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Os outros : a Casa Pia de Lisboa como espaço de inclusão da diferença

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“Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta

palavra, é porque foram escritas no prazer (este pra-zer não está em contradição com as queixas do escri-tor). Mas e o contrário? Escrever no prazer me asse-gura – a mim, escritor – o prazer de meu leitor?”

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Índice

Resumo 13 Abstract 15 Agradecimentos 17

Introdução

Os anormais 23 Pontos de partida 35

Cruzamento de olhares: fontes e critérios metodológicos 37

Roteiro da escrita 41

I PARTE

A invenção da (a)normalidade

45

Percorrer a diferença na Modernidade 47

Traços genealógicos da Educação dos Anormais 77

Ensaios de modernidade 95

II PARTE

Casa Pia de Lisboa – Laboratório da Anormalidade

103

A Colónia de S. Bernardino: retrato de uma instituição total

107 A Colónia Agrícola da Casa Pia: uma escola de anormais 115

A César o que é de César 159

Os “amigos” de Peniche 171

(7)
(8)

O Instituto Médico-Pedagógico: vencer a diferença

195

Os primeiros anos do Instituto Médico-Pedagógico 203

A viagem exploratória de Palyart em França 225

Vencer a diferença nas salas do Instituto Médico-Pedagógico 237

E depois da Guerra… o regresso à (a)normalidade 259

Os heróis que a Guerra invalidou…

Reeducar o soldado no Instituto de Mutilados de Santa Isabel

271

O estalar da guerra 277

Assistência aos mutilados: as raízes de um projecto 287 As perspectivas de Costa Ferreira e a viagem de Palyart 297

Aurélio e o optimismo 307

As histórias de quem as viveu… 321

Por fim, a desilusão… 343

Conclusão

351

Fontes e Bibliografia

367

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Resumo

O imaginário casapiano dos princípios do século XX transporta-nos para a grandeza dos claustros dos Jerónimos, albergue de cerca de um milhar de crianças que, pela sua condição precária, encontram no imenso edifício cama, sustento e educação. A secular instituição afigura-se, portanto, como o garante do governo de uma população recrutada nas fileiras da miséria, assegurando que doravante não mais recorra à mendicidade para preencher o correr dos dias. Resíduos da sociedade, estes elementos eram recolhidos pela Casa Pia de Lisboa, transformados, aperfeiçoados e lançados novamente na sociedade que os segregara.

Contudo, ainda há os outros… Os anormais que deambulavam por Belém, sem se acostumarem às rotinas estabelecidas, deviam ser apartados, afastados das classes normais para não prejudicar a ordem da Casa. São corpos estranhos, resíduos que encravam a engrenagem. Por isso, para conhecer os espaços criados para recolher os anormais é necessário que embarque connosco. A visita estende-se, portanto, aos dispositivos de normalização criados na dependência da Casa Pia para receber todos aqueles que, pela sua anormalidade física ou mental, se desviavam da vulgaridade e que, por esse motivo, careciam de uma educação mais adequada às suas dificuldades de aprendizagem. Seria, sobretudo, um ensino especial para crianças especiais, uma escola à medida da anormalidade do outro. Eis a linha orientadora que desagua na criação dos espaços que se visitam neste trabalho: a Colónia Agrícola de S. Bernardino, em Atouguia da Baleia, fundada em 1912, e o Instituto Médico-Pedagógico, em Santa Isabel, Lisboa, em funcionamento desde 1915. E porque de anormais se trata, quando chegam a Lisboa os primeiros soldados mutilados pela Guerra, a Casa Pia envida esforços para os acolher nas suas instalações, empregando os mais modernos processos de reeducação funcional e profissional com o intuito de os devolver, o mais rapidamente possível, ao mundo do trabalho.

Laboratório de modernidade pedagógica, o universo casapiano evidencia-se pelo seu contributo para a inclusão dos anormais na sociedade, configurando-se como instituição precursora da assistência pedagógica à anormalidade em Portugal.

Palavras-chave:

Casa Pia de Lisboa, Modernidade Pedagógica, Anormais, Instituto Médico-Pedagógico, Colónia Agrícola de S. Bernardino.

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Abstract

The casapian imaginary of the beginning of the 20th century transports us to the greatness of Jerónimos cloisters, shelter of about one thousand children that, for their poor condition, find in the immense building bed, nourishment and education. The secular institution presents itself, therefore, as the major guarantor of the government of a population recruited into the ranks of misery, ensuring that henceforth no longer they would have to resort to begging to fill the days. Waste of the society, these elements were collected by Casa Pia de Lisboa, transformed, improved and released back into the same society that segregated them.

However, there are still the others… The abnormals that rambled in Belém, without getting used to the established routines, should be secluded from the normal classes so they wouldn’t arm the house rules. They are strange bodies, “wastes” that jam the gear. So, to understand the spaces created to collect the abnormals it is necessary to come along with us. The visit extends, therefore, to the normalization devices created at the Casa Pia’s dependence to receive all that, for their physical or mental abnormality, deviated themselves from vulgarity and that needed a more adequate education to their learning difficulties. It was, above all, a special education to special children, and a school that measures up to the abnormality of the

other. This is the guideline that flows into the creation of the spaces that are visited in this work:

the Colónia Agrícola de S. Bernardino, at Atouguia da Baleia, established in 1912, and the Instituto Médico- Pedagógico, at Santa Isabel, Lisboa, settled in 1915. When arrived to Lisbon the first war mutilated soldiers, and since our subject is the abnormals, the Casa Pia endeavours to collect them in their installations, using the most modern functional and professional re-education aiming to help them returning, as soon as possible, into the active life.

Being the casapian universe a laboratory of pedagogical modernity, is accentuated by its contribute to the inclusion of the abnormals in the society, configurating as an innovative institution of the pedagogical support to the abnormality in Portugal.

Keywords:

Casa Pia de Lisboa, Pedagogical Modernity, Abnormals, Instituo Médico-Pedagógico, Colónia Agrícola de S. Bernardino.

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Agradecimentos

Começo esta viagem por identificar quem me acompanha. Porque as linhas que se seguem deixam ecoar as vozes que se fizeram ouvir ao longo destes três anos e que encontram, aqui, um momento de paragem. Presenças assíduas, inestimáveis, algumas previstas, outras inesperadas, seguiram-me em todas as aventuras, iluminando o caminho que, por vezes, se adivinhava sinuoso. É a essas pessoas e instituições que dedico as primeiras linhas deste trabalho.

Ao Professor Luís Alberto Alves, orientador desta tese, consagro o meu maior agradecimento, pelos motivos que a razão facilmente esclarece. Será difícil apartar os meus pensamentos e as minhas palavras dos momentos de partilha atenta, criteriosa e solícita que tive oportunidade de vivenciar. Na liberdade que me concedeu para seguir a minha escrita, incentivou-me a pensar e a ser com autonomia suficiente para poder levantar voo quando assim o desejasse. Se lhe devesse, apenas, os seus conhecimentos sábios, a sua orientação desvelada e permanente, as palavras de ânimo, as leituras assíduas… enfim, muito mais do que poderia desejar, estas linhas bastariam, decerto, para inscrever no papel a gratidão que lhe dedico. Contudo, o mestre conseguiu “despertar noutro ser humano poderes e sonhos além dos seus;

induzir nos outros um amor por aquilo que amamos; fazer do seu presente interior o seu futuro”.1

Para semelhante talento, ou vocação, não existem palavras que trespassem o que a gratidão consegue alcançar.

A abertura a um admirável mundo novo, até então desconhecido, fez-se a partir de uma pequena sala, em Lisboa, graças aos pensamentos soltos e desconcertantes do Professor Jorge Ramos do Ó. Devo-lhe, sobretudo, o uso de lentes bifocais que me permitem enxergar mais do que uma dimensão. Percorrer as páginas deste trabalho mostra claramente tudo quanto com ele aprendi.

