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We re back! carta ao LEITOR. Flavio Morgenstern Editor-chefe

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Academic year: 2021

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carta ao LEITOR

We’re back!

Criar um portal do zero foi definitivamente o trabalho da minha vida: mais difícil até do que escrever um livro com o tamanho de 3 teses de doutorado, pois um livro depende só de mim. Com tantas reviravoltas, decepções, brigas e tramóias, vê-lo de pé ainda é uma vitória que posso comemorar todo dia.

É difícil fazer um site pequeno, sem equipe: temos de ser o produtivo, o executivo, o admi-nistrativo, o jurídico, o financeiro, o marketing, o estagiário de mídias sociais e a tia do café, tudo ao mesmo tempo. Muitos costumam me perguntar como é a vida de um escritor. É fácil responder: é resolver burocracia e pepino que nem é seu o dia inteiro. Às vezes, sobra tempo para escrever, 11 da noite. E, com freqüência assustadora, sábado e domingo. Mas a sensação de realizar algo é indizível.

Após quase dois anos de mudanças, planeja-mentos e tentativas de fazer algo diferente para nossos leitores, pensamos em escrever mais longamente e retomar o projeto da revista para nossos patronos, que todo mês era motivo de reuniões, ligações e tentativas que nunca vinga-vam. E voltamos com o pé no peito: um artigo maior do que muita iniciação científica sobre o assunto que mais é falado nesse mês: a forma como Trump pode ter conseguido encerrar a Guerra da Coréia, e como foi que ele dobrou ninguém menos do que Kim Jong-un, o ditador do país mais totalitário do planeta, até levá-lo à mesa de negociações.

Esperamos que o leitor aprecie ter um site de divulgação geral de conteúdos, mas também

temas mais complexos, com textos que não ca-bem no formato acabado de um site, onde tudo é preciso ser dito de maneira mais apressada, suprimindo detalhes e longas análises históri-cas, além de ter de ser agradável ao Google e ao formato da web. Uma revista que sirva para discutir estratégias, análises mais longas, diag-nósticos detalhados.

Tudo isto com a qualidade que o leitor do Senso Incomum espera e exige. Com esta re-vista, esperamos poder bancar mudanças e me-lhorias no seu portal preferido, que ainda pode crescer muito e irritar muito mais pessoas do que irritou ainda. Por isso, se gostou do conte-údo exclusivo, não esqueça de fazer propaganda para seus amigos se tornarem nossos patronos também – serão mais almas conquistadas (ou mais amizades perdidas) e um projeto conquis-tando cada vez mais espaço.

Esperamos ainda inverter um pouco nossa equação – quem sabe, futuramente, mais do que um site com uma revista, não consigamos pensar em ser uma revista com um site? Tudo isso depende de termos mais patronos como você.

Obrigado a todos por nos terem apoiado e contribuído com o projeto mesmo com os atra-sos intermináveis que tiraram nosso sono até aqui!

Que a revista te ajude a se tornar mais sábio e perder amigos!

Abraço,

Flavio Morgenstern

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29

22

04

A direita

entrincheirada

Armas nucleares,

diplomacia e aço

Lula pós-lulismo:

o presidiário candidato

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U

ma sinuca de bico de meia hora. Um míssil balístico interconti-nental (ICBM - Intercontiinterconti-nental Ballistic Missile), armado com material nu-clear, levaria este tempo para sair da Coréia do Norte e atingir Los Angeles. Apesar de Donald Trump ter simplesmente tweetado

“It won`t happen!”,1 a preocupação

ameri-cana com a Coréia do Norte sempre foi, é e continuará sendo mais do que real, apesar de qualquer acordo de paz em construção. Diplomacia, afinal, é a arte de cumpri-mentar seu oponente sempre tendo uma

1 https://twitter.com/realdonaldtrump/sta-tus/816057920223846400

faca nas costas. O medo é real justamente porque ninguém sabe de fato qual o poder de fogo de Kim Jong-un. E quem ousaria não levar um louco a sério?

A longo prazo, o plano da América de-veria ser o de acabar com o arsenal atômico de seus potenciais adversários históricos. Qualquer pessoa com noção de realidade consideraria o Irã e o regime dos Kim as pedras nos sapatos americanos. Apesar de toda a retórica pacifista e aparentemente mais diplomática e menos guerreira dos Democratas (é o que tentam vender a seu eleitorado e ao mundo, ao menos), foi jus-tamente o Partido de Hillary que permitiu que os países mais fechados, opressores e

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misteriosos do mundo tivessem o pode-rio bélico que possuem hoje: a Coréia do Norte com o acordo de 1994 de Genebra, o aclamado Agreed Framework, que só

pos-suiu duas páginas (íntegra aqui2), assinado

por Bill Clinton, e o Irã com o não menos irresponsabilíssimo acordo que permitiu que o totalitarismo de Mahmoud Ahmadi-nejad desenvolvesse urânio e fosse avisado com 30 dias de antecedência de qualquer inspeção por organismos internacionais (sic). No plano histórico, a América tem como política externa explícita por todo o século XX um movimento pendular: Democratas fortalecem inimigos da liber-dade em nome de alguma idéia pontual, e Republicanos tentam consertar o desastre esperado algum tempo depois, gerando ainda mais encrenca. Kennedy e Nixon seriam as exceções genéricas de cada lado.

Todavia, as regras gerais da diplomacia e da geopolítica encontram na Coréia do

Norte o seu limite. Simplesmente nada

do que funciona para o mundo, incluindo ditaduras de Terceiro Mundo, a Ummah islâmica e o bloco comunista restante, funciona para a Coréia do Norte. Mesmo o Irã e seu programa de mullahs atômicos parece seguir alguma noção de realidade inatingível à dinastia Kim. Simplesmente ninguém sabe o que acontece de verdade no país. E não seria algo, digamos, normal que funcionaria para Kim.

2 https://www.nti.org/media/pdfs/aptagframe.pdf

Socialismo à coreana

A Coréia do Norte, criada ad hoc na úl-tima guerra entre Japão e China, vive do chamado socialismo juche: versão ultra-s-talinista do comunismo soviético, tem o

isolacionismo absoluto como seu grande

dogma. Além da Coréia do Norte, apenas a Romênia de Ceaușescu experimentou a versão juche, que causou ainda mais fome, miséria e exigia mais repressão do que o desespero médio da Cortina de Ferro. Sem produção, a Coréia do Norte vive na práti-ca de mesada da China – que enche ao me-nos o bolso de seu ditador, que pode tratar toda a sua população como mercadoria e propriedade, tornando o país o mais cor-rupto do mundo (o que não é corrupção no regime de Kim?).

Na prática, todos os Kim mantiveram seu regime de pé pois ninguém ousaria entrar em guerra aberta contra seu quase único aliado: a China comunista e seu exército, que além de gigantesco, pode muito bem ser suicida: pela filosofia orien-tal, potencializada pelo materialismo do marxismo-leninismo e do maoísmo, cada soldado pode ser quase uma versão con-tinental de um kamikaze, travando uma guerra com violência e baixas não vistas nas guerras atuais, mesmo contra o Estado Islâmico ou a al-Qaeda. É por conta disso que parece que todo o dinheiro na Coréia

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do Norte que não seja gasto com alimenta-ção de subsistência e gastos luxuosos para a dinastia é torrefeito em demonstrações públicas de seu arsenal nuclear. De fato, não se sabe e nem se vê nada do país além de desfiles militares. A mensagem não pre-cisa ser decifrada: Kim vive pela força, seu regime é força, sua lógica é força, sua mo-vimentação é força, sua linguagem é força. E nada existe além da força. Se Marx se embebedou de Maquiavel, Kim Jong-un é a própria razão pela qual a Igreja colocou O Príncipe no Index Librorum Prohibitorum.

O simbolismo militar é muito forte. São famosas as marchas com homens e mulhe-res andando em passo sincrônico elevando a perna até quase a cintura a cada passo. Além da mensagem clara de que Kim possui obediência de sua população com uma mão de ferro maior do que qualquer inimigo da América, também demonstra que seus soldados são peças descartáveis que obedecem ao país sem se importar com sua própria vida: cada passo em tais marchas causa uma dor profunda, dificil-mente permitindo que o soldado marche por mais do que 15 minutos. A obediên-cia para a sincronização é desumana, e a completa inutilidade do gesto demonstra tão somente o quanto Kim faz com que as cenas mais brutais do exército dos Imacu-lados de Daenerys Targaryen, em Game of Thrones, pareçam apenas uma matinê in-fantil. Resta saber a conseqüência: quanto Kim consegue ter de poder de destruição

de facto, e não apenas de auto-destruição no seu teatro de guerra? Afinal, quanto de seu poder nuclear ofensivo é verdadeiro? Desde Sun Tzu e do Oráculo de Delfos sabe-se que se deve conhecer a si mesmo e ao inimigo. No caso norte-coreano, a segunda informação é impossível. Como fica a situação? Deve-se ter em mente ainda que após a retirada americana da Coréia, a busca por um arsenal nuclear foi a única obsessão do regime para ficar de pé. Kim Jong-un, desde seus cerca de 20 anos em 2006, conheceu seu país já nuclearizado. Todavia, daquela pequena bomba atômica até o último setembro, falamos agora de uma provável bomba de hidrogênio bem pior do que as de Hiroshima e Nagasaki.

