta, S.A., sejam excluídos da comunhão, devendo ser considerados bens próprios da A., condenando-se o R. a reconhecê-lo como tal e determinando-se o respectivo registo quanto à fracção referida em a).”

+

É agora a vez do Réu, insatisfeito com o decidido, pedir revista.

Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos, estão em causa quantias em dinheiro, mais exatamente 500.000 euros e 400.000 euros.

2. Tais quantias em dinheiro tiveram origem na mãe da Autora e então sogra do Réu, passando para a titularidade da Autora e do Réu por via de atos que configuram doações.

3. Essas doações em dinheiro foram feitas a favor de duas pessoas conjuntamente: a Autora e o Réu, casados entre si na comunhão de adquiridos.

4. Se a doadora nada revelou em contrário, os valores assim doados ingressaram na comunhão conjugal dos donatários, Autora e Réu.

5. Nessa conformidade, são comuns os bens adquiridos com as forças desse dinheiro comum: a moradia objeto dos autos e o respetivo recheio, bem assim a viatura automóvel acima identificada.

6. São também comuns as aplicações financeiras realizadas com as forças desse dinheiro comum.

7. Sendo a doação um contrato, a interpretação das declarações negociais está sujeita ao comando do art.

236º do CC, devendo fazer-se segundo um critério objetivo, assente na impressão do declaratário normal.

8. Face ao modo como foi instaurada, a presente ação deveria ter sido julgada improcedente no despacho saneador, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 595º do CPC, pois que estavam reunidas condições para tal.

9. Tanto assim que toda a demais atividade probatória desenvolvida foi inútil e irrelevante, já que, face ao termos em que a questão foi colocada, jamais seria possível ao Tribunal concluir em sentido diverso do acima referido, isto é, que as doações de dinheiro foram feitas a favor da Autora e do Réu conjuntamente, tendo ingressado no património conjugal.

10. As alterações aos “factos provados” operadas pelo acórdão recorrido são, a um tempo, inócuas para o

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desfecho da lide e, a outro, violadoras de disposição substantiva.

11. Concretamente, o aditamento do nº 25 dos “factos provados” implicou a violação do disposto no nº 1 do art. 236º do CC, já que foi desconsiderado o critério legal acerca da interpretação das declarações negociais, tendo a Relação raciocinado segundo um critério subjetivo de interpretação, enfatizando o depoimento testemunhal da doadora e supondo que poderia decidir em função do pretenso intuito daquela aquando das doações documentadas nos autos.

12. Acresce que, em contrapartida, nada foi alegado, menos ainda demonstrado, em termos de ser acionado o regime da parte final do nº 1 ou regime do nº 2 do art. 236º do CC.

13. Ainda que a Relação se convencesse de que, subjetivamente falando, a vontade da doadora era beneficiar somente sua filha, aqui Autora, e, de modo despiciendo, levasse isso – como levou – aos “factos provados”, nem assim as coisas se alterariam, em termos de desfecho jurídico da ação, pela simples razão de que tal sempre esbarraria na valoração jurídica dessa pretensa factualidade.

14. Deste modo, o Tribunal estava vinculado a um quadro necessariamente incontornável: as mencionadas doações em dinheiro foram feitas conjuntamente à Autora e ao Réu, tendo ingressado na comunhão conjugal, pelo que tem natureza comum tudo quanto lhes adveio com as forças daquele dinheiro.

15. Face à causa de pedir expressa na petição inicial, estava fora do âmbito destes autos qualquer ponderação sobre um pretenso enriquecimento sem causa.

16. Não obstante, em manifesto excesso de pronúncia, a Relação emitiu juízo acerca dessa matéria, o que é fundamento de nulidade do acórdão recorrido, nos termos da al. d) do nº 1 do art. 615º ex vi art. 666º, ambos do CPC.

17. No confronto com a causa de pedir ínsita na petição inicial, verifica-se que, no recurso de apelação, a Autora introduziu a questão da caducidade dos benefícios prevista no art. 1791º do CC, o que constitui uma alteração indevida da causa de pedir, em violação do disposto no art. 265º do CPC.

18. Em vez de rejeitar tal ampliação, a Relação, em novo excesso de pronúncia, a Relação emitiu juízo acerca dessa matéria, gerando outra nulidade do acórdão recorrido, nos termos da al. d) do nº 1 do art.

615º ex vi art. 666º, ambos do CPC.

19. Face ao regime legal consagrado no art. 1791º do CC, a legitimidade para invocar em juízo a caducidade ali prevista nunca seria da aqui Autora, mas sim de sua mãe.

20. No caso dos autos, a invocação de tal caducidade pela aqui Autora sempre esbarraria na manifesta

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inviabilidade da pretensão, inviabilidade essa jamais suprível com fundamento em pretensa aceitação da titular do direito, expressa a meio da lide e em depoimento testemunhal.

21. Seja como for, no caso vertente, tendo sobrevindo o divórcio entre a Autora e o Réu, o efeito daí decorrente seria, não o previsto no art. 1791º do CC, mas o da al. b) do nº 1 do art. 1760º do CC, interpretado este adequadamente, isto é, considerando que a má técnica legislativa inerente à Lei nº 61/2008, de 31/10, levou a que se mantivesse indevidamente a alusão à culpa no divórcio.

22. Ocorre autoridade do caso julgado que implica vinculação da decisão a proferir nestes autos quanto à natureza comum da viatura automóvel acima referida, porquanto isso já foi declarado em dois processos judiciais, cujas decisões transitaram em julgado.

23. Considerando que tal viatura automóvel foi adquirida com parte da quantia de 500.000 euros doada à Autora e ao Réu, aquela autoridade tem um outro alcance, devendo ser considerado comum o recheio da moradia, porque foi custeado também com parte daqueles 500.000 euros.

24. Na mesma ordem de ideias, ainda as aplicações financeiras objeto dos autos deverão ser consideradas comuns, pois o valor utilizado para a sua aquisição (300.000 euros) tem também origem naqueles 500.000 euros.

25. Mostra-se violado o disposto no arts. 236º, 1729º, 1760º e 1791º do CC, bem assim o disposto nos arts.

5º, 265º e 609º do CPC, devendo o acórdão recorrido ser revogado e substituído por decisão que julgue improcedente a ação, absolvendo do pedido o Réu.

+

A Autora contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

+

O Recorrente fez entretanto juntar ao processo um parecer jurídico, da autoria da Senhora Doutora em Direito e Professora Universitária CC, onde se conclui que “o(s) pedidos(s) da Autora têm, sem margem para dúvidas, que improceder”.

+

Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.

+

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

+

São questões centrais a conhecer:

- Saber se o acórdão recorrido padece das nulidades que lhe são apontadas;

- Saber se se impõe a autoridade do caso julgado formado nos processos a que alude o Réu;

- Saber se ocorreu uma doação apenas à Autora, ou também ao Réu, com as devidas consequências para o mérito da ação;

- Saber se ocorre a caducidade de benefícios deferidos ao Réu, com as devidas consequências para o mérito da ação.

