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A santidade de Jaguaripe: catolicismo popular ou religião indígena?

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Academic year: 2018

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-A S-ANTID-ADE

DE JAGUARIPE:

CATOLICISMO

POPULAR OU RELIGIÃO INDíGENA?

hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

" N o s e r tã o d e s ta c a p ita n ia p a r a a s b a n d a s d e ja g u a r ip e s e le v a n to u

u m a e r r ô n e a id o la tr iagentilica, a q u a l s u s te n ta v a e fa z ia

wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

osb r a s is d e le s p a g ã o s , e d e le s c r is tã o s , e d e le s fo r r o s ,

e d e le s e s c r a v o s , q u e fu g ia m a s e u s s e n h o r e s p a r a a d ita id o la tr ia

(. ..Je tin h a m u m íd o lo d e p e d r a , a q u e fa z ia m s u a s c e r im ô n ia s e a d o r a v a m d iz e n d o q u e v in h a já os e u D e u s a liv r á - I a s d o c a tiv e ir o e m q u e e s ta v a m , e fa z ê - to s s e n h o r e s d a g e n te b r a n c a , e q u e o s b r a n c o s h a v ia m d e fic a r s e u s c a tiv o s .:,

(D epoim ento de G onçalo Fem andes ao Santo O fício, BA , 1592, citado por A zzi, 1987:87).

O

m ovim ento

religio-so conhecido por

Santidade de jagua-ripe deu-se por volta do ano

de 1585, no Recôncavo

Baiano. Sua história, ainda

pouco conhecida e

ana-lisada, é um daqueles

intrigantes episódios que se situam nos lim ites de fron-teiras culturais.

Inicialm ente organizado no lugar cham ado Palm eiras Com pridas, a Santidade teve com o prim eiro líder um ín-dio, ex-aluno de padres je-suítas, que havendo fugido do colégio em Tinharé, ca-pitania de Ilhéus, fundou o m ovim ento.

A ntônio, com o era cham

a-do o líder deste m ovim ento antes de ser caraíba, conhecia a m itologia heróica tupinam bá. D izia-se so-brevivente do dilúvio, fazendo-se cham ar por Tam an-duaré - .variante de Tam endonare, um dos gêm eos que sobreviveram à grande inundação, e um dos principais ancestrais daquela nação (V ainfas, 1992). O s seus seguidores, segundo o m esm o autor, for-m avafor-m ufor-m "ajuntafor-m ento eclético" de cativos e for-ros, que funcionava com o refúgio para os

arnerín-dios escravizados ou aldeados, independentem en-te de suas origens étnicas.

Parte deste m ovim ento, conta V ainfas, deslocou-se para o engenho de Fernão Cabral de Taíde, o

principal senhor de terras da região. Seguiram Tom acaúna (D om ingos Fernandes), m am eluco enviado sob or-dens do senhor de engenho, com a incum bência de trans-ferir o m ovim ento para suas terras, convencidos pelo em issário de Fem ão Cabral de que gozariam de liberdade de

culto e na esperança de

encontrar seu paraíso. A parte da Santidade que concordou em m igrar con-tava com cerca de sessenta a oitenta índios liderados por M ãe de D eus e Santinho. O líder principal não seguiu, e sobre esta outra parte do m ovim ento que perm aneceu em seu cam po de origem , por enquanto não se tem notícia.

N o engenho, os adeptos da seita construíram um a igreja, ao seu m odo, e expandiram o núm ero de seguidores, até m esm o entre os brancos. Sobre a igreja há relatos bem interessantes que nos dão um a

idéia de com o era o lugar:

" C o n t o u S i m ã o D i a s q u e , àp o r t a d o t e r r e i r o , n a c a s a e r i g i d a c o m o i g r e j a d o s í n d i o s , f i c a v a u m a c r u z d e p a u , e n o i n t e r i o r , p e n d u r a d a s p e l a s p a -r e d e s , d i v e -r s a s t a b u i n h a s d e m a d e i r a , p i n t a d a s c o m u n s r i s c a d o s 'q u e e l e s d i z i a m s e r e m s e u s l i -v r o s '. N o c e n t r o d o t e r r e i r o a p a r e c i a u m a e s t a c a a l t a d e m a d e i r a e n t e r r a d a n o c h ã o , s o b r e a q u a l

