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A Colónia de S Bernardino: retrato de uma instituição total

RESUMO A Colónia Agrícola que a Casa Pia de Lisboa manteve no convento de S. Bernardino, em Atouguia da Baleia, desde 1912, deu alimentação, vestuário e ensino a perto de uma centena de rapazes que, pela sua anormalidade física, moral e intelectual se “limitavam” à sua condição de “embaraço nas

aulas, pela sua desinquietação e retardamento”. É no estudo deste labora- tório de modernidade que as próximas linhas cruzam olhares.5

O segundo aniversário da implantação da República Portuguesa, data tão cara para a maior parte dos republicanos, foi celebrado em Atouguia da Baleia, freguesia do concelho de Peniche, com aparato suficiente para prender a atenção da população residente nas imediações do convento de S. Bernardino. Revestida da maior solenidade, a inauguração da Colónia Agrícola da Casa Pia foi um acontecimento digno da presença das mais elevadas autoridades do municí- pio de Peniche que, na companhia do director da instituição, Aurélio da Costa Ferreira, e do Pro- fessor-Regente da Colónia, César da Silva, conheceram o edifício conventual e deram as boas- vindas aos 35 colonos que estrearam mais uma dependência da benemérita instituição.

De início, “o pensamento de criar aqui tão útil e simpática instituição de caridade”6 teve bom acolhimento por parte do público das povoações mais próximas, que assistiram com apa- rente serenidade à troca dos inquilinos religiosos por uma população mais jovem e irrequieta,

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Palavras-chave: Colónia Agrícola da Casa Pia, Anormais, Instituição total. 6

SILVA, César da, “Considerações a respeito da Colónia Agrícola de S. Bernardino. 5 de Maio de 1913”. In introdução à colectânea do Jornal O AGRICULTOR, p. 1.

vinda dos lados da capital. “Houve festa popular, deveras concorrida, de modo que o seu início

foi brilhante.”78

A data escolhida para a inauguração da Colónia Agrícola não podia, pois, ser mais simbó- lica: associava-se a obra da Casa Pia à interpretação fiel do lema da República – Ordem e Traba-

lho9, procurando que nos campos e oficinas deste instituto se formassem trabalhadores que, capazes de ganhar o seu sustento, fossem úteis a si e à sociedade.

Contudo, a especificidade desta Colónia transcende o âmbito das escolas inseridas no meio rural, tão em voga neste período graças à propaganda do movimento da Escola Nova. Ain- da que se possa relacionar este projecto com o ideário da Educação Nova, ao qual, certamente, aproveitou algumas práticas, pretende-se, sobretudo, salientar o carácter inovador que acom- panha a criação da Colónia Agrícola que, não sendo uma escola votada à educação de elites, fama a que as escolas novas10 não se furtam, sugere o resgate “à vida miserável da capital

daqueles que, por suas condições, não poderiam aí alcançar uma situação desafogada”11, devido à sua deficiência física ou incompetência moral e intelectual.12 Por conseguinte, a Colónia Agrí- cola não deixa de ser uma escola nova, no sentido de trazer novidade ao panorama educativo da época, na medida em que é uma “Escola de Anormais”13, uma alternativa à escola de classes homogéneas na qual o anormal era apontado como elemento desestabilizador, “embaraço nas

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“5 de Outubro”, in Jornal O AGRICULTOR, n.º 36, de 1916/10/05, p. 1-2. 8

“Foi-me muito grato saber que a inauguração da Colónia correu entusiasticamente e que foram avultados os presen- tes recebidos. Concordo plenamente em que os agradecimentos aos filantrópicos oferentes sejam feitos por V. Exa. em nome desta Direcção, e bem assim a todos os que concorreram para o brilhantismo dessa solenidade”. Ofício n.º 560, da Direcção da Casa Pia, dirigido ao Professor-Regente da Colónia Agrícola, 1912/10/11. CPL, “Correspondência expedida n.º 6”, p. 486-487.

