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A arte brega e as formas de negociar incertezas

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Academic year: 2021

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Palíndromo, Florianópolis, v.13, n. 30, p. 48-65, mai 2021

http://dx.doi.org/ 10

.5965/2175234613302021048

Arte brega y formas de

negociar incertidumbres

Brega art and ways to

negotiate uncertainties

A arte brega

e as formas

de negociar

incertezas

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1 Docente da Universidade de Brasília. Pesquisador CNPq. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8175059045027748.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3705-1667. E-mail: dionisio@unb.br

Abstract

The present paper aims to point out the motivations of an art historian regarding the challenges this discipline has faced in the past three decades. With an evident autobiographical approach, the text makes conceptual choices, elected notions, and uses brega as a methodological practice to construct approaches to art. We also suggest some epistemological models to understand artistic production, whether by making the authors of the text explicit, or by partnerships of what we call a community of interpreters.

Key-words: Art History. Museological Institutions. Brega. Collections.

Resumen

El presente artículo tiene como objetivo señalar las motivaciones de un historiador del arte ante los desafíos que esta disciplina ha enfrentado en las últimas tres décadas. Con un evidente enfoque au-tobiográfico, el texto toma decisiones conceptuales, elige nociones y utiliza la brega como práctica metodológica para construir enfoques del arte. También sugerimos algunos modelos epistemológi-cos para entender la producción artística, ya sea haciendo explícitos a los autores del texto, o median-te asociaciones de lo que llamamos una comunidad de intérpremedian-tes.

Mots clés: Historia del Arte. Instituciones museológicas. Brega. Colecciones.

Resumo

O presente texto busca pontuar as motivações de um historiador da arte frente aos desafios dessa disciplina nas últimas três décadas. De evidente trato autobiográfico, o texto percorre escolhas conceituais, as noções eleitas e usa a brega como prática metodológica para construir as abordagens da arte. Insinuamos, ainda, alguns modelos epistemológicos de compreensão da produção artística, seja pela explicitação dos autores no texto, seja pelas parcerias do que chamamos de comunidade de intérpretes.

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Introdução

O presente ensaio busca pontuar as motivações de um historiador da arte frente às transformações dessa disciplina nas últimas três décadas. De evidente trato au-tobiográfico, o texto percorre escolhas conceituais, noções eleitas e a brega como prática metodológica para construir as abordagens da arte. Nesse último caso, não avançamos muito na análise do conceito-prática. Antes, optamos por manuseá-lo e adaptá-lo às nossas premências, o que nos permitiu uma aproximação tática das ciências sociais, da museologia e de outras disciplinas. Insinuamos, ainda, alguns mo-delos epistemológicos de compreensão da produção artística, seja pela explicitação dos autores citados no texto, seja pelas parcerias do que chamamos de comunidade de intérpretes. De antemão, ressaltamos que seria um erro acreditar que esses mode-los sejam neutros e nosso olhar, inerte em relação às suas operacionalidades.

Reconhecemos que houve um exercício de síntese para apresentar a condição labiríntica dos processos que orientam e motivam nossas escolhas profissionais. O que resultou numa escrita fragmentada. Em certa medida, tal escrita pode melhor expressar a dificuldade inerente à recepção das obras de arte, bem como a enredada relação entre as narrativas que usamos para interpretá-las e a experiência da obra em si.

Vale também esclarecer que, sempre que possível, adotamos a primeira pessoa do plural como forma de denunciar que a reflexão aqui apresentada, como todas as demais, é resultado do amálgama de outros pensadores e pesquisadores, tomado como “nosso”. Um exercício de perceber que qualquer processo intelectual só é pos-sível quando atravessado pelo contínuo diálogo com outros estudiosos, em especial com aqueles que nos precederam.

I.

Em 2013, durante o Simpósio Nacional de História, em Natal (RN), a historiadora Maria Bernadete Ramos Flores apresentou a comunicação “O jogo anadiômeno nos andróginos de Ismael Nery”. Durante a sessão de questionamentos, ao responder uma pergunta, a pesquisadora apresentou uma reprodução de Vuel Villa, de Xul Solar, aquarela de 1936. Especialista no artista argentino e no tema dos místicos moder-nistas, Flores comentou rapidamente sobre as arquiteturas utópicas e as paisagens místicas exploradas por Solar e por outros artistas visuais entre os anos 1920 e 1930. Naquele momento, a historiadora ofereceu uma nova chave de compreensão para uma das obras estudadas em nosso mestrado, finalizado em 1998: Arquitetura pen-tacular de Victor Brauner, de 1946 e pertencente ao acervo do Museu de Arte de São

Paulo (MASP)2. Uma rápida explanação da historiadora alterou antigas convicções

sobre a pintura do MASP.

2 Outra obra de Brauner do acervo do MASP, Taça da dúvida, mereceu outras “visitas” após o fim do mestrado em 1998, especialmente, diante da ampliação paulatina dos arquivos do fundo Victor Brauner ― criado em meados dos anos de 1970 ―, sobremaneira após a digitalização de parte dos cadernos e diários mais íntimos do artista, provenientes do acervo de sua viúva, em 2007. Uma versão mais atualizada pode ser encontrada em: (OLIVEIRA, 2017a).