ISABELLE ORAl PEIXOTO DA SILVA

*

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R E S U M O

E s t e e n s a io a b o r d a u m m o v im e n t o r e lig io -s o in d í g e n a n o B r a s il d o s é c u lo X V I . T e m

c o m o o b je t iv o le v a n t a r q u e s t õ e s s o b r e o s e u

c a r á t e r e c o n t e ú d o c a t ó lic o - t u p in a m b á . P o r m e io d a id e n t if ic a ç ã o d o s e le m e n t o s d e s u a

c o m p o s iç ã o , q u e d e n o t a m u m a c o m p le x o e s t r u t u r a d e a m b ig ü id a d e s , t r a d ic io n a lis m o

e m u d a n ç a s , c h a m a a a t e n ç ã o p a r a a n e -c e s s id a d e d e u m a r e f le x ã o m a is p r o f u n d a ,

d e c u n h o c o m p a r a t iv o , a c e r c o d a s c o s m o -lo g ia s t u p i e c a t ó lic a .

* P r o f e s s o r a d e A n t r o p o lo g ia d o D e p a r t a m e n t o d e

C iê n c ia s S o c ia is e F ilo s o f ia d o U F C e d o u t o r a n d o d o

C u r s o d e C iê n c ia s S o c ia is d o U n ic a m p .

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s e p o s ta v a

wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o íd o lo d e p e d r a 'q u e tin h a u m a c a r a fig u r a d a c o m o lh o s e n a r iz e n fe ita d o c o m p a n in b o s

v e lh o s '; u m a fig u r a in c e r ta - c o n c lu iu a te s te m u -n h a , g u a r d a d a p o r u m ín d io a q u e c h a m a v a m s a -c r is tã o " (Vainfas, 1992: 190).

Outra referência que com pleta o panoram a so-bre a igreja cita um altar com castiçais, pia de batis-m o e confessionário, e a figuração do ídolo com o um gentio (Azzi, 1987: 198).

O fim deste m ovim ento foi trágico: considerado heresia, os índios foram expulsos, o dono do enge-nho punido e a igreja destruída. Entre os anos de 1591 e 1592 a Santidade foi reprim ida e devassada

pelo governador e pelo Santo Ofício.

Durante o processo inquisitorial, por ocasião da visitação do Santo Ofício, foi constatada

significati-va participação dos brancos na Santidade. Havia freqüentadores ilustres, com o a esposa do grande

senhor de engenho - M argarida da Costa -, que confessou ter participado durante dois m eses dos ritos indígenas, por ter convicção de que se tratava de prática católica:

'T in h a p a r a s i e d iz ia q u e n ã o p o d ia s e r a q u ilo d e m ô n io , s e n ã o a lg u m a c o is a s a n ta d e D e u s , p o is tr a z ia m c r u z e s d e q u e o d e m ô n io fo g e , e p o is fa -z ia m r e v e r ê n c ia s à s c r u z e s e tr a z ia m c o n ta s e n o m e a v a m S a n ta M a r ia . "(Depoim ento citado por Azzi, 1987: 196).

Outros depoim entos, com o o de Luíza Barbosa, não confirm am a livre adesão ao m ovim ento, sobre o que resta dúvida quanto a sua veracidade, m ediante a circunstância do relato:

"Confessando-se disse que sendo ela m oça de 12 anos pouco m ais ou m enos, se alevantou nesta ca-pitania, entre os gentios e índios deste Brasil cris-tão, se alevantou um a abusão cham ada entre eles a santidade, com o m uitas vezes depois disso se ale-vantou tam bém nesta capitania.