Além da análise política, é preciso também fazer uma análise cultural. In-dustrializada à toque de caixa na metade do século XX, a Coréia como um todo era ainda um país rural de tradições que ultrapassam as raias do ridículo para qual-quer ocidental que busque compreendê-la. Os mitos sobre o fundador da Coréia do Norte, Kim Il-sung, avô de Kim Jong-un, são um show à parte: seu nascimento teria sido “sobrenatural”, com uma nova estrela e um arco-íris duplo o “anunciando”, além de um iceberg falante. As estações do ano teriam se invertido, mudando do inverno para a primavera (não foi bem portanto uma inversão, e é difícil entender o que teria ocorrido com o iceberg). As cartilhas do governo descreviam, por exemplo,

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que o corpo de Kim Jong-il não produz fezes e nem urina (sic). Num país viciado na idéia de uma superioridade racial, mas sofrendo com a baixa estatura conhecida dos orientais, os Kim só apareciam em pú-blico com sapatos com mais de 10 cm de plataforma, proibidos aos oficiais que os acompanhavam (Mao, por outro lado, era naturalmente mais alto do que Stalin). Há relatos de experiências com seres humanos piores dos que as de Josef Mengele, bus-cando criar altura artificial estibus-cando ossos e outras cenas de filme de terror nível “Centopéia Humana”.

Este arcabouço mitológico também se reflete na política: sendo um salvador mí-tico do povo e fundador de nação no mol-de das antigas religiões étnicas (opostas, por exemplo, ao cristianismo, um corpo doutrinal de evangelização), Kim Il-sung e seus descendentes não saíam do espaço conquistado como soberano da Coréia do Norte por nada, preferindo obrigar os chineses a visitar Pyongyang. Um passo fora de sua soberania e seu poder absoluto, mas circunscrito, estaria liquidado na mi-tologia popular. Nem mesmo Bill Clinton foi capaz de tirar Kim Jong-il da Coréia do Norte. Se apenas reuniões nível “fim do mundo” com chineses foram capazes de fazer Kim Jong-un visitar Beijing em 2018, a idéia de um encontro entre o mais novo Kim e Donald Trump em uma zona neutra (no caso, Singapura) pode parecer mero detalhe para analistas ocidentais,

mas é praticamente uma ressurreição ao terceiro dia filmada ao vivo para um nor-te-coreano. E no sentido oposto: seu país parece estar se acabando a olhos vistos. Nada mais curioso que o estopim para esta mudança tenham sido uma série de tweets do atual presidente americano, fazendo algo que parece uma piada (“Meu botão nuclear é maior e funciona!”), mas que só é engraçado quando o alvo não é você. E quando você não sabe que é verdade. Pior: além de Donald Trump conseguir arrancar Kim da Coréia do Norte, ainda o faz logo depois dos testes norte-coreanos com mís-seis que prometem ser capazes de atingir a América e quase todo país civilizado do mundo. O Ocidente pode não entender o quanto Trump conseguiu mostrar força sobre Kim quando a Coréia do Norte mais ficou forte. Infelizmente para Kim, talvez os norte-coreanos consigam.

Deve-se ter em mente, afinal, que sendo um socialismo juche, a Coréia do Norte estava isolada inclusive da Internacional Comunista (não à toa, sobreviveu como regime à queda da União Soviética), e não possui relações tão sólidas com o socia-lismo e a esquerda mundial. Apesar dos arroubos ideológicos do PT, por exemplo, que inaugurou uma embaixada brasilei-ra em Pyongyang, não há laços firmes e acordos comerciais, militares e políticos do regime de Kim com o resto do mundo, excetuando-se a China (e, digamos, uma complacência da Rússia, que, apesar de

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estar pouco se lixando para o totalitarismo norte-coreano, pode muito bem usá-lo para contrabalancear o poderio americano e da União Européia no globo). Sem com-bustível e alimentos vindos da China, nem mesmo Kim parece ter chance de ter o que comer e de ter como ligar a TV para assistir a jogos da NBA. Seu objetivo primordial é a sobrevivência do regime Kim (sem o qual a Coréia do Norte simplesmente dei-xará de existir). O respeito internacional vem a seguir, e ambos são conquistados

com armas nucleares – quem se preocupa

com o Butão ou Madagascar? Todavia, a Coréia do Norte é motivo de notícia dia sim, dia também. Só depois de conquistar a sobrevivência do regime e o respeito da comunidade internacional a dinastia Kim pensa em melhorias econômicas.

Ou seja: nem mesmo o globalismo ocidental possui qualquer relação com a Coréia do Norte (ou o complexo russo--chinês), como possui com outras formas espalhadas de socialismo, como o Foro de São Paulo ou o socialismo fabiano britâ-nico. E, de fato, na época em que Kim Il--sung fundou a Coréia má, Mao Tsé-tung implantava um comunismo ortodoxo com mão de ferro na China que tinha como principal diferença do socialismo juche tão somente uma internacionalização. Mao criou a expressão “Terceiro Mundo” após ver que não conseguiria tomar a frente da União Soviética na Terceira Internacional, tendo como prêmio de consolação liderar

as republiquetas populares falidas que vi-viam longe do capitalismo em uma frente que poderia fazer peso pelo número de ha-bitantes, apesar da economia e do padrão de vida sofrível.

Naquela época, fazia sentido para Mao apoiar a experiência do socialismo esquisi-tão, mudo no fundo da classe. Hoje, que ligação umbilical a China possui com a Coréia do Norte, se a China abriu o mer-cado já na década de 70, está interessada no seu fortíssimo capitalismo de Estado, e sua relação ideológica com os Kim é uma bruma no passado que tem se tornado cada vez mais onerosa? Afinal, o que o Gu-lag coreano tem a ver com o capitalismo chinês? O governo de Beijing não cansou de dar sinais nos últimos anos, sobretudo quando Republicanos ganhavam poder no Congresso americano, de desgaste com as estripulias dos Kim, e a brincadeira comu-nista oscila entre a capacidade de ameaçar o Ocidente, quando a América e as potências capitalistas exigem mais abertura política na China, e admitir que é um brinquedo custando caro e em desuso.

Trump, por sinal, estava na China quan-do ordenou bombardear a Síria, e fez Xi Jinping impor novas sanções à Coréia do Norte. Ordenou ainda 8 meses de exer-cícios militares de chineses com aliados, incluindo americanos, ao redor do país en-crenqueiro. Mantendo uma tradição desde que George H. W. Bush retirou arsenais nucleares americanos outremer em 1991,

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Trump também mandou bombardeiros nucleares Rockwell B-1 para a costa da península coreana, como até o próprio Obama havia feito. Há também na área submarinos Ohio equipados com mísseis Trident II: basicamente, máquinas de ma-tar que varreriam a Coréia do Norte do mapa em poucas horas, disparando mísseis submersos.

O isolacionismo absoluto da Coréia do Norte é o que mantém sua população em mais fome e opressão do que outros socia-lismos, a um só tempo em que manteve o país no framework da Guerra Fria comple-tamente intacto. Na verdade, oficialmente a guerra entre as Coréias nunca acabou: apenas um armistício foi assinado, mas os países podem se considerar oficialmente “em guerra”, mostrando que a Guerra Fria ainda existe intacta em outras regiões do mundo. Apesar de haver cooperação e co-nhecimento militar do poder da Coréia do Sul, o da Coréia do Norte é sempre nebu-loso, desde que Kim Il-sung se armou com os mísseis “Honest John” e “Matador” em 1958. A América estima em cerca de 15 mil instalações norte coreanas, quase todas escondidas em cavernas subterrâneas.

Na visão de Kim Jong-un, ele tem um grande trunfo nas mãos ao ser o último

dos stalinistas – até mais do que o próprio

Stalin. Afinal, ser um mistério nuclear teria “obrigado” os gigantes ocidentais a tratá-lo como uma potência, como crêem alguns analistas. A visão do Ocidente

pou-co quis lidar pou-com o problema, que não é tão difícil de ser entendido.

Catch 22

As opções, na verdade, são razoavel-mente simples. A despeito das negociações diplomáticas e do aperto de mão entre as Coréias, a perspectiva de violência é o que todos têm em mente nas conversas, ou elas nem chamariam atenção. A mais óbvia e primitiva alternativa seria fazer um ata-que preventivo. É a opção ata-que globalistas à esquerda e à direita sempre tiveram na manga, fosse o neoconservadorismo de George W. Bush ou os delírios de Hillary Clinton. Uma grande revista da esquerda

americana, a The Atlantic, descreveu3 o

que fazer com a Coréia má sempre saben-do que o risco de qualquer outra opção era descambar para o conflito armado. Cus-tosa e intervencionista, uma guerra entre dois países com arsenais nucleares parece

tudo, exceto um cenário ignorável – e algo

que a Coréia do Sul não quer arriscar em recursos, vida e potencial de destruição.