1

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Apresento um especial agradecimento ao Centro Cultural Casapiano, cujo conforto visível nas instalações se estende à amabilidade das pessoas com quem tive o prazer de me relacionar. À Dra. Luísa Monteiro devo mais do que palavras simpáticas. Devo, essencialmente, a preocupação, a disponibilidade, a delicadeza, o cuidado de me receber, sempre, com sublime profissionalismo. À Dra. Emília Rangel, responsável pelo Arquivo Histórico da Casa Pia de Lisboa, agradeço a procura incessante por novas pistas que evitassem o abandono das linhas traçadas. Foi graças ao seu esforço que se tornou possível contactar com documentação inédita, que até então repousava no esquecimento. À Dra. Joaquina Madeira, excelentíssima Presidente do Conselho Directivo da Casa Pia de Lisboa, agradeço a autorização para digitalizar e publicar nestas páginas os documentos iconográficos que tive oportunidade de percorrer.

Os colegas de Mestrado em História da Educação, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tiveram um papel fundamental. As suas palavras ainda flutuam no meu pensamento e muito contribuíram, com a leitura dos meus textos, para iluminarem o caminho que se percorreu.

Uma saudação amistosa aos colegas do seminário de Doutoramento da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade Nova de Lisboa, com quem convivi ao longo de quatro anos de partilhas: de ideias, de afectos… Recordo, com especial gratidão, os autores que me deram a conhecer, sem formalidades nem regras, apenas, com a condição de dispor à vontade daquelas tertúlias estimulantes. À Ana Paz, particularmente, a disponibilidade atenta de enviar para o Norte os textos que se discutiam na capital, sempre acompanhados de um comentário saudoso que guardo religiosamente.

Uma palavra de reconhecimento a João da Costa Ferreira, bisneto de António Aurélio da Costa Ferreira, cuja generosidade excede, em larga medida, o domínio do possível. A reunião improvável de condições favoráveis determinou que, nos meandros da Web, travássemos conhecimento virtual. Daí à partilha de documentos privados pertencentes a António Aurélio foi um pequeno passo, possível, apenas, graças à solicitude de uma alma sensível.

Agradeço à Fundação para a Ciência e Tecnologia a bolsa individual que me concedeu, impulso decisivo para o avanço desta ideia. Sem este apoio teria sido impensável comportar semelhante aventura. E muito grata me dirijo à Faculdade de Letras da Universidade do Porto por me ter recebido na continuação desta viagem.

Uma palavra de apreço ao Professor Joaquim Mendes Moreira, cujo exemplo de rigor e exigência permanecerá constantemente como escopo profissional e pessoal.

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Estou inteiramente grata aos colegas da Escola Secundária de José Estêvão, em Aveiro, que preencheram as ausências forçadas e permitiram as semanas de investigação em Lisboa. Às minhas alunas devo, sobretudo, o interesse e a confiança constantes.

À família e amigos, marca indelével nesta escrita, dedico algumas palavras cujo valor inflaciona à medida que as redijo. As suas presenças constantes revezavam-se com o meu silêncio, por vezes, prolongado, sem que isso revelasse o menor abalo na partilha dos afectos. O conforto de me saber querida, muito embora a ausência pudesse desafiar o esquecimento, teceu laços inabaláveis.

À minha amiga Sílvia devo muitas risadas e conversas mais sérias que passavam, quase sempre, pelo apoio constante e confiança inexcedível. Projectou-me sempre mais longe do que alguma vez saberei alcançar.

Dos queridos amigos Ana Sofia e Mário Vieira recordo a solicitude e presença constantes que só uma amizade verdadeira, preenchida ao longo de anos, pode fazer prosperar. Ao amigo Luís Neta, cujas competências excedem, em larga medida, a da sua esfera profissional, devo a estima sincera e o empenho inexcedível com que me socorreu nos meandros informáticos. Não fosse a sua perseverança obstinada, e o fácil acesso às bases de dados seria, apenas, produto da minha imaginação.

Ao Carlos e à Fernanda dirijo o mais sincero agradecimento pelo carinho com que me receberam. A sua hospitalidade preencheu o vazio de muitas saudades.

A família, presença de todas as horas, é a alma das minhas palavras. A gratidão que lhe dedico há muito que não é mensurável, e adensa-se com o passar dos dias. É a razão e o fim de tudo o que faço, semente de todas as promessas de êxito.

Aos meus pais devo quanto sou. Ao Ricardo devo o que vamos ser.

À Andreia, irmã querida, amiga maior, posso agradecer tudo… tudo. As palavras, o tempo, a bondade… a coragem de acreditar em mim quando mais ninguém o faria. Os dias passados em Lisboa serviriam para estreitar laços se não fossemos, já e sempre, um só.

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Os anormais

A torre da igreja, alta, alva, não desmente o que se pensa a partir do primeiro momento em que os nossos olhos tocam a fotografia. O acesso para o convento de S. Bernardino faz-se pela igreja, que recebe os visitantes por um portão largo que dá para o pátio. A igreja situa-se na zona mais próxima da entrada porque, quando os sinos tocam a rebate, a vizinhança aproxima-se para a celebração da missa. A preaproxima-sença dos frades até aos finais da monarquia asaproxima-segurava uma maior proximidade com Deus… Eram, por isso, bem vistos pela “gente beata” que circunda-va o convento.

Com a vinda de uns

estranhos de Lisboa, o panorama

mudou. O fervor republicano dos novos inquilinos alterou a normalidade dos dias: a torre da igreja, alta, alva, remeteu-se apenas a marcar o correr dos dias, enquanto os retábulos do altar eram desmontados e esquecidos. Também o edifício

principal, com vista privilegiada para o mar, viu nascer à sua volta alguns casebres que serviam de abrigo aos animais e ao produto das colheitas que, em anos de abundância, permitia cobrir as necessidades da casa e, ainda, vender alguma coisa. As terras lavradas, cultivadas, com peque-nos carreiros, deixam supor grandes viagens de enxada na mão, dias percorridos ao sabor do nascer e do pôr-do-sol, sempre embalados pelo sussurro do mar.

Eis a primeira paragem: a Colónia de S. Bernardino, em Atouguia da Baleia. O final de 1912 marca o início desta viagem, mas também a do ensino das crianças anormais em Portugal. Ficámos presos a esta fotografia, reféns dos pensamentos que sobrevoam o relógio da torre, que marca as sete menos um quarto, e a colcha pendurada na janela, aquecida pelo sol de fim

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de tarde. Decidimos, portanto, habitar durante alguns momentos a pequena freguesia perten-cente ao concelho de Peniche, partilhar com os rapazes de Belém os anos que passam entre o Outubro de 1912 e os últimos meses de 1921, e experimentar, na sua companhia, a primeira experiência do ensino especial por estas paragens.

Convém, portanto, conhecer o roteiro do nosso convite. As próximas páginas demoram-se em conversas que giram em torno da educação dos anormais, no espaço institucional da Casa Pia, no tempo da Primeira República. Por outras palavras, o nosso convite estende-se à visita à Colónia Agrícola de S. Bernardino, em Peniche, fundada em 1912, ao Instituto Médico-Pedagógico, em Santa Isabel, cujo início marca o ano de 1915, e à Secção de Mutilados da Guer-ra, que funciona no recém-criado Instituto Médico-Pedagógico desde finais de Novembro de 1917, data em que chegam os “primeiros” soldados mutilados na Grande Guerra. Anexos que surgem na dependência da Casa Pia de Lisboa e pela mão de um mesmo Director, António Auré-lio da Costa Ferreira, médico e pedagogo que se destaca por uma grande sensibilidade votada para as questões relacionadas com os anormais.2 Instituições que marcam o panorama nacional, já de si efervescente no espírito da Primeira República, cadinho de experimentação pedagógica e busca de actualidade constante.

Recuemos, então, à segunda década de XX, período buliçoso que se agita entre os ven-tos da monarquia e a implantação de uma República que se agarrava às gentes da capital e igno-rava, ou pretendia ignorar, o conservadorismo, a beatice que ainda reinava a escassos quilóme-tros de Lisboa. Para o quotidiano da Colónia Agrícola este aspecto reveste-se de uma importân-cia primordial. Não esqueçamos, ainda, que esta década marca o advento de uma pedagogia assente em fundamentos científicos, construção que se vinha a delinear em França, Inglaterra, Suíça, Bélgica… desde finais do século XIX e que encontra neste período, em Portugal, terreno fértil para prosperar. Podemos falar do desenvolvimento das ciências psi, a psicologia, a psiquia-tria… que progrediam a passos seguros, e podemos falar do nascimento da médico-pedagogia, que aqui muito nos interessa, ciência que se dedica exclusivamente à aplicação dos conhecimen-tos médicos no tratamento do indivíduo com deficiência psíquica ou física, tratamento em que entram, além de outros métodos terapêuticos, e de uma forma mais essencial, os pedagógicos.