+

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

São os seguintes os factos que estão provados (após as modificações introduzidas à matéria de facto pelo tribunal recorrido):

1. Autora e Réu contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, em …. de ……. de 1997, na Igreja Paroquial ………;

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2. A relação conjugal entre a Autora e o Réu chegou ao fim em …… de 2015, com a separação de facto do casal;

3. Em … de ……. de 2015, a Autora apresentou no Tribunal ……, Instância Central, ….. Secção de Família e Menores-J…, ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge;

3.1. O casamento da A. e R. foi dissolvido por divórcio decretado por sentença ….. de ……. de 2018, transitada em julgado em …. de ……de 2018, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ……, Juízo de Família e Menores ……. .

4. Por escritura pública outorgada no dia …. de ……. de 2012, no Cartório de DD, sito na freguesia ……, concelho ……… - cuja cópia está junta a fls. 57 e segs, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – a ora Autora e o aqui Réu declararam comprar à sociedade S……….., Lda., que declarou vender, pelo preço de €400.000,00, a fração autónoma designada pela letra …. correspondente a uma habitação com cave, rés-do-chão e 1º andar, com entrada pelos n.ºs … e …. da Rua ……., integrada no prédio urbano localizado na Rua do ……., nºs …. a ….. e Rua ……, freguesia………., concelho…….., inscrita no artigo matricial ……., da freguesia de ……., …….. e descrita na Conservatória do Registo Predial …… sob o n.º ……., da freguesia ……….;

5. A aquisição deste imóvel encontra-se registada na mesma Conservatória do Registo Predial, a favor de Autora e Réu, pela ap. 1417, de 13.02.2012;

6. Quem pagou o preço de aquisição deste imóvel – que, desde 2012, passou a ser a casa de morada da família - foi a mãe da Autora, que liquidou diretamente à mencionada vendedora S……….., Lda. o preço da mesma;

7. Para tanto, entregou um cheque seu, no valor de 15 mil euros, em 31/10/2011, para sinalizar a compra da casa;

8. E o remanescente do preço foi também por ela pago, sendo uma parte em numerário e uma outra parte até por débito da sua conta para emissão de cheque bancário no valor de 275 mil euros, para liquidar a hipoteca existente;

9. Mesmo os impostos e encargos inerentes à escritura de compra e venda e bem assim os respetivos registos foram integralmente pagos pela mãe da Autora;

10. Autora e Réu são co-titulares, em regime de solidariedade, da conta de depósitos bancários, de movimentação solidaria, com o número ………, no Banco Santander Totta, aberta em 3/10/2011, cuja primeira titular é a Autora, contrariamente ao que se verificava na única conta existente até à data entre

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Autora e Réu, cujo primeiro titular era o Réu.

11. Em 6 de Outubro de 2011, a mãe da Autora transferiu para esta conta o montante de €500.000,00 (quinhentos mil euros);

12. Desse valor, o montante de €200.000,00 foi transferido para uma conta bancária do Montepio co- titulada por Autora e Réu, sendo que os remanescentes €300.000,00 foram aplicados em produtos financeiros do Banco Santander Totta, da titularidade exclusiva da Autora;

13. Na pendência do matrimónio foi adquirido o veículo de matrícula ….-ML-…., cuja aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial em benefício do Réu;

14. Atualmente, a propriedade deste veículo automóvel encontra-se registada na competente conservatória do registo automóvel, a favor de EE, por compra ao aqui Réu; venda essa que foi feita sem o conhecimento e autorização da Autora;

15. Em Setembro de 2011, a mãe da Autora, FF, foi contemplada com o prémio do sorteio Joker;

16. A transferência aludida em 11), foi realizada pela dita FF sem qualquer contrapartida e através dela pretendia que a Autora, sua filha, usufruísse de um montante mensal equivalente ao vencimento que auferia como empregada por conta de outrem, podendo, assim, ficar em casa e acompanhar a sua mãe e os seus filhos de forma assídua e constante;

17. Com esse objetivo, através do montante depositado pela sua mãe na referida conta bancária, a Autora subscreveu junto do Banco Santander Totta, exclusivamente em seu nome, seis aplicações financeiras denominadas «Seguro de Vida Rendimento Mensal 2011», tituladas pelas apólices n.ºs …./686, …./687,

…../690, …./691, …./692 e …../693, no valor nominal de €50.000, cada, no total de €300.000,00;

18. Do remanescente valor de €200.000,00 foi transferido para a conta conjunta da Autora e Réu no Banco Montepio Geral foi utilizado, pelo menos o montante de €171.359,13 para remodelar, mobilar e decorar inteiramente a moradia acima aludida (sic);

19. Através deste valor foram adquiridos os bens constantes da listagem junta a fls. 462 a 464 – cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido – que compõem o recheio da casa de morada de família do casal;

20. O veículo automóvel aludido em 13), foi adquirido pelo preço de €32.789,46, pago através do valor depositado na conta bancária que a Autora e o Réu possuíam no Banco Montepio Geral, proveniente da transferência aludida em 11);

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21. O pagamento do preço do imóvel acima identificado foi realizado pela dita FF sem que para o efeito tivesse exigido qualquer contrapartida da Autora ou do Réu;

22. Pelo menos até à separação de facto entre Autora e Réu, a mãe da Autora sempre teve estima, consideração e amizade pelo Réu, enquanto marido da sua filha e atenta a sua qualidade de genro.

23. O Réu a partir do momento em que abriu a conta no Banco Santander supra-referida passou a ter na sua posse um cartão bancário com o número ……… para poder aceder livremente à referida conta;

24. Antes da realização da transferência referida em 11) nunca a Autora ou a sua mãe disseram ao Réu expressamente que o dinheiro transferido pertencia apenas à Autora apesar de ser essa a sua intenção;

25. Através do pagamento do preço da moradia aludida em 4) e da atribuição do valor de €500.000,00 que foi depositado na conta de depósitos bancários de Autora e Réu, quis aquela FF beneficiar exclusivamente a Autora.

Apresentam-se como não provados os factos seguintes:

A) In albis

B) O Réu sempre referiu, inclusivamente à mãe da Autora, que não obstante a casa de morada de família estar também em seu nome considerava que, numa situação de divórcio, não tinha qualquer direito à casa e não exigiria nada a esse título, pois sempre soube que a dita casa e respetivo recheio foram integralmente oferecidos pela sua sogra à sua ainda mulher;

C) A relação de amizade entre o Réu e a mãe da Autora adveio do facto de trabalharem juntos mais de 22 anos;

D) A mãe da Autora, quando recebeu o prémio, teve uma conversa com a Autora e com o Réu, em que lhes disse para abrirem uma conta no Banco Santander Totta;

E) Após escolherem a casa apresentada pela Imobiliária S…….., Lda., foi feito o contrato-promessa de compra e venda, onde intervieram como promitentes-compradores o Réu e a Autora;

F) Após a separação, foi combinado entre a Autora e o Réu que o veículo automóvel ficava com a Autora, porque o Réu tinha a carrinha do trabalho e a Autora necessitava do veículo para o transporte dos miúdos, quer para a escola quer para outras atividades;

G) A quantia de €300.000,00 que ficou no Banco Santander Totta foi aplicada em depósitos a prazo, que

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geram rendimentos mensais de €990,00;

H) Até à separação do casal, a Autora sempre assumiu que os bens e o dinheiro atribuído pela sua mãe eram do casal formado por ela própria e pelo Réu.