De fato, durante toda a Guerra Fria, as verdadeiras potências nunca se enfren-taram, fazendo as chamadas proxy wars entre seus aliados. Por isso era gigantesca a loucura de Hillary Clinton, ao sugerir,

3 https://www.theatlantic.com/magazine/archi-ve/2017/07/the-worst-problem-on-earth/528717/

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por exemplo, uma “zona de exclusão aé-rea” como solução para a Síria. Assad é apoiado por Putin, e MiG’s russos ajudam o ditador a conter rebeldes (entre outros, o Estado Islâmico). Trata-se, afinal, de es-colher o mal menor, e a gestão Obama co-locou tropas enviadas pelo Departamento de Defesa Americano lado a lado com o ISIS na ânsia de derrubar Bashar al-Assad, na maior bizarrice geopolítica da história do país, capitaneada pela presidenciável Democrata. Um único MiG russo abatido por americanos e o risco de uma Terceira

Guerra Mundial era iminente.4 No caso da

Coréia do Norte, além da Rússia, a China também é uma aliada, e já declarou que não permitirá nenhuma tentativa de mu-dança de regime na península coreana. A retaliação poderia significar algo bem pior do que o atoleiro da Guerra da Coréia ori-ginal.

Se ninguém faz a menor idéia de qual é, de fato, o poderio bélico da Coréia do Norte, esta opção nunca está de fato em primeiro lugar na mesa de estratégia. Kim faz seus exercícios militares com a típica e mofada retórica de “imperialismo” e “colonialismo”, citando as duas mais platiformes ideologias historiográficas já

4 Para quem não ouviu, fizemos um podcast espe-cial sobre como a Rússia se preparava para a Terceira Guerra no caso de Hillary ser eleita: http://sensoin- comum.org/2016/10/25/guten-morgen-18-terceira--guerra-mundial/

concebidas, não por se sentir ameaçado, mas como um gigantesco terrorista usan-do um país inteiro como colete suicida. A ideologia anti-colonialista da esquerda atual simplesmente ignora ainda mais tais contextos, podendo provocar guerras e cisões violentas que perduram por sécu-los depois da desocupação. Era notória a visão de Mao Tsé-tung sobre a Guerra da Coréia: sabendo que perderia, seu objetivo “diplomático” com americanos que nada entendiam de Oriente era abusar do dita-me oriental de que o coletivo vale mais do que o indivíduo e apelar para uma guerra suicida (pense-se na Batalha de Okinawa), e com isso “matar o máximo de soldados americanos” que conseguisse. Toda guerra travada no Oriente por americanos vira uma carnificina de sacrifícios desnecessá-rias pela visão distinta da vida que orien-tais e muçulmanos possuem, radicalmente diversa do continuum judaico-cristão. A Guerra da Coréia foi o maior vexame da história militar americana justamente por-que os americanos não entendiam o passa-do colonialista e a guerra civil entre norte e sul que ocorreria de toda forma pelo passado colonial da Coréia. Nos últimos anos, o governo norte-coreano se escorou no mistério do seu poderio para não ser derrubado: qualquer outra movimenta-ção, inclusive se abrir um pouco mais até à própria China, pode significar o fim do regime, da Coréia do Norte e do comunis-mo juche. E um mau sinal para Beijing.

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Ainda assim, Kim Jong-un conseguiu um trunfo novo em seus exercícios: um míssil que sobrevoou o mar do Japão e caiu no Pacífico, “do outro lado” do país, em agosto último. No dia 28 de novembro, mais três mísseis foram confirmados no mar do Japão pelo Pentágono. O recado é claro para o principal aliado da América na região: não enfrente loucos. Apesar da narrativa lugar-comum da América como um Estado imperialista e guerreiro, “racis-ta” e “colonialis“racis-ta”, tornando-se o único império que não aumenta seu tamanho e não possui colônios no mundo, o que a América planeja como “polícia do mun-do” é justamente evitar baixas, torrando rios de dinheiro com ataques localizados para não matar civis en masse. O plano de Kim é basicamente o exato oposto. Note--se ainda que, durante o século XX, com a exceção das guerras no Iraque, a tradição americana foi de presidentes Democratas iniciarem guerras, e presidentes Republi-canos encerrarem-nas. Desta feita, Trump conseguiu subjugar Kim exatamente quan-do ele mais demonstrou poder “de fato”: Trump apenas precisou lembrá-lo de que todo o poder norte-coreano, seja ele qual for, certamente é menor do que o poder americano. Sun Tzu na anfetamina.

Há um componente temporário óbvio a azedar o leite: cada dia em que a América e o Ocidente não tomam uma ação mais energética, o poderio norte-coreano só pode crescer. Ainda que sem a tecnologia

ocidental, Kim já demonstrou que tem ficado mais perigoso a cada momento. A América não pode se dar ao luxo de esperar para saber quando terá informações o sufi-ciente de Pyongyang. É uma preocupaçao até do Council of Foreign Relations. Por isso uma não-disfarçada pressa em iniciar as negociações.

A segunda opção envolve um aumento cada vez mais pesado de sanções diplomá-ticas. Países com potencial nuclear, como a Ucrânia, e tiranos como Muammar Kadafi e Saddam Hussein, conseguiram mostrar que é possível ficar extremamente vulnerável mesmo com arsenais nucleares. Em todos estes casos, havia um segundo elemento: a América atuando de maneira indireta, fortalecendo grupos de resistência rebelde. Além do desastre que foi apoiar rebeldes na Síria e em toda a Primavera Árabe, que trocou tiranos laicos vigiados pelo Ocidente por radicalíssimos aplicado-res da shari’ah por todo o Oriente Médio (geopolítica que seria exponencializada nas mãos de HIllary Clinton), não parece que existam grupos rebeldes na Coréia do Norte para permitir tal opção.

Ademais, sanções estão sendo impostas ao país desde que a Coréia do Norte existe. Não parece ser um case de sucesso a ser estu-dado: o regime não dá sinais nem remotos de abertura ou moderação a cada sanção. Barack Obama não melhorou em nada a posição americana: fez a Coréia do Norte não temer os americanos, tendo

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testemu-nhado no cargo a morte de Kim Jong-il e o poder sendo passado precocemente para Kim Jong-un, que não parece se revelar um totalitário genocida sanguinário “normal”. Uma espécie de Heliogábalo moderno. E na arte da negociação, o Agreed Framework de Bill Clinton é um exemplo non plus ultra de desastre: trocando alguns presos polí-ticos por uma capacidade nuclear secular, foi justamente o ex-presidente Democrata mais queridinho da mídia desde Kennedy quem permitiu que a Coréia do Norte, de Estado falido pronto para ser derrubado e integrado à Coréia do Sul, se tornasse, logo após o fim da União Soviética (e a abertura da China), uma potência comunista ainda mais fechada, assassina e perigosa… e com armas nucleares.

Uma terceira opção, a preferida da esquerda, era simplesmente deixar tudo como está esperando que alguma coisa mude. Não agir, e fazer piadas com as víti-mas de Kim Jong-un que dariam cadeia se fossem feitas com Adolf Hitler. Não agir, no caso, teria quase o mesmo custo de agir: fortalecer com vigilância máxima a fronteira com a Coréia do Sul, aperfeiçoar constantemente o sistema anti-mísseis na Coréia do Sul, no Japão e na própria Amé-rica e continuar contando com a constante sabotagem eletrônica que tem ajudado a minar boa parte dos testes com mísseis de Kim. Era, por exemplo, a postura da Atlantic, quase um porta-voz da visão glo-balista Democrata. Para piorar, tal postura

poderia levar a aliados como a Coréia do Sul e o Japão, sem falar no Vietnã, a reve-rem sua atual política não-nuclear. O inte-resse da América como polícia do mundo, como sempre foi na história, é manter as forças razoavelmente balanceadas, sem que ninguém se sobressaia. Manter tudo como está para ver como fica poderia significar o fim da influência americana sobre a Ásia, o lugar mais povoado do mundo. É curioso notar como Trump conseguiu não fazer nada e fazer tudo em uma só cartada.

O que todos os analistas julgavam, en-tão, é que haveria uma quarta opção que parecia irreal. Que, nos últimos anos, foi considera impossível. Seria a tentativa de negociar mais diretamente, propondo, no mínimo, um congelamento do seu progra-ma nuclear, algo que Obaprogra-ma fez de progra-maneira invertida com o Irã. Mas o que a América poderia oferecer em troca?, perguntavam--se os analistas. Foi também o erro de Bill Clinton. A Coréia do Norte mal possui algo que possa ser chamado de indústria ou produção, e até o bem mais básico das tratativas típicas, a energia, parece de pouco interesse para um totalitarismo vi-vendo à míngua. Quando esta hipótese foi aventada, a China ofereceu um programa completo de desnuclearização: América e Coréia do Sul teriam de também congelar seus programas nucleares, opção que soa até risível a Washington. Quem consegui-ria trazer um Kim para a mesa de negocia-ções, afinal?

