• Nenhum resultado encontrado

O Instituto Médico-Pedagógico: vencer a diferença

RESUMO Em Terras de Sant’Ana, criava-se, em 1915, mais uma dependência da Casa

Pia de Lisboa, desta vez, com o intuito de arrumar todos aqueles que, eti- quetados como anormais, eram passíveis de uma educação mais consentâ- nea com as suas necessidades especiais. É sob a lente da modernidade

pedagógica que se pode observar este instituto inovador, inédito à data, e

cujo contributo se afigura imensurável se o tomarmos como ponto de parti- da da criação e organização de uma rede de assistência às crianças anor- mais, que, depois de várias tentativas, só se viria a concretizar duas décadas mais tarde.330

“Nada havia sido feito no país sobre a educação e instrução dos anormais pedagógicos, anteriormente à data em que pela Direcção da Casa Pia foi estabelecida, com a feição de Colónia Agrícola, a primeira instituição destinada à educação de alguns menores naquelas condições.”331

As palavras de Costa Ferreira elucidam cabalmente sobre o panorama pedagógico relativo ao ensino das crianças anormais, durante os primeiros anos da República. A Colónia Agrícola que a Casa Pia manteve em Atouguia da Baleia constituiu um esforço inovador e uma resposta eficien- te ao “não pequeno número de anormais médios e pedagógicos”332 que deambulavam por Belém, os últimos dos quais tinham transitado em 1906 para a Casa Pia, vindo dos extintos Asilos Municipais, e que, pela sua desinquietação e atraso, constituíam um grave obstáculo ao regular andamento do ensino nas aulas.

330

Palavras-chave: Instituto Médico-Pedagógico, Médico-Pedagogia, Anormais. 331

Ofício n.º 822, dirigido à Provedoria da Assistência de Lisboa, 1913/10/25. 332

Os resultados que daí advieram foram benéficos, pois “a disciplina na Casa Pia melhorou

e o ensino escolar, livre daqueles entraves, tomou mais regular andamento”. Também os alunos

internados na Colónia Agrícola, no princípio preguiçosos e “insofridos”, começaram a dar indícios de regeneração, dedicando-se com boa vontade aos trabalhos, que constavam da aprendizagem de diversos ofícios e de trabalhos rurais na cerca anexa ao edifício.333

Contudo, este laboratório podia, apenas, acolher as crianças anormais que estavam em idade de começar a sua aprendizagem profissional, e muitas havia que, não tendo ainda chega- do a essa idade, se encontravam no estabelecimento e careciam também de ser removidas do internato.

Tornava-se, pois, da máxima conveniência estabelecer um anexo apropriado onde pudessem ser alojados estes menores que, pelas suas circunstâncias, se não podiam acomodar ao regime ordinário do estabelecimento. Mas mais importante do que arrancá-los ao marasmo das instalações de Belém, onde nada aproveitavam, era poder proporcionar-lhes uma instrução e educação especiais, racionalizadas a partir das suas necessidades e que potenciavam uma futura inserção na sociedade, desta vez como cidadãos úteis a si e aos outros. O roteiro termina- ria com a provável transferência para a Colónia de S. Bernardino, onde começariam a aprendiza- gem profissional, em idade própria, indo, deste modo, “mais convenientemente educados”.

A obra foi concebida e realizada quase em silêncio, sem ruído, não conheceu o frenesim burocrático de outras criações e, em meados de 1915, o Instituto Médico-Pedagógico já se encontrava a funcionar na Travessa das Terras de Sant’ana, a Santa Isabel. A República publicita- va o acontecimento com uma entrevista ao Director, porque apesar de “limitada a importância

que entre nós se liga, geralmente, às questões de educação, (…) parece não dever constituir motivo de grande estranheza o facto de não serem suficientemente conhecidas certas obras de vulto, que na penumbra se têm conservado por se furtarem os seus autores ao exibicionismo”.334

Timidamente, o Instituto Médico-Pedagógico deu-se a conhecer, sem a pompa de outras inaugurações que tiveram direito ao estalejar de foguetes. Viviam-se tempos difíceis. Contudo, a necessidade de encaixar as crianças atardadas em classes de pares, aliada à insistência do Direc-

333

Ofício n.º 822, da Direcção da Casa Pia, dirigido à Provedoria da Assistência de Lisboa, 1913/10/25. 334

“Uma nova instituição da Casa Pia – Os anormais - O que se diz do Instituto Médico-Pedagógico o Sr. Dr. A. Aurélio da Costa Ferreira” – Notícia de uma entrevista publicada no Jornal A REPÚBLICA, n.º 1.796, Ano V, de 29 de Novembro de 1915, p. 1.

tor da Casa Pia, tornou possível a realização deste projecto e, por consequência, a fundação do primeiro instituto médico-pedagógico em Portugal.

O itinerário desta viagem percorre caminhos sinuosos, por vezes, difíceis de palmilhar. Se dos claustros de S. Bernardino ecoaram as vozes dos “anormais do género irrequieto” que habitavam as suas instalações, muito graças aos escritos do professor-regente, do anexo de San- ta Isabel murmura o silêncio de quem não partilha com o investigador o quotidiano das classes especiais do Instituto. Torna-se difícil perseguir as passadas de Costa Ferreira na criação deste instituto, até porque o seu critério na selecção dos documentos inseridos nos anuários da Casa Pia, fonte inalienável e de valor incalculável, não se demonstrou tão desvelado comparativa- mente com os seus restantes projectos.335 Deste modo, e aceitando com resignação o silêncio das fontes, vagueámos pelas pistas sugeridas e tentámos acompanhar a criação e o funciona- mento deste instituto, durante os primeiros anos de existência.