De direito

Quanto às nulidades do acórdão recorrido:

Sustenta o Recorrente (matéria depois sintetizada nas conclusões 15ª e 16ª) que o acórdão recorrido padece de nulidade, uma vez que, face à causa de pedir expressa na petição inicial, estava fora do âmbito dos autos qualquer ponderação sobre um pretenso enriquecimento sem causa. Razão pela qual o acórdão recorrido, ao incidir sobre o enriquecimento sem causa do Réu, incorreu em excesso de pronúncia.

Aquando do despacho que admitiu o recurso, o Exmo. Relator, invocando o art. 617.º, n.º 1 do CPCivil (mas olvidando o n.º 2 do art. 666.º) diz que “O enriquecimento sem causa foi abordado (…) como argumento jurídico subsidiário, face ao teor dos factos provados, sendo que nada se invoca quanto à natureza surpreendente dessa subsunção jurídica”.

A verdade é que, trate-se ou não de “argumento jurídico subsidiário”, o acórdão recorrido ocupou-se de um assunto - o enriquecimento sem causa do Réu - que ninguém suscitou no processo, sendo completamente estranho à causa de pedir e ao pedido tal como deduzidos pela Autora.

Estamos assim perante o conhecimento de uma questão de que se não podia tomar conhecimento, o que provoca a nulidade do acórdão (art.s 615.º, n.º 1, alínea d) e 666.º, n.º 1 do CPCivil).

Visto o disposto no n.º 1 do art. 684.º do CPCivil, declara-se essa nulidade, não produzindo o acórdão recorrido quaisquer efeitos na parte em que se fundamenta no enriquecimento sem causa.

Mais sustenta o Recorrente (matéria depois sintetizada nas conclusões 17ª e 18ª) que o acórdão recorrido é nulo, por excesso de pronúncia, isto por ter conhecido da caducidade dos benefícios prevista no art.

1791.º do CCivil, questão apenas introduzida no recurso de apelação que a Autora interpôs.

Mas a apontada nulidade não ocorre.

Aquilo a que a Autora passou a chamar (na alegação que produziu na sua apelação) “caducidade” da doação é (para ela), na realidade, a perda de benefícios, a que alude o n.º 1 do art. 1791.º do CCivil.

Acontece que na petição inicial (artigo 100.º e seguintes) a Autora, citando expressamente tal norma e,

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inclusivamente, transcrevendo-a em parte, invocou a perda dos benefícios recebidos, pretendendo que essa perda atingiria uma eventual doação deferida ao Réu.

Independentemente de saber se tal invocação procede - assunto que nada tem a ver com a temática das nulidades de decisão - é certo, pois, que não foi apenas na alegação que produziu na apelação que a Autora suscitou a questão da dita “caducidade”.

E tanto assim é que a sentença da 1ª instância se pronunciou sobre esse assunto da perda de benefícios, reportando-se a ele inclusivamente como “caducidade” da doação.

O que significa que o acórdão recorrido, ao incidir sobre a questão da caducidade, não incorreu em excesso de pronúncia, pelo contrário pronunciou-se sobre o que lhe competia pronunciar.

Termos em que improcede a arguição de nulidade em causa.

Quanto à imposição da autoridade do caso julgado:

Afirma o Recorrente (matéria depois sintetizada nas conclusões 22ª, 23ª e 24ª) que a questão da natureza comum do veiculo automóvel em causa (mas, na sua perspetiva, natureza a estender também aos demais bens em discussão) já foi judicialmente definida no âmbito do procedimento cautelar que correu termos sob o n.º 5822/1……. (……-Instância Local-Secção Cível, J…) e no âmbito da ação declarativa comum que correu termos sob o n.º 4871/16……. (……-Juízo Local Cível, J…), razão pela qual se impõe aqui a autoridade do caso julgado formado.

Mas é claro que não é assim.

Nesses processos, as decisões finais (acórdão da Relação …… de 27 de setembro de 2016 quanto ao procedimento cautelar; acórdão da Relação ……. de 25 de junho de 2019 quanto à ação de anulação da venda) nada decidiram quanto à natureza comum do veículo.

O que é dizer, não definiram injuntivamente que o veículo era pertença de ambos os cônjuges, e muito menos que tal pertença tinha por causa uma doação exclusiva à Autora.

Nem sequer o seu objeto imediato era esse, ainda que a natureza comum possa ter sido suposta nas decisões tomadas.

Numa dessas decisões (acórdão de 27 de setembro de 2016, documentado a fls. 391 e seguintes) o que se decidiu foi simplesmente que não havia fundamento para se recorrer ao procedimento cautelar. De resto (e sem prejuízo para o caso da inversão do contencioso), no procedimento cautelar não se definem direitos,

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acautelam-se simplesmente direitos (a definir adrede na ação respetiva). Logo, não faz sentido falar-se aqui na autoridade do caso julgado.

Na outra (acórdão de 25 de junho de 2019, documentado a fls. 693 e seguintes), o que se decidiu foi apenas que se verificava a caducidade do direito à anulação da venda.

Ora, como mostra saber o Recorrente, a autoridade do caso julgado dirige-se ao dever de respeito por uma decisão anteriormente proferida cujo objeto constitui questão prejudicial na segunda ação (ação em que é apreciado o objeto dependente), como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há de ser proferida. Esta função positiva do caso julgado radica-se na proibição de contradição da decisão e na imposição da decisão tomada.

Nada disto é identificável na relação entre os ditos processos e o presente processo.

Razão pela qual não existe qualquer caso julgado cuja autoridade se imponha no presente processo.

E se isto é exato quanto ao veículo automóvel, muito mais exato é quanto aos demais bens, que nada têm a ver com os ditos processos, sendo visivelmente arbitrária a extrapolação a que o Recorrente procede.

Como nota puramente marginal refira-se que o que aqueles dois processos nos revelam é apenas alguma inconsistência na forma como a Autora se moveu juridicamente, na medida em que se propunha obter a anulação da venda do veículo em questão, feita pelo ainda marido (o que pressuporia a respetiva natureza comum), quando afinal clamava ao mesmo tempo (por exemplo nos artigos 9º e 18º a 22º da petição inicial que apresentou no processo n.º 4871/16……., de que está junta cópia a fls. 442v e seguintes dos presentes autos) que se tratava de bem exclusivamente seu e que o ato de compra e venda fora praticado de má-fé (o que teria por efeito a ineficácia da venda[1]).

Mas isto, salvo erro ou omissão, não tem só por si a propriedade de criar qualquer situação de caso julgado.