A q u a l e r a q u e d iz ia m

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o s d ito s b r a s is , a s s im c r is -tã o s c o m o g e n tio s , q u e a q u e la s u a s a n tid a d e e r a

u m D e u s q u e e le s tin h a m q u e lh e s d iz ia q u e n ã o tr a b a lh a s s e m p o r q u e o s m a n tim e n to s p o r s i p r ó -p r io s h a v ia m d e n a s c e r , e q u e q u e m n ã o c r e s s e n a q u e la s a n tid a d e s e h a v ia d e c o n v e r te r e m p a u s e p e d r a s , e q u e a g e n te b r a n c a s e h a v ia d e c o n v e r te r e m c a ç a p a r a e le s c o m e r e m , e q u e a le i d o s c r is tã o s n ã o p r e s ta v a , e a s s im d iz ia m , e ti-n h a m m u ito s o u tr o s d e s p r o p ó s ito s . "(Depoim ento citado por Azzi, 1987: 196).

Tudo leva a crer que houve um a grande pene-tração deste m ovim ento na sociedade colonial, par-ticularm ente na esfera dogm ática e litúrgica da Igre-ja. ão fora isto, não se justificaria a reação arrasa-dora das instituições coloniais contra ele. De

cará-66 Revisto de Ciências Sociais v.26 n.l/2 1995

ter em inentem ente anticolonial, representou um a am eaça por causa de sua capacidade de arregím en-tar escravos fugidos de toda a capitania e m em bros

de outros estratos étnicos e sociais, além de esti-m ular a form ação de outros núcleos de rebelião (Vainfas, 1992).

O desafio teórico que a Santidade de ]aguaripe nos im põe é entender o caráter de seu conteúdo católíco-tupinam bá.

Das descrições do m ovim ento podem os pinçar os com ponentes que são expressão de am bigüida-de: o céu, o batism o, os nom es, as orações, as con-fissões, as reverências ao ídolo e os objetos que com punham a igreja (altares, m esa, sacristia, pia de batism o, água benta, castiçais de pau, livros de fo-lhas de casca de árvore, cadeiras para confessar m ulheres, instrum entos m usicais, rosários e cruzes). Destes com ponentes tom am os o c é u e o b a tis -m o , por reunirem m ais elem entos, a partir dos quais podem os levantar algum as idéias.

Em sua pregação, a Santidade era o verdadeiro cam inho para se chegar ao c é u .Porém , "a qual céu se referia a pregação? Ao paraíso cristão ou à terra sem m al?" (Vainfas, 1992). O autor adm ite a possi-bilidade da noção do paraíso cristão ter sido inte-grada ao universo sim bólico da Santidade. Por outro lado, cita a parábola tupi freqüentem ente enuncia-da pelo caraíba, de que não seria m ais necessário trabalhar, posto que, caso a Santidade triunfasse, os alim entos nasceriam espontaneam ente da terra ou seriam caçados pela ação das próprias flechas.

Isso o leva a concluir por um a "confusão entre os dois paraísos", justífícada pela heterogeneidade dos adeptos da seita, não só índios, m as tam bém ne-gros e brancos.

A cerim ónia do b a tis m o dos novatos era presidi-da pelo caraíba, que fazia uso de água e de óleos no ofício. O nom e do estreante era escolhido pelo chefe religioso e tanto podia ser nom e cristão com o tupi. São nom es com o Papa (o do caraíba), M ãe de Deus (líder da Santidade em jaguaripe), Santinho ou Santíssim o (auxiliar de M ãe de Deus). Bispos e vigários são tam bém nom eados, não ficando claro se estas nom eações denotavam a reprodução da instituição clerical ou apenas o uso dos nom es, sem

os seus significados.

Em todo caso, em bora a cerim ônia do batism o fosse um a afirm ação do ritual católico, o seu signifi-cado era a negação do batism o cristão. M as aqui se coloca um a questão: esta negação levava de volta à

condição indígena ou apontava para um a purifica-ção do ritual católico? Em bora este evento possa ser

visto com o a negação do batism o cristão, por

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aperfeiçoam ento deste sacram ento.

Nesse caso, o batism o não seria a negação dos preceitos do catolicism o. Seria a negação da prática dos padres, considerada incongruente com os seus preceitos doutrinários.

Enfim , tanto para o tem a do céu com o para o tem a do batism o, é necessário um a investigação m ais profunda para que se possa perceber m ais a contendo os sentidos que tiveram .

Elem entos m ais genuinam ente indígenas nós encontram os na virtude do caraíba de falar com os espíritos, na separação entre hom ens, m ulheres e crianças, durante os cortejos que seguiam o líder, nos bailes, no uso da erva-santa, nas possessões, nos cantos e nas defum ações. Sobre esses com ponentes não há equívoco quanto a sua origem nativa.