2

A biografia de António Aurélio da Costa Ferreira foi objecto de inúmeros artigos, quer contemporâneos do Director da Casa Pia, quer mais recentes. Para saber mais sobre este vulto do panorama educativo da 1.ª República, sugere-se a biografia reunida no Dicionário de Educadores Portugueses, dirigido por António Nóvoa, pp. 535-539, da autoria de António Gomes Ferreira; e a obra de José Augusto Oliveira Pereira e António Gomes Ferreira, António Aurélio da Costa

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A questão dos atrasados mentais, dos anormais profundos, deu à colaboração médico-pedagógica um valor incontestável.3 Costa Ferreira é, sem dúvida, a presença mais visível no campo da Médico-Pedagogia, aspecto que acaba por explicar e justificar o momento da criação da Colónia Agrícola e do Instituto Médico-Pedagógico. Trata-se de laboratórios onde se experi-mentam os métodos recentemente importados do estrangeiro. Esta década também encontra espaço para albergar a Grande Guerra, primeiro conflito bélico à escala mundial, que arrasta consigo um elevado número de soldados que regressam mutilados dos campos de trincheiras. Sem este evento, a Secção de Mutilados da Guerra deixava de ter sentido no panorama traçado.

Estes espaços organizam-se, portanto, como construções de uma época que hospeda circunstâncias profícuas para a sua realização. Mas também dificuldades... a instabilidade políti-ca, económica e social está presente em todos os momentos da existência desta história. A fragi-lidade dos governos nota-se na impossibifragi-lidade de fazer prosperar planos que encontram, nas vicissitudes políticas, obstáculos, por vezes, intransponíveis. As dificuldades económicas a custo deixaram prosperar estes projectos, inflacionadas pelo preço da guerra. A instabilidade social, característica deste período sobejamente conhecida, é facilmente percepcionada pelos dias em que o Instituto Médico-Pedagógico não abriu as suas portas devido à insegurança que se vivia nas ruas de Lisboa, ou, mais particularmente, no que se refere ao cerco feito à Colónia e que exigiu a intervenção da Guarda Republicana.

Eis o ambiente que se respira nos primeiros anos da República e que serve de cenário à criação dos lugares que iremos visitar. São, sobretudo, espaços que nasceram da necessidade de governar uma população que não se encaixava nas categorias existentes, e que, portanto, se esforçam por incluir o outro, o anormal. Contudo, “a escola fabrica uma imensidão de valores

que oscilam entre a normalização e o desvio, produzindo, ao mesmo tempo, a exclusão, inde-pendentemente dos esforços realizados no sentido da inclusão”.4 Para incluir os anormais que circulavam por Belém, que dificilmente contornariam as suas diferenças e se adaptariam à ordem estabelecida, é necessário excluí-los desse universo regular, e afastá-los para outros locais, outros métodos, outra norma. Torna-se inevitável banir os estranhos do convívio rotineiro da instituição casapiana. No caso dos soldados, procura-se antecipar uma situação mais ou menos provável: a rua apropriar-se-ia destes corpos mutilados que procuravam sustento nas malhas da mendicidade. Prever este cenário significa estar atento ao que se passa lá fora, nos países beligerantes, que enfrentam este panorama desde o início do conflito. E significa

3

VASCONCELOS, 19--: 13. 4

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cer as possibilidades que estes espaços, criados em função de determinada população, conse-guem produzir num âmbito fechado. Por isso, numa primeira instância, inserção representa exclusão, obriga ao afastamento como etapa do caminho a percorrer para se integrar na socie-dade. Nestes casos, o distanciamento consiste numa medida profiláctica que deve evitar o con-tágio da maioria pelos outros. Como se a anormalidade fosse uma película repugnante que se hospeda nos corpos com um simples toque. Porém, produz efeitos secundários, comportamen-tos que, não sendo contagiosos, se abeiram dos normais e reproduzem nos seus corpos os efei-tos da anormalidade. Os irrequieefei-tos, trasladados para Peniche, eram um perigo constante, sinal de desordem e anarquia. Os atrasados, conduzidos para Santa Isabel, pouco aprendiam nas clas-ses regulares e demoravam os colegas. Os mutilados, caso específico, são encaminhados para uma secção criada para eles, no Instituto Médico-Pedagógico, por um punhado de razões; saliente-se, por agora, o fabrico de aleijões, “por ser tão rendosa esta forma de exploração da

caridade pública”.5 A sua doença podia não ser contagiosa, mas os sintomas espelhavam-se, muitas vezes, nos corpos normais.

“Viver em contacto com os normais e empregando-se em diferentes misteres da vida, eles deixam em todas as manifestações da sua actividade o gérmen do vício, e são elementos de perturbação e desordem”.6

Chegar a este momento, em que se decide criar dispositivos de normalização, longe das instalações da casa-mãe, significa conceber um longo percurso palmilhado pelos anormais, depois de atravessar uma rede que filtrou e apartou os amigos e os inimigos.7

“Classificar significa separar, segregar. Significa primeiro postular que o mundo consiste em entidades discretas e distintas; depois, que cada entidade tem um grupo de entidades similares ou próximas ao qual pertence e com as quais con-juntamente se opõe a algumas outras entidades; e por fim tornar real o que se 5 FERREIRA, Costa, 1917c: 4. 6 FONSECA, 1930: 23. 7

O jogo entre amigos, inimigos e estranhos, que se subentende ao longo do texto, discorre das palavras de Z. Bauman e serve-nos para mostrar a relação entre os três naipes. “A oposição entre amigos e inimigos separa a verdade da falsidade, o bem do mal, a beleza da feiura. Também diferencia entre o próprio e o impróprio, o certo e o errado, aquilo que é de bom gosto e o que não fica bem. Ela torna o mundo legível e, com isso, instrutivo”. Os estranhos são ambíguos, difíceis de precisar. “Os indefiníveis são todos nem uma coisa nem outra, o que equivale a dizer que eles militam contra uma coisa ou outra. Sua subdeterminação é a sua força: porque nada são, podem ser tudo. Eles põem fim ao poder ordenador da oposição e, assim, ao poder ordenador dos narradores da oposição. As oposições possibili-tam o conhecimento e a acção: as indefinições os paralisam. Os indefiníveis expõem brutalmente o artifício, a fragili-dade, a impostura da separação mais vital”. BAUMAN, 1999: 62-65.

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postula, relacionando padrões diferenciais de acção a diferentes classes de enti-dades (a evocação de um padrão de comportamento específico tornando-se a definição operacional de classe) ”.8

Por isso, classificar também significa incluir, integrar. Admite envolver num mesmo gru-po, categoria, espaço… o indivíduo que, por suas condições específicas, não cabe no todo, mas que pode, se assim o entender, desenvolver um sentimento de pertença em relação aos pares que lhe imputaram. Alinhados numa grelha de partida semelhante, vivem segundo uma norma projectada a partir das suas características especiais, e perseguem, juntos, o mesmo objectivo: cortar a linha da meta, na melhor posição. No caso dos anormais, falaremos sempre de tentar alcançar a normalidade possível.

Diferenciar e normalizar são, portanto, as faces de uma mesma moeda. É sempre neces-sário categorizar e individualizar, conhecer o sujeito até à profundeza das suas entranhas, para que se invente e reinvente o processo de uniformização, de construção de um padrão que deve ser repetido infinitamente. Eis o que significa viver na Modernidade: a extrema necessidade de compreender o ínfimo pormenor do que nos rodeia para evitar o aleatório ou confiná-lo a um fenómeno esporádico.

“O que caracteriza actualmente o estudo das condições em que a educação deve ser feita, são os esforços que se empregam para chegar ao conhecimento cientí-fico da natureza física e psíquica da criança. Outrora procurava-se sujeitar a tota-lidade das crianças a uma perfeita uniformidade de regímen: hoje, felizmente, já se compreende que, diferindo as crianças umas das outras, se devem antes subordinar os métodos de ensino às necessidades individuais da criança, tendo em atenção as particularidades fisiológicas e psicológicas de cada uma”.9

É por isso que é essencial dar “nomes às coisas”, conceptualizar todas as circunstâncias, em suma, colocar etiquetas numa espécie ideal “de arquivo espaçoso que contém todas as

pas-tas que contêm todos os itens do mundo”.