Termos em que improcede a questão da autoridade do caso julgado.

Quanto ao mérito da pretensão da Autora:

Defende o Recorrente (matéria depois sintetizada nas conclusões 1ª a 14ª), tudo em sentido diferente do que se ajuizou no acórdão recorrido, que os benefícios disponibilizados pela mãe da Autora integraram a comunhão conjugal, por isso que se tratou de uma dádiva que reverteu para os dois membros do então casal.

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Mais defende, também em contrário do decidido no acórdão recorrido, que não há qualquer caducidade a levar em linha de conta (matéria depois sintetizada nas conclusões 19ª, 20ª e 21ª).

Vejamos o que há a dizer sobre o assunto.

Dádiva apenas à Autora ou dádiva ao casal?

O que está em causa são duas atribuições patrimoniais feitas pela mãe da Autora, e que consistiram na oferta do pagamento do preço (€400.000,00) da aquisição de uma moradia para habitação do casal e filhos e na oferta da quantia de €500.000,00. Esta última oferta serviu depois para remodelar, mobilar e decorar a moradia, para adquirir um automóvel e para investir (€300.000,00) em produtos financeiros.

Não suscita dúvidas - nem as partes sequer tergiversam sobre tal - que estamos aqui perante atribuições qualificáveis como doação. No caso do custeio, junto do vendedor, do preço da moradia trata-se mais propriamente de uma liberalidade indireta (intenção de beneficiar gratuitamente a parte compradora, libertando, por assim dizer, o seu património do débito que o oneraria de assumir o pagamento do preço), mas à qual são aplicáveis por analogia as regras do contrato de doação (v. a propósito, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 3.ª ed., pp. 28 e 29).

Sabendo-se que à data das atribuições patrimoniais em causa a Autora e o Réu eram casados um com o outro segundo o regime de comunhão de adquiridos, e sendo indiscutível que a Autora foi efetivamente contemplada pela mãe como donatária, a questão fundamental que se discute é a de saber se tais atribuições devem ser vistas como tendo sido deferidas apenas à Autora (como esta pretende) ou se devem ser vistas como deferidas conjuntamente à Autora e ao Réu (como este pretende).

No primeiro caso o objeto da doação iria integrar o património próprio da Autora (art. 1722.º, n.º 1, alínea b) do CCivil), e não o património coletivo (comunhão) do casal; no segundo caso, e vista a presunção (não ilidida) estabelecida no art. 1729.º, n.º 1 do CCivil, o objeto da doação iria integrar a comunhão conjugal, e não o património próprio da Autora.

Se o critério a usar para dilucidar esta questão fosse simplesmente o da vontade da doadora, então dir-se- ia, face ao que consta do facto do ponto 25 (aditado pelo tribunal ora recorrido), que estávamos perante uma doação feita exclusivamente à Autora. O assunto estaria arrumado.

Contudo, esse critério não é válido para o que se discute, e aqui o Recorrente tem razão (embora, verdade seja dita, a contestação que apresentou oportunamente esteja largamente suportada naquilo que agora diz não interessar para nada: a vontade e a intenção da doadora).

Na realidade, importa atender art. 236.º do CCivil, que aponta para um critério essencialmente objetivo: a

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declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (a menos que o declarante não possa razoavelmente contar com esse sentido).

Na expressão impressiva de Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª ed., p. 551), “o que releva é o sentido típico que um declaratário típico teria tipicamente entendido naquela situação típica”.

De facto, na perspetiva da lei, há que dar prevalência à tutela da legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração, e isso alcança-se com recurso ao sentido que um destinatário razoável retiraria dos elementos objetivos que o declarante exteriorizou, e não com recurso ao mundo psicológico (mais ou menos impenetrável) do declarante.

Tudo isto só assim não será se acaso o declaratário conhecer a vontade real do declarante, pois que nessa situação o que conta é a vontade do declarante, independentemente do sentido objetivo (ainda que inexato ou ambíguo) que se possa extrair do seu comportamento. Compreende-se que assim seja, pois que neste caso existe um verdadeiro consenso acerca do alcance da declaração e nenhumas expetativas legítimas do declaratário saem frustradas.

No caso vertente, porém, nenhum facto de entre os provados dispõe diretamente sobre se o Réu conhecia que a vontade real da mãe da Autora era fazer uma liberalidade exclusivamente à filha, e daqui que essa vontade não possa funcionar como critério de decisão.

Interessa, pois, determinar qual seria o sentido que uma pessoa normal, que estivesse na concreta situação do Réu, poderia deduzir do comportamento da declarante.

Em que é que, com relevo para o que está especificamente em causa, consistiu esse comportamento da doadora?

Em duas coisas: em estar a pagar o preço de uma moradia que iria servir de habitação para o casal e em estar a transferir para uma conta bancária titulada pelo casal o dinheiro oferecido.

Já circunstâncias tais como a escritura da aquisição da moradia ter sido participada por ambos os membros do casal como parte compradora, as aplicações financeiras terem sido concretizadas apenas pela Autora, a aquisição do veículo ter sido registada a favor do Réu, ter o Réu acesso livre à conta bancária em questão, e assim por diante, não têm aqui qualquer relevo.

São atos subsequentes do casal, que nada têm a ver com o sentido por que deve valer o ato sob escrutínio, e este é exclusivamente o comportamento precedente da doadora. Isto é inteiramente válido mesmo para

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o ato aquisitivo da moradia, pois que quando tal ato se cumpriu já a doação estava para todos os efeitos consumada (consta da escritura da compra e venda que o preço já fora pago).

Ora, sabendo-se que a Autora era filha da doadora e não se conhecendo facto algum (que alegado não foi) que, para além de uma trivial e natural estima, consideração e amizade da sogra para com o genro (facto do ponto 22), indique que havia uma qualquer razão particular para que a doadora contemplasse pessoalmente o genro com tão generosas prendas, cremos que o sentido que qualquer pessoa normal - de quem se pressupõe que seja razoável, honesta, esclarecida, zelosa, sagaz e experiente[2] (nomeadamente nas coisas da vida) - colocada na situação de genro em que encontrava o Réu, deduziria daqueles dois atos da sogra só poderia ser um: que esta estava a fazer uma doação à filha, embora, reflexamente, com natural e amplo proveito e disfrute para a pessoa do genro, pois que marido da filha e parceiro de um projeto de vida.

A circunstância da Autora ser filha da doadora e o Réu ser apenas o marido da filha da doadora cria uma relação triangular desigual que diz muito. É objetivamente crucial. É precisamente nesta relação triangular desigual à partida que importa colocar o tal destinatário normal, de quem se espera que saiba ver como é que as coisas costumam funcionar na vida.

E se se trata de uma relação desigual à partida e perfeitamente conhecida do declaratário, não se vê como, à míngua de outros comportamentos da declarante que sugiram o contrário, esse declaratário pudesse ser levado a pensar que estava a beneficiar de forma igual, ou seja, que se lhe estava a dar o mesmo que se dava à filha da doadora.