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Ao menos, eram essas as opções em um cenário de política típica do establish-ment. Mesmo o arquiteto da geopolítica globalista, Richard N. Haass, não pensou em blocos econômicos e políticos quan-do liquan-dou com o problema da Coréia quan-do Norte. Mais uma vez mantendo a tradi-ção do Council of Foreign Relations, o principal think tank globalista do mundo, sua análise e suas previsões foram todas erradas. Quando Donald Trump surgiu no horizonte com um plano de desmonte da América como agente globalista, protago-nizando uma política que foi chamada de “nacionalista”, “populista” e, ainda mais erroneamente, “anti-globalização”, eram os grandes conglomerados multilaterais que estavam em sua mira. E através deles que Trump trabalha o mundo.

Homens de aço

A palavra russa сталь (stal´), “aço”, já fora incorporada pelo maior tirano do país e um dos maiores do mundo: Stalin era o “homem de aço”, e a escolha não poderia ser mais russa.

Quinto maior produtor do mundo, a Rússia tem na exportação do aço sua principal fonte de renda (logo atrás dela, vem a diminuta Coréia do Sul). A Rússia também não possui algo que possa ser chamado de uma indústria, apesar de o parque industrial soviético ter se mantido

intacto pós-Putin… E não em condições muito melhores. Se o Brasil é a república das bananas, a Rússia tem commodities mais duras e frias.

A despeito de toda a logorréia a respeito de um suposto “conluio” russo para inter-ferir nas eleições americanas e fazer Do-nald Trump ser eleito (questão de gastos no Facebook impulsionando notícias que o favoreciam, embora a um só tempo tam-bém em notícias que favoreciam Hillary), Trump enxerga no complexo russo-chinês

o maior inimigo econômico da América.5

A China, hoje, é o maior produtor de aço do mundo. E Trump sabe que uma dife-rença no preço do aço sufoca a economia chinesa o suficiente para que ela pense em cortar custos desnecessários… como a mesada para a Coréia do Norte continurar comunista.

Trump foi acusado de não possuir uma “doutrina”. Não existe o “trumpismo”, e, para analistas apressados, isso significaria que estaríamos diante de um presidente sem lógica, agindo como um louco. Ou

5 É curiosa, neste caso, a indicação de Rex Til-lerson para Secretário de Estado, no pouco tempo em que durou no cargo. Se o maior inimigo político é o magma do islam, e sua dupla jihad e sharia, Tillerson, especialista em petróleo, conhecia todas as rotas de pe-tróleo ilegal possíveis para desbaratar o financiamento do Estado Islâmico. Não à toa, já nos primeiros dias no cargo, a dupla Tillerson e Mattis mostrou que os atentados terroristas quinzenais do ISIS já poderiam se considerar passado. Ou seja, coisa da era Obama.

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poderíamos ler o caso de maneira mais simples, por um único golpe da Navalha de Occam: Trump não é um ideólogo político, e sim um negociador, como ex-plicou Scott Adams em seu mais recente livro (um dos poucos a acertar o resultado

da eleição meses antes).6 E mais do que

isso, seu pensamento, sua revolta contra o Leviatã moderno do globalismo, não está estruturada em nenhum livro, em nenhum “manual anti-globalista” com 10 passos a serem seguidos. Não é um presidente que possa ser entendido pelas velhas palavras e categorias usadas para um mundo que mudou completamente, sobretudo a partir

dos anos 80 – erosão da União Soviética,

formação de blocos econômicos que se tornaram políticos, ascensão da China com seu capitalismo de Estado, a nova Rússia eurasiana, a União Européia retirando a soberania de vários dos países mais ricos do mundo. Sem entender a mente de um negociador e a visão de um destruidor de inúteis burocracias transnacionais, Trump pegará a mídia de surpresa a cada meia hora. E é puxando o fio dos blocos comerciais que entenderemos como Trump pretende lidar com a bomba-relógico norte-core-ana. Algo nada secreto: é fácil encontrar notícias sobre como Trump pressiona Xi

6 Em recente tradução pela Editora Record, “Win Bigly” (Ganhar de Lavada) é o livro que mais pode fazer um candidato ganhar eleições presidenciais no mundo hoje, incluindo o Brasil: https://amzn.to/2Fp-J9zm

Jinping sobre a situação em Pyongyang7,

rigorosamente antes de sua visita asiática, por exemplo.

A China é um país que não faz oficial-mente parte de blocos, mas é o maior bloco de todos em si, e ainda tem a Rússia como aliada. No último Congresso do Partido Comunista, a retórica maoísta foi a tônica, com uma ênfase que não se via há décadas. Xi Jinping e sua claque não se furtaram a lembrar aos compatriotas que o comunis-mo não está comunis-morto, que são sim marxistas. A velha papagaiada na qual nem o Partido Comunista Chinês acredita, mas com um recado também nada disfarçado de que não estão dispostos a fazer aberturas po-líticas apenas porque querem enriquecer, perdendo poder sobre a maior população do mundo.

Situação que encontra analogias no mundo livre, que Trump tem sabido ex-plorar como ninguém. E sabendo que o mundo atual funciona como um dominó, como a teoria do caos aponta, Trump tem como grande trunfo derrubar as peças para onde quer. Nem sempre se descobre o objetivo facilmente olhando-se apenas para a primeira derrubada. E a China, que financia a Coréia do Norte, poderia com-pensar a perda comercial com a América com outros parceiros.

7 http://internacional.estadao.com.br/noticias/ge- ral,em-visita-a-china-trump-critica-acordos-comer-ciais-unilaterais-de-pequim,70002077745

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It’s the steel, stupid!

Foi o que o presidente americano no-tou sobre a União Européia, que hoje faz um capitalismo envergonhado. Em termos mais humanos, suas preocupações ideológicas não são com a defesa do livre

mercado, pelo contrário – trata-se de

re-pudiar empresas que não se preocupem com o adjetivo “social”: causas sociais, doações, meio ambiente e afins. É um capitalismo bem diferente do americano, em que empresas só precisam defender o próprio capitalismo para serem vencedo-ras. Por exemplo, empresas armamentistas americanas fazem propaganda de munição dizendo que são mais caras, mas não são russas, e vendem mais com este tipo de slogan. É um dos efeitos que viram novas causas do globalismo: na Europa, basta a ideologia do momento. Empresas só são ruins se são machistas, homofóbicas ou racistas. Na América, a despeito dos anos Obama, uma empresa tem mais respaldo na população se for, digamos, americana: se defender o cristianismo, os interesses americanos, respeitar a Constituição e contratar nativos são valores que, para o americano médio, valem muito mais do que a litania da CNN sobre -ismos e -fobias.

Trump, o negociador do “America first”, sabe que não poderia fazer a União Euro-péia aceitar seu modelo de negócios cheios de restrições a comprar de chineses, que são, afinal, donos de empresas “privadas”

que enriquecem os cofres do Partido Co-munista. É neste ponto em que liberais se confundem: pensam em livre comércio como comércio obrigatório: a vantagem do livre comércio é o mútuo enriquecimento. Mas justamente por isso, os americanos não contaminados pela retórica anti-glo-balista não querem enriquecer o Partido Comunista chinês. Não parece difícil de entender.

Se não pode pedir, você pode forçar. Como um dos maiores compradores de aço do mundo, é fácil fazer com que as pessoas façam o que você deseja. E a União Euro-péia se viu forçada pela sua própria buro-cracia a rever seu comércio com a China, iniciando a queda das peças de dominó. A guerra comercial foi declarada: a América decretou tarifa de 25% sobre importação de aço, e mais 10% sobre a importação de alumínio, anunciadas no dia 1.º de março. A notícia foi veiculada nos cadernos de Economia e na seção Internacional como apenas mais uma loucura de um presidente narcisista pela grande mídia. O que veio a seguir foi uma mudança de peso no xadrez geopolítico tratada como piada e com uma narrativa cheia de desculpas da mídia para eternamente criticar Trump que ultrapas-sou as raias da psicopatia jornalística. E sem nunca entender o que estava acontecendo.

Na primeira semana, a União Européia se viu rachada. A mídia, que adora con-fundir “Europa” com “União Européia”, anunciou coisas que soam bizarras, como:

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”O anúncio da Casa Branca de que abriria brechas para uma negociação com ‘verda-deiros aliados’ levou a Europa a ver um racha em seus membros, com o Reino Unido sendo o primeiro a anunciar que buscaria uma solução bilateral com os

americanos”.8 Ora, qualquer pessoa que

conheça o mínimo sobre os blocos econô-micos sabe que Trump, ainda durante as primárias, falava constantemente em sair de acordos multilaterais (como de fato

o fez com o TPP,9 e promete rever suas

relações com a OTAN, o NAFTA e mes-mo a ONU) e negociar diretamente com aliados, em acordos bilaterais. Em acordos multilaterais, dois negociam e uma buro-cracia imensa (a faceless bureaucracy que até a mídia admitiu) fica com boa parte dos louros e do ouro, além de poder exigir normas de negociação únicas.