Deixando um pouco de lado a Santidade de Ja-guaripe, façam os um a incursão pelas prim eiras nar-rações sobre Santidades, por m eio das cartas dos jesuítas dos anos de 1550, para poderm os com pa-rar a Santidade de 1585 com suas predecessoras.

As cartas dos jesuítas Pero Correia e João de Azpi-lcueta inform am sobre a grande autoridade que os ditos "santos" exerciam sobre os dem ais, as predições que faziam quando incorporados por espíritos e a capacidade de dar saúde e vitória (Navarro, 1988: 121,123,173). Tudo isso contado com espanto pelos religiosos, a título de "errores", sendo os santos vistos com o em busteiros, antes de qualquer coisa.

Apesar do teor dos relatos, as descrições são m uito ricas. O m esm o Pero Correia assim descreve a m a-nufatura do ídolo, o festejo em sua honra e o poder

de vida e de m orte do santo:

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" E s t e sfa z e m u m a s c a b a ç a s a m a n e i r a d e c a b e ç a s , c o m c a b e l t o s , o l h o s , n a r i z e s e b o c c a c o m m u i -t a s p e n a s d e c o r e s q u e l h e s a p e g a m c o m c e r a c o m p o s t a s á m a n e i r a d e l a v o r e s e d i z e m q u e a q u e l l e s a n t o q u e t e m v i r t u d e p a r a l h e s p o d e r v a l e r e d i l i g e n c i a r e m t u d o , e d i z e m q u e f a l t a , e á h o n r a d i s t o i n v e n t a m m u i t o s c a n t a r e s q u e c a n t a m d i a n t e d e l l e , b e b e n d o m u i t o v i n h o d e d i a e d e n o i t e , f a -z e n d o h a r m o n i a s d i a b ó l i c a s , e j á a c o n t e c e u q u e a n d a n d o n e s t a s s u a s s a n t i d a d e s ( q u e a s s i m a c h a -m a -m e l l e s ) f o r a -m d u a s l í n g u a s , a s m e l h o r e s d e s t a t e r r a , l á e m a n d a r a m - a s m a t a r . T ê m p a r a s i q u e s e u s s a n t o s d ã o a v i d a e a m o r t e a q u e m q u e r e m . "

(Navarro, 1988:123-24).

A hostilidade dos "santos" em relação aos m issio-nários aparece constantem ente nas cartas. Por outro

lado, não ficava por m enos a revanche dos jesuítas dirigida contra os santos e tam bém contra os feiticeiros, estes de grau inferior na hierarquia da pajelança indígena, a quem os padres tributavam o

m aior em pecilho à catequese. Podem os ver isto na

história narrada pelo jesuíta Antonio Blasquez, que conta um caso em que um feiticeiro foi denunciado,

e m c o n f i s s ã o , após o que foi preso por um em pregado do governador. A repercussão deste fato foi tão assustadora que provocou a denúncia de outros feiticeiros (incitada pelos padres), dos quais m ais dois foram presos e depois de libertos se subm eteram aos jesuítas. Com o conseqüência, ninguém m ais se atreveu a usar publicam ente feitiçaria (Navarro, 1988: 333-34).

Um a outra carta m uito instigante que trata da re-lação entre santos e padres é a do Pe.Vicente Rodrigues. Apesar de extensa, vale a pena a sua reprodução:

" N a c a p i t a n i a d e P e r a n a m b u c o v i n h a m

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o s G e n -t i o s d e s e i s , s e -t e l é g u a s á f a m a d o s P a d r e s , c a r r e