O Recorrente insurge-se contra a passagem do acórdão recorrido aí onde este, colocando a tónica da doação na relação filial, faz menção à “realidade da vida” e confere relevância àquilo a que chama “a voz do sangue”, mas essa passagem mais não faz que constatar uma evidência que a experiência de vida a todos revela: que normalmente o que os pais buscam fazer em casos que tais (atribuições tão avantajadas) é dar a seus filhos e não aos respetivos cônjuges, bem que estes possam acabar por retirar daí maior ou menor proveito (proveito reflexo). Só assim não sucederá quando prevaleça uma qualquer razão que, para além da simples existência do casamento, dê algum tipo de lógica a uma dádiva conjunta.

Portanto, na situação de genro em que se encontrava o Réu e perante dádivas tão valiosas, nenhum declaratário normal, dotado dos mencionados atributos, representaria que os ditos comportamentos da sogra estavam a significar automaticamente uma doação ao genro. O que é dizer, não representaria que estava a ser participante de um contrato de doação[3].

Em boa verdade, tais comportamentos da doadora traduzem-se até em atos mais ou menos neutros (para não dizer mesmo anódinos), que nenhum declaratório honesto, bem-intencionado e minimamente experiente nas coisas da vida elegeria só por si como representando necessariamente uma dádiva conjunta

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à filha e ao genro. Formando a Autora e o Réu um casal estável à data, nada teria de particularmente significativo aos olhos desse declaratário normal o facto da transferência do dinheiro ter sido feita para uma conta do casal ou o facto de se tratar de dádiva que favorecia a habitação do casal. Estas circunstâncias são tão inexpressivas para o que estamos a discutir, como o é a circunstância (a que se apega a Autora, para mostrar que a doação se dirigiu exclusivamente à filha) de na ordem de transferência do dinheiro a doadora ter indicado como beneficiário apenas a pessoa da filha (como resulta do documento de fls. 75). Nada disso tem relevo decisivo.

Deste modo, se eventualmente o Réu adquiriu outro tipo de expetativas (sendo de observar que a matéria de facto provada não mostra sequer que tenha sido esse o caso), então é porque o fez em função de uma muito própria avaliação dos factos. Acontece que, para o bem e para o mal, o que conta não é essa suposta avaliação idiossincrática, mas sim a avaliação que faria a tal pessoa normal (razoável, atenta, honesta, experiente) colocada na posição de genro em que se encontrava o Réu.

Discordamos, deste modo, da ideia do Recorrente quando defende que se tratou de uma atribuição patrimonial de que foram conjuntamente beneficiários a Autora e o Réu, ou seja, que se registou uma doação a favor dos dois membros do casal. Não era isso que uma pessoa normal, que estivesse no lugar do simples genro que era o Réu, teria suposto a partir dos descritos comportamentos da mãe da Autora.

No limite, o mais que se poderá conceder é que se possa estar perante um comportamento equívoco ou ambíguo da doadora, pairando (nesse cenário) a dúvida acerca do respetivo sentido.

Mas se assim for, então da mesma forma que é aplicável ao caso o art. 236.º do CCivil (como sustenta o Recorrente, e bem, pois), também terá que ser aplicável o art. 237.º. E assim, estando-se perante um negócio gratuito, o sentido a atribuir à declaração deve ser aquele que menos gravoso se revele para a disponente, e tal sentido é por excelência o que afasta a doadora da contração de qualquer obrigação contratual perante o Réu.

E do que fica dito resulta também que se impõe concluir que o art. 1729.º do CCivil não ajuda à tese do Recorrente.

O que nessa norma (n.º 1) se estabelece, no que para o caso importa, é que os bens recebidos por doação entram na categoria de bens comuns quando forem doados conjuntamente a ambos os cônjuges (neste caso há uma doação com dois donatários, presumindo-se que o doador quer ver formada uma comunhão, ao invés de uma compropriedade, que seria o efeito próprio de um a tal doação) ou quando, doados apenas a um deles, o doador determinar que devem entrar na comunhão. A norma tem unicamente em vista, portanto, regular sobre o ingresso, na comunhão, de bens doados a um ou aos dois cônjuges.

Ora, não é identificável nos factos provados qualquer determinação da mãe da Autora no sentido de que o

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que doou à filha era para entrar na comunhão. E, repetindo, não estamos perante liberalidade que possa ser interpretada como tendo sido feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente, razão pela qual não se formou qualquer comunhão.

Aqui chegados:

Concluindo-se, como se conclui, que a declaração da doadora não é de molde a ser interpretada no sentido de abranger o genro na doação, segue-se necessariamente (isto é uma inevitabilidade) que só há um donatário, e esse donatário é a Autora. E assim, os bens doados (o dinheiro do pagamento da moradia e o dinheiro transferido para a conta do casal) foram integrar o acervo próprio da Autora, e não o acervo comum (art. 1722.º, n.º 1, alínea b) do CCivil).

E aquilo que foi adquirido à custa da doação – moradia (e sua remodelação), recheio, decoração e veículo - conserva a qualidade de bem próprio (art. 1723.º, alínea c) do CCivil).

Estamos aqui perante uma sub-rogação real: saíram do património próprio da Autora determinados bens (valores que lhe foram disponibilizados gratuitamente pela mãe) e entraram nele os ditos bens sucedâneos, havendo uma conexão entre a perda de uns e a aquisição de outros.

Trata-se mais propriamente daquilo a que se usa comumente chamar sub-rogação indireta[4], que se refere precisamente aos bens adquiridos (ou benfeitorias feitas) mediante o emprego (ou reemprego) de dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges.

É apenas de acrescentar – embora não se trate de assunto sobre o qual o Recorrente tergiverse em si mesmo ou que tenha levado às conclusões do recurso, limitando-se, ao invés, a afirmar (embora erroneamente) que é assunto que nada tem a ver com o caso – que é de entender, dentro do critério adotado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 2 de Julho de 2017 (AUJ n.º 12/2015, publicado no DR, 1.ª Série, de 13 de outubro de 2015), e de cuja bondade não há que divergir[5], que a circunstância de não constar dos documentos de aquisição (com destaque para a escritura pública de compra e venda da moradia), ou de documento equivalente, que os valores usados para o efeito eram da Autora, não colide com a conclusão de que aquilo que foi adquirido conserva a qualidade de bens próprios, podendo a prova dessa aquisição ser feita por qualquer meio.

Isto é assim porque integrou a ratio decidendi de tal AUJ o pressuposto, claramente assumido nele, de que as exigências formais da segunda parte da alínea c) do art. 1723.º do CCivil apenas relevam no caso de estarem em causa interesses de terceiros, e não unicamente interesses dos cônjuges, e é apenas dos interesses dos cônjuges que estamos a tratar no caso vertente.

E isto é assim também porque foi expressamente definido no AUJ que desde que se prove (por qualquer

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meio) que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro próprio de um dos cônjuges, esse bem é próprio, não integrando a comunhão conjugal. É também precisamente o que sucede no caso vertente.