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FERREIRA, Costa, 1913: 145. 10

Por escolas novas entendem-se as instituições formais portadoras de um projecto específico de organização escolar, estruturados a partir do ideário da Educação Nova. FIGUEIRA, 2004: 17.

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“5 de Outubro”, in Jornal O AGRICULTOR, n.º 48, de 1917/10/05, p. 1-2. 12

SILVA, César da, “Considerações a respeito da Colónia Agrícola de S. Bernardino. 5 de Maio de 1913”. In introdução à colectânea do Jornal O AGRICULTOR, p. 5.

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SILVA, César da, “Considerações a respeito da Colónia Agrícola de S. Bernardino. 5 de Maio de 1913”. In introdução à colectânea do Jornal O AGRICULTOR, p. 6.

aulas, pela sua desinquietação e retardamento”.14 É a necessidade de uma escola por medida, capaz de responder à normalização destes resíduos, que conduz à criação desta instituição total,

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valorizada pela separação que mantém da sociedade perversa e corruptora.

Partindo da análise de correspondência trocada entre a Direcção da Casa Pia, a Colónia e outras entidades públicas e privadas, actas dos debates parlamentares, documentos iconográfi- cos, notícias da imprensa diária da capital e o órgão escolar da Colónia Agrícola, O Agricultor16, procurou-se reconhecer nesta dependência da Casa Pia o espírito inovador que acompanha mui- tos dos projectos experimentados por esta instituição, e partindo do instrumento fornecido por Goffman para a análise de estabelecimentos congéneres, não esquecer que estamos na presen- ça de uma instituição total, que deixa pouca margem de manobra às vontades e liberdades de cada um, mas que cria uma escola à medida das limitações e da anormalidade do Outro, com o

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SILVA, César da, “Considerações a respeito da Colónia Agrícola de S. Bernardino. 5 de Maio de 1913”. In introdução à colectânea do Jornal O AGRICULTOR, p. 6.

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Como Goffman adverte, a classificação de instituições totais proposta “não é clara ou exaustiva, nem tem uso analí- tico imediato, mas dá uma definição puramente denotativa da categoria como um ponto de partida concreto”. Foi neste sentido que nos apropriámos do conceito desenvolvido por Goffman. Sendo aquele que melhor se adequa à interpretação que fizemos da Colónia Agrícola de S. Bernardino, aceitámos que, na sua essência, este instituto se desenha como uma “instituição total”, ainda que algumas das suas características se desviem desta tipologia não estanque. Por conseguinte, é no cruzamento destas particularidades que se localiza a natureza do nosso estudo. 16

O AGRICULTOR, jornal da Colónia Agrícola da CPL, foi uma publicação que surgiu um ano após a inauguração do estabelecimento e percorreu toda a sua existência, acompanhando os sucessos e dificuldades que experimentou. Composto por 54 números, desde 5 de Outubro de 1913 a 5 de Outubro de 1918, nota-se a falta do n.º 27, corres- pondente ao mês de Janeiro de 1916, e do n.º 47, relativo ao mês de Setembro de 1917, ausências que não encon- tram explicação nos jornais dos meses seguintes. No mês de Março de 1914 também não houve publicação, surgindo a explicação no mês seguinte: o professor-regente gozou a licença concedida por Costa Ferreira. Além destas, 1918 foi o ano que denunciou uma maior desmotivação por parte do responsável pela publicação: apenas quatro números viram a luz do dia – os meses de Janeiro, Fevereiro, Agosto e o derradeiro Outubro, sendo, também, o ano mais atri- bulado e que maior empenhamento exigiu do professor-regente. Todos os números tinham a mesma estrutura – salvo raras excepções motivadas pela ausência de material para inserir nos campos inicialmente estipulados. Neste sentido, constavam dois artigos de autoria de César da Silva, nos quais aproveitava para transmitir conhecimentos relativos à agricultura e pecuária – Instruir – e/ou narrar situações típicas do quotidiano, apontando orientações e designando os valores morais que os alunos deveriam seguir – Educar. Além destes artigos, constava ainda o registo do “Movimento da Colónia”, que se dividia em duas categorias: “Principais trabalhos realizados nas oficinas e obras da Colónia”, que consistia na exposição de todas as actividades desenvolvidas nas oficinas e trabalhos agrícolas, e os “Acontecimentos mais importantes”, relato de entradas e saídas de alunos e funcionários, visitas de ilustres – o director da Casa Pia, do director do Asilo Elias Garcia, de alunos de outras instituições de assistência, etc., casos de indisciplina, elogios e repreensões, etc. Esta colecção pode ser consultada no Arquivo Histórico do Centro Cultural Casapiano.