Basta pensar no que é negociar com um país da UE, tendo de imediatamente acei-tar normas impostas por países do outro lado do continente: negociar com uma empresa de seguros inglesa é negociar com sindicalistas gregos e normas ambientais dinamarquesas na mesma toada. Nego-ciação bilateral é ignorar tudo isto: uma parte que tem dinheiro negocia com uma

8 http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,- tarifa-de-trump-ao-aco-e-aluminio-divide-euro-pa,70002220368

9 http://sensoincomum.org/2017/01/23/donald--trump-protecionista-tpp/

parte que tem produto, e todos saem feli-zes. Ao ler que a União Européia – e não “a Europa” – está rachada, e que o Reino Unido pensa em negociar bilateralmente com Trump, a notícia só poderia ser lida como mais um trunfo de Trump, que sem-pre sem-preconizou isto. Já havíamos sem-previsto a direção do Reino Unido voltado mais para a América pós-Brexit antes mesmo de Trump ter assumido a Casa Branca. Já Angela Merkel sinalizou que prefere “o diálogo”, mas estava de tratativas imedia-tadas com a China. EU über alles.

Muito vem na rabeira, e Trump passou a vida negociando exatamente dessa ma-neira. Trump seguiu o ritmo de uma pro-messa de campanha, deixando claro que retiraria aliados das sobretaxas sobre o aço caso os países contribuíssem mais com a OTAN. O Acordo do Atlântico Norte da era soviética só faria sentido se mais países pagassem para serem defendidos, como o presidente sempre repetia. Também dei-xou aberta a possibilidade de que livraria países da sobretaxa se fosse retirada a tarifa de outros produtos americanos, ou seja: você não sofrerá de um suposto “protecio-nismo” se também não o praticar, o que é o mais básico sobre livre mercado a se aprender.

Ademais, a mira é esquecida ao se ler so-bre a União Européia: o que Trump quer é que a o bloco não negocie multilateralmen-te – ou seja, justamenmultilateralmen-te “em bloco” – com a China, tendo como alvo mais exatamente a

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Coréia do Norte. Sem a União Européia negociando em massa, quem perde não é a América, e sim o gigante asiático. A Chi-na ganha vendendo matéria-prima para o bloco, e não país por país. O ministro da Economia da França, Bruno Le Maire, respondeu justamente que “[n]ossa reação apenas pode ser coletiva”. E quem perde mais com imposições sobre a China que nenhum presidente antes conseguiu fazer é quem depende de sua mesada: o regime nocivo de Kim Jong-un. O medo da UE é claro: se Londres conseguir um acor-do mais vantajoso fora acor-do bloco comum europeu, dificilmente será o único país a negociar bilateralmente com a América. E a partir disso, a União Européia começa a se esfarelar – e a China perde o seu poder de barganha. Como disse Trump, sem ser compreendido pela grande mídia, guerras comerciais são boas e fáceis de ganhar. Ao menos se você for a América guiada por um hiper-negociador.

Apesar de toda a negociata parecer ser econômica e comercial, o desenlance ge-opolítico foi claro. A declaração necessá-ria vinecessá-ria de Hua Chunying, porta-voz do ministério chinês do Exterior: “Se outros países seguirem o exemplo [americano], haverá um grande impacto na ordem do

comércio multilateral”.10 That’s the point.

10 http://www.dw.com/pt-br/ue-critica-tari-

fa-de-trump-para-o-aço-e-fala-em-guerra-comer-cial/a-42800920

O aço americano não é considerado tão bom, precisando comprar do Canadá, da Rússia e mesmo do Brasil para alimentar suas indústrias. Apesar da baixa qualidade dos produtos industrializados chineses, ao menos em matéria-prima o gigante asiáti-co pode se asiáti-considerar bom em fundição. Por outro lado, onde Trump foi eleito com folga absoluta foi justamente no cinturão do aço, os rust states a oeste do Mississipi, como Michigan, Indiana e Ohio (ver o livro Era uma vez um sonho, de J. D. Van-ce: https://amzn.to/2Gcagir). Não à toa, o único esquerdista a acertar que Trump seria eleito seria o homem mais famoso de Michigan, o cineasta Michael Moore. É onde Trump tem sua base mais sólida. A China é responsável por apenas 2% das importações americanas de aço, mas o número é enganoso: além de a jogada de Trump envolver a União Européia inteira como um bloco, desestabilizando o comér-cio atual, a expansão industrial espantosa chinesa contribui para a saturação global do produto, e provavelmente será a próxi-ma jogada da China: baixar ainda próxi-mais o preço do aço, tendo ainda a possibilidade de desvalorizar a moeda, como economia controlada. É um botão de morto que os chineses não poderão segurar por muito tempo.

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O que raros souberam ver foi a intenção não meramente econômica de Trump. Nin-guém viu um documento da China para Kim Jong-un dizendo: “Estamos numa enrascada, pare o seu programa nuclear e seja um ditador menos pentelho”, e para a grande e velha mídia mundial, parece que só é possível que haja uma ligação entre a economia do aço e a política comunista assim. Para quem enxerga de onde partiu o golpe derrubando peças de dominó (e tendo conceitos claros, como a questão entre bilaterialismo e multilateralismo, e não palavras mofadas como “nacionalis-mo”, “protecionismo” e “populismo”), é fácil e quase óbvio ver o que mudou Kim Jong-un literalmente do dia para a noite, o que nunca ocorrera antes,

Senão literalmente, na mesma sema-na: se a taxa vinha sendo anunciada um pouco antes de março e foi efetivada na primeira semana do mês, Kim Jong-un, que “inacreditavelmente” havia pensando em estreitar os laços com Washington (por que, logo ele, mais louco que seu pai, do nada, bem naquela semana?), no dia 8 de março declarou que convidou Trump para uma reunião a ser realizada no final de maio, em local ainda a ser confirmado. A participação da Coréia do Norte nas Olimpíadas de Inverno em Pyeongchang adiantou algumas tratativas. Em 3 de janeiro, o canal de comunicação interco-reano foi reaberto. Claro, ninguém confia na Coréia do Norte: o então Secretário de

Estado Rex Tillerson, maior conhecedor das rotas de contrabando de petróleo para terroristas no mundo, visitou Seoul há um ano e declarou: “A Coréia do Norte tem um histórico de violar um acordo atrás do outro, e seria uma tolice acreditar neles agora”. Vá negociar, mas vá armado.

O país, que vive simplesmente do pode-rio nuclear, parece querer iniciar diálogos com a Coréia do Sul e a América para dis-cutir um plano de desnuclearização – algo ainda mais sério do que o Brasil abdicar de Carnaval e futebol. O convite inclui o congelamento dos testes nucleares por

parte da Coréia do Norte,11 enquanto as

sanções e pressões de Washington perma-necem intactas – o que pode ser descrito quase como o contrário do acordo de Oba-ma com o Irã. Ora, isto significa desfazer o que a Coréia do Norte sempre foi desde que passou a existir, e justamente quando teve o seu ditador mais bizarro entre os três ditadores mais bizarros que a dominaram. Mais: Pyongyang sinalizou que também pode se livrar de seu programa nuclear in-definidamente, se a Guerra da Coréia aca-bar (como parece ter acabado) e a América prometer não invadir o seu território, evi-tando um novo derramamento de sangue (e mantendo o chamado “isolacionismo” de Trump sem riscos). Provavelmente, a

11 https://oglobo.globo.com/mundo/kim-jong-un- -convida-trump-para-reuniao-anuncia-coreia-do--sul-22470684

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Coréia vai tentar seguir os passos de Ahmadi-nejad e barganhar uma “ajuda” em troca de sua desnuclearização: se a China fica prejudi-cada e diminui a mesa-da, que a América e o Ocidente paguem. E, claro, arrancar algumas concessões e comprar tempo (e sobrevivên-cia). O atual presiden-te sul-coreano, Moon Jae-in, mesmo sem

pensar em reunificação, pretende recons-truir a economia norte-coreana estrada a estrada, ponte a ponte, negócio a negócio, e Kim Jong-un quer se aproveitar. Kim Jong-un fez a economia crescer algo para os padrões norte-coreanos: 4% em um ano. E até está criando uma classe média urbana. Não parece algo muito “trumpístico”, mas tampouco seria de todo incabível um acor-do em que o regime norte-coreano saísse no mínimo com algum ponto fraco a ser explorado para enfrequecer futuramente o regime socialista. E não possuir um pro-grama nuclear parece um bom começo.