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No final dos anos de 1990, essa obra de Brauner era um exemplar “típico” das investigações poéticas do artista romeno, radicado entre a Suíça e a França, nos anos de 1940. Durante o mestrado, analisamos sua produção pela chave religiosa. Arqui-tetura era a hibridação de conceitos místicos reunidos pelo artista, num fluxo obses-sivo de Brauner pelas práticas paranormais, pelas experiências espiritualistas, pelas disciplinas e símbolos alquímicos, pelos estudos de Éliphas Lévi, pelas leituras sobre os estudos heréticos cabalistas, além de seu apreço pelas simbologias herméticas de diferentes sociedades não europeias. Em estrito senso, a obra nos parecia uma expressão biomística da Torá, cuja sexta torre pontuava Scheniná do exílio. Toda essa profusão de referências conectava-se à estadia forçada de Brauner na Suíça, em ple-na Segunda Guerra Mundial, e amparava-se ple-na utilização de materiais simples como cera de abelha, tinta esferográfica, papelão e madeira reutilizada. Uma nova visão mística era associada a novos materiais.

A intervenção de Flores em Natal nos ofereceu a possibilidade de rever a obra em outra perspectiva, a das paisagens místicas, o que significa dizer que a Arquitetura pertence a uma lógica poética anterior aos anos da guerra. Conhecíamos a admira-ção de Brauner pelos desenhos dos anos de 1920 das cidades imaginadas de Paul Klee, a sua inclinação pelas estruturas rítmicas divisíveis do artista suíço. Do mesmo modo, sabíamos das dezenas de obras associadas às arquiteturas “improváveis”, nas palavras de Didier Semin (1990, p. 53), mas o momento de conectá-las às ordens das cidades e das edificações transcendentes esperaria quinze anos após o término da

pesquisa3. Basicamente porque, como nos lembra Jorge Coli, “os historiadores

cos-tumam apenas encontrar aquilo que procuram” (2005, p. 25).

Foi um momento de discreta emoção, mas de uma certeza poderosa: há obras que costumam resistir à análise. Se as pegamos por um viés, elas escapam por ou-tro. Se nos concentramos em um tema, outros são ofuscados. Se vamos ao conjun-to, podemos deixar fugir os detalhes, tão importantes em Arquitetura, por exemplo. Sem dúvida, esse é um dos grandes prazeres de trabalhar com a produção artística: a contínua reinvenção da obra aos nossos olhos pressupõe sujeitos interagindo, numa dialética emancipada, como apontada por Rancière (2009); a interação entre o su-jeito que observa e o susu-jeito observado, numa espécie de coautoria multiforme e continuada. O tempo para que o diálogo com a obra se revele dificilmente atende aos prazos das instituições de pesquisa e das agências de fomento. Afinal, “as obras não se submetem prontamente, elas propõem questões, e as obras importantes mais questões que as demais, o que não as impede de serem respostas” (WACJMAN, 2012, p. 31).

II.

O acontecimento, confessado pela primeira vez neste texto, expõe não apenas duas dimensões interpretativas de uma mesma obra por um historiador da arte, mas,

3 O mestrado foi defendido em 1998 com o título de “Análise histórica, crítica e simbólica de duas obras de Victor Brauner: Arquitetura pentacular e Taça da dúvida”, sob orientação do Prof. Jorge Coli, financiamento FAPESP, na Universidade Estadual de Campinas.

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antes, expõe tempos motivados e coadunados pelo exercício contínuo de se apro-ximar e de se distanciar do tempo da obra. O tempo de sua realização em nossas possibilidades interpretativas.

Entre as duas possibilidades, cotejadas a partir da experiência mística de Brau-ner, insinua-se o prejuízo do engano, do equívoco e do incorreto. O sentimento de trair a obra e sua “verdade” persiste contra todas as teorias que nos ensinam sobre as multivalências que orientam a pesquisa historiadora. Um sentimento que trai a si mesmo continuamente. Estava a pesquisa de 1998 incompleta? A nova possibilidade, apenas por ser mais contemporânea, nos ofereceria uma investigação mais crédula? Essas são questões plausíveis para historiadores e outros pesquisadores que se dedi-cam à arte. Provavelmente, um número considerável de nossos colegas reconheceria no exemplo a dinâmica dos modos de conhecer e de reconhecer a produção artística, seja ela qual for. Preferimos uma outra perspectiva, que envolve o páthos que motiva e anima a pesquisa: as duas possibilidades elencadas acima são hoje transitórias e precárias. E devem permanecer desta forma. Entender uma obra interessa cada vez menos, se é que é possível. Interpretá-la com honestidade e ética (não nos furtemos de dizer: ignorar uma obra é esquecê-la) é uma possibilidade aberta e sem limites à

invenção individual, mas que só toma corpo num locus communis de partilhas4. E a

experiência de Natal bem exemplifica a pertinência do debate.