“Classificar, em outras palavras, é dar ao mundo uma estrutura: manipular suas probabilidades, tornar alguns eventos mais prováveis que outros, comportar-se como se os eventos não fossem casuais ou limitar ou eliminar a sua causalida-de”.10 8 BAUMAN, 1999: 9. 9 VASCONCELOS, 19--: 10. 10 BAUMAN, 1999: 9-10.

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É, portanto, o factor “surpresa” que coloca a ambivalência num lugar indesejável, por constituir uma falha da função nomeadora que a linguagem deve desempenhar. Num mundo organizado, o principal indício de desordem é o visível incómodo que se sente ao não com-preender o cenário que está diante dos nossos olhos e, assim, ser-se incapaz de tomar opções num momento de encruzilhada. Por isso, o horror da indeterminação traduz-se num sentimento de estranheza difícil de superar.

Procura-se, então, criar categorias, apartar a população casapiana em normais e anor-mais; os soldados que regressam do front em válidos e inválidos; para que nada escape à máqui-na que perpetuamente classifica, rotula, distingue. Em comum, as crianças anormais e os muti-lados da guerra hospedam a sua diferença. Na realidade a que nos referimos, os portadores de normalidade apenas interessam como estado a alcançar, o estado normal, regular, observado como uma meta. Neste cenário, os actores principais transitam para as almas dos anormais, dos que alojam a diferença em si, e se desdobram em tantas categorias quanto as que se queiram inventar para tentar compreender o seu carácter anormal. Porque o amigo olha o inimigo de soslaio, esmiúça-o em pedaços e concebe-o como reflexo no espelho. Aparentemente há uma simetria, como se fossem necessários uns para existirem os outros. Pura ilusão.

“São os amigos que definem os inimigos e a aparência de simetria é ela mesma um testemunho de seu direito assimétrico de definir. São os amigos que contro-lam a classificação e a designação. A oposição é uma realização e auto-afirmação dos amigos. É o produto e a condição do domínio narrativo dos amigos, de sua narrativa como dominação”.11

Nos espaços revisitados, é fácil cruzarmo-nos com os inimigos, mas, também, com os

estranhos. A anormalidade é visível a olho nu quando se observa um soldado mutilado. O coto

que disfarça a perda da mão, ou de parte da perna, não esconde o sinal da sua anormalidade. Os traumas alimentados pelas recordações da guerra, menos claros num primeiro olhar, tratam-se com “ciência e ternura” em Santa Isabel,12 pela lente psicológica de A. da Costa Ferreira. Para estes inimigos não há incertezas, não há vazios. São inimigos, sem dúvida.

Para os rapazes da Colónia ou para os utentes do Instituto, o rótulo de anormal não dei-xa de ser preciso, aplica-se ao seu afastamento da normalidade. Contudo, num olhar mais pro-fundo, afigura-se redutor. Por isso, o anormal aloja no seu corpo e na sua alma o inimigo e o

11

BAUMAN, 1999: 62. 12

José Pontes, “Assistência de carinho e de ternura – É o que se faz no Instituto de Santa Isabel”. Artigo publicado no Jornal A CAPITAL, n.º 2.745, Ano VIII, de 14 de Abril de 1918, p. 1.

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estranho. Porque causa estranheza não haver um critério único, uma medida que assente a

todos com igual rigor e que os normalize na diferença.

“O estudo da criança é um problema dos mais complexos, e toma vários aspectos conforme o critério adoptado na interpretação das diferentes modalidades mor-fológicas e mentais, que ela apresenta nas fases do seu desenvolvimento e influências a que esteve sujeita”.13

Por isso, o anormal desdobra-se por diversos espaços e consoante as interpretações de quem com ele lida. Definir a linha ténue que separa o normal do anormal é quase tão difícil como classificar a extensa lista de critérios que descodificam a alma da criança.14 Os casos extremos são fáceis de caracterizar; “todos distinguem com segurança um idiota de um indivíduo

normal, porém, os casos leves são por vezes difíceis de classificar”.15 De qualquer modo, falamos

sempre de alguém que se afasta da norma. Inimigo visível.

É no interior do estado anormal que se configuram os estranhos, fugidios, ambivalentes, que não são nem uma coisa, nem outra. O horror da indeterminação coloca o médico, o peda-gogo, o psicólogo, num desconforto criado pela suspeita do caos, pela desordem emanada de um universo que se pensava organizado mas que, na verdade, contém muito de incerto e aleató-rio. Para os que não se submetem às divisões estabelecidas, o olhar surpreso e desconfiado do médico hesita entre classificá-lo numa nova categoria, ou empurrá-lo para alguma já existente, que se aproxima do seu estado específico. No silêncio, na ignorância, é que não pode ficar.

Em todo o caso, mesmo quando a anormalidade se encontra topografada, falamos sem-pre de estranhos,16 de indivíduos que pela sua complexidade confundem ou atemorizam quem os procura interpretar. É possível mapear os anormais, mais difícil se torna colocarmo-nos no

13

FONSECA, 1930: 21. 14

Das diversas definições e caracteres atribuídos às crianças anormais, diversidade explicada pelo à-vontade com que cada autor se apropria do termo para construir uma designação que considera mais completa, salientamos a de A. Binet, que define anormal “todo o indivíduo que se separa muito nitidamente da média para constituir uma anomalia patológica”, e Eugéne Chazal que considera anormal “toda a criança portadora de taras cerebrais, orgânicas e funcio-nais, susceptíveis de lhes produzir perturbações mais ou menos profundas no desenvolvimento das suas faculdades intelectuais e morais”. FONSECA, 1930: 21. Vítor Fontes caracterizou anormal “toda a criança que por deficiência funcional (física ou psíquica) reage aos estímulos exteriores de uma maneira diversa daquela que em regra se nota na maioria das crianças”. FONTES, 1933: 28. Não restam dúvidas, portanto, de que se trata de um afastamento, leve ou mais profundo, da norma.

15

FONTES, 1933: 27. 16

(26)

lugar do outro, e, principalmente, sermos observados por ele, no silêncio ou na barafunda de quem não denuncia o que pensa.

Os anormais que avistaremos nas próximas páginas são, portanto, recrutados nas fileiras de estranhos que deambulavam por Belém. São indivíduos cuja anormalidade é patente na defi-ciência do corpo, ou na aspereza do espírito. Atrasados, débeis mentais, preguiçosos, instáveis e portadores de nevroses, como a epilepsia, são vultos que partilham connosco o quotidiano dos espaços que lhes pertencem.17 Contam-se, apenas, os anormais educáveis.18 Para os que ainda podiam valer algo para a sociedade, reservava-se a inovação, os métodos pedagógicos mais avançados e, em particular no caso dos mutilados, “os modelos mais modernos, como pés e

17

A ausência de uniformidade nos termos utilizados pelos psicólogos e a diferença de critério adoptado por cada autor, constrói uma gigantesca panóplia de divisões e subdivisões dentro do estado anormal da criança, complexidade explicada, também, se atendermos à vastidão do assunto tratado, “subsidiário das ciências médico-pedagógicas, psicológicas e sociais e que interessa ao médico, ao pedagogo, psicólogo e ao sociólogo, nas suas relações jurídico-sociais”. FONSECA, 1930: 39. Neste sentido, a escola alemã classifica os anormais em educáveis e ineducáveis, desig-nação, aliás, vulgarmente utilizada em Portugal, nos estudos publicados sobre este assunto; o professor Ferrari d’Imola fundamenta-se em critérios fisiológicos e psiquiátricos, e forma o grupo dos educáveis possíveis e o grupo dos educáveis difíceis e incertos. “Sob o ponto de vista médico, o Dr. Guilherme e Sante de Sanctis apresentam as suas classificações tomando por base a patogenia das lesões cerebrais (…) formam daqui quatro grupos: a) idiotas; b) imbecis; c) débeis de inteligência; d) débeis de carácter. Decroly, combatendo estas classificações em séries, que julga insuficientes e imprecisas, procurou dar uniformidade às classificações futuras (…) formou dois grandes grupos de anormais: - anormais por causa intrínseca e anormais por causa extrínseca. Seguindo este critério e fundamentando-se nos caracteres fisiológicos e biológicos de cada anormal, dividiu-os em subgrupos, que classificou de: irregulares, sensoriais, motores, por alteração de linguagem, deficientes de atenção, de memória, intelectuais, da consciência e vontade, afectivos, nervosos e afectados de psicoses”. FONSECA, 1930: 40. Parece-nos, a partir da análise das fontes consultadas, que este critério presidiu à classificação das crianças anormais na Colónia Agrícola e no Instituto Médico-Pedagógico. Contudo, não o podemos afirmar com todo o rigor, pois não pudemos examinar papeletas médico-pedagógicas relativas a alunos destas dependências, cuja existência ignoramos. É a partir da leitura de pequenos estudos de caso seleccionados por António Aurélio da Costa Ferreira, e publicados nos seus estudos, que tomamos contacto com as crianças observadas no Instituto e reconhecemos no seu diagnóstico a nomenclatura avançada por Decroly.