Portanto, e diferente do que pretende o Recorrente, o AUJ em questão não apenas não é estranho ao que aqui se discute, como constitui até um aporte deveras importante para o sucesso do pedido da Autora.

Já relativamente aos €300.000,00 que a Autora investiu em produtos financeiros, é de dizer que estamos perante um bem geneticamente próprio, no sentido de que não se regista aqui qualquer sub-rogação.

Observe-se que, a despeito desse investimento, não há que falar em bem novo que tenha vindo substituir um outro. A circunstância do dinheiro ter sido investido em produtos financeiros nada tem de relevante, tratando-se sempre do mesmo bem (dinheiro) que pertencia à Autora e não de outro que tenha sido adquirido em seu lugar (v. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., p. 561).

Quanto à questão da caducidade:

Diga-se desde já que, face ao que vem de ser expresso, o presente recurso improcede necessariamente, independentemente do que se decida em torno da questão da caducidade. Isto é assim porque a problemática da caducidade da doação só teria relevância se acaso estivéssemos perante uma liberalidade feita também ao Réu (doação em consideração do estado de casado), e já vimos que não foi isso que aconteceu.

Mas dado que o Recorrente levanta a questão da caducidade em termos que podem fazer duvidar da desnecessidade da sua apreciação (por prejudicialidade), dir-se-á, à cautela, o seguinte:

Como sobredito, a Autora, citando o n.º 1 do art. 1791.º do CCivil, aportou na sua petição inicial (artigo 100.º e seguintes) a questão da perda dos benefícios que o Réu acaso pudesse ter recebido da sogra, do que resultaria que o Réu jamais teria comunhão nos bens doados e, deste modo, direito aos bens a que se refere o pedido. Tratava-se, é certo, de uma alegação algo inconsequente, na medida em que, embora pendendo processo de divórcio, Autora e Ré ainda eram casados, sendo que a perda de benefícios só se põe quando o casamento deixa de existir. O que é real, porém, é que entretanto ocorreu o divórcio, tendo o tribunal recorrido determinado a inclusão desse facto na matéria de facto provada (ponto 3.1).

Manifestamente que a Autora suscitava a questão da perda de benefícios a título subsidiário (artigo 100.º:

“Mesmo que assim se não entenda (…) sempre se deverá ter em conta o que dispõe o n.º 1 do art. 1791.º do CC (…)”), isto para o caso de se entender que não se estava perante uma doação apenas à Autora.

Este assunto da perda de benefícios foi abordado na sentença da 1ª instância, que o encarou como sendo de caducidade. Mais propriamente, disse o seguinte a sentença:

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«Por outro lado, ao contrário do que pretende a Autora, entendemos que a previsão legal do art.1791º, nº 1 do Código Civil, na formulação dada pela Lei n.º 61/2008, relativa aos efeitos patrimoniais do divórcio, segundo a qual “cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento”, não dá cobertura à pretensão sub iudice.

Com efeito, ainda que se entendesse que, relativamente ao Réu, as atribuições patrimoniais em causa constituem uma doação que apenas teve em consideração o seu estado de casado com a Autora, ou seja, que o Réu só beneficiou de tal atribuição patrimonial gratuita porque, à data, era casado com a aqui Autora , a verdade é que com a caducidade que, com esse fundamento, poderá afectar tal doação apenas determinaria a “reversão” dos valores doados (pelo menos na parte atinente ao Réu) ao património da doadora. Mas não implicaria, por si só, de forma automática, a transformação de tais atribuições patrimoniais gratuitas em doações em exclusivo benefício da Autora.»

Na sua apelação, e continuando a citar o n.º 1 do art. 1791.º do CCivil, a Autora veio falar da caducidade da doação, que qualificou como “exceção”, de “conhecimento oficioso”, a qual teria indevidamente deixado de ser conhecida pelo tribunal de 1ª instância. Mais disse que competia ao tribunal para o qual recorria “o conhecimento oficioso da caducidade (…) atenta a imperatividade da lei e o facto de não se tratar de matéria do âmbito da disponibilidade das Partes”.

Sobre esta temática, e depois de ter decidido que a sentença da 1ª instância não incorrera em omissão de pronúncia acerca da questão da caducidade, o acórdão recorrido disse o seguinte:

«6.2. Da caducidade.

A solução mais simples da presente questão é a aplicação imediata deste instituto.

Senão vejamos.

O direito de família é um dos mais influenciados pela alteração sociológica dos valores da sociedade. Do casamento para a vida e do divórcio sanção, passamos para a pós-modernidade da valorização dos afectos e sentimentos, por vezes imediatos, e da constatação de que a ruptura pode ser uma situação objectiva e positiva.

Daí que um dos efeitos principais da lei nº 61/2008, de 31 de outubro de 2008 tenha sido que a perda dos benefícios patrimoniais do casamento deixou de depender da consideração desse cônjuge como o

“culpado” da ruptura.

Porque se visou “combater o tão reprovado “casamento-negócio”, surgiu um novo critério e que passa pelo

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entendimento de que cada um dos cônjuges deve prover à sua autossubsistência. Trata-se da própria capacidade que se entende cada cônjuge dever possuir de, suprir, seja por meios próprios ou em virtude do seu trabalho, à sua própria manutenção e sustento após o término do matrimónio, não dependendo de qualquer modo daquele casamento para adquirir proventos”.

Com efeito, no regime anterior um dos efeitos patrimoniais do divórcio consistia na “perda de benefícios que os cônjuges tenham recebido ou hajam de receber do outro cônjuge ou de terceiros, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado”, perda esta que só afetava “o cônjuge declarado único e principal culpado” (nº 1 do artigo 1791º do Código Civil).

E, por benefício a lei queria referir-se às liberalidades recebidas ou a receber pelo cônjuge culpado ou principal culpado, pois só quanto a elas tinha fundamento a ideia de que o cônjuge se mostrou indigno de as receber.

Esse artigo 1791º abrangia as doações entre casados, entre vivos ou por morte, e as doações de terceiro aos cônjuges ou de qualquer outra liberalidade feita em consideração do estado de casado do beneficiário, como era o caso de uma doação feita a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário.

Ora, é este precisamente o caso dos presentes autos, no qual a doação mesmo que efectuada a ambos os cônjuges foi efectuada “tendo em conta o casamento”.

Mas, a lei nº 61/2008 trouxe alterações consideráveis ao modelo de divórcio, dentro das quais para o que afora importa, a mais relevante foi que eliminou a relevância da culpa na causação da separação de facto para o efeito de aplicar sanções patrimoniais ao cônjuge único culpado ou cônjuge principal culpado.

Nesses termos o artigo 1791º passou a dispor que: “1. Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer seja posterior à celebração do casamento. 2. O autor da liberalidade pode determinar que o benefício reverta para os filhos do casamento”.

A ratio desta norma foi de evitar que o divórcio se traduza num enriquecimento para além da justa partilha daquilo que se adquiriu com o esforço conjunto durante o casamento.