-g a d o s d e m i l h o e d o q u e t i n h a m p a r a l h e s o J f e r e c e r , e s i s a b i a m p o r o n d e h a v i a m d e p a s s a r , s a b i a m -l h e s a o c a m i n h o c o m m u i t o m a n t i m e n t o , d i z e n d o l h e s q u e l h e s d e i t a s s e a b e n ç a m . N a m e s m a c a p i -t a n i a e m u m a a l d ê a o n d e p u z e r a m u m a c r u z , a g u a r d a v a m o s P a d r e s c o m m u i t a o f f e r t a a o p é d a c r u z p a r a q u e o P a d r e q u e p o r a l i f o s s e l h e s d e i t a s s e a b e n ç a m , e h a v e r i a n a q u e l l a a l d ê a c e m h o m e n s d o s q u a e s a m a i o r p a r t e s e f i z e r a m c a t e c h u m e n o s . P a l a q u a l a l d ê a a c o n t e c e u d 'a b i a p o u c o s d i a s p a s s a r u m s e u f e i t i c e i r o e m q u e e l l e s t ê m g r a n d e c r e d i t o e a j u n t a r a m - s e o s c a t e c h u m e n o s e l a n ç a r a m - n o f ó r a , d i z e n d o q u e j á t i n h a m o u t r a l e i e m q u e v i v i a m . E s t e f e i t i c e i r o , v e n d o o c r é d i t o q u e o s P a d r e s t i n h a m c o m o G e n t i o , d i z i a q u e e r a s e u p a r e n t e e q u e o s P a d r e s d i z i a m v e r d a d e e q u e e l l e j á m o r r e r a e p a s s a r a d e s t a v i d a e t o r n a r a a v i v e r c o m o d i z i a m o s m e s m o s P a d r e s , e q u e p o r t a n t o c r e s s e m n e l l e , p e d i n d o - l h e s u a s f i l h a s e d a v a m - l h a s . N e s t e t e m p o t o r n a r a m o s P a d r e s a p a s s a r p o r a q u e l l a p a r t e e d i s s e r a m - l h e c o m o a q u i l l o t u d o e r a m e n t i r a . T o m a r a m d i s t o t a n t a p a i x ã o q u e f o r a m e m b u s c a d o f e i t i c e i r o e o

m a t a r a m . "(Navarro, 1988:144).

A narração nos faz ver a sem elhança entre o ritual de recepção aos padres e a cerim ônia de chegada dos santos nas aldeias, que consistia na oferenda de

m antim entos e na expectativa de receber bênçãos. O episódio do feiticeiro é fabuloso. Já nos dá um a m ostra da capacidade de criação ardilosa do profeta, com o ele conseguiu lidar e m anipular elem entos da cosm ologia cristã, para no final reafirm ar a sua condição de profeta, ainda que o resultado tenha sido desastroso para ele.

A descrição m ais com pleta de um a cerim ônia de Santidade está num a carta m ais antiga, do Pe.

Nóbrega, que assim relata:

" S o m e n t e e n t r e e l t e s s e f a z e m u m a s c e r i m o n i a s

(4)

d a m a n e ir a s e g u in te : d e c e r to s e m c e r to s a n n o s v e m u n s fe itic e ir o s d e m u i lo n g e s te r r a s , fin g in d o tr a z e r s a n tid a d e e a o te m p o d e s u a v in d o lh e m a n -d a m lim p a r

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o s c a m in h o s e v ã o r e c e b ê lo s c o m d a n -ç a s e fe s ta s , s e g u n d o s e u c o s tu m e ; e a n te s q u e c h e g u e m a o I o g a r a n d a m a s m u lh e r e s d e d u a s e m d u a s p e la s c a s a s , d iz e n d o p u b lic a m e n te a s fa lta s q u e fiz e r a m a s e u s m a r id o s u m a s á s o u tr a s e p e -d in -d o p e r -d ã o d e lta s . E m c h e g a n d o o fe itic e ir o c o m m u ita fe s ta a o lo g a r e n tr a e m u m a c a s a e s c u r a e p õ e u m a c a b a ç a q u e tr a z e m fig u r a h u m a n a , e m p a r te m a is c o n v e n ie n te p a r a o ss e u s e n g a n o s . M u -d a n -d o a p r o p r ia v o z e m a d e m e n in o ju n to d a c a b a ç a lh e s d iz q u e n ã o c u r e m d e tr a b a lh a r , n e m v ã o á r o ç a , q u e o m a n tim e n to p o r s i c r e s c e r á , e q u e n u n c a lh e s fa lta r á q u e c o m e r , e q u e p o r s i v ir á á c a s a , e q u e a s e n x a d a s ir ã o a c a v a r , e a s