Sem entender o que acontecia, a grande e velha mídia mundial precisou inventar teorias amalucadas e bizarrices, chegando--se até a dizer que a conversa seria “uma

vitória de Kim Jong-un” (sic),12

criando--se a primeira “vitória” diplomática onde um lado não é varrido do mapa e o lado “perdedor” se livra de um inimigo só no susto. Apesar de ser claro para qualquer um que ouça o que o próprio Trump diz, a mídia preferiu inventar teorias e miilhares de textos sobre “nacionalismo” e “prote-cionismo” que não duraram uma semana. Exatamente como Trump havia declarado, tão logo conseguiu a pressão sobre a Má Coréia, baixou as tarifas sobre seus aliados, da União Européia ao Canadá, incluindo

o Brasil.13 Toda a verborréia de Merkel e

12 https://br.noticias.yahoo.com/vitória-kim-jong--un-164308260.html 13 https://g1.globo.com/economia/noticia/eua- -vao-excluir-brasil-ue-e-outros-paises-de-taxacao-so- bre-o-aco-diz-autoridade-de-comercio-norte-america-no.ghtml

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cia. lida uma semana depois soa risível de tão desbaratada.

O órgão oficial da Rússia havia afir-mado em janeiro que foi um erro de Wa-shington que provocou uma “vitória” de

Kim,14 complicando a vida de quem

acre-dita em conspirações russas nas eleições americanas e numa narrativa não de todo confiável de que a América estaria pronta para a guerra, enquanto a Coréia do Sul preferiria negociar. A Business Insider citou muita gente no Twitter para dizer

que o encontro será apenas “uma foto”.15

O Diário Liberdade, de extrema-esquer-da, definiu a situação com cores até mais racionais, chamando o impasse de

“Mo-mento Nixon” para Trump,16 lembrando

do desastre de Nixon ao tentar negociar com Mao e ser facilmente tapeado. A The Atlantic analisou o caso com a chamada “Como King Jong-un tomou controle da

crise nuclear”,17 dando a entender que um

tirano assustado tomando sanções até de quem lhe dá a mesada está “controlando” o jogo, sem entender nada sobre o que é o

14 h t t p s : / / b r. s p u t n i k n e w s . c o m / o p i n i a o / 2018010810231937-donald-trump-kim-jongun-ne-gociacoes-seul/ 15 http://www.businessinsider.com/trump-kim--jong-un-north-korea-meeting-reaction-2018-3 16 https://gz.diarioliberdade.org/artigos-em-desta- que/item/221534-momento-nixon-para-trump-5-cha-ves-sobre-a-reuniao-eua-coreia-do-norte.html 17 https://www.theatlantic.com/international/ar-chive/2018/03/kim-jong-un-south-korea/554888/

regime de Pyongyang. E “analistas”, sem-pre eles, afirmam que a “vaidade fragiliza

Trump ante Kim Jong-un”,18 este modelo

de sobriedade, moderação e humildade em relação à própria imagem. Em comum a todas as análises contraditórias, apenas que Donald Trump seria tão ruim que até fazer uma defesazinha de Kim Jong-un é válido.

Donald Trump não teve medo de fa-lar grosso com Kim Jong-un, inclusive na ONU, o chamando de “Rocket Man” numa quebra de decoro espetacular que só um negociador não-político poderia fazer,

e até mesmo na famosa piada no Twitter,19

dizendo que seu botão nuclear era maior, mais poderoso e… funcionava. A era Oba-ma de fato tinha acabado. E Kim, vendo que não estava mais diante de um presidente que acreditava em “colonialismo” e outras ideologias, rapidamente se aprumou e des-ceu do salto (não literalmente). Apesar de toda a hipersensibilidade seletiva da mídia e de “especialistas” sobre o “tom belicoso” de Trump e suas constantes atitudes fora do protocolo (na verdade, é quase im-possível apontar alguma protocolar), foi justamente o negociador anti-político que fez a Coréia do Norte querer conversar. O

18 h t t p s : / / w w w 1 . f o l h a . u o l . c o m . b r / m u n - do/2018/03/vaidade-fragiliza-donald-trump-ante--kim-jong-un-dizem-analistas.shtml

19 https://twitter.com/realDonaldTrump/sta-tus/948355557022420992

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deep state. E agora, a mídia se esmera para seu último e derradeiro esforço: declarar que quem conseguiu a paz foi até mesmo a irmã de Kim Jong-un (como fez a

CN-N),20 e não o que até a própria ministra

das Relações Exteriores da Coréia do Sul, Kang Kyung-wha, admitiu à CNN: o ar-quiteto da paz foi Donald Trump. Aquele que Arnaldo Jabor jurou que causaria a Terceira Guerra.

A única “certeza”, e com bizarras as-pas, é que nenhuma análise do cenário do mundo pós-2016 pode ser interpretada como uma continuidade do que acon-tecia antes da era Trump. Nem com um pós-colonialista como Obama, nem com um neoconservador como Bush. Simples-mente quem manda no mundo não entra mais nas categorias tão useiras e vezeiras na grande mídia e na academia antes de Trump. Um mistério sobre Kim Jong-un é simplesmente o óbvio da vida. As dúvidas que analistas possuem sobre Trump, com o tanto que o presidente diz antes do filtro da mídia, já são bem menos desculpáveis.

20 h t t p s : / / t w i t t e r . c o m / C N N / s t a -tus/989846644429639680

(22)

N

o dia 8 de junho, o PT fez um ato de lançamento da campa-nha de Lula como candidato a presidente no pleito de 2018 em que foi anunciado um holograma do atual presi-diário no lugar de sua presença. A festa foi miada, afinal: nem o homenageado foi. Os memes obviamente se seguiram, para serem esquecidos no dia seguinte. A Carta Capital saiu em defesa, dizendo que “Can-didato ou cabo eleitoral, Lula está longe de ser um ‘holograma’”. O PT acabou por preferir um pronunciamento de Lula de dentro da cadeia. Lula é, afinal, uma idéia, em uma frase que também virou piada fácil. Mas, a rigor, poucos ousariam discordar de tal homologação: Lula

real-mente transcendeu seu corpo físico, e hoje sobrevive à sua morte natural. O lulismo não é o mesmo que Lula. E são duas reali-dades com as quais a política nacional terá de lidar sempre em conjunto.

Há quase sempre algo a se extrair até das mais desbaratadas e enviesadas análises sobre um presidente já etéreo, mas prati-camente nenhuma se deitou sobre aquilo que salta aos olhos sobretudo de quem está acostumado a se informar em filigranas pela internet, passando-se pelo filtro das redes sociais: a inacreditável destemperan-ça estética do PT. Uma análise, digamos, visual do Partido dos Trabalhadores talvez fosse capaz de explicar até mais da história contemporânea do que os descalabros de

Lula pós-lulismo:

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corrupção e a erosão da esquerda brasileira perante a opinião pública. A estética, afinal, é mais imediata, rápida e inescapável que a ética, além de imune a argumentações.

Lula passou por diversas fases estéticas. No debate contra Collor em 89, fez a de-fesa em cadeia (ops!) nacional de um “so-cialismo democrático”, logo após a queda do Muro de Berlim – o que permitiu que a retórica empolada de Collor o pintasse como um analfabeto ultrapassado, já na-quele pré-histórico debate. Era um Lula querendo ser presidente ainda falando em greves e piquetes. Nas eleições de 94 e 98, ninguém lembra de Lula: sem debates com um FHC que o vencia só de pronunciar a palavra “Real”, o PT se escorava em qual-quer escândalo para associar o presidente Fernando do real ao Fernando anterior, do Plano Collor, e pintar o PT como o perdedor, porém, o “partido da ética”. Al-guns dos escândalos, como o dos anões do orçamento, soam hoje risíveis em estatura com o que se sabe que o PT já urdia com partidos do centro fisiológico.

A vitória, noves fora o mensalão e Celso Daniel, viria com a repaginação completa com o Lulinha paz & amor de Duda Men-donça, que alertou Lula de que seu lema “a luta continua, companheiros” era péssi-mo (luta lembra baderna, e soava terrível no eleitorado feminino). Houve carta aos brasileiros, promessas ao mercado, dois anos de “bons números” em que seguir tudo o que os tucanos fizeram foi

aplau-dido como um mérito quase sobrenatural. Lula sorria, falava sem raiva, usava ternos Armani e discutia marcas de whisky com valor de garrafa acima de R$ 30 mil com empresários.

Duda Mendonça era um gênio do marketing, capaz de transformar o antigo rival Paulo Maluf, entupido de denúncias de corrupção (que hoje parecem questão do Tribunal de Pequenas Causas), num candidato que parecia uma máquina de vencer, até fazer um sucessor ainda pior como Celso Pitta. Era o momento do auge estético de Lula: conseguia conjugar uma linguagem popular, capaz de empatia da classe média, sem assustar o mercado com sua antiga histeria socialista. Havia iden-tificação com o presidente pela origem humilde ou pelas boas intenções sociais, seu apelo aos pobres (e seu mítico “você também pode estar aqui um dia). O Fome Zero, que quase lhe rendeu o Prêmio No-bel da Paz, foi um fiasco completo. Nada a lamentar: bastou recriá-lo como Bolsa Família e voilà, o milagre de transformar uma derrota vexatória em uma vitória que foi aceita por liberais e nunca mais atacada eleitoralmente estava consumado.