intuito de o libertar da dependência e do preconceito. Se, por um lado, se torna fundamental afastar da sociedade os elementos perturbadores da ordem, por outro, existe a intenção de os regenerar longe dessa mesma sociedade que os segrega, munindo-os de conhecimentos teóricos e práticos que lhes permitam o seu sustento, sem nunca desprezar os seus direitos e deveres cívicos. Mais do que um trabalhador capaz, procurava-se sugerir um determinado sistema de valores que o convertesse num cidadão consciente e, acima de tudo, útil. A construção desta

identidade marcha sobre uma linha ténue que resvala entre a opressão e a liberdade, mas que se

impõe e se justifica como uma “convenção social necessária”17 que importa preservar.

Nos momentos de leitura que se seguem, convida-se o leitor a penetrar nos claustros de S. Bernardino, a sentir o cheiro a maresia que invade as suas divisões, a tirar a medida aos uni- formes dos rapazes enquanto eles se dedicam aos trabalhos das oficinas; ou enquanto percor- rem as jeiras da propriedade com as cestas carregadas de uvas. Sintamos o peso da solidão quando vivida no meio de muitos. E olhemos o outro até experimentarmos a sua nudez, sem véus que nos cubram, à mercê da curiosidade. E sintamos a agrura do castigo e a promoção do elogio, quando só um e outro nos resgatam do anonimato. Talvez, ao apalpar todas estas reali- dades, sejamos capazes de conceber o que é viver numa instituição totalmente asfixiante, cujas paredes estreitam o ar que se respira. Talvez, o capítulo que se segue consiga transportar o lei- tor para esse universo paralelo.

Procuremos, ainda, transpor as barreiras que se erguem entre o leitor e os habitantes da Colónia. Se é verdade que “a história não pode ser escrita a menos que o historiador possa atin-

gir algum tipo de contacto com a mente daqueles sobre quem está escrevendo”18, o próximo convite sugere-nos uma incursão às páginas d’O Agricultor e aos propósitos de quem as escreve. Que estas palavras nos aproximem das de César da Silva, que o nosso discurso não aprisione interditos. Pode ser que o leitor alcance a “verdade” do Professor-Regente.

Não fiquemos, porém, reféns dos muros do convento. É preciso desenhar as relações mantidas com quem está do lado de fora. E é preciso compreender que laços se estabelecem entre uns rapazes do género irrequieto vindos da capital e a gente “beata, hipócrita”, que envol- ve a Colónia. As nuances destas relações, mormente conflituosas, são traçadas um pouco mais adiante. 17 BAUMAN, 2005: 13-14. 18 CARR, 1996: 49.

Ao seguir este caminho, procuramos fazer um retrato, mais ou menos nítido, da Colónia Agrícola da Casa Pia de Lisboa, evocando a sua trajectória, no sentido de enquadrar a sua criação na identificação de um quadro de necessidades educativas especiais evidenciadas por um grupo de alunos específico e diagnosticadas pelo professor da Casa Pia, César da Silva, que, indissociá- vel de todo este processo, permite-nos reconhecer no seu percurso a importância do(s) indiví- duo(s) na dinâmica social.