Algum tempo é exigido para valorizar a intepretação compartilhada, especial-mente se postularmos que Danto tinha razão ao ponderar que a interpretação é transfigurativa. Ou seja, ao interpretar transformamos objetos e ações. A “interpre-tação não é algo exterior à obra: obra e interpre“interpre-tação surgem juntas na consciência estética” (DANTO, 2014, p. 80). Por conseguinte, a intepretação da obra parece-nos indissociável de sua alteração, de sua transitoriedade, de sua circulação e de seu compartilhamento. A própria condição de obra enquanto arte torna-se negociável. À vista disso, partimos da pesquisa histórica da obra em circulação, como uma ne-gociação. Temos aprendido a negociar com as obras. Negociamos como elas se for-mam, como são vistas pelos outros, como se alteram pela força do outro (o sistema da arte).

Assim, nosso interesse recai para o momento em que a obra se desabita. Reti-rada de seu lugar crítico comum, conhecido e reconhecido. Momento em que são negociadas as expectativas nela depositadas. Em muitos casos, a obra apenas se desloca para um novo lugar interpretativo, tão seguro quanto suspeito. Em outros, permanece em trânsito, entre forças de sentidos deslocáveis, móveis, sem lugar fixo aparente. Interessa-nos como a obra manuseia (manipula) o seu próprio espaço de intepretação, o quanto ela reitera sua condição de instituição (Arte), ao mesmo tem-po que se defende das “perversidades” institucionais, para citar um termo caro a Clai-re Bishop (2012).

4 Sem dúvida o primeiro sujeito dessa comunidade de partilhas, cuja interpretação é incontornável, é o próprio artista. Do mesmo modo, sua interpre-tação, como lembra Baxandall, não é capaz de refazer “a experiência interna do autor; ela será sempre uma simplificação limitada ao que é conceitualizável”, mesmo que opere numa estreita relação com a obra e nos ofereça modos de perceber e de sentir (BAXANDALL, 2006, p. 48).

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A transitoriedade dos sentidos possíveis que delineamos para as obras de arte parece ser um ponto em comum às diferentes formas de abordá-las. Poucos teóricos advogariam o contrário. Nessa direção, a transitoriedade das narrativas suscitadas pelas obras ou impostas a elas encontra forte oposição dos projetos que produzem (ou fingem produzir) a fixação dos sentidos autorizados. A institucionalização desses sentidos, sua autorização e as bregas das obras são o centro motivador de nossas pesquisas desde o doutorado (OLIVEIRA, 2010). E, especialmente, a tensão entre

mu-seus5 e a produção artística de diferentes tempos, com especial vantagem da

produ-ção chamada de “contemporânea” em nossos interesses.

Antes de avançarmos no tema da institucionalização como ângulo de acesso às obras, permitamo-nos tomar a noção de brega, que o antropólogo Arcadio Día-z-Quiñones (2016) evidencia na cultura porto-riquenha, tanto no Caribe quanto no

exílio, para propor um modo de ver e de se aproximar da produção artística6.

III.

O termo é de difícil tradução em outras línguas, como pontua Pedro Monteiro (2016), menos por sua posição semântica do que por seu uso pragmático. “Bregar não é uma forma de ser. É uma forma de estar e não estar, um tipo não preciso de luta, uma negociação entre a ausência e a presença”, esclarece Díaz-Quiñones (2016, p. 38). Para o antropólogo, brega-se pela possibilidade de encontrar equilíbrio entre elementos potencialmente conflituosos, num jogo de desiguais. Quem brega per-mite-se jogar sem dominar as regras, por vezes, urge desconhecê-las. Quem brega manipula o outro pelo saber tático num jogo cujo final é indeterminado.

O interesse por essa prática da astúcia detectada na cultura porto-riquenha nos ajudou na construção de uma lógica interpretativa da produção artística frente à ins-titucionalização, incluindo a própria escrita da história da arte como reguladora (des) autorizada. Assim, bregar é uma posição. Posição que muitas obras ocupam dentro e diante das instituições. Desconhecemos qualquer parcela do sistema da arte que detenha o sentido derradeiro de uma obra; do mesmo modo, é fácil se perguntar qual instituição não tenta ditar sua perspectiva, numa disputa por posições absolutas. Se as obras bregam, elas negociam. Aqui, precisamos abrir espaço para outro antropólogo, o francês Philippe Descola (2010; 2016). De maneira demasiadamente livre, tomo dele o tratamento conferido à obra animada, à obra que se torna sujei-to operante num processo de identificação animista. Identificação na qual a obra é tornada subjetividade que incorpora o olhar de quem a experimenta. Alguma cau-tela é necessária aqui: as motivações para tomar de empréstimo uma das fórmulas ontológicas que Descola confere à imagem atendem aos nossos propósitos muito

5 Seria fácil, pela perspectiva teleológica que orienta uma escrita autobiográfica, imputar a algum fato ou a uma escolha deliberada a justificar minha dedicação às instituições museológicas e aos acervos preocupados com as artes visuais. Mas é preciso reconhecer que um conjunto de acasos e reposiciona-mentos é responsável por essa aproximação.

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mais do que esclarecem sobre a antropologia da figuração defendida por ele. Dito, retomamos: quando as obras negociam, elas bregam pelas posições intercambiáveis que ocupam.