Mas não pudemos alhear-nos de quem percorre os corredores deste anexo. Não conse- guimos evitar fixar os olhos destes anormais, destas crianças cujas maleitas afastam do mundo real para um universo de faz-de-conta. É no cruzamento de olhares sobre o anormal, visto como um problema, como um resíduo que importa purificar, que se compreende a sua importância na sociedade e o modo insistente como os médicos e pedagogos do início do século passado obser- varam esta matéria. Após o diagnóstico da situação, importava, sobretudo, romper as fragilida- des na criação do conceito anormal, que não se rendia ao patológico; consistia numa fronteira ténue entre o normal e o doentio irremediável. Era o anormal que se podia beneficiar, na medi- da da intervenção possível de uma médico-pedagogia que se queria interventiva e a par do que de mais moderno se praticava lá fora. É neste sentido que a viagem de um eminente professor da Casa Pia a França se torna compreensível, lógica. E é neste sentido que se produzem publica- ções dedicadas exclusivamente às crianças anormais, com a chancela do instituto, no sentido de aliciar o interesse público para esta questão e promover a dedicação de médicos e pedagogos em torno desta problemática, negligenciada demasiado tempo.

335

Conhecem-se poucos ofícios relativos à criação do Instituto Médico-Pedagógico. Depois de estranharmos a negli- gência de Costa Ferreira na selecção de informação relativa ao Instituto, ausência notada na consulta dos Anuários da instituição, pudemos confirmar que a escassez também se verifica nos livros de Correspondência expedida e na documentação avulsa que contém a Correspondência recebida pela Direcção, levando a crer que, de facto, este pro- cesso exigiu menos esforço burocrático do que a criação da Colónia Agrícola de S. Bernardino ou do Instituto de Muti- lados da Guerra, que apresentaremos de seguida.

A experiência do professor Palyart Pinto Ferreira, em França, permitiu traçar o panora- ma geral acerca da pedagogia de anormais, naquele país. Precursora na educação dos atarda-

dos, desde Itard e Séguin, a França era, provavelmente, o cadinho de vanguarda na Europa336, e o reconhecimento da sua autoridade nesta matéria tornou a visita coerente. Seguindo as passa- das de Palyart, torna-se possível conhecer a desilusão de quem alimentava elevadas expectati- vas relativamente aos estabelecimentos de ensino de anormais. Pouco se impressiona o profes- sor português, muito embora desculpabilize a desorganização dos serviços por coincidir com o período da guerra.

Nos finais de 1917, as crianças do instituto partilham as atenções com os primeiros sol- dados mutilados que regressam do front. Multiplicam-se esforços e dividem-se salas para que se possa acudir às exigências do momento. E durante este interregno, o apagamento da figura do

anormal pedagógico é disfarçado pelo interesse mediático do anormal mutilado. O empenho do

professor Palyart permite que o instituto votado às crianças continue a funcionar dentro da regularidade possível. Contudo, é notório o atractivo que os mutilados conseguem granjear em torno da sua dinâmica.

Com o regresso à normalidade, os serviços prestados pelo instituto voltam a dirigir-se ao “tratamento e educação de crianças nervosas, gagos e outros defeitos da fala, e atardados”, colocando ao dispor dos seus utentes um internato para pobres e pensionistas, externato e uma consulta médico-pedagógica.337 Enquanto a Colónia Agrícola agonizava os seus últimos dias, o Instituto Médico-Pedagógico dava mostras de pujança e permanecia, à época, o único baluarte da educação de anormais no país. Porém, e à semelhança da sua congénere, o Instituto de Santa Isabel foi desanexado da Casa Pia, e transferido para a tutela do Ministério da Instrução Pública, nos princípios de 1929. Em homenagem ao seu fundador, passaria a designar-se Instituto de António Aurélio da Costa Ferreira, permanecendo fiel à filosofia do seu criador, que encontrou nos seus colaboradores mais directos leais seguidores das práticas que instituíra. Palyart Pinto Ferreira e Vítor Fontes deram continuidade ao projecto que Costa Ferreira fundou quinze anos antes, e cujo espírito empreendedor conseguiu colocar em prática, muito embora a conjuntura económica da República não lhe permitisse voos mais altos.

336

Foi com Jean Itard, em 1801, e Edouard Séguin, 1846, que se deram os primeiros passos, com a publicação de estudos sobre esta matéria. Contudo, é a Suíça que tem a glória da fundação do primeiro instituto para anormais, em 1841, em Abendberg, por Guggenbuhl. FERREIRA, Pinto, 1930b: 5.

337

As próximas linhas pretendem clarificar sobre a especificidade desta obra, tão singular e, ao mesmo tempo, tão semelhante a outros projectos de Costa Ferreira. Não devemos esquecer a sua inserção num vasto plano assistencial traçado pela Casa Pia e que encontrava no marginal, no resíduo social, a sua matéria-prima. Eram, sobretudo, corpos dóceis, moldáveis, que, após intervenção médico-pedagógica, poderiam ser reaproveitados e encaixados no “puzzle social”, constituindo uma peça tão importante como as restantes. Mas devemos, sobretudo, salientar o papel precursor que este instituto desempenhou no panorama educativo em Portugal, consoli- dando a política assistencial e atribuindo-lhe um carácter mais educacional e democrático ao transportar para o cenário pedagógico o anormal negligenciado. A partir de então, para estas crianças, deixaria de haver motivos para que a posição da partida fosse igual ao lugar de chega- da.