É certo que o legislado não articulou a nova redação do artigo 1791º com os artigos relativos à caducidade das doações para casamento [artigo 1760º, nº 1, al. c)] e das doações entre casados [artigo 1766º, nº 1, b)], disposições que se mantiveram inalteradas e onde, por causa disso continua a existir o lapso de se fazer referência à caducidade das doações no caso de divórcio “por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado”.

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Mas tem sido entendido entre nós4 que se trata de um lapso corrigível através de uma interpretação atualista.

Deste modo, face ao divórcio entre as partes e tendo em conta que as doações em causa foram efectuadas

“por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário” é evidente que terão de caducar por efeito do divórcio.

Acresce que quando a Lei fala em “benefícios” deverá entender-se todas as liberalidades efetuadas a qualquer um dos cônjuges, quer anteriormente, quer posteriormente à celebração do casamento, desde que a liberalidade se relacione causalmente com o casamento em consideração. Isto é, desde que, o casamento tenha sido a causa daquela liberalidade.

Ora é precisamente isso que resulta dos factos assentes quanto a todos os bens em causa.

Note-se apenas que essa caducidade não possui efeitos retroativos pelo que não se pode aplicar aos bens (caso do automóvel) que foram já alienados e não pertencem a qualquer um dos cônjuges.

Logo, terá este bem que já foi alienado de ficar excluído da aplicação deste mecanismo.

Importa salientar que assiste razão ao tribunal a quo quando considerou que a caducidade da doação em causa a ter sido efectuada inicialmente pela mãe da autora deveria ter sido requerida por esta.

Com efeito a legitimidade activa do funcionamento deste mecanismo não é da beneficiária da doação, mas sim da doadora.

Mas, in casu esta tornou claro no seu depoimento, que aceita essa reversão. Logo a caducidade, neste caso, pode operar e produzir efeitos.»

Isto posto, vejamos:

Diferentemente do que pretende o Recorrente, o art. 1760.º, n.º 1, alínea b) do CCivil nunca teria préstimo para o que aqui se discute, na medida em que se trata de norma que rege para as doações para casamento, isto é, para as doações feitas aos esposados em vista do seu casamento (liberalidades feitas a quem está para casar e em vista do próximo e projetado casamento[6]). Não é, obviamente, o quer se passa no caso vertente, pois que aqui o que se discute é uma doação ocorrida no decurso de um casamento (e que seria qualificável, a ter existido, como doação em consideração do estado de casado).

Mas já poderia ter pertinência ao caso o n.º 1 do art. 1791.º.

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E embora esta norma se reporte à perda de benefícios e não a caducidade, o efeito jurídico acaba por ser o mesmo. Pois que por caducidade entende-se a perda de eficácia do negócio jurídico, validamente constituído, em virtude de um facto posterior e independentemente da vontade das partes (cfr. Pires de Lima-Antunes Varela, ob. cit., anotação ao art. 1760.º), e é precisamente esse efeito que é determinado no art. 1791.º.

Aliás, a prova mais óbvia de que assim é reside no facto deste artigo regular também para as situações de doação para casamento (doações em vista do casamento), a que a lei associa, justamente, a caducidade.

Por isso dizem Pires de Lima-Antunes Varela (ob. cit., anotação ao artigo 1791.º) que a perda de benefícios aí referida “Pode tratar-se (…) de uma doação entre esposados ou entre casados, ou de uma doação de terceiro aos esposados, ou de uma outra liberalidade feita em consideração do estado de casado do beneficiário, como será o caso de uma doação feita a ambos os cônjuges por familiar de um deles” e que

“A doutrina do n.º 1 do artigo 1791.º aparece, aliás, confirmada em outras disposições do Código, como sucede com o artigo 1760.º, n.º 1, alínea b) (…)”. Acresce dizer, com Antunes Varela (ob. cit., p. 500) que os benefícios visados no art. 1791.º são apenas os que provêm de liberalidades (excluindo-se assim as vantagens que, por força da lei e não por ato de vontade dos cônjuges ou de terceiro, os cônjuges tenham usufruído). Não nos parece que as alterações introduzidas no Código Civil pela Lei n.º 61/2008 imponham outro modo de ver as coisas.

Tudo isto para significar que, diferentemente do que sugere o Recorrente - e pese embora as asserções erráticas da Autora aí onde, a propósito, vem falar na “exceção”[7] da caducidade e associa o efeito “ope legis, ipso iure” da caducidade à sua “imperatividade” e ao seu “conhecimento oficioso”[8] -, a temática da caducidade de uma eventual doação ao Réu tinha que ser abordada pelo acórdão recorrido.

Questão diversa é saber se foi bem abordada.

E cremos que não foi.

Não suscita dúvidas que a perda de benefícios a que alude o art. 1791.º opera ipso jure, independentemente, pois, de qualquer declaração de revogação por parte do autor da liberalidade.

Mas isso não significa de forma alguma que estamos perante uma norma imperativa (há algum impedimento legal a que, ainda que o casamento tenha sido a causa da liberalidade, o doador possa abdicar do direito à reversão do bem doado?) e que a Autora tenha legitimidade substantiva para fazer valer essa perda contra o ex-marido (e, ainda por cima, fazê-la reverter em seu proveito!).

Pelo contrário, trata-se de assunto que, a haver litígio, só poderia ser dirimido no confronto da doadora, e não simplesmente entre os ex-cônjuges.

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Doadora essa que não é parte neste processo e onde, portanto, não deduziu qualquer pretensão.

Acresce que a perda a que se refere tal norma recai sobre cada um dos cônjuges, quando ambos sejam os donatários. Ora, exatamente como se significa na sentença da 1ª instância, a ser o Réu também donatário, então o cumprimento dessa norma passaria pela reversão à doadora daquilo que lhe fora doado, e não pela sua atribuição à Autora. A Autora inventa pura e simplesmente uma espécie de “direito de acrescer” que não está fixado na lei.

O acórdão recorrido, há que dizê-lo, tem perfeita noção disto tudo, tanto que afirma que “Importa salientar que assiste razão ao tribunal a quo quando considerou que a caducidade da doação em causa a ter sido efectuada inicialmente pela mãe da autora deveria ter sido requerida por esta. Com efeito, a legitimidade activa dos funcionamento deste mecanismo não é da beneficiária da doação, mas sim da doadora”. Mas ultrapassa esse óbice da seguinte forma: “…in casu esta [a doadora] tornou claro no seu depoimento, que aceitou essa reversão. Logo a caducidade, neste caso pode operar e produzir efeitos”.

O Recorrente insurge-se contra o assim decidido, e fá-lo com razão.

Não é aceitável do ponto de vista jurídico uma tal construção. Desde que é certo que o assunto tem a ver substantivamente (e processualmente) com a doadora e não com a Autora, então, não sendo a doadora parte neste processo (ainda que tenha sido testemunha) só um desfecho se antolha para o fundamento da ação com base na caducidade dos benefícios: a sua improcedência.