18

Para os anormais ineducáveis, categoria a que pertencem os idiotas completos, os imbecis, os cretinos e os grandes epilépticos, isto é, todos aqueles que apresentam profundos estigmas de degeneração, estava reservada assistência médica hospitalar, por ser a que mais convinha ao seu estado complexo. “Estes, desde há muito, alcançaram a protec-ção dos governos e instituições de caridade, para os quais fundaram manicómios, hospícios, asilos e institutos, onde se lhes ministram socorros, tratamento, e até mesmo uma educação simples, compatível com o estado destes desven-turados”. FONSECA, 1930: 22.

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nas articuladas e braços com garras adaptáveis a todas as artes e ofícios”.19 Para os restantes, serviam as respostas convencionais: asilos, hospitais, hospícios, depósitos… A Médico-Pedagogia de pouco lhes serviria, pois os progressos seriam nulos.

Os anormais sociais, delinquentes, indivíduos deformados pelo meio em que se inse-riam, também não cabem nestas instalações. São encaminhados para a Colónia Correccional de Vila Fernando, em Elvas, ou para o Refúgio da Tutoria, instituição dependente da Tutoria Central da Infância de Lisboa.20 Estes falsos anormais, produzidos pela má educação e por falta dela, “quando colocados em meios regulares e ao fim de um certo tempo, comportam-se como é

cor-rente e atingem a normalidade”.21

Daqui se depreende o cuidado com que se classifica, orienta e canaliza o indivíduo anormal para o lugar que mais lhe convém, e que melhor se adequa ao governo da população. Cuidado possível porque não se deve esquecer os perigos inerentes ao acto de nomear e, neste caso específico, risco inflacionado pela pouca distância percorrida pela Médico-Pedagogia. Acen-tua-se, pois, a importância da papeleta escolar no folclore institucional, bula indispensável no percurso da criança anormal e que contém informações sobre todos os aspectos relevantes, e que serão úteis durante a sua permanência na instituição. A consulta de uma papeleta recheada de informações desveladas pode, por isso, evitar o erro de diagnóstico e prescrição médico-pedagógica. Em todo o caso, de nada serve se o intérprete não estiver adestrado para

19

“Assistência aos feridos da guerra – Os primeiros mutilados – Visita do Ministro da Guerra ao Internato de Santa Isabel – Dois hospitais que serão superiores aos melhores que existem” – Local publicada no Jornal O SÉCULO, n.º 12:907, Ano XXXVII, de 15 de Novembro de 1917, p. 1.

20

A Colónia Agrícola de Vila Fernando, criada pela lei de 22 de Junho de 1880, e autorizada a funcionar cerca de 15 anos depois, servia para “correcção e educação de menores delinquentes de 10 a 18 anos, que por despacho judicial sejam postos à disposição do governo” (RUFINO, 2004: 219). A Tutoria Central da Infância de Lisboa, criada pela Lei de 27 de Março de 1911, na dependência do Ministério da Justiça, visava julgar processos, cíveis e criminais, relativos a menores, afastando-se dos princípios repressivos do direito penal tradicional, “procurando, acima de tudo pela edu-cação e pelo trabalho, reinserir as crianças e os jovens na sociedade, apostando na valorização das suas potenciais qualidades e aptidões”. O Refúgio, criado pela mesma Lei, assegurava o recolhimento temporário aos delinquentes cujo comportamento perigoso assim o exigisse. O menor delinquente era observado como o resultado de um meio vicioso e contaminado, de uma hereditariedade culpada de transmissão da doença e da miséria, ou da actuação con-junta, devendo, por isso, a lei avaliar a profundeza do delito, enquadrando-o “nos condicionalismos físico-psicológicos e socioeconómicos que o rodeavam”. O fluxo de alunos entre a Casa Pia de Lisboa e a Tutoria dirigia-se em ambos os sentidos, pois se o menor fosse considerado “corrigível”, seria inserido no estabelecimento de assistência, público ou privado, que mais se adequasse à sua reabilitação. CALDEIRA, 2004: 199-201.

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cer e descodificar os segredos da alma da criança, inscritos no papel. Não surpreende, portanto, que a educação dos anormais encontre em eminentes figuras da pedagogia portuguesa os seus principais cúmplices.

António Aurélio da Costa Ferreira, César da Silva, Fernando Palyart Pinto Ferreira, Lucília Carmina Lopes de Santa Clara, esposa de Palyart Pinto Ferreira, Vítor Fontes, são facilmente reconhecíveis como os precursores do ensino especial em Portugal, médicos e professores que criaram e fizeram prosperar as instituições que representaram. Podem não ser os actores princi-pais neste cenário, mas são, sem dúvida, os cicerones desta viagem. É nas suas palavras que se encontra a presença das crianças anormais, testemunhos capazes de construir um imaginário em torno desta vivência. São, no seu conjunto, responsáveis pela vinda destes actores para o palco educativo. Isoladamente, não se pode omitir o esforço impulsionador de Costa Ferreira, de quem partiram muitas das teorias e das práticas. É difícil alhearmo-nos do seu espírito criativo e da contagiante vontade de conceber e realizar obra palpável. Todavia, tal não seria possível se não mantivesse na sua esteira o talento de devotos colaboradores. Palyart Pinto Ferreira, pro-fessor de trabalhos manuais cuja admissão na instituição se fizera pela mão de Costa Ferreira, Vítor fontes, médico, discípulo e amigo íntimo, César da Silva, “prata da casa”, imediatamente aproveitado para dirigir a Colónia Agrícola, foram peças fundamentais para o funcionamento desta engrenagem. E não se pode esquecer, entre o número infindável de colaboradores que tornaram este projecto realizável, a presença constante de Alfredo Soares, subdirector da insti-tuição que viveu na sombra de Costa Ferreira, mas cujo semblante é visível ao longo deste per-curso.

“Costa Ferreira apesar de ser a alta figura mental e moral que era, apesar de ser um sábio e um sábio pedagogista de incontestável e incontestado merecimento, nunca quis Alfredo Soares longe de si – mas pelo contrário, sempre bem perto – dizendo-lhe muitas vezes – O Soares é a tradição viva da Casa que não quero, nem ao de leve, ferir!”.22

A viagem que agora se inicia, e que se demora na Colónia de Peniche e no Instituto de Santa Isabel, oscila entre duas premissas evidentes, num jogo dialéctico que discorre entre o carácter assistencial e benemérito que estas iniciativas encerram em si e a circunstância de constituírem a face visível do governo das almas. Se, por um lado, se procura assegurar o apro-veitamento de indivíduos considerados inválidos pela sociedade, promovendo a sua inclusão e a garantia de poderem vir a ganhar a vida por si, sem dependerem permanentemente da tutela de

22

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outrem; por outro lado, é inequívoco que esta preocupação se prende com a indispensabilidade de governar uma população problemática, perigosa, ociosa, e que estes dispositivos surgem como resposta eficaz para a concentração destes indivíduos num mesmo espaço, debaixo de uma mesma vigilância, de acordo com uma ordem cronológica de actividades que servem para regular a rotina diária que se estabelece numa instituição total. Percorrer estes lugares significa inscrever os nossos corpos e as nossas almas numa redoma de vidro, fechada, visível de todos os ângulos. Os sentimentos que se partilham nesta estadia que, para nós, não é forçada, e que constroem a identidade de quem distribui os seus dias dentro destes espaços cerrados, são des-vendados nos momentos de leitura que se avizinham.