Entretanto, há de se entender algo im-portante sobre a estética: ela delimita seus passos muito mais do que a ética. Há si-tuações em que bem e mal não se expõem tão claramente, ainda mais a um coletivo tão grande quanto um país continental e com pouca capacidade de raciocínio

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abs-trato como o Brasil. Sobretudo quando o julgador é também coletivo: se é difícil para juízes, tente entender a dificuldade do seu Tião para compreender o petrolão, os acordos com a Líbia de Kadafi ou as pe-daladas fiscais. Entretanto, basta pensar na rapidez da condenação por algo que seja brega. Ou politicamente incorreto. Ou in-feliz no tom. Há muito mais pessoas pre-ocupadas dentro de partidos trabalhando para evitar que algo “pegue mal” do que no departamento de compliance cuidando para que todas as operações sigam a ética e a lei. A estética, portanto, é um juiz muito mais irritadiço, intolerante, teimoso e par-cial do que a ética.

Descontando todo o banho de loja, o funcionamento da estética social e política é curioso: ela proíbe certos comportamen-tos. É um freio de ação diferente da moral, mas ainda assim muito poderoso – raros ousam pegar mal diante do público, muito menos um político. Lula dudamendonçado estava em seu auge: acenava para o povo e os empresários, era incensado pelos so-cialistas bolivarianos e pela The Economist. Em uma única semana, discursava contra os poderosos no Fórum Social Mundial e a favor do poder do mercado de elevar a renda no Fórum Econômico Mundial em Davos, sendo aplaudido pelas duas platéias. Lula conseguira o que Nassim Nicholas Taleb definiu como antifragilidade: a capacidade de algo se tornar ainda mais forte quanto mais é atacado. Naqueles dois primeiros

idílicos anos pré-mensalão (e mesmo após o escândalo, que não foi “comprado” pela grande e velha mídia), criticar Lula era ser contra os pobres. E também meio nazista.

Reputações, também ensina Taleb, cres-cem de maneira completamente distinta. Um astro do rock e um empresário não são afetados por manchetes mostrando-os em hotéis de luxo com prostitutas caríssimas da mesma maneira. Um rockeiro pode até vender mais com isso. Um empresário já tem a reputação frágil: qualquer desvio e sua carreira está arruinada. Lula era o en-gravatado do povo: até seu jeito de falar cuspindo e demonstrar claramente não saber do que está falando convencia. Bas-tava enrolar bem, com identificação com o povo, com palavras empoladas como “desi-gualdade social”, relembrando sua infância sofrida a cada 5 minutos, demonstrando uma certa preocupação com os pobres e o Nordeste que nunca antes na história desse país ninguém havia prestado – todo esse conjunto da obra o tornava praticamente inatacável. Até mesmo diante de um es-quema de corrupção, compra de votos (atentado a tão adorada “democracia”) e a proximidade das mãos das maiores au-toridades do país com a botija: Lula podia dizer que estava sendo atacado pelos pode-rosos. “Me atacam porque penso no povo” (base discursiva que permanece intacta até hoje no PT e na esquerda).

Foi preciso muito mais do que isso: o lulismo conseguiu fazer sucessora e

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empla-car uma completa nulidade como Dilma Rousseff duas vezes mesmo sem Lula (claro que contra Serra, mas Aécio ainda foi difícil de bater). O lulismo já era mais forte do que Lula, e precisou da pior cri-se econômica possível e do escândalo do petrolão (quando as cifras ultrapassaram a ionosfera) para mostrar sinais de desgaste. Mais que isso: o PT entrou na mira da Justiça iniciando o dominó de peças der-rubadas com a Lava Jato. Era questão de tempo para subir e subir até os chefes. Se o PSDB perdia como um partido rachado, cujas lideranças estão mais preocupadas em trocar farpas em busca de indicações políticas para cargos minoritários (sim, até mesmo o governo de São Paulo é minori-tário diante de um país como o Brasil), o PT precisou de políticos presos para apre-sentarem suas delações.

Apesar de viver bem com contradições chocantes, é difícil para o povo comprar algumas idéias estranhas que precisavam ser engolidas a seco e todo dia, como a de que Palocci é um traidor ou de que a Lava Jato é obra dos americanos para roubar o pré-sal – uma retórica de Guerra Fria que não bateu nada bem com um mundo de internet, globalização avançada e de entendimento cada vez mais avançado da América pelos brasileiros, que antes ape-nas aprendiam sobre “imperialismo” em aulas de História manjadas sobre invasões

da Amazônia. Sem comprar todo o pacote

de desculpas integral dos petistas, a

mági-ca do “governo dos pobres” era logo des-mascarada por Sérgio Moro, sem precisar da roupa de Mister M. O PT se mostrava mentiroso, acintoso, orgulhoso e o pior: perigoso.

Como se já não bastasse, os motes do PT, de acusações que sempre eram orgulhosas e coitadinhas, partindo do ponto de vista de oprimidos incompreendidos, passaram para a defensiva completa. “E o Cunha?” e “E o Aécio?” foram frases de efeito que mais confessavam culpa e desespero do que algum argumento minimamente atraente. Quem gostaria de jogar em um time que precisa repetir tais bordões o tempo todo? Depois de João Santana substituir Duda Mendonça, até ele próprio estava preso. E a eterna crítica ao PSDB também não funcionava: se alguém não entendeu os tucanos, este alguém foi o PT. Apesar dos avanços de FHC na moeda e em privatizar as teles e a Vale do Rio Doce a contragosto, o próprio PSDB (e o próprio FHC) odia-va isto que consideraodia-va uma mancha negra em seu passado. Sem conseguir atacar o plano Real ou as privatizações, apenas ata-cavam os alvos fáceis e bobocas que foram Serra e Alckmin.

O povo que votou nos tucanos por quase 20 anos não era exatamente social--democrata pós-marxista como FHC: era apenas anti-petista. Nunca houve uma mi-litância tucana, gente vestindo a camiseta do partido e tomando ruas, enquanto no PT há milhares dispostos a matar e morrer

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por Lula. Atacar o PSDB foi o pior erro do PT: demonstrou toda a fraqueza de um partido que era criticado por seu próprio eleitorado por ser... fraco demais. Era a deixa para que o PSDB se desfrangalhasse de vez, e o cenário mais temido por petis-tas e tucanos se concretizasse: a ascensão com chance eleitoral não apenas de um candidato de direita, mas da direita mais popular, sem meias palavras, impaciente e cheia de testosterona a ter aparecido no Brasil. O “mesmo candidato” da Exame. O PSDB, no momento, disputa voto a voto o quinto lugar na eleição, sem muita esperança de crescimento. Antigos nomes fortes, como Henrique Meirelles e Álvaro Dias, hoje são concorrentes.

O lulismo chegou ao seu limite com seus antigos marqueteiros fazendo dela-ções premiadas contra o ex-cliente. Lula, às vésperas de ser preso, não possuía mais uma imagem anti-frágil, muito pelo con-trário. Os próprios intelectuais do PT, em auto-análise, acreditaram que a força do partido havia evanescido por terem “se afastado das bases” – ou seja, ser um partido mais engomadinho e menos MST, piquete e socialismo trotskysta. Sobretudo depois da explosão popular de junho de 2013, novas explicações eram urgentes, naquele momento em que o PT perdeu as ruas – e foi expulso delas – e um diagnósti-co mais preciso do que a velha indulgência da luta de classes precisava ser feito antes de novas ações.

O PT, intelectualmente, cometeu nova-mente um de seus maiores erros: ao invés de se renovar (como o PSOL consegue fazer), preferiu se aferrar a um PT 89, ao radicalismo, à retórica violenta cheia de “luta”, às fanfics de loiros de olhos azuis maltratando criancinhas negras e pobres, ao discurso de que o “golpe” foi “misógi-no”. Foi iniciado o período do PT Gleisi Hoffmann, um PT acuado, mas arrogante, poderoso, mas repetitivo, na defensiva, mas chamando para a briga. Estamos na época do petismo pinscher, que late como um dobbermann, mas é menor do que um poodle. É o petismo “botão de morto”, quando se aperta o detonador de uma bomba ao se levar um tiro, para levar os inimigos junto quando não se consegue mais segurar o acionador e tudo explode. Os três maiores empecilhos do PT podem ser resumidos nessa política kamikaze.

O primeiro, ter perdido todos os seus líderes. O projeto de um “Lula candidato”, ainda que atente contra todo o bom senso mais básico (que país já foi presidido por um presidente presidiário?), é a única coisa que o PT pode ter em mente. Afinal, Lula ainda tem grande apoio popular – ao me-nos para o Datafolha, que ainda utiliza o mesmo método da época de Collor, como se o mundo não tivesse mudado nada de 89 até hoje, e que errou mais da metade das eleições municipais em 2016. Mentiroso ou não, é levado a sério e citado como de grande importância até mesmo em autos

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jurídicos. O que o PT poderia fazer sem Lula? Apostar em um Haddad, que não consegue se reeleger prefeito (primeira de-cisão em primeiro turno da história de São Paulo), ou em uma Gleisi Hoffmann, que nem tem coragem de tentar renovar sua vaga no Senado, para não perder o foro privilegiado? Resta ignorar a lei, contando com o beneplácito de tribunais que não an-dam muito afeitos à idéia de admitir que o “Lula candidato” é uma bizarrice que não faz o menor sentido na lei.