E, consequentemente, não se coloca a hipótese do Réu perder o que quer que seja à luz do n.º 1 do art.

1791.º do CCivil.

Deste modo, não se pode subscrever o acórdão recorrido na parte em que concluiu que a alegada caducidade pode operar e produzir efeitos.

Porém, sendo isto assim, volta-se a realçar o que se começou por dizer: que a questão da caducidade acaba por não ter qualquer impacto no destino do recurso, pois que, não tendo sido o Réu donatário mas apenas a Autora, improcede necessariamente o recurso e procede necessariamente a ação.

O que significa que, conquanto não se subscreva, nos termos sobreditos, a fundamentação do acórdão recorrido, impõe-se manter o seu dispositivo.

Dúvidas poderiam apenas colocar-se relativamente ao veículo automóvel.

Neste concreto particular recorde-se que o pedido da Autora consistia em que o veículo fosse considerado

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bem próprio, pese embora ter sido entretanto vendido pelo Réu.

Como acima se assinalou, a verificar-se que o veículo era bem próprio da Autora, a sua venda pelo Réu havia de ser vista como res inter alios acta relativamente à Autora (sendo o efeito daí decorrente a ineficácia do ato no confronto da Autora), mas sem prejuízo para as regras do registo ou da usucapião[9].

E, em boa verdade, a Autora ainda tentou fazer valer essa ineficácia no presente processo, através da ampliação do pedido que apresentou em 6 de agosto de 2018 (fls. 507v e 508) e da intervenção principal do comprador, mas a ampliação foi recusada e o pedido de intervenção foi considerado inútil (despacho de 2 de abril de 2019, constante de fls. 639 e 640).

Perante este cenário, afigura-se que a ação havia de ter sido julgada improcedente quanto ao veículo, pois que este deixou de integrar, irremediavelmente, o património próprio da Autora. Para este desfecho apontava até a própria fundamentação do acórdão recorrido quando refere que “quanto ao veículo, tendo em conta que este foi alienado a terceiro a situação registral do mesmo não pode ser alterada nesta sede”.

Algo surpreendentemente, contudo, no seu dispositivo o acórdão recorrido converte oficiosamente o pedido formulado num outro efeito (não solicitado), que se traduz numa espécie de indemnização sucedânea (ou será antes uma repetição do indevido?), determinando que “o valor da venda do veículo” é considerado bem próprio da Autora.

A verdade é que o Réu não impugna no presente recurso, ainda que por via subsidiária, o assim decidido, de sorte que, independentemente da sua bondade, se tem por consolidada a decisão tal como se apresenta.

Quanto à matéria da conclusão 25ª

Atento tudo o que ficou exposto, conclui-se que algumas das normas citadas nesta conclusão não são aqui aplicáveis, mas também se conclui que o acórdão recorrido não observou, em parte, outras dessas normas.

Todavia, e como se julga ter demonstrado, essa não observância não tem a propriedade de levar à procedência do recurso e à improcedência da ação.

Improcede, pois, o recurso, sendo de manter o dispositivo do acórdão recorrido.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

(26)

Regime de custas:

O Recorrente é condenado nas custas do recurso.

+

Lisboa, 13 de abril de 2021

José Rainho (Relator)

Graça Amaral (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

Henrique Araújo (tem voto de conformidade, não assinando por dificuldades de ordem operacional. O relator atesta, nos termos do art. 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020, essa conformidade)

++

Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil)

_______________________________________________________

[1] Como resulta do n.º 4 do art. 1687.º do CCivil. Observe-se a propósito que a nulidade cominada no art.

892.º do CCivil reporta-se à relação entre o vendedor e o comprador (relação entre os contraentes). No que se refere ao verdadeiro dono da coisa, a venda funciona como res inter alios acta, pelo que lhe é ineficaz (cfr. Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, anotação ao artigo 892.º; Baptista Lopes, Do Contrato de Compra e Venda, p. 141; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, III, 5.ª ed., p. 98).

[2] V. Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., p. 447.

[3] Cfr a propósito Mota Pinto, ob. cit., p. 449: “A interpretação abrange, igualmente, o problema de saber se há ou não uma declaração negocial. A resposta afirmativa tem lugar, quando assim se concluir do ponto de vista de um declaratário real.”

[4] Assim, Antunes Varela, Direito da Família, 1987, p. 440; Pires de Lima-Antunes Varela, ob. cit., IV, anotação ao artigo 1723.º; Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 3.ª ed., p.

559,

[5] Como se pondera no acórdão deste Supremo de 9 de janeiro de 2018 (processo n.º 212/14.0T8OLH-

(27)

AB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt): “Importa referir que, apesar de não ter força obrigatória geral, como tinham os anteriores assentos (com a revogação do art. 2º do CC), nem natureza vinculativa para os outros tribunais, o acórdão de uniformização constitui um precedente qualificado, de carácter persuasivo, a merecer especial ponderação, que se julgou suficiente para assegurar a desejável unidade da jurisprudência.

Daí que os tribunais só devam afastar-se da jurisprudência uniformizada em decisões fundamentadas que ponham convincentemente em causa a doutrina fixada. (…)

Como se diz no Acórdão deste Tribunal de 14.05.2009, “a decisão uniformizada, não sendo estrita e rigorosamente vinculativa, cria uma jurisprudência qualificada, mais persuasiva e, portanto, a merecer uma maior ponderação”.

Não basta, pois, não concordar com o entendimento adoptado no acórdão uniformizador, sob pena de a uniformização se revelar um instituto sem utilidade, por subsistir, nos mesmos termos, a controvérsia jurisprudencial. A desconsideração desse acórdão tem de resultar de fundadas razões ou de argumentos jurídicos novos ou que não foram aí "convincentemente rebatidos

Abrantes Geraldes (ob. cit., p 397) adverte: “A jurisprudência uniformizada deve merecer da parte de todos os juízes uma atenção especial. (…) O respeito pela qualidade e pelo valor intrínseco da jurisprudência uniformizada do STJ conduzirá a que só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (…).

Ademais, a discordância deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior (…). Em suma, para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas.”

[6] V. art. 1753.º, n.º 1 do CCivil; v. Pires de Lima-Antunes Varela, ob. cit., IV, anotação ao artigo 1753.º [7] Exceções (v. n.º 2 do art. 571.º do CPCivil) são as objeções que obstam à apreciação do mérito da ação ou que determinam a improcedência total ou parcial do pedido, e não é disso que aqui se trata. A Autora parece nem se ter dado conta de que se a caducidade em causa funcionasse neste processo como uma exceção, então a consequência da sua pretendida procedência seria a improcedência da ação!

[8] Uma coisa é a perda de benefícios operar ipso jure, outra, muito diferente, é a sua imperatividade e a oficiosidade da declaração dessa perda. Acresce que, ao contrário do que diz a Autora, não se está perante matéria excluída da disponibilidade das partes.

[9] V. Menezes Leitão, ob. cit., p. 98, nota 221.

Fonte: http://www.dgsi.pt

Referências

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