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Pontos de partida…

A organização de um itinerário exige que se preste atenção aos pontos de interesse que se devem visitar. Neste sentido, esclarecemos, desde já, quais são as questões que deixamos no ar no momento da partida e que esperamos ver resolvidas, pelo menos ponderadas, no apeadei-ro final.

Assim, partindo do geral para o caso particular – Colónia Agrícola, Instituto Médico-Pedagógico e Secção de Mutilados da Guerra –, gostávamos que esta viagem nos ajudasse a avaliar a influência das reflexões dos autores, médicos, psicólogos e pedagogos estrangeiros na formação da Médico-Pedagogia em Portugal. Por outras palavras, interessa saber se esta ciência se desenvolveu na esteira do que se praticava lá fora ou se, por outro lado, teve um progresso autónomo e impermeável às interferências externas. É evidente que, por mínimo que seja, exis-te sempre trânsito de ideias, por vezes num único sentido. Por isso, o que cumpre analisar é a intensidade desse fluxo.

Neste âmbito, pretende-se, ainda, compreender a importância das Conferências Inter-Aliadas, no que se refere ao caso dos mutilados da guerra, para a evolução dos estudos científi-cos, práticas médicas e pedagógicas e propostas legislativas em Portugal. Para as crianças anor-mais contribuiu, decerto, a viagem do professor Palyart Pinto Ferreira a França e à Suíça, com a incumbência de conhecer o que se praticava nestes países que, à data, se colocavam na diantei-ra da modernidade.

Por aqui se depreende, desde logo, que falamos sempre de um movimento à escala europeia. Neste sentido, procuramos integrar o Instituto de Mutilados da Guerra e a produção de literatura científica subordinada ao tema num movimento europeu de reabilitação e apoio aos mutilados da guerra. O que também se aplica à preocupação em torno das crianças anor-mais, sensibilidade que alcança, porventura, uma fase de grande desenvolvimento, principal-mente em Portugal, durante a Primeira República.

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Abeirando-nos da instituição em foco, importa reconhecer o papel inovador da Casa Pia de Lisboa em todo este processo. No contexto nacional, o universo casapiano afigura-se como instituição capacitada para desenvolver estes projectos, “talento” explicado pelo seu carácter específico de assistência e ensino, mas também pelas potencialidades que só uma instituição

total consegue fornecer. A nossa narrativa desloca-se em torno desta percepção.

É na consciência de uma especificidade própria que se realça o papel do indivíduo e dos grupos na dinâmica social. O mesmo é dizer que se nota, ao longo desta escrita, a importância de Costa Ferreira, como cabeça de cartaz, César da Silva, Fernando Palyart Pinto Ferreira, José Pontes, Pinto de Miranda, Vítor Fontes, entre as mais destacadas figuras enredadas nestes pro-jectos. Por aqui se depreende que era impossível percorrer este caminho alheando-nos do indi-víduo e da importância do seu contributo para a realização de obras de vulto, numa simbiose que reflecte o entrosamento entre as instituições e os Homens que as dirigem.

Por último, e procurando reflectir acerca dos métodos aplicados nestes espaços escola-res pouco convencionais, práticas essencialmente médico-pedagógicas, preenchemos a nossa estadia com um propósito delineado à partida: avaliar a pertinência e, principalmente, a rele-vância destes palcos pedagógicos no “aproveitamento” do indivíduo até então marginalizado pela sociedade, devido à sua anormalidade, física e/ou psíquica, enraizada desde sempre no corpo e na alma, ou adquirida com o correr do tempo. Sob pena de, ainda assim, sermos coni-ventes com a injustiça, esclarecemos que não se pretende julgar o mérito destes espaços de normalização, mas tão-só reflectir acerca das razões patentes e implícitas que acompanharam a sua existência, e que foram determinantes para que estes projectos vencessem ou fossem ven-cidos.

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Cruzamento de olhares: fontes e critérios metodológicos

Foi no Arquivo Histórico da Casa Pia de Lisboa que encontrámos a maior parte da docu-mentação utilizada ao longo deste texto. Variadas, ricas, acessíveis, as fontes que percorremos incluíram correspondência trocada entre a Direcção da Casa Pia de Lisboa e diversas entidades públicas e particulares, imprensa pedagógica e generalista, legislação sobre a educação dos

anormais e questões relacionadas com os mutilados da guerra, produzida durante o período

republicano e, particularmente, a que acompanha de perto o desenvolvimento do Instituto Médico-Pedagógico até à década de sessenta, actas das sessões parlamentares, actas das ses-sões da Câmara Municipal de Lisboa, actas do conselho escolar da Casa Pia, estudos científicos e obras de autores cujo pensamento pedagógico se aproximava das reflexões sobre o ensino dos

anormais, mais especificamente na parte que se refere às crianças anormais e à reeducação

funcional e profissional dos mutilados da guerra.

Não sendo inédita a atenção que se lançou sobre este corpo documental, a originalidade que acompanhou cada olhar pretende traçar novas análises e interpretações de realidades que, não sendo totalmente desconhecidas, ainda careciam de um cruzamento de olhares mais incisi-vo e paciente. Saber-se-ia que teria existido uma Colónia de Anormais, em Atouguia da Baleia.23 O Instituto Médico-Pedagógico é sobejamente conhecido, pela tradição de se localizar em Santa Isabel os primórdios da assistência aos anormais em Portugal.24 Da secção de mutilados da guer-ra, que funcionou em Santa Isabel, sobra uma vaga ideia, inconsistente, pouco nítida.25 Contudo,

23

Os trabalhos monográficos de João Pedro Fróis (1994), Fátima Marvão e Teresa Coelho (2000), citados na bibliogra-fia que acompanha esta tese, já tinham mencionado a existência da Colónia Agrícola da Casa Pia de Lisboa, sendo o de Fróis o que lhe dedica uma maior atenção.

24

A tese de mestrado de Maria Teresa Sousa (2002) configura-se como um contributo para a história do Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, denominação do Instituto Médico-Pedagógico a partir dos finais dos anos 20 do século passado. De resto, também é citada na bibliografia.

25

A tese de doutoramento de Joaquim da Cunha Melo (1923) sobre “Mutilados da Guerra e Acidentados de trabalho: da Reeducação Profissional”, debruça-se sobre a aplicação dos processos de reeducação funcional e profissional e

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estes lugares pouca oportunidade tiveram de mostrar as suas qualidades hospitaleiras ao inves-tigador que os quisesse visitar. Por isso, são campos férteis, com culturas luxuriantes, mas que ainda não tinham sido desbravadas.

Entre as vozes que ecoaram pelos claustros dos Jerónimos nota-se, desde logo, a ausên-cia do nosso objecto de estudo: os anormais. Nem as crianças, nem os soldados deixaram no nosso horizonte qualquer vestígio da sua existência. Corpos que circulam em vácuo ficaram, contudo, registados nos positivos escassos, insuficientes, guardados nas páginas dos livros e nas gavetas de arquivos. São essas fotografias que atestam as palavras que se desenrolam indefini-damente.

“Para o observador, elas preenchem o vazio do seu desconhecimento, ocupam os espaços abertos pelo desejo de saber e a sua incapacidade de imaginar qual-quer coisa que não viu a partir de alguns dados textuais”.26

As ausências nas narrativas são ocupadas pelas lembranças visuais que pontuam os espaços deixados em branco. De facto, consagra-se à fotografia um lugar de destaque ao longo deste trabalho. Não podemos nunca esquecer a gratidão que lhe devemos por materializar aos nossos olhos os rostos que de outro modo teriam sido ignorados… ou simplesmente imaginados. Não poderíamos averiguar a qualidade dos trajes de cerimónia dos rapazes da Colónia,

“indubi-tavelmente bonitos”, elogiados por César da Silva. Nem se teria visto o “cone gessado fendido”

exibido pelo soldado mutilado, no pátio do Instituto. Como seria triste esta narrativa, sem o preto, o cinzento e o branco a colorir as páginas que se seguem!

Algo mais… “A fotografia é a busca do espelho que não mente, da durabilidade, da

per-manência, da nossa inteireza”.27 As palavras podem não alcançar a curiosidade do leitor, persua-são falhada para o seguimento desta viagem. Porém, este dificilmente se livra de ficar cativo dos olhares dirigidos pelos rostos dos retratos.