Há algum tempo, curadores astutos logo compreenderam essa dinâmica da arte. Suas mostras ocupam a ordem do provável, por vezes do equívoco, que muitas vezes é apenas a ruptura com uma posição que a obra ocupava anteriormente nas cadeias narrativas. Neste tocante, seja diante das práticas museológicas ou mercadológicas (cada vez menos discerníveis), a obra brega. Geralmente, ela negocia no domínio do mais forte, num jogo, numa dança “incessante com o poder e a morte” (MONTEIRO,

2016 p. 23)7. A prática da brega pressupõe uma assimetria de poder, mesmo que

mo-mentânea. Essa assimetria pode estar tanto a favor da obra, tomada como instituição, quanto do museu, compreendido como templo. As posições na brega tendem a mu-dar rapidamente.

Continuamente, somos apresentados a essa astúcia da obra que utiliza outros corpos, outros saberes, outras posições institucionais para fraturar os posicionamen-tos consensuais. Tradicionalmente, a obra brega com as intepretações canônicas da história da arte e com as identidades fixas da pedagogia museológica. Nos jogos entre os sujeitos do mundo da arte, ela busca suavizar, mediar, atenuar violências narrativas. Ao mesmo tempo, temos que nos permitir imaginar que bregar também possibilita às obras se acomodarem a discursos edificantes, laudatórios e, por vezes, reforçarem regimes de visibilidade nacionais e coloniais. Isso não significa renunciar ao desejo de mudança, não se trata de passividade, de tomar a obra apenas por sua maleabili-dade, com “patrimônio” dócil (MONTEIRO, 2016, p. 22). Pelo contrário, é preciso re-conhecer na brega a capacidade de manejar, num tempo simultâneo, quando recuar, quando reivindicar. Em que momento se submeter, pela arte da fuga e da deriva, ou em que condições lutar; afinal, como nos lembra Monteiro: “Um sujeito que ‘se furta’ está evitando a luta, enquanto o sujeito da brega é um lutador constante” (2016, p. 23). Nesse tocante, motiva-nos compreender: como uma obra se adapta aos discur-sos identitários; como um conjunto de obras sobrevive a curadorias apologéticas ou autocentradas; como obras se adaptam a regimes expositivos alheios às suas parti-cularidades; como sobrevivem às práticas preservacionistas negligentes. Enfim, toda uma brega que visa à sobrevivência da obra.

Aqui temos um conflito: se bregar é atenuar as tensões, nada mais diferente do que pensamos sobre a produção artística desde os modernos. Para a produção artís-tica, especialmente aquela que almeja à vanguarda, se reservou os melhores adjeti-vos revolucionários. A “boa” obra é aquela que não se concilia, não se entrega, não se submete à cultura dominante. Embora não se possa evitar todas as idealizações, essa não nos seduz. Nos interessamos menos pela obra “sonhada” por seus criadores do que pelo sonho da obra num mundo adverso das leis da institucionalização. Em

nos-7 Profissionais das artes, dentro e fora das instituições de “memória”, sabem que a obra pode desaparecer. Seja pelo esquecimento, seja pela destrui-ção material. A “morte” da obra e sua destruidestrui-ção, todavia, é um assunto pouco atraente para a história da arte brasileira.

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so caso, da musealização. Nesse aspecto, recomenda-se a tática no sentido ofertado

por Certeau8 (1994) ou a brega caribenha.

Da mesma forma, não se trata de impor uma característica, uma essência ou um caráter à obra. Mas, apenas, de nomear o jogo tático da arte frente à instituição museológica. Um conjunto de obras que bregam com os museus foi um importante motivador para a constituição da nossa carreira. Interessa-nos as diferentes posições que marcaram a brega de Partida da Monção (1897), de Almeida Júnior, no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, num processo de negociações difícil com a história da cultura material que orientava a instituição até o início dos anos 2000 (OLIVEIRA, 2008). No mesmo museu, temos a obra cúmplice, como bem retratamos nas experiências de bregar de Independência ou Morte! (1888), de Pedro Américo. Na mesma lógica, investigamos Últimos dias de Carlos Gomes (1899), de Domenico De Angelis e Giovanni Capranesi, e sua brega com o Museu de Arte de Belém:

Em muitas ocasiões, obras de arte, e mesmo acervos inteiros, contribuem para a legitimidade do poder estabelecido, para a eleição de um tempo áureo ou adâmico. Mas a construção não é unívoca: ela se dá no sentido contrá-rio. Na ação de constituição de uma genealogia essencial do acervo, Inde-pendência ou Morte! e Últimos Dias de Carlos Gomes também participam de sua legitimidade política. Essa participação permite reivindicar um lugar na história da instituição, de elaboração de uma pertinência do passado, que, como nos alerta Huyssen, nos leva a uma memória auto-reguladora. (OLIVEI-RA, 2008, p. 48).