O PT hoje e sempre é apenas Lula, e vai deixar de existir relevantemente como a comunidade de Bhagwan Shree Rajneesh em Oregon tão logo o líder da seita não for mais relevante. Toda a linha sucessória original do petismo (José Dirceu, Antônio Palocci, José Genoino e Celso Daniel) está ou presa, ou morta. Dilma Rousseff, que mal sabe falar, foi apenas a “sobrevivente” entre os que iam para a cadeia. Anódina, subiu pela força de Lula e pela fraqueza de José Serra e do tucanato – Lula aparecia já com a sua “ministra” em todas as pro-pagandas e declarações de fim de ano em 2009, antecipando uma campanha elei-toral em meses sem que seus oponentes fizessem um muxoxo de reclamação.

O segundo é justamente ter perdido os freios da estética. Até mesmo no período Dilma havia algo que mantinha o discurso petista dentro das raias de algum ridículo tolerável pela mídia, nem que fossem as contas maquiadas a apresentar ao

mer-cado, que cobram o macete no governo atual. Com o cerco se fechando contra Lula, e com Lula finalmente preso, o que o PT tem a perder? As palavras de quem já está andando na prancha quase nunca são ponderadas. A forma como os eleitores de Lula (universitários, artistas ou jornalistas) estão escrevendo sobre sua ideologia são rigorosamente patéticas. Só podem causar derrisão em quem não está convencido. Já desistiram de todo de argumentar: resta apenas lacrar, sobretudo com fanfics e acu-sações de “riqueza” coxinhesca e branca aos desafetos.

Não é apenas a estética de Lula, é a es-tética geral que foi perdida. Como se de repente os escritores não soubessem mais escrever, os ídolos da MPB não soubessem mais compor, os filósofos não soubessem mais falar empolado. Exatamente o mun-do em que vivemos agora. Quem agüenta tanto tempo de mentiras, bobagens e breguice? Adotar um discurso que sempre perde em qualquer discussão de botqueim? Muito mais do que na época em que tive-mos de lidar com um parente malufista, janista ou brizolista, hoje temos um en-xame nacional de pessoas bitoladas que terão vergonha de si próprias em poucos anos, escondendo e não querendo comen-tar sobre o que fizeram. Por ora, apenas se escoram mutuamente por serem muitos e terem apoio de figurões da mídia. Mas quem se lembrará dos grandes “artistas”, como Tico Santa Cruz e Fábio Assunção,

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daqui a uma década? É como ter o apoio do Fat Family e de ET e Rodolfo nos anos 90.

Por fim, Lula hoje tem apenas a sua própria militância como interlocutor. Não é pouca coisa: sua militância não são apenas os universitários de DCE, mas sim Chico Buarque, as redações de quase to-dos os jornais, parte das igrejas, a MPB, os rouanetados e toda a Rede Globo. Não são adversários fáceis de se derrotar – por outro lado, são adversários que nunca es-tiveram tão afastados do povo como hoje. Qualquer meme costuma ter o poder de incomodá-los. Mas é impossível pensar em Lula, em algum petista, e muito menos nos seus militantes convencendo outras pes-soas. Quem antes não pensava que Lula fosse uma boa pessoa não vai “descobrir”, na verdade, que o petista é o nosso melhor líder. E é inocente e foi golpe. O ex-presi-dente está sempre em seu teto eleitoral, e este teto parece baixar, as paredes estão se juntando. Não há a menor possibilidade de crescimento. O que também significa que o país vai mudar radicalmente, mesmo sem um racha político muito grande: como será nosso futuro com um rol tão grandes de sumidades onipotentes no showbizz atual depois que forem esquecidas com o lulismo? A mudança de década promete ser drástica.

Resta mais uma vez uma repaginação da esquerda para saber como sobreviver no período pós-Lula. No momento, o PSOL

tem a dianteira com a dominação da Rede Globo. É uma esquerda mais cultural, gramscista, jovem, descolada e que sabe usar um pouco a internet. Mas certamente a esquerda brasileira sempre terá algo de Lula dentro de si.

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P

ara a esquerda, havia uma fórmula simples de lidar com a direita nos últimos 20 anos: ignore-a. Pronto. O serviço estava realizado. Bastava isso e colher os frutos da vitória. Pense-se em como era a direita nos últimos 20 anos: alguns grandes intelectuais, como José Guilherme Merquior, Paulo Francis e Ola-vo de Carvalho falando sozinhos contra interlocutores que podiam perder todos os argumentos, mas sempre tinham a maioria, com sua inestimável ignorância, a escudá-los e protegê-los.

Aquilo que era chamado de “direita” na era PT foi divido entre dois grandes eixos: a Rede Globo, que era tomada pela esquerda em ritmo aceleradíssimo, mas a esquerda sempre precisou gritar contra ela para parecer rebelde (qual a graça de ser o revolucionário mundomelhorista chancelado pela Globo?), e o PSDB, que a esquerda mais malcheirosa odeia honesta-mente, mas que é facílimo de vencer. Fale mal da primeira. Vença o segundo. That’s all, folks.

Mas a direita, de um grupinho seleto discutindo em comunidades no orkut como “Diogo Mainardi”, “Capitalismo” e “Olavo de Carvalho”, evoluiu para um fe-nômeno incontrolável, que partiu da inter-net e tomou as ruas, buscando o ponto de identificação entre formadores de opinião, usuários de redes sociais (em sua maioria jovens) e os anseios populares, como pro-teção da família, religião e segurança.

Curiosamente, o mundo também mi-grou para uma direita tentando se reen-contrar nos últimos anos, e também da mesma forma: mesmo Donald Trump foi um fenômeno de internet (daí a preocu-pação com a alt-right e as supostas fake news), mas a Europa foi varrida pelo “po-pulismo”, ainda que as eleições ganhas pela direita tenham sido principalmente na Eu-ropa Central: República Checa, Hungria e Polônia. Foi fácil para o Brasil se espelhar nos exemplos internacionais, buscando um conservadorismo já “pronto” em intelec-tuais, sem precisar desenvolver tradições já artificiais em um país artificial, e no qual a idéia de “tradição” nunca vingou muito

A direita

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bem.

Hoje, a direita é um perigo para a esquer-da. Ainda mais perigosa quando o princi-pal líder da esquerda nacional encontra-se encarcerado, e perdendo apoio popular a cada dia. A esquerda, cujo ideário diz res-peito a controlar a produção, a distribui-ção e a cultura que a mantém no poder, só poderia ter como foco recente tentativas cada vez mais exageradas de controle. O que a esquerda da década atual prega seria um anátema terrível para a esquerda de 20, ou mesmo 15 ou 10 anos atrás. So-bretudo sua defesa desabrida da censura: desculpas como “discurso de ódio” ou “fake news” seriam consideradas o que são há pouco tempo: meras desculpas. Antes de dominar a cultura tão hegemonicamen-te, imagine como seria para um militante típico a idéia de um flerte com a censura, a aprovação prévia da divulgação de con-teúdo, a proteção dos grandes veículos de comunicação para afogar os pequenos. O mundo dá voltas.

Mas o fato primordial para a direita é que ela prescindiu de um grande veículo para defende-la. Engana-se quem pensa que a Fox News, o canal com maior audiência na América, ajudou na eleição de Donald Trump: antes de o presidente chegar à Casa Branca, e inclusive no seu primeiro ano, o jornalismo da Fox tinha a mesma mania de perseguição com Trump do que todos os veículos de mídia do mundo. Trump não venceu com suporte da Fox News, e sim a

despeito dela. Sua maior inimiga no jorna-lismo, afinal, foi Megyn Kelly, da Fox.

É uma lição importante para a direita atual, entrincheirada em batalhas fratrici-das enquanto é metralhada por uma chuva de balas vindas da esquerda e do establish-ment. O menor, no caso, tem mais poder contra o maior, mais consolidado. É o en-sinamento de Malcolm Gladwell em Davi e Golias: exércitos pequenos costumam ser muito mais vitoriosos contra exércitos enormes do que nosso instinto consegue perceber.

É a chamada infowar, a guerra de narra-tivas a conquistar a opinião pública. Antes um conceito militar (information warfare), foi usada por profissionais da comunica-ção e do marketing para estudar como a percepção da realidade de diferentes atores influenciava o todo de um grupo.

A visão que temos sobre muitos assun-tos, como a desigualdade social, geralmen-te é degeralmen-terminada mais por professores do que por pais. Ou pela opinião de grandes celebridades. Foi onde a esquerda foi do-minante: muito mais preocupada em for-mar cantores de MPB do que economistas, jornalistas do que especialistas em logísti-ca, atores do que diplomatas, a esquerda é um continuum interminável de formadores de opinião em diversas escalas. A esquerda nunca pára de tentar te convencer de algo. Método totalmente diferente da tradição silenciosa, duradoura e resiliente na qual a

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