A fotografia constrói-se como momento de consagração cerimonial dentro da Casa Pia, tendencialmente hermética, por ser uma instituição fechada à visibilidade exterior. Neste texto, orientação profissional empregados no Instituto de Reeducação de Arroios, consistindo a única contribuição conheci-da para o estudo desta temática. Apesar de se tratar de uma tese de doutoramento, conta apenas com 56 páginas, consistindo um breve contributo a obra de Arroios, mencionando por breves momentos a cooperação com Santa Isabel.

26

FRIZOT, 2005: 79. 27

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a autonomia da fotografia é inquestionável, desdobrando-se continuamente no discurso visual que se constrói à margem das palavras. Aliás, a fotografia, neste trabalho, tem o dom de retirar a película aos conceitos, propondo uma multiplicidade de significados, para uma rede de inter-textualidade sem fim. As legendas que acompanham cada imagem fotográfica são, por defeito, parciais e incompletas, apenas com o intuito de despertar no espectador a emoção ou o desejo aflitivo de reencontrar o passado, “como suporte da necessidade de vínculos entre os momentos

desencontrados do todo impossível, como documento da tensão entre ocultação e revelação”.28

É nessa tensão permanente entre o que se esconde e o que nos é confessado que habita a frus-tração do que se lê na legenda.

“ (…) esta ensina-nos duas ou três coisas que nos parecem indispensáveis, que entreabrem uma janela sobre as circunstâncias passadas, mas que pouca luz dei-xa passar. A legenda nada diz acerca da globalidade do assunto que temos a impressão de captar pelo olhar e, ao mesmo tempo, apercebemo-nos visualmen-te de elementos que sabemos não poderem ser descritos por qualquer visualmen-texto”.29

As palavras ficam sempre aquém das imagens que constroem o nosso quotidiano visual. Contudo, na sua modéstia, procuram alcançar a realidade possível, apreendida nas conversas pontuadas de silêncios cúmplices ou denunciantes. É, por vezes, nas omissões que se apreen-dem momentos de confissão irreflectida, respostas que as palavras não permitem alcançar.

As paragens desta tese acontecem, quase sempre, em arquivos e bibliotecas. O Arquivo Histórico da Casa Pia de Lisboa e o Centro Cultural Casapiano reúnem nas suas instalações uma parte substancial da documentação essencial à elaboração deste trabalho. Visitou-se, também, a Biblioteca Nacional de Portugal, o Núcleo de Informação e Documentação Histórica do Ministé-rio da Educação, a Biblioteca da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, a Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a Biblioteca da Facul-dade de Psicologia e Ciências da Educação da UniversiFacul-dade do Porto, a Biblioteca da FaculFacul-dade de Letras da Universidade de Coimbra, a Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, a Biblioteca e Mediateca da Universidade de Aveiro, a Biblioteca Geral da Universi-dade de Coimbra, e, ainda, a Biblioteca Pública Municipal do Porto. Por se encontrar inteiramen-te digitalizado, pudemos consultar o espólio fotográfico da Casa Pia de Lisboa e de Joshua Beno-liel no Arquivo Fotográfico pertencente ao Arquivo Municipal de Lisboa, e a Hemeroteca Digital, sítio da Hemeroteca Municipal de Lisboa, possibilitou a consulta do Jornal A Capital.

28

MARTINS, 2008: 35. 29

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Percorridas e mapeadas, os dados retirados destas fontes, em função da temática subja-cente ao plano de trabalho, foram estruturados em bases de dados específicas, consoante a natureza e proveniência dos documentos.30 A diversidade das fontes que alimentaram esta pes-quisa norteou a sua selecção, pois sempre se teve a consciência que a riqueza e a variedade da documentação auxiliariam na construção de um “lugar” onde as palavras se soltassem no infini-to. Esse lugar pretende ser as linhas que se seguem.

Por último, resta-nos alertar o leitor para uma questão importante. Decidimos actualizar a ortografia dos textos consultados, aproximando, sempre que possível, da forma actual de escrita, uma vez que se notou alguma inconstância em relação a algumas palavras que, nem sempre, surgiam escritas da mesma forma. Assim, decidiu-se adoptar este critério no sentido de facilitar a leitura dos excertos seleccionados ao longo do texto.

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As bases de dados, passíveis de ser consultadas apenas em formato digital, constam dos anexos deste trabalho, na parte final da tese.

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Roteiro da escrita

Percorrer as páginas que se seguem é uma viagem que se pode revelar arriscada, mes-mo para o leitor intrépido. Risco facilmente ponderável se se procura uma narrativa matizada de rostos e histórias. Perigoso porque se teme que fique preso aos semblantes que não se vêem, mas se adivinham. Vultos que cheiram a mar, salpicados de areia das caminhadas pela praia d’El-Rei, para os lados de Peniche. Ou corpos que apanham sol no pátio de Santa Isabel; que, entre um riso e um choro, desenham nos seus dias rotinas que se querem iguais e que são sempre diferentes. Ou homens de barba grande, comidos pela guerra, que entram pelas salas do Institu-to e mostram a sua mão mutilada, como sinal de pertença a uma seita secreta…

Em comum, os irrequietos de Peniche, os anormais de Santa Isabel e os mutilados da guerra ostentam a sua anormalidade. Por se afastarem do habitual, da maioria, das representa-ções construídas pela modernidade, os outros são subtraídos ao todo e apartados para onde convenha. Partilham, contudo, o espaço contido nestas páginas.

O tecido que resulta deste trabalho foi pintado de cores novas, matizes provenientes de uma paleta de conceitos que nunca tinha sido usada… por nós. Foucault, Goffman, Bauman, Deleuze… coloriram as linhas que se seguem com nuances que nos eram estranhas e que agora dominam os nossos pensamentos. Não mais será possível pensar sem buscarmos nestes autores orientação cardeal. Assim, a narrativa discorre entre as coordenadas da modernidade e da

dife-rença, dos desdobramentos da identidade que se constrói entre as paredes da instituição total.

Importa, sobretudo, inscrever a anormalidade num espaço específico e são esses lugares que são percorridos nos próximos parágrafos.

No capítulo que se segue juntámos às nossas palavras, as de muitos autores com os quais travámos conhecimento; conversas mantidas entre o silêncio das páginas dos livros. Por isso, aproveitámos o embalo das suas reflexões e procurámos compreender, “mais do que

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conhecer o sentido ou significado das palavras usadas no dicionário”,31 o percurso que se cons-trói a partir da diferença na sociedade moderna, começando no momento em que se percebe que é mais rentável vigiar que punir e em que se estruturam dispositivos de normalização, no sentido de tornar o todo uma massa homogénea, similar, para ser amplamente governável. É à luz deste foco de reflexão que se entende a criação de uma instituição como a Casa Pia de Lisboa e, dentro desta, se desdobram institutos e dependências que procuram acolher os excluídos que circulavam por Belém. Ou os soldados que entretanto regressavam…

Facilmente fizemos a transição entre as palavras destes autores mais recentes para os escritos de António Aurélio da Costa Ferreira, Palyart Pinto Ferreira, Anicet Fusillier, César da Silva, Merícia Nunes ou Vítor Fontes, tentando, principalmente, mostrar que, para construir uma narrativa em torno da modernidade e da diferença, podemos visitar autores que se afastam dos primeiros no tempo, mas que se aproximam dos seus discursos. Falar de “disciplina” com Fou-cault encontra paralelo nas palavras de G. Compayré, ou observar as potencialidades da estatís-tica, ciência do Estado, com T. Popkewitz é quase o mesmo que conversar com Consiglieri Pedroso ou A. MacDonald sobre o assunto. Os pensamentos dos primeiros aproximaram-nos das narrativas destes últimos, e mostraram a consciência que estes intervenientes tinham das “regras do jogo” do seu próprio tempo.