Certamente, trata-se de fundar os espaços das cumplicidades e das dependên-cias em obras tão distintas como: Terra à Vista (1998), de Nelson Leirner, em seu embate com o “corpo” edificado do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (OLI-VEIRA, 2011); Puxador/Colunas Pampulha (2002), de Laura Lima, e sua ativação no Museu de Arte da Pampulha (CAETANO; OLIVEIRA, 2020); As Bodas de Caná (1563) de Paolo Veronese, na rememoração do passado de violência que engendrou o Museu do Louvre (OLIVEIRA, 2014); Esferas (2001) de Marcelo Silveira, em sua tradutibilidade dentro do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (OLIVEIRA, 2016); Kiss (2002) de Tino Sehgal, em sua contraperfomatividade com o Museu de Arte Moderna de Nova York (OLIVEIRA, 2017b); Abra seus olhos (2010-2012), de Kader Attia, e os paradoxos das políticas de autocrítica do Museu do Quai Branly (OLIVEIRA, 2020a); O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu (1903), de Benedito Calixto, na explicitação das ficções históricas do Museu Paulista (OLIVEIRA, 2009); Balaústre/Apagamento (2004-2014) de Ana Ruas e a ética do es-quecimento e do apagamento no Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul (OLIVEIRA, 2018), entre outras obras abordadas nas últimas décadas.

8 “Denomino (...) ‘tática’ um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem aprendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. O ‘próprio’ é uma vitória do lugar sobre o tema. Ao contrário, pelo fato de seu não-lugar, a tática depende do tempo, vigiando para ‘captar no vôo’ possibilidade de ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para transformar em “ocasiões” (1994, p. 46, grifo nosso).

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Poinsot (2012; 2016) não foi o primeiro, mas seus estudos recentes nos mos-tram como a obra negociou sua dependência do museu, da exposição e de outras formas mais contemporâneas de difusão, exigindo de seus intérpretes novas formas de resistência (a ênfase na autonomia da arte que percorre o último século e, por

vezes, persiste) e de interpretações9. Mas há um ponto adicional: quando a obra e o

historiador bregam. IV.

Bregar é negociar. Díaz-Quiñones ao menos confere particular atenção a esta

dimensão da brega10. Assim, exige-se de quem brega uma evidente sensibilidade,

cul-tural e política, para a negociação. Na leitura ofertada por ele, quem brega negocia com as coisas, com as pessoas e, sobretudo, com e pela linguagem. A negociação se produz nos jogos de linguagem e com tudo que lhe é próprio: suas práticas, suas possibilidades e suas censuras (DÍAZ-QUIÑONES, 2016). No âmbito que nos interessa, o historiador é aquele que precisa bregar com a obra.

É razoável objetar à ideia de que historiadores da arte bregem. Nada menos pa-recido com o rigor austero da disciplina, ao menos com a imagem cautelosa que a História da Arte ambicionou produzir de si no século XX. De qualquer modo, bregar não é uma prática evasiva e leviana. Ela exige algum rigor, uma malícia metodológica, que o tempo e o engajamento ajudam a produzir, e algum grau de erudição, para usar uma das perigosas palavras rejeitadas na atualidade.

Quando bregamos com a obra construímos narrativas muitas vezes ambíguas, cujos sentidos são escorregadiços. Trata-se de uma “navegação sinuosa, às vezes silenciosa e humilde, sempre alerta, frequentemente lépida e solerte, mas nunca de-finitiva” (MONTEIRO, 2016, p.21). É esse último aspecto que requer atenção, espe-cialmente na seara da historiografia da arte e da teoria que a sustenta. A desistência da universalidade, do categórico e do permanente é ponto-chave para o futuro da disciplina, especialmente em tempos que exigem a consciência de que nomear já é fazer política.

Felizmente, muitos dos meus colegas bregam muito bem. Há bons motivos para acompanhar uma nova maneira de fazer história da arte nas últimas décadas. Tais co-legas de profissão nos motivam quando suas estratégias de pesquisa permitem que eles se movam em direção à arte com “manobras localizadas e sagazes”, diante da experiência crítica e sensível da obra (DÍAZ-QUIÑONES, 2016, p.42). São profissionais que seduzem tanto quanto são seduzidos por seus “objetos” de investigação, de es-peculação e de “engano”. São historiadores que reclamam continuamente a potência política da disciplina e sua responsabilidade num conjunto maior da sociedade, ao mesmo tempo que assumem que a crítica mais objetiva ou assumidamente descritiva é dotada de subjetividade.

9 Algumas controversas, como vimos em George Dickie (2005), Richard Sclafabi e Ronald Roblin (1989).

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Na pesquisa desses profissionais evidencia-se que bregar com a arte exige ca-pacidade dialógica. Mesmo diante de nossos desejos mais secretos pela “verdade” da obra, de antemão fica excluída a realização da totalidade na brega. É preciso compre-ender a vulnerabilidade de nossos mecanismos de explicação/compreensão (RICO-EUR, 2007). Entender que tais mecanismos, quando não críticos, sombreiam a arte que deveriam revelar. Interpretar, comentar, deduzir, reproduzir são formas de posse. Podem tanto emancipar quanto alienar.

Como vimos antes, a obra brega conosco, com as instituições e, o mais revela-dor, com os próprios artistas ou com a memória desses. Cada vez mais, as obras são tomadas como inflexões práticas e poéticas de sujeitos históricos, cujas classes so-ciais, as posições de gênero, as identidades étnicas encontram-se numa batalha sim-bólica incessante, na qual a imaginação historiadora é instigada a se reinventar. Ao mesmo tempo, bregar diante da obra num contínuo jogo tático, numa negociação permanente pode ser profundamente cansativo e frustrante. Por muitas vezes, uma comunidade de intérpretes se satisfaz com sentidos provisórios por um longo tempo, aquilo que facilmente chamamos de tradição crítica. Decerto, uma nova questão se abre: em que tradição buscar abrigo? Esse tem sido um dilema poderoso para histo-riadores da arte na contemporaneidade.