frechas ir ã o a o m a to p o r c a ç a p a r a s e u s e n h o r e q u e h ã o d e m a ta r m u ito s d o s s e u s c o n tr a r io s e c a p tiu a r â o m u ito s p a r a s e u s c o m e r e s e p r o m e te -lh e s la r g a v id a , e q u e a s v e lh a s s e h ã o d e to r n a r m o ç a s e a s filh a s q u e a s d e e m a q u e m q u is e r e m e o u tr a s c o u s a s s e m e lh a n te s lh e s d iz e p r o m e tte , c o m q u e o s e n g a n a , d e m a n e ir a q u e c r e e m h a v e r d e n tr o d a c a b a ç a a lg u m a c o u s a s a n ta e d iv in a , q u e lh e s d iz a q u e lta s c o u s a s , a s q u a e s c r e e m . A c a b a n d o d e

fa la r

wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

ofe itic e ir o c o m e ç a m a tr e m e r , p r in c ip a lm e n te a s m u lh e r e s , c o m g r a n d e s tr e m o r e s e m s e u c o r p o ,

q u e p a r e c e m e n d e m o n in h a d a s ( c o m o d e c e r to o

s ã o ) , d e ita n d o - s e e m te r r a , e e s c u m a n d o p e la s b o c a s e n is to lh e s p e r s u a d e ofe itic e ir o q u e e n tã o lh e s e n tr a a s a n tid a d e . "(N avarro, 1988: 419-20, nota 200).

H á ainda os relatos leigos que se referem a socie-dades não subm etidas à catequese. A parecem no-vam ente os bailes, o fum o, a cabana com o lugar da cerim ônia, a pintura e o enfeite dos m aracás, a oferta de presentes ao pajé, a exclusão das m ulhe-res e das crianças do ritual, o transe m ístico do pajé, a defum ação dos m aracás, os diálogos com a santi-dade incorporada nos m aracás, e a transform ação dos chocalhos em ídolos, que eram fincados no chão e presenteados com com ida e cabanas individuais.

A descrição de Jean de Léry 0557-58) traz de diferente o fato de que os caraíbas vistos por ele andavam em grupos de até doze hom ens, a m en-ção às cançôes que se referiam explicitam ente à

m itologia heróica dos tupi, particularm ente ao dilú-vio e à sobrevivência dos antepassados trepados

nas árvores, e o período de três sem anas que os m aracás passavam até adquirirem santidade e o poder de transm itir a fala dos espíritos, quando sa-cudidos (segundo V ainfas).

D e todos esses relatos transcritos, façam os um a reflexão sobre os tem as do c a r a im o n h a g a , do id o

-6 8 R e v i s t o d e C i ê n c i a s S o c i a i s v . 2 6 n . 1 j 2 1 9 9 5

10,das p r e g a ç õ e s e da c r u z .

Pensam os que a cerim ônia do c a r a im o n h a g a era o centro do ritual da santidade. Por m eio dela cada m aracá passava a ser receptáculo da santidade,

por-tanto objeto sagrado, digno de receber oferendas. A presenta-se então um a distinção entre o caraíba e a santidade. O profeta era aquele que se com unica-va, incorporaunica-va, tinha o poder de transm itir e dialo-gar com a santidade, m as não era ele próprio divi-no. H avia um a entidade que se diferenciava dele, que tinha existência própria.

A perm anência desta cerim ônia do c a r a im o n b a g a

na Santidade de Jaguaripe é citada por V ainfas, ain-da que não exploraain-da com a ênfase que lhe é devi-da (acreditam os):