É, portanto, no decorrer do século XIX que se vê florescer uma filosofia educativa em torno da educação dos anormais. Percorrem-se alguns dos trilhos, os suficientes para traçar caminhos genealógicos que explicam o nosso cais de embarque: os institutos criados pela Casa Pia de Lisboa na segunda década do século passado. Também este ponto deve ser justificado e, neste sentido, procurámos mostrar que a Casa Pia revela, ao longo do tempo, uma tendência que busca na inovação o seu melhor aliado. A aula de obstetrícia, o ensino da ginástica, ou ensi-no mútuo e, mais tarde, a escola graduada são exemplos colhidos na história casapiana e que abrem caminho aos episódios que introduzimos nas páginas seguintes. De facto, não basta ten-tar conhecer estas criações; é necessário inseri-las num programa assistencial e pedagógico mais vasto que, ao longo dos séculos, marca nas páginas da História da Educação o seu contributo inovador. O mesmo é dizer que facilmente se compara a Casa Pia de Lisboa a um laboratório de experimentação, cadinho de ensaios pedagógicos que, mediante o seu êxito ou inconveniência, são exportados para fora da instituição e aplicados em circunstâncias generalizadas. Os exem-plos que mencionámos são partículas de um universo mais vasto e que foi recorrentemente alvo

31

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de diversos olhares lançados sobre a instituição.32 Partindo desta reflexão, a curiosidade projec-tar-se-á para fora de Belém, percorrendo o itinerário da anormalidade em Peniche e em Santa Isabel, Lisboa.

Será, pois, nos capítulos seguintes que este texto ganha corpo, pois é nas criações de Costa Ferreira, que o seu espírito inventivo permitiu fundar, que buscamos a razão e o fim desta viagem. Em S. Bernardino, Atouguia da Baleia, ainda ecoam as “peças” dirigidas pela batuta de César da Silva. Foi no extinto convento que se decidiu criar a primeira colónia agrícola de anor-mais, existente em Portugal, diferente das que até então tinham sido estabelecidas. S. Bernardi-no mostra-se, essencialmente, terreBernardi-no fértil para as práticas laboratoriais que Costa Ferreira pretendia imprimir. Neste capítulo procurámos, sobretudo, compreender o significado do correr dos dias numa instituição total, traçando a vivência dos rapazes da capital que, por força da sua inquietude e anormalidade, foram “desterrados” para Peniche para aprender uma profissão que lhes permitisse “ganhar a vida”. Foram, principalmente, afastados da normalidade casapiana, projectada nos princípios da disciplina, da “Ordem e Trabalho”,33 e que não convivia pacifica-mente com a efervescência de alguns “resíduos”. Pensar na Colónia Agrícola intima a inscrever a sua criação nas práticas governativas da modernidade: o bom governo da população assenta na “habilidade” de canalizar o indivíduo para o lugar que lhe compete, onde se torna mais submis-so, adestrado. Tratar-se-ia de “governar dispondo as coisas, de converter uma miríade de

finali-dades particulares num mesmo propósito de governo”.34

Os primeiros resultados desta experiência permitiram considerá-la um êxito, o que dita-ria a realização de outras iniciativas semelhantes. Foi baseado no sucesso alcançado em Peniche, em curto espaço de tempo, que Costa Ferreira conseguiu convencer o Ministro do Interior da indispensabilidade de se criarem outras dependências congéneres, surgindo, deste modo, o Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia de Lisboa, em Santa Isabel, que consistiu no primeiro estabelecimento orientado para a “selecção e reeducação de crianças anormais”.35

32

O contributo de Adérito Tavares na celebração dos 220 anos da Casa Pia de Lisboa, em 2000, serpenteia os primei-ros cento e vinte anos de existência da instituição, buscando diversos ensaios e práticas que, por se encontrarem desfasadas do tempo exterior, vincam o seu carácter introdutor. O “Pioneirismo Educativo e Inovação Pedagógica

(1780-1897) ” experimentados neste cenário são, assim, estudados por Adérito Tavares, reforçando com exemplos

precisos a ideia de novidade que a caracteriza. TAVARES, 2000: 149-186. 33 FERREIRA, Costa, 1913: 145. 34 Ó, 2002: 42. 35 FONTES, 1940: 17.

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Sendo, possivelmente, a mais importante criação de Costa Ferreira, aquela que perma-neceu muito além do desaparecimento do seu autor e cujas ramificações são ainda visíveis a olho nu, o Instituto Médico-Pedagógico encetou os seus dias entre silêncios e murmúrios, sem o brilho e aparato de outras inaugurações. Os dias difíceis que se arrastavam no calendário lisboe-ta não permitiam grandes ostenlisboe-tações. Apenas uma local n’O Século permite sinalizar no tempo a colocação da tabuleta à porta de Santa Isabel. São os rostos, as fotos e as palavras que nos levam a visitar as salas de Santa Isabel, a percorrer os seus corredores, na normalidade dos dias.

Com o aproximar do último capítulo entram em cena novos actores neste palco institu-cional. Os soldados mutilados que regressam do front trazem na alma os tormentos das trinchei-ras e no corpo as marcas dos estilhaços das granadas. Partiram meninos e voltaram heróis, para uma Lisboa a braços com a fome e que procura na magreza dos rostos consolação para a sua miséria. Alguns viviam tempos difíceis.

Em finais de 1917, os militares regressados da frente de batalha tinham a garantia que não precisavam de encontrar nas ruas da capital o seu próprio sustento. A Direcção da Casa Pia evitara que se formassem exércitos de vagabundos, ingovernáveis, incómodos, que ostentassem a sua mutilação para ganhar a vida. Seria o recém-criado Instituto Médico-Pedagógico o espaço ideal para recolher, amparar e reeducar os heróis que a guerra invalidou. Agora sim, podiam estampar o seu aleijão nas páginas dos jornais. E é na leitura das crónicas do Dr. Pontes que se conhece o enredo dos dias que passam pelos mutilados de Santa Isabel. “As rotinas que os

indi-víduos seguem, à medida que os seus caminhos de espaço-tempo se entrecruzam nos contextos da vida quotidiana, constituem essa vida como “normal” e “previsível”.36

Apartados ou em conjunto, estes três exemplos transportam-nos para os primeiros anos da República, para as dificuldades que experimentou, para as desigualdades do centro e da peri-feria, e para a sensação de que, por vezes, as circunstâncias não bastam para impedir o que a vontade deseja. Dispositivos de uma racionalização governativa em marcha, a Colónia Agrícola, o Instituto Médico-Pedagógico e a Secção de Mutilados da Guerra são focos de inovação pedagó-gica, laboratórios onde se experimentou edificar a modernidade.

Os encontros que se prometem nas próximas páginas, clandestinos, com rostos e corpos fugidios, serão, certamente, instantes fugazes, tão efémeros e saudosos como os momentos da escrita.

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I PARTE

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Percorrer a diferença na Modernidade

RESUMO Falar de anormais significa inscrevê-los numa condição de diferentes relativamen-te ao todo que se constrói na sociedade. Incapaz de aceitar o estranho, a moder-nidade fabrica a inclusão do outro nas suas malhas governativas, seja por interes-se de controlo ou interes-sentimentos humanitários. Em última instância, inclui porque colocar à margem pode ser demasiado perigoso. Neste sentido, observámos a

Modernidade à luz do binómio inclusão/exclusão, equilibrando, neste jogo de

governo, a vigilância, a disciplina, as técnicas de controlo e, principalmente, as redes de poder que se forjam na alma do indivíduo, e que convergem no mais microscópico dos poderes: o governo de si mesmo.

Podemos definir Modernidade recorrendo às palavras de Giddens, quando este a enun-cia como "estilo, costume de vida ou organização soenun-cial que emergiram na Europa a partir do

século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”.37 De facto, mapear no tempo e no espaço a emergência deste conceito plástico, tão fluído que facil-mente nos escorre por entre os dedos, pode consistir no modo mais simplista e seguro de o caracterizar.38 Contudo, a abordagem que melhor se adequa às páginas deste trabalho é-nos

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“Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desenvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua intencionalidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos precedentes”. GIDDENS, 1991: 10.

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“Quanto tempo tem a modernidade é uma questão discutível. Não há acordo sobre datas nem consenso sobre o que deve ser datado. E uma vez iniciado a sério o esforço de datação, o próprio objecto começa a desaparecer. A modernidade, como todas as outras quase-totalidades que queremos retirar do fluxo contínuo do ser, torna-se esqui-va: descobrimos que o conceito é carregado de ambiguidade, ao passo que seu referente é opaco no miolo e puído nas beiradas. De modo que é improvável que se resolva a discussão. O aspecto definidor da modernidade subjacente a essas tentativas é parte da discussão”. BAUMAN, 1999: 11-12.

Referências

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