Sem dúvida, emprestar o conceito estudado por Díaz-Quiñones é um exercício de vontade pessoal e expressa, exclusivamente, nossa forma de compreender o tra-balho historiográfico desempenhado. A brega não é candidata à teoria. Justamente porque bregar localiza-se nas dinâmicas culturais porto-riquenhas. Está vinculada à experiência colonial e escravista daquele território político e cultural. Sua prática está marcada pelos sucessos incompletos e pela denúncia dos fracassos anunciados. Assim, “ao contrário do que ocorreu com outros mitos de identidade, não é possível cultuar nem endeusar a brega” (DÍAZ-QUIÑONES, 2016, p. 105). Na mesma direção, não é possível disciplinar a brega e torná-la uma fórmula para aproximação com a arte. Esse é um projeto crítico pessoal, uma maneira de navegar por superfícies con-ceituais oferecidas por outros estudiosos, de questionar e debater os protocolos das instituições, incluídos os artistas (HUCHET, 2018).

IV.

Como prometido, voltemos à institucionalização como ângulo de acesso às obras em nosso presente. Com especial atenção às instituições museológicas e suas práticas.

Seria fácil tomar o museu como a instituição de poder e a produção artística como seu objeto manipulável. Muito poucos exigiriam uma justificativa para tipificar tais instituições como potências elitistas que, não raro, pervertem e alienam as obras que expõem e guardam. Todavia, no desejo de uma confissão, nossas pesquisas de-monstram que os profissionais dos museus conferem o poder às obras. Quando o encontro é frutífero, estabelece-se com elas relações francas e abertas. Quando não, transformam suas presenças em auxiliares de projetos alheios.

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O museu e suas práticas tornaram-se uma excelente plataforma de aproxima-ção e intepretaaproxima-ção da produaproxima-ção artística nas últimas décadas. Trabalhos inspiradores foram produzidos ainda nos anos de 1990, como os de Cristina Freire (1999), Dária

Jaremtchuk (1999), Maria Cecília França Lourenço (1999)11. Desde então, um amplo

jogo entre as obras, as coleções, as exposições, os processos e os projetos curatoriais e educativos, as práticas mercadológicas, e os sistemas de difusão da imagem da arte passou a mediar os modos como compreendemos a circulação e a percepção da

produção artística12. Decerto, é legitimo advogar que as obras parecem distorcidas

e fragmentadas pelas narrativas institucionais. No imaginário moderno-contempo-râneo cabe à obra desabitar os sentidos consensuais, enquanto o museu, frequente-mente, busca construir um lugar habitável para esses mesmos sentidos. Trata-se de um paradoxo constitutivo e de longa data.

Não é preciso dedicar muito esforço para explicitar a cumplicidade entre o de-senvolvimento da história da arte como disciplina e a sua dependência da prática colecionista moderna e das instituições museológicas (GEORGEL, 2015). Por conse-guinte, é preciso admitir que uma abordagem unívoca não é razoável. A adesão ao campo de debate entrecruzado entre a história da arte e da cultura material, a socio-logia da arte, a museosocio-logia, a história da cultura, a antroposocio-logia etc., além do amparo das teorias da arte e da história da crítica, é inevitável para quem quer bregar.

Esse amplo campo marca direta e indiretamente uma história da arte que não subtrai de seu cálculo interpretativo os processos de institucionalização, especial-mente, da própria condição artística. Sem reduzir a potência da crítica antagonista, ir contra essa ideia requer grande violência interpretativa e fronteiras disciplinares rígidas, o que é pouco provável na atualidade. Basicamente porque a pressuposição de que o sistema da arte é uma unidade homogênea e auto-organizada se comprova insustentável. Visto que apreendemos com Michel Foucault (1995) que instituições disciplinares não resultam automaticamente em organizações disciplinadas.

O jogo entre as instituições museológicas e a produção artística explicita essa ruptura, especialmente em territórios de tradicional fragilidade institucional como o brasileiro. Muitas das críticas dirigidas ao museu de arte moderno-contemporânea são justas e estão respaldadas com pesquisas sérias e debate franco. Mas outras críti-cas endereçadas a essas instituições correm o risco de se tornarem redutoras, super-ficiais e, na contramão da intenção de seus formuladores, fetichizam as instituições que buscam criticar, conferindo-lhes ainda mais poder.

11 O número de historiadores dedicados às práticas museológicas em arte ampliou-se desde o início do presente século. Seria injusto citar alguns em detrimento de outros. Do mesmo modo, é preciso prestar nossas considerações às pesquisas pioneiras de Walter Zanini, de Dom Clemente Silva-Nigra, de Aracy Amaral e de Ulpiano Meneses, entre outros. Personagens que ocuparam lugares distintos na historiografia da arte brasileira.