" N a ig r e ja s e m p r e ilu m in a d a , p a r a o q u e s e u tiliz a v a m to c h e ir o s e c a s tiç a is d e p a u , o á p ic e d a c e r im ô n ia r e s id ia n o u s o d o p e tim o u e r v a -s a n ta . R a z ã o d e s e r d o c u lto , a d e fu m a ç ã o c o m a s fo lh a s d a e r v a o u a s u c ç ã o d e s u a fu m a ç a e r a o

q u e tr a n s m itia a 's a n tid a d e ' ( o u oc a r a im o n h a g a ) p a r a o s fié is . T r a n s m itia - s e in ic ia lm e n te p a r a o s

p r in c ip a is ' d a s e ita , e d e p o is p a r a o s o u tr o s , q u e a s o r v ia m 'a té c a ír e m b ê b a d o s ' o u c o m e ç a r e m a d a n ç a r e a s e m o v im e n ta r 'c o m to d o s o s m e m b r o s d o c o r p o '.A p r ó p r ia fu m a ç a e r a , p o r is s o , d iv in a ,

o q u e s e p o d e c la r a m e n te p e r c e b e r n a e x a lta ç ã o fe r v o r o s a d e u m c e r to a d e p to : 'B e b a m o s ofu m o , q u e e s te é o n o s s o D e u s q u e v e m d o P a r a ís o ! '

(V ainfas, 1992: 193).

D iríam os que há aí um a pequena sutileza, em que a ênfase dada ao petim na verdade deve ser dirigida ao c a r a im o n h a g a . A razão de ser do culto não esta-va no petim , m as na transm issão da santidade. A transm issão não era decorrência, m as o essencial da cerim ônia. O petim , em bora de extrem a relevân-cia, era o veículo de contato com a santidade.

D e todo m odo, tam bém aqui é preciso investigar m ais, até m esm o para constatar ou não diferenças no

sentido

desta cerim ônia, entre as prim eiras San-tidades e a de 1585.

N ão obstante, ainda que centrada no uso do petim (e não na transm issão da santidade), a cerim ônia do

c a r a ir n o n b a g a talvez fosse o que havia de funda-m ental na Santidade de Jaguaripe, em term os de

continuidade

das Santidades descritas nos prim

ei-ros relatos dos jesuítas.

A Idéia e a figura do íd o lo estavam com pleta-m ente instauradas em Jaguaripe. A sua im agem foi construída em m árm ore, m edia 66 centím etros e se apresentava vestido com panos.

(5)

-g e m q u e a t r a í a c o p i o s o n ú m e r o d e e s c r a v o s b r a s i s

p a r a a s f i l e i r a s d o m o v i m e n t o .

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O d e u s q u e

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os l i -v r a r i a d a e s c r a -v i d ã o e r a o í d o l o T u p a n a s u ( d e u s

g r a n d e ) o u op r ó p r i o c a r a i b a q u e o e n c a r n a u a , o

q u a l t a m b é m s e d i z i a d e u s e s e n h o r d o m u n d o ."

(Vainfas, 1992: 186).

A nova figuração do ídolo pode ser com preendi-da com o um a espécie de continuação adaptada, enriquecim ento do culto indígena, que lhe deu nova roupagem sem m udar o conteúdo. Com o lem bra Azzi, os índios tam bém assim ilaram elem entos do culto católico, ou com o form a de defesa do próprio culto ou com o m eio de prom oção da própria re-ligião, abrilhantada com elem entos da cultura dos conquistadores, de quem adm iravam o nível de ci-vilidade. Este autor sugere m esm o, no reverso da m edalha, um a pedagogia catequética, em que os indígenas usariam técnicas análogas às dos jesuítas, para a conversão ao seu culto.

a conteúdo das prim eiras p r e g a ç õ e s tinha um caráter heróico e idílico (não plantar, não caçar, re-m oçar, longa vida, saúde, vitória sobre os inim igos).

A sua associação ao m ito da terra sem m al foi pensada inicialm ente por M etraux, que via um a reedição ou continuação da tradição tupí naqueles m ovim entos do século XV1.

M etraux supunha um a diferenciação entre os m ovim entos m essiânicos dos índios tribalízados e dos destribalizados. Em bora nas duas situações

represen-tem soluções tradicionais diantes da desorganização social e cultural provocada pela condição colonial, que am eaça a tradição e a existência, os m ovim entos dos destribalizados se caracterizam por um a "m escla heteróclita de tem as pagãos e cristãos":