12 Muitas de minhas pesquisas estão atravessadas pelo esforço de pesquisadores especialistas e tradutores em divulgar textos de Douglas Crimp, Arthur Danto, Andreas Huyssen, Anne Cauquelin, E.H. Gombrich, Francis Haskell, Hans Belting, Françoise Choay, Didi-Huberman, Carlo Ginzburg, Christiane Paul, Yve-Alain Bois, Rosalind Krauss, Néstor García Canclini, Giorgio Agamben, André Malraux, Jacques Rancière, Griselda Pollock, Michael Baxandall, Sally Price, Hal Foster, Nathalie Heinich, entre tantos outros. Muitos desses autores podem parecer corriqueiros hoje, mas acreditamos que tiveram impacto importante na formação de pesquisadores brasileiros desde, ao menos, o início dos anos de 1990. Aos pesquisadores, especialistas e tradutores, nem sempre lembrados, nossos sinceros agradecimentos.

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De todo modo, há um tempo fetiche em todo museu. A existência da instituição demanda seu apartamento do mundo na forja de outro mundo, o da arte. Groys ofe-rece uma intepretação inquietante, uma vez que inverte, pelos óculos da comunida-de comunida-de intérpretes, a medida do real:

Hoje em dia quando as pessoas falam de ‘vida real’, o que normalmente que-rem dizer é mercado da mídia global. E isso significa: o atual protesto contra o museu não é mais parte de uma luta travada contra o gosto normativo em nome da igualdade estética, mas, ao contrário, tem como objetivo estabilizar e arraigar gostos atualmente predominantes.

(...)

A mídia de massa constantemente renova a reivindicação de confrontar o es-pectador com arte diferente, inovadora, provocativa, verdadeira e autêntica. O sistema de arte, ao contrário, mantém a promessa de igualdade estética que solapa qualquer reinvindicação como essa. Em primeiro lugar, o museu é um local onde somos lembrados dos projetos igualitários do passado e onde podemos aprender a resistir à ditadura do gosto contemporâneo. (2015, p. 32 e p. 35).

Pode-se ou não concordar com a perspectiva do historiador, mas, de qualquer modo, ela nos instiga a compreender as lógicas de poder que atravessam nossa com-preensão da produção artística, seja do passado ou do presente.

Embora se possa exigir um grau de ingenuidade para se bregar com a obra, não se deve esquecer que o poder financeiro e as instituições da arte contribuíram para a difusão de imagens-da-arte maleáveis, apropriando-se delas, convertendo-as em peças de autoelogio. Nesse território não há ingenuidades, embora haja ingênuos. Sabemos que há instituições que são administradas como empresas transnacionais, vinculando suas ações de comunicação à economia de sedução e de consumo glo-bais. Nessas, o espaço do museu deixa o público alheio às condições econômicas por trás das obras expostas (BELTING, 2009). Outras, resistem ao enfatizar seu papel público, insistem no debate de suas próprias contradições e criticam os apelos do consumo compulsivo, ou seja, “a contradição entre missão pública e interesse priva-do ou, mais cruamente, entre democracia e plutocracia” (FOSTER, 2020, p. 324). Em ambas há arte.

V.

Não há museus bons ou maus. Acreditamos que essas tipologias não se susten-tam para uma história das obras neles contidas. Há mecanismos que introduzem as coleções em jogos culturais desistorizados e despolitizados mediante fórmulas va-zias, algumas delas muito em voga na atualidade (OLIVEIRA, 2020b).

Ao investigar instituições, historiadores da arte podem ter clareza de que escre-vem a partir de outra instituição secular: a própria disciplina. Seja qual for a história da arte, e há muitas delas. Há muito tempo, historiadores da arte, dedicados à pes-quisa, não podem ser negligentes. Nossas narrativas não são transparências da pro-dução artística, elas estão organizadas pelas operações específicas do nosso campo

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disciplinar. Aprendemos a olhar a obra, a diferenciá-la de outras com a produção de hipóteses; selecionamos, de um arsenal de documentos, as fontes que ajudamos a autorizar; criticamos a pertinência e a adequação entre outras narrativas e nossos objetos de investigação. A história da arte, por mais multifacetada que seja, intercep-ta apenas os ângulos selecionados pelos pesquisadores. A conclusão é óbvia. Quanto mais “ângulos”, mais estimulados estamos diante da produção artística.

Dentro do museu, nosso interesse recai sobre como cada obra responde à outra sob nossos olhares, sob nossos juízos. Uma coleção é, por definição, uma derrota de qualquer teoria “definitiva” da arte. Para os modernos, as obras foram, tradicional-mente, pensadas como próprios indistintos. Uma longa história da grade e do pedes-tal, apenas para citar o mais corriqueiro do assunto, foi justificada pela autonomia da obra. Se outrora uma comunidade de obras era prestigiada em suas agências distintas, parece-nos plausível crer que a Renascença inventou a obra única, um novo sentido

para a obra-prima medieval13. A unicidade e a individualidade não apenas orientaram

parte das premissas sobre arte, num tempo em que as teorias podiam sobreviver até mesmo sem as obras, como também instituíram uma linearidade interpretativa. Line-aridade muitas vezes imitada e almejada pelas instituições colecionadoras.