" A l g u n s m o v i m e n t o s t ê m t i d o u m c a r á t e r s in c r é tic o ; o u t r o s , a p e s a r d e c e r t o s p r é s t i m o s d o c a t o l i c i s m o , e x p r e s s a v a m c r e n ç a s e v a l o r e s p u r a m e n -t e i n d i g e n a s . ( . ..) E m u m a -t i p o l o g i a d o m e s s i a n i s m o s u l a m e r i c a n o , t a i s m o v i m e n t o s [ d o s m e s s i a s T u k a -n o , d e 1 8 8 0 ] s e a p a r e -n t a m c o m os q u e s e p r o d u z i -r a m e m 1578[?]n a r e g i ã o d a B a b i a e n t r e os í n d i o s t u p i n a m b â s m e i o c r i s t i a r i i z a d o s , a s s i m c o m o n a z o n a m i s s i o n e i r a d o P a r a g u a i . D i s t i n g u e m - s e d o s m e s s i a n i s m o s d a T e r r a s e m m a l p e l o s p r é s t i m o s d o c r i s t i a n i s m o e p o r s u a s t e n d ê n c i a s x e n ó f o b a s . S ã o r e v o l t a s d e í n d i o s d e s g r a ç a d o s e n ã o - t r i b a l i z a d o s . "

(M etraux,1973: 15,29).

As tendências xenófobas são evidentes na Santi-dade de ]aguaripe. Há sem pre o apelo a "livrar do cativeiro" e "tornarem -se senhores dos brancos". Talvez até pudéssem os dizer que há um a

acentua-ção no caráter m essiânico deste m ovim ento. A san-tidade agora tem nom e próprio (Tupanasu) e dife-rentem ente dos m ovim entos originais, cujas m

en-sagens enfatizavam o advento da terra sem m al (ca-ráter m ais rnilenarista), a ênfase passa a ser no Deus,

no m essias que vem salvar.

a que tem os de realm ente novo em ]aguaripe é o sím bolo da c r u z ,a prinápio usada no lugar das m aracás e que depois adquire lugar próprio, na porta da igreja. Este pode ser um sinal verdadeiram ente sincrético, que se separa dos outros pontos considerados anteriorm ente. Parece ser o caso de um a absorção do culto católico, a m erecer m aior apreciação.

Contudo, m esm o com todas as m odificações de-tectadas até agora no m ovim ento religioso do Recõncavo Baiano, consideram os prem aturo che-gar a um a posição conclusiva sobre o seu caráter sincrético ou de religião "puram ente" indígena, dada a com plexidade de sua com posição que reúne ele-m entos am bíguos, tradicionais, transform ados e novos. Algum as questões fundam entais, colocadas pelo próprio M etraux, ainda carecem de um olhar m ais profundo e com pleto:

" Q u e i m p o r t â n c i a d e v e m o s a t r i b u i r à s p r á t i c a s c r i s t ã s a d o t a d a s p e l o s p r o f e t a s ? T r a t a s e d e s i m p l e s i m i t a ç õ e s d e s t i n a d a s a a c r e s c e n t a r s e u p r e s t í -g i o o u d e u m v e r d a d e i r o s i n c r e t i s m o ? S ã o e s t e s

m o v i m e n t o s o r e s u l t a d o d e u m e f e i t o d e d e s o r g a -n i z a ç ã o s o c i a l o u c u l t u r a l p r o d u z i d a p e l o c o n t a t o c o m a c i v i l i z a ç ã o e u r o p é i a o u s ã o s i m p l e s m e n t e f o r m a s m a i s a g u d a s d e u m m i s t i c i s m o i n d í g e n a ? "

(M etraux, 1973:7).

Ao lado dessas questões, há ainda um a outra or-dem de problem a que, pensam os, precisa ser en-frentada. Trata-se de cogitar sobre as hom ologias, um a certa sim ilitude entre elem entos da cosm ologia tupi e cristã; o que poderia estar na base do im bri-cam ento tupinam bá-católico presente no m ovim en-to de ]aguaripe.

Por outro lado, é fundam ental não perder de vista a dinâm ica inerente à própria cosm ologia Indígena, que tam bém desenvolveu (e desenvolve) o seu processo particular de transform ações.

Sabe-se lá se, ao final de um longo m ergulho na Santidade de ]aguaripe, não se chegará sim plesm en-te à conclusão de que procurar por "fronteiras

cul-turais" é coisa de antropólogo ...

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Referências

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