É difícil ser um historiador da arte dentro de uma reserva técnica. Acervos e co-leções raramente dobram nossas lógicas mentais sobre como pensar e narrar a arte. A natureza “material” das obras é impiedosa em muitos momentos e traça sua própria brega em conjuntos intercambiáveis. Não é por acaso que a obra exposta ou “arqui-vada” se tornou um ponto de inflexão para as narrativas convencionais da história da arte (COSTA, 2009; BENICHOU, 2013). Ao lado de outros parceiros de pesquisa, den-tro dessa comunidade de intérpretes, as motivações que nos moveram para a obra em coleção são amplas:

As coleções possibilitam apreender o fenômeno artístico pela compreensão dos gostos de seus proprietários, inseridos numa cultura e tempo particula-res, estabelecer relações entre diferentes contextos históricos e nexos entre materialidades distintas, especular sobre as formas de circulação, de visibi-lidade e de exposição das obras, numa extensão que opera das característi-cas estéticaracterísti-cas aos modelos mercadológicos de interação (...) Os acervos são capazes de nos apresentar não apenas os coletores, os selecionadores e os mantenedores de tais conjuntos, mas também muito nos esclarecem sobre a apreciação, a recepção crítica e a compreensão das intenções autorais. A própria história da história da arte alinha-se a diferentes modelos de colecio-nismo: devotados à celebração de um passado autorizado, delineados pela necessidade pedagógica, como modo de bem transmitir o gosto, a excelên-cia e a tradição dos mestres e suas instituições. (MALTA, OLIVEIRA, 2016, p. 18)

Uma coleção permite a rápida comparação e compreensão das redes de valores que ligam ou separam as obras reunidas, que, bem estudadas, permitem conectar

13 A individualidade da obra respondeu, posteriormente, à emancipação e ao reconhecimento do sujeito moderno, nas palavras de Luc Ferry (1994). Por certo, estamos no território imaginado do Ocidente. Muitas “obras” que demandam nossa atenção hoje não pertencem a essa h(H)istória.

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valores poéticos que normalmente são analisados como independentes ou paralelos. Assim, bregamos para compreender os ângulos que elegemos de uma obra, dentro e fora, de uma coleção. Ao mesmo tempo, os jogos que fazem a obra bregar nos avisam que ela busca uma constante individualidade aos nossos olhos. Tanto quanto adere à coleção, a obra exige um contínuo processo de (des)colecionamento. Atual-mente, estamos motivados a compreender esse processo.

O conceito de (des)coleção busca visibilizar como práticas artísticas distintas a priori são reunidas para simbioticamente perpetuar estratégias narrativas da histó-ria da arte, em ambientes museológicos institucionalmente reconhecidos. Tomamos, assim, a des(coleção) como processo que explicita a tensão tática das novas narrati-vas sobre as coleções. Uma tensão gerada pela necessidade de produzir sobre cada obra um efeito de presença na coleção matricial (acervos museológicos, coleções privadas institucionalizadas etc.) e, simultaneamente, garantir-lhe certa autonomia, num processo de anamnese “institucional” contínuo.

Considerações sobre o teste

O teste apresentado para este dossiê é um desafio para profissionais que vivem da mediação, da intepretação e da crítica da produção artística. Parece-nos mais crí-vel pensar que artistas estão mais habituados a responder o que os motiva, o que os

impele a produzir. Teóricos e historiadores são demandados sobre suas intenções14,

raramente sobre suas motivações. Frequentemente, subtraímos ou dissimulamos nossas preferências pessoais em favor do cálculo “científico” de nossas narrativas. Há boas razões para isso, como também há problemas no distanciamento simulado.

Felizmente, há algum tempo, certa história da arte tem sido refutada. As con-sequências de seu discurso e de sua prática ainda produzem muita segregação e autoelogio, associados à ocultação de seu funcionamento. Não é de admirar que as interpretações ou modelos históricos que se enquadram nas grandes narrativas sejam expurgados do espaço acadêmico. Ainda, há muito nas narrativas da produção contemporânea do imperativo da história da arte de outrora; ou seja, a ideia de que para resolver uma compreensão bastava criar um “estilo”, um “período”, um modelo de arte. Ao mesmo tempo, felizmente, há uma história da arte que brega. Uma dis-ciplina permanentemente em crise porque seu objeto está em permanente titubeio.

Não são dias fáceis para qualquer conhecimento que opera com a negociação da “verdade”. A história da arte não está imune à cultura da pós-verdade e à crise dos trânsitos narrativos e suas posições ficcionais. Não são poucos que questionam sua utilidade. Há um bom tempo, pela arte, sabemos que uma única “verdade” é insus-tentável. Mas recentemente, estamos diante daqueles que creem na possibilidade de verdade alguma.

14 Continuamos sendo interrogados sobre o que Danto bem definiu no título de um ensaio de 2003, traduzido para o português por Solange Ribeiro de Oliveira, como: “Por que a arte precisa de explicação?” [Why Does Art Need to Be Explained?] (DANTO, 2012).

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Nas duas situações, resta-nos defender a negociação com a arte, sobre arte. A história da arte é apenas mais uma posição na brega com a produção artística. Sua força consiste no encontro com o espaço precário da arte, das indecisões e decisões tomadas em circunstâncias transitórias. Afinal, como explicitamos antes, não somos nós que decidimos quando “esquecer” uma obra. Como bem me ensinou Arquitetura Pentacular, em 2013, são elas, em suas zonas de silêncio, que decidem quando nos deixar.

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